(por Robert E. Howard)
1) A Notícia da Guerra
“A guerra está no vento – os corvos estão se reunindo”.
Uma voz ecoou
entre as extensões, açoitadas pelos ventos, das montanhas que se erguiam a
ambos os lados. Na entrada do desfiladeiro, que se abria num penhasco colossal,
Conn, o escravo, girou, rosnando como um lobo encurralado. Ele era alto e volumoso,
porém de membros longos, a ferocidade do selvagem dominante em seus ombros
largos, peito forte e peludo, e longos braços maciçamente musculosos. Suas
feições estavam em harmonia com o aspecto de seu corpo: uma mandíbula forte e
teimosa, testa baixa e inclinada, encimada por uma clara cabeleira desgrenhada,
a qual se acrescentava à selvageria de sua aparência, não mais do que seus
frios olhos azuis. Sua única roupa era uma pequena tanga. Seu próprio vigor
lupino era proteção suficiente contra os elementos da Natureza – pois ele era
um escravo numa era em que até mesmo os patrões viviam vidas tão duras quanto o
férreo meio-ambiente que os geravam.
Agora Conn
estava meio agachado, de espada pronta, um bestial rosnado de ameaça zunindo em
sua garganta taurina; e, do desfiladeiro, saiu um homem alto, envolto num manto
sob o qual o escravo vislumbrou um brilho de malha. O forasteiro usava um chapéu
desleixado, puxado tão para baixo que, de seu rosto sombreado, apenas um olho
brilhava, frio e sombrio como o mar cinza.
- Bem, Conn,
escravo de Wolfgar filho de Snorri – disse o forasteiro, numa voz grave e
poderosa –, para onde foge, com o sangue de seu senhor nas mãos?
- Eu não lhe
conheço – resmungou Conn –, nem sei como me conhece. Se quiser me levar,
assobie para seus cães e termine com isso. Alguns vão sentir o gosto do aço,
antes que eu morra.
- Idiota! –
havia um profundo desdém no tom reverberante. – Não sou um caçador de servos
fugitivos. Há assuntos mais turbulentos circulando. O que você cheira no vento
marinho?
Conn se voltou
para o mar, que lambia cinza os penhascos lá embaixo. Ele estufou o peito
forte, suas narinas se alargando quando respirou fundo.
- Sinto o
cheiro da espuma salgada – ele respondeu.
A voz do
forasteiro era como o raspar de espadas:
- O cheiro de
sangue está no vento... o almíscar da carnificina e os gritos da matança.
Conn sacudiu a
cabeça, perplexo:
- É apenas o
vento entre os penhascos.
- Há guerra em
sua terra natal – disse sombriamente o forasteiro. – As lanças do sul se
ergueram contra as espadas do Norte, e os fogos da morte estão iluminando a
terra, como o sol do meio-dia.
- Como pode
saber disto? – o escravo perguntou apreensivo. – Nenhum navio atraca em Torka
há semanas. Quem é você? De onde veio? Como sabe destas coisas?
- Não consegue
ouvir o soar das gaitas de fole, o entrechocar dos machados? – respondeu o
forasteiro alto. – Não consegue sentir o cheiro do ranço da guerra, que o vento
traz?
- Eu não –
respondeu Conn. – São muitas e longas léguas, de Torka até Erin, e ouço apenas
o vento entre os penhascos e as gaivotas guinchando sobre os promontórios. Mas,
se há guerra, eu deveria estar entre os guerreiros de meu clã, embora minha
vida esteja ameaçada por Melaghin, porque matei um de seus homens numa
contenda.
O forasteiro
não deu atenção, erguendo-se como uma estátua, enquanto olhava para bem longe,
por todas as extensões de enevoadas montanhas áridas e ondas nebulosas.
- É o aperto
da morte – ele disse, como quem fala para si mesmo. – Agora está chegando a
ceifa de reis e de chefes, como se fosse uma colheita. Sombras gigantescas espreitam,
de mãos ensangüentadas, pelo mundo, e a noite está caindo em Asgaard. Ouço os
gritos de heróis há muito mortos, sibilando no vazio, e os brados de deuses
esquecidos. Para cada ser, há um tempo determinado, e até mesmo os deuses devem
morrer...
Ele se
enrijeceu subitamente, com um grito enorme, esticando os braços em direção ao
mar. Nuvens altas e rolantes, deslizando gigantescamente diante da ventania,
cobriram o mar. Da bruma, saiu um grande vento e, do vento, saiu uma massa
rodopiante de nuvens. E Conn gritou. Das nuvens voadoras, sombria e
aterradoramente, saíram doze figuras. Ele viu, como num pesadelo, doze cavalos
alados e seus montadores: mulheres em flamejante malha prateada e elmos com
asas, cujos cabelos dourados flutuavam ao vento atrás delas, e cujos olhos
estavam fixos em alguma meta aterradora, além do alcance dele.
- As
Escolhedoras de Mortos! – trovejou o forasteiro, abrindo bem os braços, num
terrível gesto. – Elas cavalgam no crepúsculo do Norte! Os cascos alados
empurram as nuvens rolantes, a teia do Destino está tecida, o Tear do Fuso
quebrado! O Destino ruge sobre os deuses, e a noite cai em Asgaard! A noite e
as trombetas do Ragnarok!
O manto foi
aberto ao vento, revelando a figura poderosa e vestida em malha; o chapéu
desleixado caiu para o lado; as madeixas do cabelo se soltaram. E Conn recuou diante
do brilho do olho do estranho. E viu que, onde deveria estar o outro olho, só havia
uma órbita vazia. Por isso, o pânico se apossou dele, de modo que deu a volta e
correu desfiladeiro abaixo, como um homem que foge de demônios. E um olhar
tímido para trás lhe mostrou que o forasteiro se destacava contra o céu rasgado
por nuvens, o manto soprado pelo vento, braços erguidos; e parecia ao escravo
que o estranho havia crescido monstruosamente em estatura; que ele avultava
colossal entre as nuvens, sobrepujando as montanhas e o mar, e que ele estava
subitamente cinza, como se tivesse uma idade extensa.
2) A Garota-Lobo de Craglea
Oh, Senhores do Norte; nós vimos aqui com a contagem dos mortos,
Dos corações partidos, lares queimados e telhados quebrados no alto.
Lançamos simples dados para equilibrar, perto do mar cor-de-chumbo,
Mil anos de injustiça e sofrimento com uma hora sangrenta de matança.
A ventania de
primavera havia se apagado. O céu sorria azul no alto, e o mar estava calmo
como uma piscina, com apenas alguns pedaços dispersos de madeira flutuante ao
longo da praia, para darem muda evidência de sua traição. Ao longo da praia,
cavalgava um homem solitário, seu manto cor de açafrão balançando atrás de si e
seu cabelo amarelo lhe golpeando o rosto na brisa.
Súbito, ele
puxou as rédeas tão bruscamente, que seu cavalo animado empinou e bufou. De
entre as dunas de areia, aparecera um homem alto e poderoso, de aspecto selvagem
e cabeleira desgrenhada, e vestindo apenas uma tanga.
- Quem é você,
para me abordar assim? – exigiu o cavaleiro. – Você, que usa a espada de um
chefe, mas tem a aparência de um homem sem mestre e, apesar disso, usa o colar
de um servo?
- Sou Conn,
jovem senhor – respondeu o viandante. – Outrora um proscrito, outrora um
escravo... e sempre um homem do Rei Brian, quer ele queira ou não. E eu lhe conheço:
você é Dunlag O’Hartigan, amigo de Murrogh, filho de Brian, príncipe do Dal
Cais. Diga-me, bom senhor: há guerra na terra?
- Com certeza
– respondeu o jovem chefe –; agora mesmo, o Rei Brian e o Rei Malachi estão
acampados em Kilmainham, diante de Dublin. Só cavalguei do acampamento esta
manhã. De todas as terras dos vikings, o Rei Sitric de Dublin convocou os matadores;
e gaélicos e dinamarqueses estão prontos para se juntarem à batalha: e uma batalha
como Erin nunca vira antes.
Os olhos de
Conn se nublaram.
- Por Crom! –
ele murmurou, meio para si mesmo. – É exatamente como o Homem Cinza disse...
mas como ele sabia? Certamente era tudo um sonho.
- Como chegou
aqui? – perguntou Dunlag.
- De Torka,
nas Órcades, num barco aberto, arremessado como uma lasca sobre a maré.
Outrora, eu matei um homem de Meath, kern
de Melaghin, e o coração do Rei Brian se enfureceu contra mim por causa da
trégua quebrada; por isso, fugi. Bom, a vida de um fora-da-lei é dura. Thorwald
Raven, chefe das Hébridas, me pegou quando eu estava fraco devido à fome e aos
ferimentos, e pôs este colar em meu pescoço. – O kern tocou o pesado aro de cobre que lhe envolvia o pescoço
taurino. – Então, ele me vendeu a Wolfgar, filho de Snorri, em Torka. Era um
mestre duro. Eu fazia o trabalho de três homens, ficava atrás dele e dizimava
homens livres como se fossem trigo, enquanto ele guerreava com os vizinhos.
Como recompensa, ele me deu cascas de sua mesa, um chão de terra nua para
dormir e profundas cicatrizes em minhas costas. Finalmente, não consegui
agüentar mais, saltei sobre ele em seu próprio skalli (1) e lhe esmaguei o crânio com um tronco de
lenha. Então, peguei a espada dele e fugi para as montanhas, preferindo me
congelar ou passar fome lá do que morrer sob o chicote.
“Lá nas
montanhas”, novamente, os olhos de Conn se nublaram de dúvida, “Acho que
sonhei”, ele disse, “Vi um homem alto e cinza, que falava de guerra em Erin, e,
no meu sonho, vi valquírias cavalgando para o sul, sobre as nuvens...
“Melhor morrer
no mar, numa boa aventura, do que passar fome nas montanhas órcades”, ele
continuou, com mais convicção, seus pés em chão firme. “Por sorte, achei um
barco de pescador, com um suprimento de comida e água, e saí ao mar. Por Crom!
Estou impressionado por ainda estar vivo! O vendaval me pegou em suas presas,
noite passada, e só sei que enfrentei o mar no bote, até este afundar sob meus
pés, e depois o enfrentei nas ondas nuas, até perder toda a minha consciência. Ninguém
ficou mais surpreso do que eu mesmo, quando recuperei os sentidos esta manhã,
caído como um pedaço de madeira flutuante na praia. Fiquei deitado sob o sol
desde então, tentando aquecer o travo frio do mar em meus ossos”.
- Pelos
santos, Conn – disse Dunlag. – Gosto do seu espírito.
- Espero que o
Rei Brian também goste – grunhiu o kern.
- Junte-se à
minha tropa – respondeu Dunlag. – Falarei por você. O Rei Brian tem assuntos
mais importantes em mente do que uma mera rixa de sangue. Neste mesmo dia, as
hostes inimigas estão paradas para um aperto mortal.
- O estilhaçar
de lanças começará pela manhã? – perguntou Conn.
- Não pela
vontade do Rei Brian – respondeu Dunlag. – Ele está pouco disposto a derramar
sangue na Sexta-Feira da Paixão. Mas quem sabe quando os pagãos cairão sobre
nós?
Conn pôs uma
mão sobre o estribo de couro de Dunlag, e caminhou a passos largos ao lado
dele, enquanto o cavalo andava calmamente.
- Há uma
reunião notável de homens armados?
- Mais de 20
mil guerreiros em cada lado. A baía de Dublin está escurecida pelos
navios-dragões. Das Órcades vem Jarl Sigurd, com sua bandeira de corvo. Da Ilha
de Man vem o viking Brodir, com 20 longas embarcações. Do Danelaw (2), na Inglaterra, vem o Príncipe Amlaff, filho
do rei da Noruega, com 2000 homens. De todas as terras, as hostes se
juntaram... da Escócia, Inglaterra, Germânia e das terras da Escandinávia.
“Nossos
espiões afirmam que Sigurd e Brodir têm mil homens armados em malhas de aço, da
cabeça ao calcanhar, que lutam numa cunha sólida. Os dalcasianos talvez tenham
dificuldade em quebrar aquela muralha de ferro. Mas, se for a vontade de Deus,
nós triunfaremos. Entre os outros chefes e guerreiros, há Anrad o berserk, Hrafn o Ruivo, Platt da
Dinamarca, Thorstein e seu companheiro de armas Asmund; Thorleif Hordi, o
Forte, Athelstane o Saxão e Thorwald Raven, Jarl (3) das Hébridas”.
Diante daquele
nome, Conn sorriu selvagemente e dedilhou seu colar de cobre:
- É uma grande
reunião, se Sigurd e Brodir vêm juntos.
- Isso foi
realizado por Gormlaith – respondeu Dunlag.
- Chegou das
Órcades a notícia de que Brian se divorciou de Kormlada – disse Conn, dando
inconscientemente à rainha seu nome nórdico.
- Sim... e o
coração dela está negro de ódio contra ele. É estranho que uma mulher tão bela
de corpo e rosto tenha a alma de um demônio.
- Verdade de
Deus, meu senhor. E quanto ao irmão dela, o Príncipe Mailmora?
- Quem, senão
o instigador de toda a guerra? – gritou Dunlag raivosamente. – O ódio entre ele
e Murrogh, há muito em estado latente, finalmente explodiu em chamas,
incendiando ambos os reinos. Os dois estavam errados... Murrogh talvez mais do
que Mailmora. Gormlaith incitou o irmão dela. Não acreditei que o Rei Brian
tenha agido sabiamente, quando deu honras àqueles contra os quais havia guerreado.
Não foi bom ele ter se casado com Gormlaith e dado a própria filha para o filho
de Gormlaith, Sitric de Dublin. Com Gormlaith, ele recolheu as sementes da
discórdia e do ódio. Ela é uma libertina: ela já foi a esposa de Amlaff Cuaran,
o dinamarquês; depois, foi a esposa do Rei Malachi de Mide, e ele a pôs de lado
por causa de sua maldade.
- E quanto a
Melaghin? – perguntou Conn.
- Ele parece
ter esquecido a luta na qual Brian lhe arrebatou a coroa de Erin. Juntos, os
dois reis se movem contra os dinamarqueses e Mailmora.
Enquanto
conversavam, eles passaram ao longo da praia nua, até chegarem a uma extensão
áspera e irregular de penhascos e matacões; e lá, eles pararam subitamente. Em
um matacão se sentava uma garota, vestida numa tremeluzente roupa verde, cujo
modelo era tão parecido com escamas que, por um instante de perplexidade, Conn
pensou estar vendo uma sereia saída das profundezas.
- Eevin! –
Dunlag desceu de seu cavalo, lançando as rédeas para Conn, e avançou para lhe
tomar as mãos esguias nas dele. – Você mandou me chamar, e eu vim... você
esteve chorando!
Conn,
segurando o cavalo, sentiu um impulso de se retirar, tomado por náuseas supersticiosas.
Eevin, com sua forma esguia, abundantes e tremeluzentes cabelos dourados, e
olhos profundos e misteriosos, não era como qualquer outra jovem que ele já tinha
visto. Todo o seu aspecto era diferente, tanto das mulheres do povo nórdico
quanto das dos gaélicos, e Conn a reconheceu como um membro daquela raça
mística que desaparecia gradualmente, e que havia ocupado a terra antes da
chegada de seus ancestrais; alguns deles ainda moravam em cavernas ao longo do
mar, e nas profundezas de florestas não-freqüentadas – os feiticeiros De
Danaans, diziam os irlandeses, e parentes das fadas e elfos.
- Dunlag! – A garota
o agarrou num abraço convulsivo. – Você não deve entrar na batalha... a
prudência sobrenatural está em mim, e eu sei que, se você for para a guerra,
irá morrer! Venha comigo... e eu lhe esconderei... vou lhe mostrar as cavernas escuras
e púrpuras, semelhantes aos castelos de reis do fundo do mar, e florestas
sombreadas, onde ninguém, exceto meu povo, colocou o pé. Venha comigo, e
esqueça guerras, ódios, orgulhos e ambições, os quais não passam de sombras sem
realidade nem substância. Venha e conheça os esplendores sonhadores de lugares
distantes, onde medo e ódio não são nada, e os anos parecem horas, passando
eternamente.
- Eevin, meu
amor! – Dunlag gritou aflito. – Você me pede aquilo que está além do meu poder.
Quando meu clã se move para a batalha, eu devo estar ao lado de Murrogh, embora
a morte certa seja meu quinhão. Eu te amo mais do que a minha vida, mas, pela
honra de meu clã, isto é uma coisa impossível.
- Eu temia
muito isso – ela respondeu, resignada. – Vocês, do Povo Alto, não passam de crianças...
tolos, cruéis e violentos... matando uns aos outros em contendas infantis. Isto
é castigo que caiu sobre mim, que sou a única de todo o meu povo a amar um
homem do Povo Alto. Suas próprias mãos ásperas machucaram, sem querer, minha
pele suave, e seu espírito violento também machuca, sem querer, meu coração.
- Eu jamais
lhe machucaria, Eevin – Dunlag começou a falar, afligido.
- Eu sei – ela
respondeu. – As mãos dos homens não são feitas para manusear o corpo e coração
delicados de uma mulher do Povo Moreno. É meu destino. Eu amo e já perdi. Minha
visão é a visão de longo alcance do povo picto, a qual vê através do véu e das
névoas da vida, atrás do passado e além do futuro. Você entrará na batalha e as
harpas cantarão intensamente por você; e Eevin de Craglea chorará até se
derreter em lágrimas, e o sal das lágrimas se misturar com o frio mar salgado.
Dunlag
inclinou a cabeça sem palavras, pois a voz jovem dela vibrou com o antigo
sofrimento do sexo feminino; e até mesmo o rude kern arrastou inquieto os pés.
- Eu lhe
trouxe um presente contra a hora da batalha – ela disse, curvando-se graciosamente
para erguer algo que capturava o brilho do sol. – Ela pode não lhe salvar, os
fantasmas em minha alma sussurram... mas espero, sem esperanças, em meu coração
de mulher. Você vai vesti-la... oh, vista, meu amor!
Dunlag mirou
incerto aquilo que ela estirava diante dele. Conn, aproximando-se devagar e
esticando o pescoço, viu uma cota-de-malha de estranho feitio e um elmo como
ele nunca tinha visto antes. Não havia viseira móvel – apenas uma fenda aberta
na frente, para enxergar –, e o feitio era de uma época anterior e mais
civilizada, ao qual nenhum homem vivo conseguiria duplicar
Dunlag olhou
para aquilo desconfiado, com a típica antipatia celta por armaduras. Os bretões
que enfrentaram os legionários de César lutavam nus, julgando por covarde o
homem que se envolvesse dentro de metal, e em eras posteriores, os clãs
irlandeses acolheram a mesma convicção, com relação aos cavaleiros vestidos em
malha de Strongbow (4).
- Eeevin –
disse Dunlag –, meus irmãos vão rir de mim, se eu me enclausurar em ferro,
feito um dinamarquês. Como um homem consegue ter liberdade plena dos membros,
sobrecarregado por tal vestimenta? De todos os gaélicos, somente Turlogh Dubh
usa armadura completa.
- E algum
homem dos gaélicos é menos bravo que ele? – ela gritou ardentemente. – Oh,
vocês do Povo Alto são tolos! Durante eras, os dinamarqueses encouraçados têm
lhes pisado, quando vocês já poderiam tê-los varrido da terra há muito tempo,
se não fosse pelo seu orgulho idiota.
- Não
totalmente orgulho, Eevin – argumentou Dunlag. – Qual a utilidade da malha, ou da armadura de
placas, contra o machado dalcasiano, que corta ferro como se fosse pano?
- A malha é
capaz de desviar as espadas dos dinamarqueses – ela respondeu –; e nem mesmo o
machado dos O’Briens rasgaria esta armadura. Ela ficou durante muito tempo nas
profundas cavernas submarinas do meu povo, cuidadosamente protegida da ferrugem.
Quem a usou foi um guerreiro de Roma, há muito tempo, antes das legiões serem afastadas
da Bretanha. Na antiga guerra nas fronteiras de Gales, ela caiu nas mãos do meu
povo e, como quem a usou era um grande príncipe, meu povo guardou-a como um
tesouro. Agora eu lhe imploro que a vista, se você me ama!
Dunlag pegou
hesitante a armadura; ele não poderia saber que aquela foi a armadura usada por
um gladiador nos dias do Império Romano tardio, nem imaginava por qual capricho
do acaso ela foi vestida por um oficial da legião britânica. Dunlag pouco sabia
daquilo; ele, que, como muitos dos seus chefes-irmãos, não sabia ler nem
escrever; conhecimento e educação eram para monges e padres; um guerreiro era
mantido ocupado demais para cultivar as artes e ciências. Ele pegou a armadura
e, por amar a estranha jovem, concordou em vesti-la:
- Muito bem,
Eevin. Se ela se ajustar em mim, eu a usarei por amor a você.
- Ela vai se
ajustar – ela respondeu. – Mas não vou mais lhe ver vivo.
- Isso está
nas mãos de Deus, pequena – ele respondeu gentilmente. – Muitos cairão, e eu
posso cair no primeiro ataque; mas possa ser que, mais uma vez, a gente caminhe
novamente de mãos dadas pela floresta, quando o crepúsculo lança seu manto
cinza sobre as colinas de Craglea.
Ela esticou os
braços brancos e ele a abraçou avidamente, enquanto Conn desviava o olhar.
Então, Dunlag gentilmente tirou os braços dela de seu pescoço, ao qual eles envolviam,
beijou-a e se afastou.
Sem olhar para
trás, ele montou seu corcel e cavalgou dali, com Conn trotando facilmente ao
seu lado. Olhando para trás, no anoitecer que caía, o kern viu Eevin de pé e imóvel; uma dolorosa figura de desespero.
3) A Reunião das Águias
As fogueiras
do acampamento lançavam chuvas de faíscas para o alto, e iluminavam a terra
como se fosse dia. À distância, avultavam as muralhas de Dublin, escuras e ameaçadoramente
silenciosas; diante daquelas muralhas, bruxuleavam outras fogueiras onde os
guerreiros de Leinster, sob o comando do Rei Mailmora, afiavam seus machados
para a batalha que viria. Lá na baía, a luz das estrelas brilhava sobre
inúmeras velas, fileiras de escudos e arqueadas proas em forma de serpente.
Entre a cidade e as fogueiras do exército irlandês, se estendia a planície de
Clontarf, marcada pelo Bosque de Tomar, escuro e sussurrante à noite, e as
águas de Liffey, escuras e manchadas pelas estrelas.
Diante de sua
tenda, a luz do fogo tremulando em sua barba branca e reluzindo de seus
não-obscurecidos olhos de águia, sentava-se o grande Rei Brian Boru, entre seus
chefes. O rei era idoso – setenta e três invernos haviam se passado sobre sua
cabeça leonina... longos anos, abarrotados de guerras ferozes e intrigas
sangrentas. Mas suas costas eram retas, seus braços não haviam murchado, e sua
voz era grave e ressonante. Seus chefes se erguiam ao seu redor – guerreiros
altos, com mãos endurecidas pela guerra e olhos umedecidos pelo sol, pelos
ventos e lugares altos; príncipes tigrinos, em suas túnicas ricas, cintos
verdes, sandálias de couro e mantos amarelos presos com grandes broches de
ouro.
Eles eram um
cortejo de águias de guerra: Murrogh, filho mais velho de Brian e orgulho de
toda Erin – alto, de ombros largos, poderosamente musculoso, com grandes olhos
azuis que nunca ficavam calmos, mas dançavam de alegria, ficavam opacos de
tristeza ou ardiam de fúria –, e o jovem filho de Murrogh: Turlogh, um jovem
flexível de 15 anos, com cachos dourados e um rosto impaciente – tenso de
ansiedade em testar sua mão pela primeira vez no grande jogo da guerra. E havia
aquele outro Turlogh, seu primo – Turlogh Dubh, que era apenas alguns anos mais
velho, mas que já estava em sua máxima estatura e era famoso em toda Erin por
suas fúrias berserks e sua habilidade
no uso mortífero do machado. E havia Meathla O’Faelan, príncipe de Desmond ou
Munster do Sul, e sua família – os Grandes Intendentes da Escócia –, Lennox e
Donald de Mar, que haviam atravessado o Canal do Norte com seus selvagens
homens das terras altas – homens altos, sombrios, magros e silenciosos. E havia
Dunlag O’Hartigan, e O’Hyne, chefe de Connacht. Mas O’Kelly, chefe-irmão de
O’Hyne e príncipe de Hy Many, estava na tenda de seu tio, o Rei Malachi O’Neill,
a qual estava instalada no acampamento dos homens de Meath, à parte dos
dalcasianos, e o Rei Brian meditava sobre o assunto. Pois, desde o pôr-do-sol,
O’Kelly estava em conferência secreta com o Rei de Meath, e homem nenhum sabia
o que se passava entre eles.
Donagh, filho de Brian, também não estava entre os chefes diante do pavilhão real, pois ele estava longe dali, com um bando, devastando as posses de Mailmora de Leinster.
Donagh, filho de Brian, também não estava entre os chefes diante do pavilhão real, pois ele estava longe dali, com um bando, devastando as posses de Mailmora de Leinster.
Agora, Dunlag
O’Hartigan se aproximava do rei, trazendo consigo Conn, o kern.
- Milorde –
disse Dunlag –, aqui está um homem que foi proscrito no passado, passou por um
encarceramento vil entre os galls e arriscou a própria vida na tempestade e no
mar, para retornar e lutar sob sua bandeira. Ele veio das Órcades num bote, nu
e só, e o mar o lançou quase sem vida na areia.
Brian ficou
rígido; sua memória era tão aguda quanto uma pedra afiada, até mesmo para
pequenas coisas.
- Tu! – ele
gritou. – Sim, eu me lembro dele. Bem, Conn, você voltou... e com suas mãos
ensangüentadas!
- Sim, Rei
Brian – Conn respondeu impassível –; minhas mãos estão vermelhas, é verdade, e
assim eu gostaria de lavar a mancha com sangue dinamarquês.
- E você ousa
ficar diante de mim, a quem deve pagar com a vida?
- Isto eu sei
por mim mesmo, Rei Brian – disse Conn destemidamente. – Meu pai esteve com você
em Sulcoit e no saque de Limerick, e antes disso, lhe seguira nos seus dias de
perambulação e foi um dos 15 guerreiros que permaneceram com você, quando o Rei
Mahon, seu irmão, veio à sua procura na floresta. E meu avô seguiu Murkertagh
dos Mantos de Couro, e meu povo tem lutado contra os dinamarqueses desde os
dias de Thorgils. Você precisa de homens que possam dar golpes fortes, e é meu
direito morrer em batalha contra meus antigos inimigos, ao invés de ficar
vergonhosamente pendurado numa forca.
O Rei Brian
assentiu com a cabeça:
- Você falou
bem. Fique com sua vida. Seus dias de proscrito terminaram. Talvez o Rei
Malachi pensasse o contrário, vez que ele era um homem de quem você matou,
mas... – ele parou; uma velha dúvida lhe roeu a alma, ao pensar no rei de
Meath. – Deixa estar – ele prosseguiu. – Deixe como está, até após a batalha...
talvez seja o fim do mundo para todos nós.
Dunlag deu um
passo em direção a Conn e pôs a mão no colar de cobre:
- Vamos tirar
isto; você agora é um homem livre.
Mas Conn
sacudiu a cabeça:
- Não até eu
matar Thowald Raven, que o colocou em meu pescoço. Eu o usarei na batalha, como
sinal de não-rendição.
- Você usa uma
espada nobre, kern – disse
repentinamente Murrogh.
- Sim,
milorde. Murkertagh dos Mantos de Couro empunhava esta lâmina, até Blacair o
Dinamarquês matá-lo em Ardee; e ela ficou na posse dos Gall, até eu tirá-la do
corpo de Wolfgar, filho de Snorri.
- Não fica bem
um kern usar a espada de um rei –
disse bruscamente Murrogh. – Que um dos chefes a pegue e dê a ele um machado,
no lugar dela.
Os dedos de
Conn se fecharam ao redor do cabo.
- Quem quiser
tirar a espada de mim, melhor que use aquele machado primeiro – ele disse
sombriamente. – E logo.
O temperamento
quente de Murrogh ardeu. Com uma praga, ele caminhou a passos largos até Conn,
que o encarou olhos nos olhos e não recuou um passo.
- Fique calmo,
meu filho – ordenou o Rei Brian. – Deixe o kern
com a lâmina.
Murrogh
encolheu os ombros. Seu humor mudou:
- Sim, fique
com ela e me siga na batalha. Veremos se a espada de um rei, na mão de um kern, pode abrir um caminho tão largo
quanto a lâmina de um príncipe.
- Meus
senhores – disse Conn –, possa ser que Deus queira que eu caia no primeiro
ataque... mas as cicatrizes da escravidão ardem profundamente nas minhas costas
esta noite, e não ficarei para trás quando as lanças se estilharem.
4) O Castelo dos Reis do Mar
“Por isso, seu destino está sobre vocês,
Está sobre vocês e seus reis...”.
(Chesterton)
Enquanto o Rei
Brian conversava com seus chefes na planície sobre Clontarf, um ritual medonho
estava sendo feito dentro do castelo sombrio, que era ao mesmo tempo a
fortaleza e o palácio do rei de Dublin. Os cristãos tinham boa razão para temer
e odiar aqueles muros sombrios; Dublin era uma cidade pagã, e obscuros e
terríveis eram os atos praticados lá dentro.
Numa câmara
interna do castelo, erguia-se o viking Brodir, assistindo sombriamente um
pavoroso sacrifício sobre um sombrio altar negro. Sobre aquela pedra
monstruosa, contorcia-se uma coisa nua e espumante que havia sido um belo
rapaz; brutalmente amarrado e amordaçado, ele só conseguia se contorcer
convulsivamente sob a gotejante e inexorável adaga nas mãos do sacerdote, de
barba branca e olhos selvagens, de Odin.
A lâmina
cortou carne, tendões e ossos; o sangue jorrou em horrendas torrentes, para ser
colhido numa larga tigela de cobre, a qual o sacerdote, com sua barba borrifada
de sangue, ergueu no alto, invocando Odin num canto frenético. Seus magros
dedos ossudos arrancaram o coração ainda pulsante do peito carneado, e seus
olhos selvagens e meio loucos o examinavam com ávida intensidade.
- Quais as
suas adivinhações, sacerdote? – Brodir indagou impacientemente.
Sombras
palpitaram nos olhos frios do sacerdote, e sua pele se arrepiou com um horror
misterioso.
- Durante 50
anos, venho servindo Odin – ele disse. – Cinqüenta anos de predições através do
coração que sangra, mas nunca tais presságios. Ouça, Brodir: se não lutares na
Sexta-Feira da Paixão, como os cristãos a chamam, seu exército será totalmente
derrotado e todos os seus chefes assassinados; se lutares na Sexta-Feira da
Paixão, o Rei Brian morrerá... mas ele será vitorioso.
Brodir
praguejou com frio rancor. O sacerdote sacudiu sua cabeça anciã:
- Não consigo
compreender o presságio... e sou o último dos sacerdotes do Círculo Flamejante,
que aprendeu mistérios aos pés de Thorgils. Vejo batalha e matança... e mais
ainda: formas gigantescas e terríveis, que espreitam monstruosamente através
das névoas...
- Chega dessa
pantomima! – rosnou Brodir. – Se eu cair, quero levar Brian comigo para
Helheim. Atacaremos os gaélicos de manhã, e colidiremos com eles! – Ele deu a
volta e se afastou a passos largos da câmara.
Brodir
atravessou um corredor sinuoso e adentrou outra câmara, mais espaçosa, adornada,
como todo o palácio do rei de Dublin, com a pilhagem do mundo inteiro – armas
lavradas a ouro, tapeçarias raras, ricos tapetes, divãs de Bizâncio e do
Oriente –; saque tomado de todos os povos pelos nômades escandinavos; pois
Dublin era o centro do mundo vasto dos vikings – o quartel-general de onde
viajavam para pilhar os reis da terra.
Uma forma
régia se ergueu para saudá-lo. Kormlada, a quem os gaélicos chamavam Gormlaith,
era realmente bela, mas havia crueldade em seu rosto e em seus duros olhos
cintilantes. Ela era de sangue irlandês e dinamarquês misturados, e parecia em
parte uma rainha bárbara, com suas argolas pendentes, seus braceletes e
tornozeleiras de ouro, e suas placas peitorais de prata incrustadas de jóias.
Exceto por estas placas peitorais, suas únicas roupas eram uma curta saia de
seda – a qual chegava à metade de suas coxas, e era segura por um cinto largo
ao redor de sua cintura esbelta –, e sandálias de couro vermelho e macio. Seu
cabelo era dourado-avermelhado, seus olhos cinza-claros e cintilantes. Ela já
havia sido rainha de Dublin, de Meath e de Thomond. E ainda era rainha, pois
tinha seu filho Sitric e seu irmão Mailmora na palma de sua esguia mão branca.
Levada num ataque-surpresa em sua infância por Amlaff Cauran, Rei de Dublin,
ela havia, desde cedo, descoberto seu poder sobre os homens. Como esposa-mirim
do rude dinamarquês, ela havia dominado o reino dele à vontade, e suas ambições
cresciam junto com seu poder.
Agora ela encarava Brodir com seu sorriso sedutor e misterioso, mas um desconforto secreto a corroia. No mundo inteiro, só havia uma mulher a quem temia, e apenas um homem. E o homem era Brodir. Com ele, ela nunca estava certa do próprio rumo; ela o ludibriava, como fazia com todos os homens, mas com muitos maus pressentimentos, pois sentia nele uma selvageria elementar, a qual, uma vez solta, ela não seria capaz de controlar.
- O que o
sacerdote disse, Brodir? – ela perguntou.
- Se evitarmos
lutar pela manhã, nós perderemos – o viking respondeu mal-humorado. – Se
lutarmos, Brian vence, mas morre. Lutaremos... principalmente porque meus
espiões me contaram que Donagh está longe do acampamento, com um bando poderoso,
devastando as terras de Mailmora. Mandamos espiões até Malachi, que tem um
velho rancor contra Brian, incitando-o a abandonar o rei... ou, pelo menos, a
ficar de lado e não ajudar nenhum de nós. Nós o oferecemos ricas recompensas, e
as terras de Brian para governar. Rá! Que ele caia em nossa armadilha! Nós não
o daremos ouro, mas uma espada sangrenta. Com Brian esmagado, nós cairemos
sobre Malachi e o pisaremos dentro do pó. Mas primeiro: Brian.
Ela fechou as
mãos brancas em selvagem exultação:
- Traga-me sua
cabeça! Eu a pendurarei sobre nossa cama de núpcias!
- Ouvi
histórias estranhas – disse Brodir sombriamente. – Sigurd tem se vangloriado em
seus copos.
Kormlada
estremeceu e examinou aquele rosto inescrutável. Mais uma vez, ela sentia um
tremor de medo ao olhar para o viking sombrio, com sua estatura elevada e poderosa,
seu rosto moreno e ameaçador, e seus espessos cabelos negros, os quais ele
usava trançados e presos ao cinto de sua espada.
- O que Sigurd
disse? – ela perguntou, esforçando-se para tornar sua voz despreocupada.
- Quando
Sitric veio até mim em meu skalli, na
Ilha de Man – disse Brodir, com brilhos vermelhos começando a arder em seus
olhos –, ele jurou que, se eu o ajudasse, eu me sentaria no trono da Irlanda,
com você como minha rainha. Agora, aquele idiota das Órcades, Sigurd, se gaba
em sua cerveja que a mesma recompensa foi prometida a ele.
Ela forçou uma
risada:
- Ele estava
bêbado.
Brodir
explodiu em pragas selvagens, quando a violência do viking indomado se ergueu
nele.
- Está
mentindo, sua vadia! – ele gritou, agarrando-lhe o pulso branco num aperto
férreo. – Você nasceu para seduzir homens para suas ruínas! Mas não pode
descuidar de Brodir de Man!
- Você está
louco! – ela exclamou, retorcendo-se em vão no seu aperto. – Solte-me, ou
chamarei meus guardas!
- Chame-os –
ele rosnou –, e eu deceparei suas cabeças. Irrite-me agora, e correrá sangue à
altura dos tornozelos pelas ruas de Dublin. Por Thor, não restará cidade para
Brian queimar! Mailmora, Sitric, Sigurd, Amlaff... cortarei os pescoços de todos
eles, e lhe arrastarei nua na minha embarcação, pelo seu cabelo amarelo! Ouse
chamar!
Ela não ousou.
Ele a forçou a se ajoelhar, torcendo-lhe o braço branco tão brutalmente, que
ela mordeu o próprio lábio para não gritar.
- Você prometeu
a Sigurd a mesma coisa que me prometeu – ele prosseguiu, numa fúria
mal-controlada –, sabendo que nenhum de nós jogaria a vida fora por menos!
- Não! Não! –
ela guinchou. – Juro pelo anel de Thor! – Então, quando a dor ficou
insuportável, ela deixou a máscara cair: – Sim... sim, eu prometi a ele... oh,
solte-me!
O viking a
lançou com desdém sobre uma pilha de almofadas de seda, onde ela ficou deitada,
chorando e desalinhada.
- Você me
prometeu e prometeu a Sigurd – ele disse, avultando ameaçadoramente sobre ela
–, mas a promessa que fez a mim, você cumprirá... do contrário, será melhor
você nunca ter nascido. O trono da Irlanda é pequeno, perto do meu desejo por
você... se eu não puder lhe ter, ninguém terá.
- Mas e quanto
a Sigurd?
- Ele morrerá
na batalha... ou depois – ele respondeu sombriamente.
- Muito bem! –
Era realmente medonho o extremo no qual Kormlada não podia contar com a sua
sagacidade. – É a você que eu amo, Brodir; só fiz essa promessa a ele, porque,
de outro modo, ele não nos ajudaria.
- Amor! – o
viking riu amargamente. – Você ama Kormlada, e mais ninguém. Mas você manterá o
que me prometeu, ou se arrependerá. – E, dando a volta nos calcanhares, ele se
afastou do quarto a passos largos.
Kormlada se
levantou, esfregando seu braço onde as marcas azuis de seus dedos lhe
desfiguraram a pele branca.
- Que ele caia
no primeiro ataque! – ela rangeu entre dentes. – Se um deles sobreviver, que
seja aquele idiota alto do Sigurd... parece-me que ele será um marido mais facilmente
manejável do que aquele selvagem de cabelos negros. Terei de me casar com ele,
se ele sobreviver à batalha, mas, por Thor, ele não requisitará por muito tempo
o trono da Irlanda... eu o enviarei para se juntar a Brian...
- Você fala
como se o Rei Brian já estivesse morto. – Uma voz calma fez com que Kormlada
girasse e encarasse a outra pessoa no mundo a quem ela temia, além de Brodir. Os
olhos dela se arregalaram ao verem uma jovem esguia, vestida em verde tremeluzente;
uma jovem, cujo cabelo dourado bruxuleava com uma luz sobrenatural ao brilho
das velas. A rainha recuou, as mãos esticadas como se para afastá-la.
- Eevin! Para
trás, bruxa! Não me lance nenhum feitiço!
- Quem sou eu
para enfeitiçar a grande rainha que enfeitiçou tantos homens? – Eevin perguntou
zombeteira, segura no conhecimento dos medos supersticiosos da rainha; para
aquela mulher dinamarquesa, a jovem picta era algo temível e inumano... um duende
sobrenatural das profundezas da floresta.
- Como chegou
ao meu palácio? – indagou Kormlada, com um débil esforço para se fazer
imperiosa.
- Como a brisa
atravessou as árvores? – respondeu a garota Danaan. – Seus guardas vigiam muito
bem, mas os bois percebem quando os camundongos do campo correm pelo trigo?
Vocês, do povo alto, são como cegos e surdos quando o povo moreno se move
furtivamente entre vocês. O que Brodir estava lhe dizendo, antes de eu entrar?
- Se você é
uma feiticeira, você sabe – respondeu a rainha, de mau-humor.
Eevin
assentiu:
- Sim, eu sei.
Estou lendo em sua própria mente. Ele havia consultado o oráculo do povo do
mar... o sangue e o coração arrancado – seus lábios graciosos se curvaram de
nojo –, e ele lhe disse que atacaria amanhã.
A rainha
vacilou e nada respondeu, temendo encontrar os olhos magnéticos de Eevin. Ela
se sentia desnudada diante da jovem misteriosa, a qual poderia misteriosamente
analisar o conteúdo de sua mente e esvaziá-la de seus segredos.
Eevin ficou
com a cabeça curvada por um momento, e então a ergueu subitamente. Kormlada
estremeceu, pois algo semelhante ao medo brilhou nos olhos da garota-lobo.
- Quem está
neste castelo? – ela gritou.
- Você sabe
tanto quanto eu – murmurou Kormlada. – Sitric, Sigurd e Brodir.
- Há outro! –
exclamou Eevin, ficando pálida e estremecendo. – Ah, eu o conheço há muito...
eu o sinto... ele carrega o frio do Norte consigo, o travo estremecedor de
mares gelados...
Ela deu a
volta e deslizou rapidamente pelas cortinas de veludo, que cobriam uma portada
escondida, a qual Kormlada pensava ser conhecida apenas por ela e suas mulheres,
deixando a rainha perplexa e constrangida.
Na câmara
sacrifical, o idoso sacerdote ainda resmungava sobre o altar ensangüentado, no
qual jazia a última vítima de seu rito.
- Há 50 anos,
venho servindo Odin – ele murmurou. – E nunca li tais presságios. Odin pôs sua
marca sobre mim, há muito tempo, numa noite de horror. Os anos caem como folhas
secas, e meu tempo chega a um fim. Um a um, vi os altares de Odin desmoronarem.
Se os cristãos vencerem esta batalha, a época de Odin acabará. Tenho a
impressão de que ofereci meu último sacrifício...
Uma voz grave
e poderosa falou atrás dele:
- E o que
poderia ser mais adequado, do que você acompanhar a alma daquele último sacrifício
até o reino de quem você serviu?
O sacerdote
girou, com a faca sacrifical lhe caindo da mão. Diante dele, se erguia um homem
alto e envolto num manto, sob o qual brilhava uma armadura. Um chapéu
desleixado estava puxado para baixo, sobre sua testa, e, quando ele o empurrou
para trás, um único olho, brilhante e sombrio como o mar cinza, lhe encontrou o
olhar horrorizado.
Guerreiros que
correram para dentro da câmara, ao ouvirem o agudo grito estrangulado que saiu
horrendamente dali, encontraram o velho sacerdote morto ao lado do altar onde
jazia o cadáver; não tinha ferimentos, mas estava com o rosto e corpo
murchados, como se vítimas de alguma intempérie, e um horror de sacudir a alma
em seus olhos vitrificados. Mas, exceto pelos cadáveres, a câmara estava vazia,
e ninguém fora visto entrando nela, desde que Brodir saíra.
Sozinho em sua
tenda, com os fortemente armados soldados da infantaria enfileirados lá fora, o
Rei Brian tinha um sonho estranho. Em seu sonho, um gigante cinza avultava
terrivelmente acima dele e gritava numa voz que era como o trovão entre as nuvens:
- Cuidado,
defensor do Cristo branco! Embora você fira meus filhos com a espada e me
empurre para dentro dos vácuos escuros de Jotunheim, eu te farei se arrepender!
Como você fere meus filhos com a espada, ferirei o filho do seu corpo e, da
mesma forma que vou para dentro da escuridão, você também irá, quando as
Escolhedoras dos Mortos cavalgarem as nuvens acima do campo de batalha!
O trovejar da
voz do gigante e o brilho aterrador de seu único olho, congelaram o sangue do
rei que nunca conhecera o medo; e, com um grito sufocado, ele acordou. As
tochas grossas, que queimavam lá fora, iluminavam o interior de sua tenda bem o
bastante, para que ele pudesse distinguir uma forma esguia.
- Eevin! – ele
gritou. – Por minha alma, que bom para os reis você não participar das intrigas
dos mortais, quando você pode se mover furtivamente sob os próprios narizes dos
guardas, dentro de nossas tendas. Você procura Dunlag?
A jovem picta
sacudiu tristemente a cabeça:
- Eu não mais
o verei vivo, grande rei. Se eu fosse até ele agora, meu próprio pesar negro
poderia desencorajá-lo. Eu o verei entre os mortos amanhã.
O Rei Brian
teve um calafrio.
- Mas não é
das minhas dores que eu vim falar, milorde – ela continuou, cansada. – Não é
costume do Povo Escuro participar das guerras do Povo Alto, mas eu amo um
deles. Esta noite, eu falei com Gormlaith.
Brian
estremeceu diante do nome de sua rainha divorciada.
- E suas
notícias? – ele perguntou.
- Brodir
atacará de amanhã.
O rei sacudiu
seriamente a cabeça:
- Irrita minha
alma derramar sangue no Dia Sagrado. Mas, se Deus quer isso, não aguardaremos o
ataque dele... marcharemos ao amanhecer para o enfrentarmos. Mandarei um rápido
mensageiro, para trazer Donagh de volta...
Eevin balançou
a cabeça mais uma vez:
- Não, grande
rei. Deixe Donagh viver. Após a batalha, os dalcasianos precisarão de braços
fortes para segurarem o cetro.
Brian olhou
fixamente para ela:
- Eu leio
minha sina nessas palavras. Você lançou meu destino?
Eevin estendeu
os braços, sem saber o que fazer:
- Milorde, nem
mesmo o Povo Moreno pode rasgar o Véu à vontade. Não por adivinhações ou a
feitiçaria da predição, nem em fumaça ou sangue eu leio, mas há uma sina sobre
mim, e eu vejo através da chama e do vago estrondo da batalha.
- E eu
morrerei?
Ela prostrou o
rosto nas mãos.
- Bom, que
aconteça como Deus quiser – disse tranqüilamente o Rei Brian. – Tive uma vida
longa e intensa. Não chore... através das névoas mais escuras das trevas e da
noite, a aurora ainda se ergue sobre o mundo. Meu clã lhe reverenciará nos
longos dias futuros. Agora vá, pois a noite declina em direção à alvorada, e eu
gostaria de fazer minhas pazes com Deus.
E Eevin de
Craglea saiu, como uma sombra, da tenda do rei.
5) O Banquetear das Águias
“A guerra era como um sonho; não sei dizer
Quantas almas pagãs mandei para o Inferno.
Apenas sei que, acima dos mortos,
Ouvi a voz de Odin gritando para seus filhos,
E senti, em meio ao choque e rugido da batalha,
O conflito dos deuses que estrondeavam no Ragnarok”.
(A Saga de Conn)
Através da
névoa da aurora que clareava, homens se moviam como fantasmas, e armas retiniam
lugubremente. Conn esticou os braços musculosos, bocejou cavernosamente e
soltou a grande lâmina que havia em sua bainha.
- Hoje é o dia
em que os corvos bebem sangue, milorde – ele disse, e Dunlag O’Hartigan
assentiu distraidamente.
- Venha aqui e
me ajude a vestir esta maldita gaiola – disse o jovem chefe. – Vou vesti-la
pelo amor de Eevin; mas, pelos santos, eu preferiria entrar na batalha
totalmente nu!
Os gaélicos se
moviam, marchando desde Kilmainham na mesma formação na qual pretendiam entrar
na batalha. Primeiro, vieram os dalcasianos – homens grandes, de membros
longos, em suas túnicas amarelas, com um pequeno escudo redondo de madeira de
teixo, reforçado com aço, no braço esquerdo, e a mão direita segurando o temido
machado dalcasiano, ao qual nenhuma armadura conseguia resistir. Este machado
diferia muito da pesada arma dos dinamarqueses; os irlandeses a empunhavam com
uma mão, o polegar estirado ao longo do cabo para guiar o golpe, e eles haviam
alcançado uma habilidade de luta com machado nunca igualada antes ou depois.
Não usavam nenhum tipo de cota-de-malha – nem os gallaglachs (5) nem os kerns –, embora alguns chefes, como Murrogh, usassem leves gorros
de aço. Mas, tanto as túnicas dos guerreiros, quanto as dos chefes, haviam sido
tecidas com bastante habilidade e colocadas no vinagre, até sua resistência
extraordinária proporcionar certa proteção contra espadas e flechas.
À frente dos
dalcasianos, caminhava o Príncipe Murrogh, seus olhos ferozes e resplandecentes,
sorrindo como se ele fosse a um banquete ao invés de uma matança. De um lado,
ia Dunlag em seu corselete romano; e seguido por Conn, que trazia o elmo; e, do
outro lado, os dois Turloghs – o filho de Murrogh, e Turlogh Dubh, o único
dentre todos os dalcasianos que sempre ia à batalha totalmente blindado. Ele
parecia bastante sombrio, apesar de jovem, com seu rosto moreno e ardentes olhos
azuis, vestido como sempre em colete de malha negra, perneiras de malha
metálica, um elmo de aço com uma proteção de cota-de-malha pendendo do mesmo, e
levando um escudo redondo com uma espícula. Diferente do restante dos chefes,
que preferiam usar espadas na batalha, Turlogh Dubh lutava com um machado que
ele próprio havia forjado; e sua habilidade com aquela arma era quase
sobrenatural.
Logo atrás dos
dalcasianos, vinham as duas companhias de escoceses com seus chefes, os Grandes
Stewards da Escócia, os quais, veteranos de longas guerras com os saxões,
usavam elmos com cristas de crina de cavalo e cotas-de-malha. Com eles, vinham
os homens do sul de Munsten, comandados pelo Príncipe Meathla O’Faelan.
A terceira
divisão consistia nos guerreiros de Connacht – homens selvagens do oeste, com
cabeleiras desgrenhadas e vestidos apenas com suas tangas de pele de lobo, com
seus chefes O’Kelly e O’Hyne. E O’Kelly marchava como um homem cuja alma é pesada,
pois a sombra de seu encontro com o Rei Malachi na noite anterior caía pesadamente
sobre ele.
Um pouco
afastados das três principais divisões, marchavam os altos gallaglachs e kerns de
Meath, o rei deles cavalgando devagar à frente.
E, diante de
todo o exército, cavalgava o Rei Brian Boru, num cavalo branco, suas mechas
brancas sopradas ao redor de seu rosto idoso e seus olhos estranhos, de modo
que os selvagens kerns olhavam para
ele com medo e respeito supersticiosos.
Assim, os
gaélicos chegaram diante de Dublin, onde eles viram os exércitos de Lochlann e
de Leinster parados em formação de batalha, estirados numa larga lua crescente
que ia da Ponte de Dubhgall ao estreito rio Tolka, o qual corta a planície de
Clontarf. Três divisões principais estavam lá: os estrangeiros nórdicos, os
vikings, com Sigurd e o sombrio Brodir; flanqueando-os a um dos lados, os
ferozes dinamarqueses de Dublin sob o comando do chefe deles, um nômade sombrio
cujo nome nenhum homem sabia, mas que era chamado de Dubhgall, O Forasteiro
Escuro –; e, no outro lado, os irlandeses de Leinster, com seu rei Mailmora,
irmão de Kormlada. A fortaleza dinamarquesa, na colina além do Rio Liffey,
estava eriçada de homens armados onde o Rei Sitric guardava a cidade.
Só havia um
único caminho para a cidade desde o norte – a direção pela qual os gaélicos
estavam avançando, pois naquela época Dublin ficava toda ao sul do Liffey –:
era a ponte chamada Ponte de Dubhgall. Os dinamarqueses tinham apenas uma ponta
de sua linha guardando esta entrada, suas fileiras se curvando para fora, em
direção ao Tolka, e suas costas voltadas para o mar. Os gaélicos avançavam ao
longo da planície que se estendia entre o Bosque de Tomar e a praia.
Com pouco mais
que um tiro de arco separando as hostes, os gaélicos pararam, e o Rei Brian
cavalgou diante deles, erguendo bem alto um crucifixo.
- Filhos de
Goidhel! – sua voz vibrou como o soar de uma trombeta. – Não me é dado
liderá-los para dentro do conflito, como eu fazia antigamente. Mas armei minha
tenda atrás de suas fileiras, onde vocês podem me pisar se fugirem! Vocês não
fugirão. Lembrem-se dos cem anos de atrocidades e infâmia! Lembrem-se de seus
lares queimados, seus parentes assassinados, suas mulheres violentadas e seus
bebês escravizados! Seus opressores estão diante de vocês! Neste dia, nosso bom
Senhor morreu por vocês! Ali estão as hordas pagãs que injuriam Seu nome e
matam Seu povo! Só tenho uma ordem a dar: vençam ou morram!
As hordas selvagens
bradaram como lobos, e uma floresta de machados foi brandida no alto. O Rei
Brian curvou a cabeça, e seu rosto estava subitamente sombrio.
- Deixe-os me
guiarem de volta à minha tenda – ele sussurrou para Murrogh. – A idade me
definhou da luta de machados, e meu destino está inflexivelmente sobre mim.
Avancem, e que Deus lhes enrijeça os braços para a matança!
Quando o rei
cavalgou lentamente de volta à sua tenda, entre seus guardas, houve um apertar
de cintos, um puxar de lâminas e um vestir de escudos. Conn colocou o capacete
romano na cabeça de Dunlag e sorriu com o resultado; pois o jovem chefe parecia
algum mítico monstro de ferro, saído das lendas nórdicas. As hostes se moviam
inexoravelmente, uma em direção à outra.
Os vikings
haviam assumido sua formação favorita em forma de cunha, com Sigurd e Brodir na
extremidade. Os escandinavos faziam um forte contraste com as fileiras soltas
dos gaélicos seminus. Eles se moviam em filas compactas, blindados por elmos
com chifres, espessas cotas-de-malha de escamas lhes alcançando os joelhos, e
perneiras de amadurecidos couros de lobo, reforçadas com placas de ferro, e
carregavam grandes escudos em forma de papagaios, feitos de madeira de tília
com bordas de ferro, e longas lanças. Os mil guerreiros na frente também usavam
longas perneiras e manoplas de malha, de modo que, da cabeça aos calcanhares,
estavam vestidos em aço. Estes marchavam numa parede sólida, os escudos lhes
cobrindo parcialmente e, sobre suas fileiras de ferro, pairava a sombria
bandeira do corvo, a qual sempre trazia vitória para Jarl Sigurd, embora
trouxesse a morte para quem a segurasse. Agora, ela era trazida pelo velho
Rane, filho de Asgrimm, que sentia que a hora de sua morte estava próxima.
À frente da
cunha, como a ponta de uma lança, estavam os campeões de Lochlann – Brodir, em
sua malha azul, à qual nenhuma lâmina havia amassado; Jarl Sigurd, alto, de
barba loira e resplandecente em sua cota-de-malha de escamas douradas; Hrafn, o
Vermelho, em cuja alma se escondia um demônio zombeteiro que o levava a rir
gigantescamente, mesmo na loucura da batalha; os companheiros altos Thorstein e
Asmund; o Príncipe Amlaff, filho errante do Rei da Noruega; Platt, da
Dinamarca; Athelstane, o saxão; Thorwald Raven, das Hébridas, e Anrad, o berserk.
Os irlandeses
avançavam em direção a esta formação formidável, a passos rápidos, em formação
mais-ou-menos aberta e dando pouca atenção a fileiras ordenadas. Mas Malachi e
seus guerreiros giraram subitamente e se retiraram até a extrema esquerda,
assumindo suas posições num local alto em Cabra. E, quando Murrogh viu isto,
ele praguejou em voz baixa e Turlogh O Negro rosnou:
- Quem disse
que um O’Neill esquece um velho rancor? Por Crom, Murrogh, temos que vigiar
nossas costas tão bem quanto nossas frentes, antes que esta luta seja ganha!
Repentinamente,
das fileiras vikings, afastou-se Platt da Dinamarca, seu cabelo vermelho
esvoaçando como um véu escarlate ao redor de sua cabeça descoberta, e sua malha
prateada brilhando. Os exércitos observavam ansiosamente; pois, naquela época,
poucas batalhas começavam sem duelos preliminares.
- Donald! –
gritou Platt, erguendo sua espada desembainhada, de modo que o sol nascente se
refletia nela com um brilho prateado. – Onde está Donald de Mar? Você está aí,
Donald, como esteve em Rhu
Stoir , ou está se escondendo da luta?
- Estou aqui,
patife! – respondeu o chefe escocês, saindo a passos largos, alto e magro, de
entre seus homens e lançando sua bainha para longe.
Escocês das
montanhas e dinamarquês se defrontaram no meio do espaço entre as hostes;
Donald, cauteloso como um lobo caçando, e Platt, saltando para dentro, indiferente
e temerário, olhos acesos e dançando com uma loucura risonha. Mas foi o pé do
cauteloso Steward que escorregou subitamente numa pedra solta e, antes que ele
pudesse recuperar o equilíbrio, a espada de Platt entrou tão ferozmente nele
que a ponta afiada lhe atravessou as escamas do corselete e afundou no coração.
O berro de louca exultação de Platt se tornou um arfar. Mesmo enquanto se
contorcia, Donald de Mar lançou um golpe moribundo que partiu a cabeça do
dinamarquês, e os dois caíram juntos.
Nesse lugar,
um rugido grave se ergueu até os céus, e os dois grandes exércitos rolaram
juntos como uma onda de maré. Então, foram dados os primeiros golpes da
batalha. Não havia manobras de estratégia, nem ataques de cavalaria, nem vôos
de flechas. Os 40 mil homens lutavam a pé, corpo-a-corpo, homem a homem,
matando e morrendo num caos vermelho. A batalha sangrenta se quebrou em ondas
uivantes ao redor das lanças e machados dos guerreiros. Os primeiros a se
colidirem foram os dalcasianos e os vikings; e, ao se encontrarem, ambas as
linhas tremeram ao impacto. O grito rouco dos escandinavos se misturava aos
berros dos gaélicos, e as lanças do norte se estilhavam entre os machados do
oeste. À frente do conflito, o grande corpo de Murrogh saltava e se esforçava,
enquanto ele rugia e golpeava a torto e a direito, com uma espada pesada em
cada mão, ceifando homens como se fossem trigo. Nem escudo nem elmo resistiam aos
seus terríveis golpes; e, atrás dele, vinham seus guerreiros, talhando e
uivando como demônios. Contra as linhas compactas dos dinamarqueses de Dublin,
trovejavam os selvagens homens tribais de Connacht, e os homens do sul de
Munster caíam vingativamente sobre os irlandeses de Leinster.
As fileiras de
ferro se contorciam e entrelaçavam de um lado a outro da planície. Conn,
seguindo Dunlag, sorria selvagemente enquanto matava com sua lâmina gotejante,
e seus olhos ferozes procuravam por Thorwald Raven entre as lanças. Mas,
naquele louco mar de batalha, onde rostos selvagens iam e vinham como ondas,
era difícil distinguir um único homem.
Inicialmente,
ambas as fileiras resistiram sem ceder uma só polegada; pés firmados,
esforçando-se peito contra peito, eles rosnavam e retalhavam, escudo comprimido
fortemente contra escudo. Em toda a fileira de batalha, lâminas tremeluziam e
relampejavam como a espuma do mar ao sol, e o rugido estremecia os corvos que
giravam como valquírias no alto. Então, quando a carne e o sangue humanos não
puderam mais resistir, as fileiras cerradas começaram a rolar para frente ou
para trás. Os homens de Leinster recuaram diante do ataque feroz dos clãs de
Munster e seus aliados escoceses, retrocedendo lentamente, passo a passo,
amaldiçoados pelo rei deles, o qual lutava a pé com uma espada, à frente do
conflito.
Mas, no outro
flanco, os dinamarqueses de Dublin, sob a liderança do terrível Dubhgall,
resistiram ao primeiro e destruidor ataque das tribos do Oeste, embora suas
fileiras cambaleassem diante da colisão, e agora os homens selvagens, em suas
peles de lobo, estivessem caindo como semente acumulada, diante dos machados
dinamarqueses.
No centro, a
batalha rugia mais ferozmente; a muralha de escudos em forma de cunha, dos
vikings, resistia e, contra suas fileiras de ferro, os dalcasianos arremessavam
em vão seus corpos seminus. Uma pilha medonha rodeava aquela muralha sombria,
quando Brodir e Sigurd começaram a avançar lenta e firmemente, o inexorável
avanço dos vikings talhando cada vez mais fundo para dentro da formação solta
dos gaélicos.
Nos muros do
Castelo de Dublin, o Rei Sitric, assistindo à luta com Kormlada e a esposa,
exclamou:
- Bem, os reis
do mar realmente ceifam o campo!
Os belos olhos
de Kormlada ardiam em exultação selvagem.
- Morra,
Brian! – ela gritou ferozmente. – Morra, Murrogh! E morra também, Brodir!
Deixem os corvos alimentados!
A voz dela
vacilou, quando seus olhos caíram sobre uma figura alta e usando manto, erguida
sobre as ameias e distante das pessoas – um gigante sombrio e cinza, pairando
sobre a batalha. Um medo frio se moveu nela, e ela congelou as palavras nos
lábios. Puxou o manto de Sitric.
- Quem é ele?
– ela sussurrou, apontando.
Sitric olhou e
estremeceu:
- Não sei. Não
lhe dê atenção. Não chegue perto dele. Quando mal me aproximei dele, ele não falou
comigo, nem olhou para mim, mas um vento frio soprou sobre mim e meu coração se
encolheu. Melhor assistirmos à batalha. Os gaélicos estão recuando.
Mas, no ponto
mais adiantado do avanço gaélico, a linha resistia. Lá, como o centro convexo
de um curvado machado de batalha, lutavam Murrogh e seus chefes. O grande
príncipe já derramava sangue de talhos em seus membros, mas suas espadas
pesadas flamejavam em golpes duplos que distribuíam morte como uma colheita, e
os chefes ao seu lado ceifavam o trigo da batalha. Murrogh tentava alcançar
Sigurd através da turba. Ele viu o Jarl alto avultando do outro lado das lanças
e cabeças, dando golpes semelhantes a pancadas de trovão, e aquela visão
enlouqueceu o príncipe. Mas ele não conseguia alcançar o viking.
- Os
guerreiros estão sendo forçados para trás – arfou Dunlag, tentando sacudir o
suor de seus olhos. O jovem chefe estava intocado; tanto lanças quanto machados
se quebravam no capacete romano, ou resvalavam na antiga couraça, mas,
desacostumado a lutar de armadura, ele se sentia como um lobo acorrentado.
Murrogh deu
uma única olhada de relance: em ambos os lados do amontoado de chefes, os gallaglachs estavam caindo para trás,
lenta e selvagemente, vendendo com sangue cada passo no chão, incapazes de
deter o irresistível avanço dos escandinavos vestidos em malha. Estes também
caíam, todos ao longo da linha de batalha, mas eles fechavam as fileiras e
forçavam seu caminho para a frente, as pernas fortemente firmadas, os corpos
retesados, impelindo suas lanças incessantemente e sem pausa; através de uma
sangrenta rebentação de mortos e moribundos, eles continuavam avançando penosamente.
- Turlogh! –
ofegou Murrogh, salpicando o sangue e suor dos olhos. – Depressa... saia da
batalha e vá até Malachi! Mande-o atacar, em nome de Deus!
Mas o frenesi
da matança estava sobre Turlogh O Negro; seus lábios estavam salpicados de
espuma, e seus olhos eram os de um louco.
- O Diabo leve
Malachi! – ele gritou, partindo o crânio de um dinamarquês, num golpe que
parecia o da pata retalhadora de um tigre.
- Conn! –
gritou Murrogh, agarrando o ombro do enorme kern
e arrastando-o para trás. – Corra até Malachi... precisamos da ajuda dele.
Relutante,
Conn se afastou do conflito, abrindo seu caminho com golpes trovejantes. Do
outro lado do mar cambaleante de lâminas e elmos que tremiam, ele viu as formas
elevadas de Jarl Sigurd e seus lordes – as dobras encapeladas da bandeira do
corvo flutuavam acima deles, enquanto suas espadas sibilantes derrubavam homens
como trigo diante do ceifeiro.
Longe da
pressão, o kern correu rapidamente ao
longo da linha de batalha, até chegar ao solo mais alto de Cabra, onde os
homens de Meath se aglomeravam, tensos e trêmulos como cães de caça, enquanto
seguravam suas armas e olhavam ansiosos para o rei deles. Malachi estava
afastado, assistindo à luta com olhos taciturnos, sua cabeça leonina curvada e
seus dedos enroscados na barba dourada.
- Rei Melaghlin
– disse Conn rudemente. – O Príncipe Murrogh insiste que você ataque, pois a
pressão é grande e os homens dos gaélicos estão sendo duramente atacados por
todos os lados.
O grande
O’Neill ergueu sua cabeça e olhou distraidamente para o kern. Conn pouco imaginava o conflito caótico que acontecia na alma
de Malachi – as visões rubras que lhe invadiam o cérebro: riquezas, poder e o
governo de toda Erin, pesadas contra a negra vergonha da traição. Ele estendeu
o olhar de um lado a outro do campo, onde a bandeira de seu sobrinho O’Kelly se
elevava entre as lanças. E Malachi estremeceu, mas sacudiu a cabeça.
- Não – disse
ele –; não é hora... Atacarei... quando chegar a hora...
Por um
instante, rei e kern olharam nos
olhos um do outro. Os olhos de Malachi se abaixaram. Conn deu a volta sem dizer
uma só palavra, e desceu correndo a inclinação. Enquanto corria, ele viu que o
avanço de Lennox e dos homens de Desmond havia sido impedido. Mailmora,
esbravejando como um selvagem, havia matado o Príncipe Meathla O’Faelan com as
próprias mãos; uma lança, estocada ao acaso, havia ferido o Grande Steward, e
agora os homens de Leinster resistiam firmemente ao ataque dos Munster e dos
clãs escoceses. Mas, onde os dalcasianos lutavam, a batalha estava travada; o
Príncipe de Thomond interrompia o avanço dos escandinavos, como um penhasco saliente
que quebra o mar.
Na convulsão
da batalha, Conn chegou novamente até Murrogh:
- Melaghlin
disse que atacará quando chegar a hora.
- Ao Inferno
com a alma dele – gritou Turlogh O Negro. – Fomos traídos!
Os olhos azuis
de Murrogh se incendiaram:
- Então, em
nome de Deus – ele rugiu –, vamos atacar
e morrer!
Os homens que
lutavam foram atiçados por seu grito. A ira cega do gaélico se ergueu, gerada
pelo desespero; as fileiras se enrijeceram, e um enorme grito sacudiu o campo,
fazendo o Rei Sitric, na muralha de seu castelo, empalidecer e agarrar o parapeito.
Ele já tinha ouvido aquele grito antes.
Agora, quando
Murrogh saltava para a frente, os gaélicos despertavam para uma fúria vermelha,
como em homens que não têm esperança. A proximidade da ruína despertou um
frenesi neles e, como loucos inspirados, lançaram seu último ataque e golpearam
a parede de escudos que cambaleava diante dos golpes. Nenhum poder humano conseguia
deter o avanço. Murrogh e seus chefes não tinham mais esperança de ganhar, ou
mesmo de viver, mas apenas de saciar suas fúrias enquanto morriam; e, em seu
desespero, eles lutavam como tigres feridos – decepando membros, partindo
crânios, e abrindo peitos e omoplatas. Logo atrás de Murrogh, flamejava o
machado de Turlogh O Negro, e as espadas de Dunlag e dos chefes; sob aquela
torrente de aço, a fileira de ferro entortou e cedeu, e através daquela brecha,
os furiosos gaélicos entraram em grande quantidade. A formação de escudos se
desfez.
Naquele exato
momento, os homens selvagens de Connacht lançaram novamente um ataque
desesperado contra os dinamarqueses de Dublin. O’Hyne e Dubhgall caíram juntos,
e os homens de Dublin foram golpeados para trás, disputando cada passo. Todo o
campo se dissolvia numa massa misturada de lutadores que retalhavam sem
fileiras ou formações. Em meio a uma pilha dilacerada de dalcasianos mortos,
Murrogh finalmente caiu sobre Jarl Sigurd. Atrás do jarl, estava o sombrio e velho Rane Filho de Asgrimm, segurando a
bandeira do corvo. Murrogh o matou com um único golpe. Sigurd virou-se, sua
espada rasgou a túnica de Murrogh e lhe talhou o peito, mas o príncipe irlandês
golpeava tão ferozmente o escudo do escandinavo, que Jarl Sigurd cambaleou para
trás.
Thorleif Hordi
havia pegado a bandeira, mas ele mal a erguera, quando Turlogh O Negro, com os
olhos resplandecendo ferozmente, quebrou a fileira e lhe partiu o crânio até os
dentes. Sigurd, vendo sua bandeira caída novamente, golpeou Murrogh com fúria
tão desesperada que sua espada atravessou o morion do príncipe e lhe talhou o
couro cabeludo. O sangue esguichou pelo rosto de Murrogh e ele cambaleou, mas,
antes que Sigurd pudesse atacar novamente, o machado de Turlogh O Negro golpeou
como o tremular de um relâmpago. O escudo protetor do Jarl lhe caiu despedaçado
do braço, e Sigurd recuou por um instante, intimidado pelo manejo daquele
machado mortífero. Então, uma investida de guerreiros separou os chefes
enfurecidos.
- Thorstein! –
gritou Sigurd. – Pegue a bandeira!
- Não toque
nela – gritou Asmund. – Quem a segura, morre!
Enquanto ele
falava, a espada de Dunlag lhe esmagou o crânio.
- Hrafn! –
Sigurd gritou desesperadamente. – Segure a bandeira!
- Segure sua
própria maldição! – respondeu Hrafn. – Isto é o fim de todos nós!
- Covardes! –
rugiu o Jarl, erguendo ele mesmo a bandeira e se esforçando para enrolá-la com
o próprio manto, enquanto Murrogh, com o rosto ensangüentado e os olhos
resplandecendo, correu até ele através da multidão. Sigurd ergueu a espada...
tarde demais. A arma na mão direita de Murrogh se estilhou naquele elmo,
arrebentando as correias que o prendiam e arrancando-o da cabeça de Sigurd; e a
espada da mão direita de Murrogh, assobiando atrás do primeiro golpe,
despedaçou o crânio do Jarl,
fazendo-o cair morto nas dobras ensangüentadas da sua bandeira, que o enrolavam
enquanto caía.
Agora um
grande rugido se erguia, e os gaélicos redobravam seus golpes. Com a formação
da parede de escudos desfeita, as malhas dos vikings não conseguiam salvá-los;
pois machados dalcasianos, reluzindo ao sol, cortavam através tanto de
cota-de-malha quanto de placas de ferro, dilacerando escudos de madeira de
tília e elmos com chifres. Mas os dinamarqueses não se romperam.
Nas altas
trincheiras, o Rei Sitric havia ficado pálido, suas mãos tremendo enquanto ele
agarrava o parapeito. Ele sabia que aqueles homens selvagens não podiam ser
derrotados, pois eles derramavam suas vidas como água, lançando seus corpos nus
várias vezes para dentro das presas da lança e do machado. Kormlada estava
silenciosa, mas a esposa de Sitric e filha do Rei Brian gritava de alegria,
pois seu coração pertencia ao seu próprio povo.
Murrogh lutava
para alcançar Brodir, mas o viking de cabelos negros tinha visto Sigurd morrer,
e não estava ansioso para enfrentar o príncipe enlouquecido. O mundo de Brodir
estava desmoronando; até mesmo sua ostentada malha lhe estava falhando, pois,
embora houvesse até o momento lhe salvado a pele, ela agora estava esfarrapada.
Nunca antes o viking de Man havia enfrentado o temível machado dalcasiano. Ele
recuou da investida de Murrogh. Na aglomeração, um machado se espatifou no elmo
de Murrogh, fazendo-o cair de joelhos e o cegando momentaneamente com o
impacto. A espada de Dunlag fez um círculo de morte acima do príncipe caído.
A pressão
afrouxou quando Turlogh O Negro, Conn e o mais jovem Turlogh entraram cortando
e furando, e Dunlag, enlouquecido pelo calor da batalha, arrancou o elmo e o
lançou para o lado, arrancando também sua couraça.
- O Diabo
devore essas gaiolas! – ele gritou, agarrando o príncipe cambaleante para
ajudá-lo; e, naquele instante, Thorstein O Dinamarquês correu para dentro e
enfiou sua lança no lado de Dunlag. O jovem dalcasiano cambaleou e caiu aos pés
de Murrogh; Conn pulou para a frente, para arrancar a cabeça de Thorstein dos
ombros, de modo que a mesma girou pelo ar com os dentes arreganhados, numa
chuva escarlate.
Murrogh
sacudiu a escuridão dos olhos.
- Dunlag! –
ele gritou, numa voz terrível, caindo de joelhos ao lado do amigo e lhe
erguendo a cabeça.
Mas os olhos
de Dunlag já estavam vitrificados.
- Murrogh!
Eevin! – ele sussurrou, e então o sangue lhe jorrou dos lábios e ele amoleceu
nos braços de Murrogh.
Murrogh se
ergueu de um pulo, com um grito de fúria demoníaca. Ele correu até a parte mais
aglomerada dos vikings, e seus homens correram para dentro, atrás dele.
Na colina de
Cabra, Malachi gritou, lançando dúvidas e planos ao vento. Assim como Brodir
havia conspirado, ele também havia. Ele só tinha que ficar à parte, até que
ambos os exércitos fossem despedaçados, e depois se apoderar de Erin,
trapaceando os dinamarqueses da mesma forma que eles pretendiam traí-lo. Mas
seu sangue gritava contra ele e não podia ser acalmado. Ele agarrou o colar
dourado de Tomar ao redor do pescoço – o colar que ele havia pegado, tantos
anos antes, do rei dinamarquês a quem sua espada havia partido –, e o velho
fogo se ergueu.
- Ataquem e
morram! – ele gritou, desembainhando a espada, e atrás dele, os homens de Meath
ganiram como uma alcatéia caçando e desceram campo adentro.
Sob o choque
do ataque dos homens de Meath, os enfraquecidos dinamarqueses cambalearam e se
romperam. Eles se separaram violentamente em grupos açoitadores e desesperados,
procurando alcançar a baía onde seus navios estavam ancorados. Mas os homens de
Meath lhes haviam rompido a retirada, e os navios estavam distantes, pois as
ondas estavam em enchente. Aquela terrível batalha rugira o dia todo, mas para
Conn, que olhava surpreso para o sol poente, parecia que menos de uma hora
havia se passado desde que as primeiras fileiras se chocaram.
Os
escandinavos fugitivos alcançaram o rio, e os gaélicos mergulharam atrás deles
para afogá-los. Entre os fugitivos e os grupos de escandinavos que, aqui e ali,
ofereciam resistências determinadas, os chefes irlandeses estavam divididos. O
garoto Turlogh estava longe do lado de Murrogh, e nenhum homem o viu novamente,
até arrastarem seu corpo afogado da represa de pesca do Tolka, seus dedos
emaranhados nos cabelos desgrenhados de um dinamarquês.
Os clãs de
Leinster não caíram, até Turlogh O Negro correr como uma besta enlouquecida
para a parte mais aglomerada da batalha, e matar Mailmora em meio aos seus
guerreiros.
Murrogh, ainda
louco por sangue, mas cambaleando de cansaço e perda de sangue, caiu sobre um
grupo de vikings, os quais, com as costas coladas umas às outras, resistiam aos
seus vencedores. O líder deles era Anrad o Berserker,
que, quando viu Murrogh, correu até ele. Murrogh, cansado demais para deter o
golpe do dinamarquês, largou a própria espada e se engalfinhou com Anrad, lançando-o
ao chão. A espada foi arrancada da mão do dinamarquês enquanto caíam. Ambos
tentaram agarrá-la, mas Murrogh pegou o cabo e Anrad a lâmina. O príncipe
gaélico a puxou, passando a lâmina afiada pela mão do viking, e cortando nervos
e músculos; e, pondo um joelho sobre o peito de Anrad, Murrogh enfiou a espada
três vezes no corpo dele. Anrad, morrendo, puxou uma adaga, mas sua força
declinava tão rapidamente, que seu braço arriou. E então, uma mão enorme lhe
agarrou o pulso e deu o golpe que ele tentara dar, de modo que a lâmina afiada
afundou no coração de Murrogh. Este caiu moribundo para trás, e seu último olhar
lhe mostrou um gigante cinza avultando acima, seu manto se encapelando ao
vento, seu único e brilhante olho frio e terrível. Mas os olhos confusos dos
guerreiros ao redor só viram morte e matança.
Todos os
dinamarqueses estavam fugindo agora; e, no muro alto, o Rei Sitric via suas
altas ambições desapareceram, enquanto Kormlada assistia, com olhos
arregalados, à ruína, derrota e vergonha.
Conn corria
entre os moribundos e fugitivos, procurando Thorwald Raven. O broquel do kern havia desaparecido, despedaçado
entre os machados. Seu peito largo estava talhado em meia-dúzia de lugares; uma
lâmina de espada lhe havia aberto o couro cabeludo, quando apenas sua cabeleira
emaranhada lhe havia salvado. Uma lança havia afundado em sua coxa. Mas agora,
no calor da fúria, ele mal sentia estes ferimentos.
Uma mão
enfraquecida agarrou o joelho de Conn, enquanto ele tropeçava sobre homens
mortos, vestidos em pele de lobo, e cadáveres blindados. Ele se curvou e viu
O’Kelly, sobrinho de Malachi e chefe de Hy Many. Os olhos do chefe estavam
vidrados pela morte. Conn lhe ergueu a cabeça e um sorriso curvou aqueles
lábios abatidos.
- Ouço o
grito-de-guerra dos O’Neill! – ele sussurrou. – Malachi não conseguiria nos
trair! Ele não conseguiria ficar fora do conflito, apesar de suas ambições! A
Mão... Vermelha... a Mão Vermelha... para a... Vitória!
Conn se ergueu
quando O’Kelly morreu, e avistou uma figura familiar. Thorwald Raven havia
saído da multidão, e agora fugia só e rapidamente, não em direção ao mar ou ao
rio, onde seus companheiros morriam sob os machados gaélicos, mas em direção ao
Bosque de Tomar. Apressado pelo ódio, Conn o seguiu.
Thorwald o viu
e deu a volta, rosnando. Assim, o escravo encontrou seu primeiro dono. Enquanto
Conn corria para uma luta corpo-a-corpo, o escandinavo agarrou o cabo de sua
lança com ambas as mãos e arremeteu ferozmente; mas a ponta resvalou no grande
colar de cobre ao redor do pescoço do kern.
Conn, curvando-se, arremeteu para cima com toda a sua força, de modo que a
grande lâmina rasgou a esfarrapada malha metálica e derramou suas entranhas
sobre o chão.
Virando-se,
Conn viu que a perseguição o levara para perto da tenda do rei, armada atrás das
fileiras de batalha. Ele viu o Rei Brian Boru de pé, em frente à tenda, suas madeixas
brancas esvoaçando ao vento, e apenas um homem o atendendo. Conn correu para a
frente.
- Kern, quais são as notícias? – perguntou
o rei.
- Os
estrangeiros estão fugindo – disse Conn –, mas Murrogh morreu.
- Você traz
péssimas notícias – disse Brian, a idade caindo subitamente sobre ele, como uma
nuvem fria. – Erin nunca verá outra vez um campeão como ele.
- Onde estão
seus guardas, meu senhor? – perguntou Conn.
- Eles se
juntaram à perseguição.
- Deixe-me
levá-lo a um lugar mais seguro – disse Conn. – Os galls estão correndo por
todos os lugares ao nosso redor.
O Rei Brian
sacudiu a cabeça:
- Não, eu sei
que não sairei daqui vivo, pois Eevin de Craglea me disse, na noite passada,
que eu cairia neste dia. E de que me vale sobreviver à morte de Murrogh e dos
campeões dos gaélicos? Deixe-me repousar em Armagh, na paz de Deus.
Logo, o
acompanhante gritou:
- Meu rei,
estamos arruinados! Homens sombrios e nus estão sobre nós!
- Os
dinamarqueses blindados! – gritou Conn.
O Rei Brian
desembainhou sua espada pesada.
Um grupo de
vikings manchados de sangue se aproximava, liderado por Brodir e o Príncipe
Amlaff. Suas gabadas cotas-de-malha pendiam em tiras; suas espadas estavam
denteadas, marcadas e gotejando. Brodir havia marcado a localização da tenda do
rei desde longe, e se concentrava em assassinar, pois sua alma rugia de
vergonha e fúria, e ele estava acossado por visões, nas quais Brian, Sigurd e
Kormlada giravam numa dança infernal. Ele havia perdido a batalha, a Irlanda e
Kormlada – agora, estava disposto a abandonar a própria vida num último e
moribundo golpe de vingança.
Brodir correu
em direção ao rei, com o Príncipe Amlaff atrás de si. Conn saltou para lhes
barrar o caminho. Mas Brodir se desviou para um lado e se esquivou do kern, deixando-o para Amlaff, enquanto
corria para cima do rei. E Conn recebeu a lâmina de Amlaff no braço esquerdo, e
deu um único e terrível golpe, que rasgou a cota-de-malha do príncipe como se
fosse de papel e lhe despedaçou a espinha. Então, ele pulou de volta para proteger
o Rei Brian.
Então, ao dar
a volta, Conn viu Brodir aparar o golpe de Brian e enfiar sua espada no coração
do velho rei. Brian caiu, mas, ao cair, apoiou-se num dos joelhos e atacou como
um leão moribundo. A lâmina afiada atravessou carne e ossos, decepando ambas as
pernas de Brodir sob ele, e o grito de triunfo do viking se transformou num
gemido horrível, enquanto desabava numa crescente poça escarlate, onde se
debateu convulsivamente e jazeu imóvel.
Conn ficou
olhando aturdido ao redor. A companhia de homens de Brodir havia fugido, e os
gaélicos chegavam à tenda de Brian. O som do lamento pelos heróis já se erguia,
para se misturar aos gritos que ainda vinham das hordas que se debatiam ao longo
do rio. Estavam trazendo o corpo de Murrogh à tenda do rei, andando lentamente
– homens cansados e ensangüentados, com as cabeças baixas. Atrás da liteira que
carregava o corpo do príncipe, vinham outras – com os corpos de Turlogh, filho de
Murrogh; de Donald, Steward de Mar; de O’Kelly e O’Hyne, os chefes do oeste; do
Príncipe Meathla O’Faelan, e de Dunlag O’Hartigan. Ao lado desta liteira,
caminhava Eevin de Craglea, sua cabeça dourada afundada no peito. Ela não
gritava nem chorava. Andava como se estivesse em transe.
Os guerreiros
abaixaram as liteiras e se reuniram, silenciosos e cansados, ao redor do
cadáver do Rei Brian Boru. Eles olhavam calados, suas mentes ainda tão inertes
da agonia do conflito, que mal sabiam o que viam ou faziam. Eevin de Craglea
estava imóvel ao lado do corpo de seu amado, como se ela própria estivesse
morta; não havia lágrimas em seus olhos, e nenhum grito lhe escapava dos lábios
pálidos.
O clamor da
batalha estava morrendo, enquanto o sol poente banhava o campo pisoteado com
sua luz rosada. Os fugitivos, esfarrapados e cortados, coxeavam para dentro dos
portões de Dublin, e os guerreiros do Rei Sitric estavam se preparando para
agüentarem um cerco. Mas os irlandeses não estavam em condições de sitiar a
cidade. Quatro mil guerreiros e chefes tribais haviam caído, e quase todos os
campeões dos gaélicos estavam mortos. Contudo, mais de sete mil dinamarqueses e
homens de Leinster jaziam estirados sobre a terra encharcada de sangue, e o
poder dos vikings estava quebrado. Em Clontarf, seu reinado de ferro havia
acabado.
Conn caminhava
em direção ao rio, sentindo agora a dor de seus ferimentos que se
solidificavam. Ele encontrou Turlogh Dubh. A loucura da batalha havia deixado
Turlogh O Negro, e seu rosto moreno era inescrutável. Da cabeça aos pés, ele
estava manchado de sangue.
- Meu senhor –
disse Conn, dedilhando o grande aro de cobre ao redor do pescoço –, já matei o
homem que pôs esta marca de escravo em mim. Eu gostaria de ficar livre dela.
Turlogh O
Negro pegou a cabeça ensangüentada do machado nas mãos e, pressionando-a contra
o aro, atravessou o metal mais mole com a lâmina afiada. O machado fez um talho
no ombro de Conn, mas nenhum deles deu importância a isso.
- Agora, estou
realmente livre – disse Conn, flexionando os braços poderosos. – Meu coração
está pesado pelos chefes que morreram, mas minha mente está emaranhada com
maravilha e glória. Quando haverá uma batalha como esta novamente? Foi realmente
um banquete de corvos, um mar de matança...
Sua voz se
arrastou e parou, e ele ficou como uma estátua, a cabeça lançada para trás, os
olhos encarando os céus nublados. O sol afundava num oceano escuro de escarlate.
Grandes nuvens rolavam e se revolviam, amontoadas gigantescamente contra o
vermelho ardente do pôr-do-sol. Um vento saiu delas, penetrante e frio, e,
carregada no vento, destacada sombriamente contra as nuvens, uma forma vaga e
gigantesca ia voando, a barba e as selvagens mechas sopradas no temporal, o
manto aberto e encapelado como grandes asas – correndo para dentro das
misteriosas brumas azuis, que pulsavam e tremeluziam no Norte meditativo.
- Veja lá em
cima... no céu! – gritou Conn. – O homem cinza! É ele! O homem cinza com seu
terrível e único olho. Eu o vi nas montanhas de Torka. Eu o vislumbrei meditando
nos muros de Dublin, enquanto a batalha rugia. Eu o vi avultando sobre o Príncipe
Murrogh, quando este morreu. Olhe! Ele cavalga no vento e corre entre as nuvens
altas. Ele diminui. Ele desvanece dentro do vazio! Ele some!
- É Odin, deus
do povo do mar – disse sombriamente Turlogh. – Seus filhos estão derrotados,
seus altares desmoronam e seus adoradores caíram diante das espadas do Sul. Ele
foge dos novos deuses e de seus filhos, e retorna aos golfos azuis do Norte,
que o fizeram nascer. Nunca mais haverá vítimas indefesas uivando sob as adagas
de seus sacerdotes... nunca mais ele espreitará as nuvens negras. – Ele sacudiu
a cabeça sombriamente: – O Deus Cinza parte, e nós também estamos partindo,
apesar de termos vencido. Os dias de crepúsculo vêm com toda a força, e tenho
uma estranha sensação de uma era que declina. O que somos todos nós, além de
fantasmas declinando e minguando noite adentro?
E ele
prosseguiu anoitecer adentro, deixando Conn com sua liberdade – livre da escravidão
e crueldade, enquanto tanto ele quanto todos os gaélicos estavam agora livres
da sombra do Deus Cinzento, e de seus impiedosos adoradores.
FIM
1) Skalli: Habitação viking, a qual consistia numa casa longa
(Nota do Tradutor);
2) Danelaw: Nome dado historicamente à parte da Grã-Bretanha na
qual as leis dos dinamarqueses eram hegemônicas (N. do T);
3) Jarl: Nome dado aos escandinavos de classe alta e grandes
proprietários de terra (idem);
4) “Eles [os irlandeses] vão à batalha sem armadura, considerando-a um
peso, e achando bravo e honroso lutarem sem ela” (Giraldus Cambresis);
5) Gallaglach: Soldado fortemente armado da infantaria (Nota do
Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Fontes: Sword
Woman and Other Historical Adventures e The
Best of Robert E. Howard # 1 – Crimson Shadows.
Agradecimentos especiais: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da
Hungria, e à grande amiga Manuela Queiroz – sobrinha de minha amada esposa e
minha sobrinha do coração.
Nota: O destino definitivo de Odin, bem como sua natureza – na concepção
de Robert E. Howard –, pode ser visto no conto “O Túmulo no Promontório”,
publicado em http://cronicasdacimeria.blogspot.com.br/2007/08/o-tmulo-no-promontrio.html?q=%22o+t%C3%BAmulo+no+promont%C3%B3rio%22