O Crepúsculo do Deus Cinzento

(por Robert E. Howard)




1) A Notícia da Guerra
“A guerra está no vento – os corvos estão se reunindo”.

Uma voz ecoou entre as extensões, açoitadas pelos ventos, das montanhas que se erguiam a ambos os lados. Na entrada do desfiladeiro, que se abria num penhasco colossal, Conn, o escravo, girou, rosnando como um lobo encurralado. Ele era alto e volumoso, porém de membros longos, a ferocidade do selvagem dominante em seus ombros largos, peito forte e peludo, e longos braços maciçamente musculosos. Suas feições estavam em harmonia com o aspecto de seu corpo: uma mandíbula forte e teimosa, testa baixa e inclinada, encimada por uma clara cabeleira desgrenhada, a qual se acrescentava à selvageria de sua aparência, não mais do que seus frios olhos azuis. Sua única roupa era uma pequena tanga. Seu próprio vigor lupino era proteção suficiente contra os elementos da Natureza – pois ele era um escravo numa era em que até mesmo os patrões viviam vidas tão duras quanto o férreo meio-ambiente que os geravam.

Agora Conn estava meio agachado, de espada pronta, um bestial rosnado de ameaça zunindo em sua garganta taurina; e, do desfiladeiro, saiu um homem alto, envolto num manto sob o qual o escravo vislumbrou um brilho de malha. O forasteiro usava um chapéu desleixado, puxado tão para baixo que, de seu rosto sombreado, apenas um olho brilhava, frio e sombrio como o mar cinza.

- Bem, Conn, escravo de Wolfgar filho de Snorri – disse o forasteiro, numa voz grave e poderosa –, para onde foge, com o sangue de seu senhor nas mãos?

- Eu não lhe conheço – resmungou Conn –, nem sei como me conhece. Se quiser me levar, assobie para seus cães e termine com isso. Alguns vão sentir o gosto do aço, antes que eu morra.

- Idiota! – havia um profundo desdém no tom reverberante. – Não sou um caçador de servos fugitivos. Há assuntos mais turbulentos circulando. O que você cheira no vento marinho?

Conn se voltou para o mar, que lambia cinza os penhascos lá embaixo. Ele estufou o peito forte, suas narinas se alargando quando respirou fundo.

- Sinto o cheiro da espuma salgada – ele respondeu.

A voz do forasteiro era como o raspar de espadas:

- O cheiro de sangue está no vento... o almíscar da carnificina e os gritos da matança.

Conn sacudiu a cabeça, perplexo:

- É apenas o vento entre os penhascos.

- Há guerra em sua terra natal – disse sombriamente o forasteiro. – As lanças do sul se ergueram contra as espadas do Norte, e os fogos da morte estão iluminando a terra, como o sol do meio-dia.

- Como pode saber disto? – o escravo perguntou apreensivo. – Nenhum navio atraca em Torka há semanas. Quem é você? De onde veio? Como sabe destas coisas?

- Não consegue ouvir o soar das gaitas de fole, o entrechocar dos machados? – respondeu o forasteiro alto. – Não consegue sentir o cheiro do ranço da guerra, que o vento traz?

- Eu não – respondeu Conn. – São muitas e longas léguas, de Torka até Erin, e ouço apenas o vento entre os penhascos e as gaivotas guinchando sobre os promontórios. Mas, se há guerra, eu deveria estar entre os guerreiros de meu clã, embora minha vida esteja ameaçada por Melaghin, porque matei um de seus homens numa contenda.

O forasteiro não deu atenção, erguendo-se como uma estátua, enquanto olhava para bem longe, por todas as extensões de enevoadas montanhas áridas e ondas nebulosas.

- É o aperto da morte – ele disse, como quem fala para si mesmo. – Agora está chegando a ceifa de reis e de chefes, como se fosse uma colheita. Sombras gigantescas espreitam, de mãos ensangüentadas, pelo mundo, e a noite está caindo em Asgaard. Ouço os gritos de heróis há muito mortos, sibilando no vazio, e os brados de deuses esquecidos. Para cada ser, há um tempo determinado, e até mesmo os deuses devem morrer...

Ele se enrijeceu subitamente, com um grito enorme, esticando os braços em direção ao mar. Nuvens altas e rolantes, deslizando gigantescamente diante da ventania, cobriram o mar. Da bruma, saiu um grande vento e, do vento, saiu uma massa rodopiante de nuvens. E Conn gritou. Das nuvens voadoras, sombria e aterradoramente, saíram doze figuras. Ele viu, como num pesadelo, doze cavalos alados e seus montadores: mulheres em flamejante malha prateada e elmos com asas, cujos cabelos dourados flutuavam ao vento atrás delas, e cujos olhos estavam fixos em alguma meta aterradora, além do alcance dele.

- As Escolhedoras de Mortos! – trovejou o forasteiro, abrindo bem os braços, num terrível gesto. – Elas cavalgam no crepúsculo do Norte! Os cascos alados empurram as nuvens rolantes, a teia do Destino está tecida, o Tear do Fuso quebrado! O Destino ruge sobre os deuses, e a noite cai em Asgaard! A noite e as trombetas do Ragnarok!

O manto foi aberto ao vento, revelando a figura poderosa e vestida em malha; o chapéu desleixado caiu para o lado; as madeixas do cabelo se soltaram. E Conn recuou diante do brilho do olho do estranho. E viu que, onde deveria estar o outro olho, só havia uma órbita vazia. Por isso, o pânico se apossou dele, de modo que deu a volta e correu desfiladeiro abaixo, como um homem que foge de demônios. E um olhar tímido para trás lhe mostrou que o forasteiro se destacava contra o céu rasgado por nuvens, o manto soprado pelo vento, braços erguidos; e parecia ao escravo que o estranho havia crescido monstruosamente em estatura; que ele avultava colossal entre as nuvens, sobrepujando as montanhas e o mar, e que ele estava subitamente cinza, como se tivesse uma idade extensa.


2) A Garota-Lobo de Craglea

Oh, Senhores do Norte; nós vimos aqui com a contagem dos mortos,
Dos corações partidos, lares queimados e telhados quebrados no alto.
Lançamos simples dados para equilibrar, perto do mar cor-de-chumbo,
Mil anos de injustiça e sofrimento com uma hora sangrenta de matança.

A ventania de primavera havia se apagado. O céu sorria azul no alto, e o mar estava calmo como uma piscina, com apenas alguns pedaços dispersos de madeira flutuante ao longo da praia, para darem muda evidência de sua traição. Ao longo da praia, cavalgava um homem solitário, seu manto cor de açafrão balançando atrás de si e seu cabelo amarelo lhe golpeando o rosto na brisa.

Súbito, ele puxou as rédeas tão bruscamente, que seu cavalo animado empinou e bufou. De entre as dunas de areia, aparecera um homem alto e poderoso, de aspecto selvagem e cabeleira desgrenhada, e vestindo apenas uma tanga.

- Quem é você, para me abordar assim? – exigiu o cavaleiro. – Você, que usa a espada de um chefe, mas tem a aparência de um homem sem mestre e, apesar disso, usa o colar de um servo?

- Sou Conn, jovem senhor – respondeu o viandante. – Outrora um proscrito, outrora um escravo... e sempre um homem do Rei Brian, quer ele queira ou não. E eu lhe conheço: você é Dunlag O’Hartigan, amigo de Murrogh, filho de Brian, príncipe do Dal Cais. Diga-me, bom senhor: há guerra na terra?

- Com certeza – respondeu o jovem chefe –; agora mesmo, o Rei Brian e o Rei Malachi estão acampados em Kilmainham, diante de Dublin. Só cavalguei do acampamento esta manhã. De todas as terras dos vikings, o Rei Sitric de Dublin convocou os matadores; e gaélicos e dinamarqueses estão prontos para se juntarem à batalha: e uma batalha como Erin nunca vira antes.

Os olhos de Conn se nublaram.

- Por Crom! – ele murmurou, meio para si mesmo. – É exatamente como o Homem Cinza disse... mas como ele sabia? Certamente era tudo um sonho.

- Como chegou aqui? – perguntou Dunlag.

- De Torka, nas Órcades, num barco aberto, arremessado como uma lasca sobre a maré. Outrora, eu matei um homem de Meath, kern de Melaghin, e o coração do Rei Brian se enfureceu contra mim por causa da trégua quebrada; por isso, fugi. Bom, a vida de um fora-da-lei é dura. Thorwald Raven, chefe das Hébridas, me pegou quando eu estava fraco devido à fome e aos ferimentos, e pôs este colar em meu pescoço. – O kern tocou o pesado aro de cobre que lhe envolvia o pescoço taurino. – Então, ele me vendeu a Wolfgar, filho de Snorri, em Torka. Era um mestre duro. Eu fazia o trabalho de três homens, ficava atrás dele e dizimava homens livres como se fossem trigo, enquanto ele guerreava com os vizinhos. Como recompensa, ele me deu cascas de sua mesa, um chão de terra nua para dormir e profundas cicatrizes em minhas costas. Finalmente, não consegui agüentar mais, saltei sobre ele em seu próprio skalli (1) e lhe esmaguei o crânio com um tronco de lenha. Então, peguei a espada dele e fugi para as montanhas, preferindo me congelar ou passar fome lá do que morrer sob o chicote.

“Lá nas montanhas”, novamente, os olhos de Conn se nublaram de dúvida, “Acho que sonhei”, ele disse, “Vi um homem alto e cinza, que falava de guerra em Erin, e, no meu sonho, vi valquírias cavalgando para o sul, sobre as nuvens...

“Melhor morrer no mar, numa boa aventura, do que passar fome nas montanhas órcades”, ele continuou, com mais convicção, seus pés em chão firme. “Por sorte, achei um barco de pescador, com um suprimento de comida e água, e saí ao mar. Por Crom! Estou impressionado por ainda estar vivo! O vendaval me pegou em suas presas, noite passada, e só sei que enfrentei o mar no bote, até este afundar sob meus pés, e depois o enfrentei nas ondas nuas, até perder toda a minha consciência. Ninguém ficou mais surpreso do que eu mesmo, quando recuperei os sentidos esta manhã, caído como um pedaço de madeira flutuante na praia. Fiquei deitado sob o sol desde então, tentando aquecer o travo frio do mar em meus ossos”.

- Pelos santos, Conn – disse Dunlag. – Gosto do seu espírito.

- Espero que o Rei Brian também goste – grunhiu o kern.
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- Junte-se à minha tropa – respondeu Dunlag. – Falarei por você. O Rei Brian tem assuntos mais importantes em mente do que uma mera rixa de sangue. Neste mesmo dia, as hostes inimigas estão paradas para um aperto mortal.

- O estilhaçar de lanças começará pela manhã? – perguntou Conn.

- Não pela vontade do Rei Brian – respondeu Dunlag. – Ele está pouco disposto a derramar sangue na Sexta-Feira da Paixão. Mas quem sabe quando os pagãos cairão sobre nós?

Conn pôs uma mão sobre o estribo de couro de Dunlag, e caminhou a passos largos ao lado dele, enquanto o cavalo andava calmamente.

- Há uma reunião notável de homens armados?

- Mais de 20 mil guerreiros em cada lado. A baía de Dublin está escurecida pelos navios-dragões. Das Órcades vem Jarl Sigurd, com sua bandeira de corvo. Da Ilha de Man vem o viking Brodir, com 20 longas embarcações. Do Danelaw (2), na Inglaterra, vem o Príncipe Amlaff, filho do rei da Noruega, com 2000 homens. De todas as terras, as hostes se juntaram... da Escócia, Inglaterra, Germânia e das terras da Escandinávia.

“Nossos espiões afirmam que Sigurd e Brodir têm mil homens armados em malhas de aço, da cabeça ao calcanhar, que lutam numa cunha sólida. Os dalcasianos talvez tenham dificuldade em quebrar aquela muralha de ferro. Mas, se for a vontade de Deus, nós triunfaremos. Entre os outros chefes e guerreiros, há Anrad o berserk, Hrafn o Ruivo, Platt da Dinamarca, Thorstein e seu companheiro de armas Asmund; Thorleif Hordi, o Forte, Athelstane o Saxão e Thorwald Raven, Jarl (3) das Hébridas”.

Diante daquele nome, Conn sorriu selvagemente e dedilhou seu colar de cobre:

- É uma grande reunião, se Sigurd e Brodir vêm juntos.

- Isso foi realizado por Gormlaith – respondeu Dunlag.

- Chegou das Órcades a notícia de que Brian se divorciou de Kormlada – disse Conn, dando inconscientemente à rainha seu nome nórdico.

- Sim... e o coração dela está negro de ódio contra ele. É estranho que uma mulher tão bela de corpo e rosto tenha a alma de um demônio.

- Verdade de Deus, meu senhor. E quanto ao irmão dela, o Príncipe Mailmora?

- Quem, senão o instigador de toda a guerra? – gritou Dunlag raivosamente. – O ódio entre ele e Murrogh, há muito em estado latente, finalmente explodiu em chamas, incendiando ambos os reinos. Os dois estavam errados... Murrogh talvez mais do que Mailmora. Gormlaith incitou o irmão dela. Não acreditei que o Rei Brian tenha agido sabiamente, quando deu honras àqueles contra os quais havia guerreado. Não foi bom ele ter se casado com Gormlaith e dado a própria filha para o filho de Gormlaith, Sitric de Dublin. Com Gormlaith, ele recolheu as sementes da discórdia e do ódio. Ela é uma libertina: ela já foi a esposa de Amlaff Cuaran, o dinamarquês; depois, foi a esposa do Rei Malachi de Mide, e ele a pôs de lado por causa de sua maldade.

- E quanto a Melaghin? – perguntou Conn.

- Ele parece ter esquecido a luta na qual Brian lhe arrebatou a coroa de Erin. Juntos, os dois reis se movem contra os dinamarqueses e Mailmora.

Enquanto conversavam, eles passaram ao longo da praia nua, até chegarem a uma extensão áspera e irregular de penhascos e matacões; e lá, eles pararam subitamente. Em um matacão se sentava uma garota, vestida numa tremeluzente roupa verde, cujo modelo era tão parecido com escamas que, por um instante de perplexidade, Conn pensou estar vendo uma sereia saída das profundezas.

- Eevin! – Dunlag desceu de seu cavalo, lançando as rédeas para Conn, e avançou para lhe tomar as mãos esguias nas dele. – Você mandou me chamar, e eu vim... você esteve chorando!

Conn, segurando o cavalo, sentiu um impulso de se retirar, tomado por náuseas supersticiosas. Eevin, com sua forma esguia, abundantes e tremeluzentes cabelos dourados, e olhos profundos e misteriosos, não era como qualquer outra jovem que ele já tinha visto. Todo o seu aspecto era diferente, tanto das mulheres do povo nórdico quanto das dos gaélicos, e Conn a reconheceu como um membro daquela raça mística que desaparecia gradualmente, e que havia ocupado a terra antes da chegada de seus ancestrais; alguns deles ainda moravam em cavernas ao longo do mar, e nas profundezas de florestas não-freqüentadas – os feiticeiros De Danaans, diziam os irlandeses, e parentes das fadas e elfos.

- Dunlag! – A garota o agarrou num abraço convulsivo. – Você não deve entrar na batalha... a prudência sobrenatural está em mim, e eu sei que, se você for para a guerra, irá morrer! Venha comigo... e eu lhe esconderei... vou lhe mostrar as cavernas escuras e púrpuras, semelhantes aos castelos de reis do fundo do mar, e florestas sombreadas, onde ninguém, exceto meu povo, colocou o pé. Venha comigo, e esqueça guerras, ódios, orgulhos e ambições, os quais não passam de sombras sem realidade nem substância. Venha e conheça os esplendores sonhadores de lugares distantes, onde medo e ódio não são nada, e os anos parecem horas, passando eternamente.

- Eevin, meu amor! – Dunlag gritou aflito. – Você me pede aquilo que está além do meu poder. Quando meu clã se move para a batalha, eu devo estar ao lado de Murrogh, embora a morte certa seja meu quinhão. Eu te amo mais do que a minha vida, mas, pela honra de meu clã, isto é uma coisa impossível.

- Eu temia muito isso – ela respondeu, resignada. – Vocês, do Povo Alto, não passam de crianças... tolos, cruéis e violentos... matando uns aos outros em contendas infantis. Isto é castigo que caiu sobre mim, que sou a única de todo o meu povo a amar um homem do Povo Alto. Suas próprias mãos ásperas machucaram, sem querer, minha pele suave, e seu espírito violento também machuca, sem querer, meu coração.

- Eu jamais lhe machucaria, Eevin – Dunlag começou a falar, afligido.

- Eu sei – ela respondeu. – As mãos dos homens não são feitas para manusear o corpo e coração delicados de uma mulher do Povo Moreno. É meu destino. Eu amo e já perdi. Minha visão é a visão de longo alcance do povo picto, a qual vê através do véu e das névoas da vida, atrás do passado e além do futuro. Você entrará na batalha e as harpas cantarão intensamente por você; e Eevin de Craglea chorará até se derreter em lágrimas, e o sal das lágrimas se misturar com o frio mar salgado.

Dunlag inclinou a cabeça sem palavras, pois a voz jovem dela vibrou com o antigo sofrimento do sexo feminino; e até mesmo o rude kern arrastou inquieto os pés.

- Eu lhe trouxe um presente contra a hora da batalha – ela disse, curvando-se graciosamente para erguer algo que capturava o brilho do sol. – Ela pode não lhe salvar, os fantasmas em minha alma sussurram... mas espero, sem esperanças, em meu coração de mulher. Você vai vesti-la... oh, vista, meu amor!

Dunlag mirou incerto aquilo que ela estirava diante dele. Conn, aproximando-se devagar e esticando o pescoço, viu uma cota-de-malha de estranho feitio e um elmo como ele nunca tinha visto antes. Não havia viseira móvel – apenas uma fenda aberta na frente, para enxergar –, e o feitio era de uma época anterior e mais civilizada, ao qual nenhum homem vivo conseguiria duplicar

Dunlag olhou para aquilo desconfiado, com a típica antipatia celta por armaduras. Os bretões que enfrentaram os legionários de César lutavam nus, julgando por covarde o homem que se envolvesse dentro de metal, e em eras posteriores, os clãs irlandeses acolheram a mesma convicção, com relação aos cavaleiros vestidos em malha de Strongbow (4).

- Eeevin – disse Dunlag –, meus irmãos vão rir de mim, se eu me enclausurar em ferro, feito um dinamarquês. Como um homem consegue ter liberdade plena dos membros, sobrecarregado por tal vestimenta? De todos os gaélicos, somente Turlogh Dubh usa armadura completa.

- E algum homem dos gaélicos é menos bravo que ele? – ela gritou ardentemente. – Oh, vocês do Povo Alto são tolos! Durante eras, os dinamarqueses encouraçados têm lhes pisado, quando vocês já poderiam tê-los varrido da terra há muito tempo, se não fosse pelo seu orgulho idiota.

- Não totalmente orgulho, Eevin – argumentou Dunlag.  – Qual a utilidade da malha, ou da armadura de placas, contra o machado dalcasiano, que corta ferro como se fosse pano?

- A malha é capaz de desviar as espadas dos dinamarqueses – ela respondeu –; e nem mesmo o machado dos O’Briens rasgaria esta armadura. Ela ficou durante muito tempo nas profundas cavernas submarinas do meu povo, cuidadosamente protegida da ferrugem. Quem a usou foi um guerreiro de Roma, há muito tempo, antes das legiões serem afastadas da Bretanha. Na antiga guerra nas fronteiras de Gales, ela caiu nas mãos do meu povo e, como quem a usou era um grande príncipe, meu povo guardou-a como um tesouro. Agora eu lhe imploro que a vista, se você me ama!

Dunlag pegou hesitante a armadura; ele não poderia saber que aquela foi a armadura usada por um gladiador nos dias do Império Romano tardio, nem imaginava por qual capricho do acaso ela foi vestida por um oficial da legião britânica. Dunlag pouco sabia daquilo; ele, que, como muitos dos seus chefes-irmãos, não sabia ler nem escrever; conhecimento e educação eram para monges e padres; um guerreiro era mantido ocupado demais para cultivar as artes e ciências. Ele pegou a armadura e, por amar a estranha jovem, concordou em vesti-la:

- Muito bem, Eevin. Se ela se ajustar em mim, eu a usarei por amor a você.

- Ela vai se ajustar – ela respondeu. – Mas não vou mais lhe ver vivo.

- Isso está nas mãos de Deus, pequena – ele respondeu gentilmente. – Muitos cairão, e eu posso cair no primeiro ataque; mas possa ser que, mais uma vez, a gente caminhe novamente de mãos dadas pela floresta, quando o crepúsculo lança seu manto cinza sobre as colinas de Craglea.

Ela esticou os braços brancos e ele a abraçou avidamente, enquanto Conn desviava o olhar. Então, Dunlag gentilmente tirou os braços dela de seu pescoço, ao qual eles envolviam, beijou-a e se afastou.

Sem olhar para trás, ele montou seu corcel e cavalgou dali, com Conn trotando facilmente ao seu lado. Olhando para trás, no anoitecer que caía, o kern viu Eevin de pé e imóvel; uma dolorosa figura de desespero.


3) A Reunião das Águias

As fogueiras do acampamento lançavam chuvas de faíscas para o alto, e iluminavam a terra como se fosse dia. À distância, avultavam as muralhas de Dublin, escuras e ameaçadoramente silenciosas; diante daquelas muralhas, bruxuleavam outras fogueiras onde os guerreiros de Leinster, sob o comando do Rei Mailmora, afiavam seus machados para a batalha que viria. Lá na baía, a luz das estrelas brilhava sobre inúmeras velas, fileiras de escudos e arqueadas proas em forma de serpente. Entre a cidade e as fogueiras do exército irlandês, se estendia a planície de Clontarf, marcada pelo Bosque de Tomar, escuro e sussurrante à noite, e as águas de Liffey, escuras e manchadas pelas estrelas.

Diante de sua tenda, a luz do fogo tremulando em sua barba branca e reluzindo de seus não-obscurecidos olhos de águia, sentava-se o grande Rei Brian Boru, entre seus chefes. O rei era idoso – setenta e três invernos haviam se passado sobre sua cabeça leonina... longos anos, abarrotados de guerras ferozes e intrigas sangrentas. Mas suas costas eram retas, seus braços não haviam murchado, e sua voz era grave e ressonante. Seus chefes se erguiam ao seu redor – guerreiros altos, com mãos endurecidas pela guerra e olhos umedecidos pelo sol, pelos ventos e lugares altos; príncipes tigrinos, em suas túnicas ricas, cintos verdes, sandálias de couro e mantos amarelos presos com grandes broches de ouro.

Eles eram um cortejo de águias de guerra: Murrogh, filho mais velho de Brian e orgulho de toda Erin – alto, de ombros largos, poderosamente musculoso, com grandes olhos azuis que nunca ficavam calmos, mas dançavam de alegria, ficavam opacos de tristeza ou ardiam de fúria –, e o jovem filho de Murrogh: Turlogh, um jovem flexível de 15 anos, com cachos dourados e um rosto impaciente – tenso de ansiedade em testar sua mão pela primeira vez no grande jogo da guerra. E havia aquele outro Turlogh, seu primo – Turlogh Dubh, que era apenas alguns anos mais velho, mas que já estava em sua máxima estatura e era famoso em toda Erin por suas fúrias berserks e sua habilidade no uso mortífero do machado. E havia Meathla O’Faelan, príncipe de Desmond ou Munster do Sul, e sua família – os Grandes Intendentes da Escócia –, Lennox e Donald de Mar, que haviam atravessado o Canal do Norte com seus selvagens homens das terras altas – homens altos, sombrios, magros e silenciosos. E havia Dunlag O’Hartigan, e O’Hyne, chefe de Connacht. Mas O’Kelly, chefe-irmão de O’Hyne e príncipe de Hy Many, estava na tenda de seu tio, o Rei Malachi O’Neill, a qual estava instalada no acampamento dos homens de Meath, à parte dos dalcasianos, e o Rei Brian meditava sobre o assunto. Pois, desde o pôr-do-sol, O’Kelly estava em conferência secreta com o Rei de Meath, e homem nenhum sabia o que se passava entre eles.

Donagh, filho de Brian, também não estava entre os chefes diante do pavilhão real, pois ele estava longe dali, com um bando, devastando as posses de Mailmora de Leinster.

Agora, Dunlag O’Hartigan se aproximava do rei, trazendo consigo Conn, o kern.

- Milorde – disse Dunlag –, aqui está um homem que foi proscrito no passado, passou por um encarceramento vil entre os galls e arriscou a própria vida na tempestade e no mar, para retornar e lutar sob sua bandeira. Ele veio das Órcades num bote, nu e só, e o mar o lançou quase sem vida na areia.

Brian ficou rígido; sua memória era tão aguda quanto uma pedra afiada, até mesmo para pequenas coisas.

- Tu! – ele gritou. – Sim, eu me lembro dele. Bem, Conn, você voltou... e com suas mãos ensangüentadas!

- Sim, Rei Brian – Conn respondeu impassível –; minhas mãos estão vermelhas, é verdade, e assim eu gostaria de lavar a mancha com sangue dinamarquês.

- E você ousa ficar diante de mim, a quem deve pagar com a vida?

- Isto eu sei por mim mesmo, Rei Brian – disse Conn destemidamente. – Meu pai esteve com você em Sulcoit e no saque de Limerick, e antes disso, lhe seguira nos seus dias de perambulação e foi um dos 15 guerreiros que permaneceram com você, quando o Rei Mahon, seu irmão, veio à sua procura na floresta. E meu avô seguiu Murkertagh dos Mantos de Couro, e meu povo tem lutado contra os dinamarqueses desde os dias de Thorgils. Você precisa de homens que possam dar golpes fortes, e é meu direito morrer em batalha contra meus antigos inimigos, ao invés de ficar vergonhosamente pendurado numa forca.

O Rei Brian assentiu com a cabeça:

- Você falou bem. Fique com sua vida. Seus dias de proscrito terminaram. Talvez o Rei Malachi pensasse o contrário, vez que ele era um homem de quem você matou, mas... – ele parou; uma velha dúvida lhe roeu a alma, ao pensar no rei de Meath. – Deixa estar – ele prosseguiu. – Deixe como está, até após a batalha... talvez seja o fim do mundo para todos nós.

Dunlag deu um passo em direção a Conn e pôs a mão no colar de cobre:

- Vamos tirar isto; você agora é um homem livre.

Mas Conn sacudiu a cabeça:

- Não até eu matar Thowald Raven, que o colocou em meu pescoço. Eu o usarei na batalha, como sinal de não-rendição.

- Você usa uma espada nobre, kern – disse repentinamente Murrogh.

- Sim, milorde. Murkertagh dos Mantos de Couro empunhava esta lâmina, até Blacair o Dinamarquês matá-lo em Ardee; e ela ficou na posse dos Gall, até eu tirá-la do corpo de Wolfgar, filho de Snorri.

- Não fica bem um kern usar a espada de um rei – disse bruscamente Murrogh. – Que um dos chefes a pegue e dê a ele um machado, no lugar dela.

Os dedos de Conn se fecharam ao redor do cabo.

- Quem quiser tirar a espada de mim, melhor que use aquele machado primeiro – ele disse sombriamente. – E logo.

O temperamento quente de Murrogh ardeu. Com uma praga, ele caminhou a passos largos até Conn, que o encarou olhos nos olhos e não recuou um passo.

- Fique calmo, meu filho – ordenou o Rei Brian. – Deixe o kern com a lâmina.

Murrogh encolheu os ombros. Seu humor mudou:

- Sim, fique com ela e me siga na batalha. Veremos se a espada de um rei, na mão de um kern, pode abrir um caminho tão largo quanto a lâmina de um príncipe.

- Meus senhores – disse Conn –, possa ser que Deus queira que eu caia no primeiro ataque... mas as cicatrizes da escravidão ardem profundamente nas minhas costas esta noite, e não ficarei para trás quando as lanças se estilharem.


4) O Castelo dos Reis do Mar
“Por isso, seu destino está sobre vocês,
Está sobre vocês e seus reis...”.
(Chesterton)

Enquanto o Rei Brian conversava com seus chefes na planície sobre Clontarf, um ritual medonho estava sendo feito dentro do castelo sombrio, que era ao mesmo tempo a fortaleza e o palácio do rei de Dublin. Os cristãos tinham boa razão para temer e odiar aqueles muros sombrios; Dublin era uma cidade pagã, e obscuros e terríveis eram os atos praticados lá dentro.

Numa câmara interna do castelo, erguia-se o viking Brodir, assistindo sombriamente um pavoroso sacrifício sobre um sombrio altar negro. Sobre aquela pedra monstruosa, contorcia-se uma coisa nua e espumante que havia sido um belo rapaz; brutalmente amarrado e amordaçado, ele só conseguia se contorcer convulsivamente sob a gotejante e inexorável adaga nas mãos do sacerdote, de barba branca e olhos selvagens, de Odin.

A lâmina cortou carne, tendões e ossos; o sangue jorrou em horrendas torrentes, para ser colhido numa larga tigela de cobre, a qual o sacerdote, com sua barba borrifada de sangue, ergueu no alto, invocando Odin num canto frenético. Seus magros dedos ossudos arrancaram o coração ainda pulsante do peito carneado, e seus olhos selvagens e meio loucos o examinavam com ávida intensidade.

- Quais as suas adivinhações, sacerdote? – Brodir indagou impacientemente.

Sombras palpitaram nos olhos frios do sacerdote, e sua pele se arrepiou com um horror misterioso.

- Durante 50 anos, venho servindo Odin – ele disse. – Cinqüenta anos de predições através do coração que sangra, mas nunca tais presságios. Ouça, Brodir: se não lutares na Sexta-Feira da Paixão, como os cristãos a chamam, seu exército será totalmente derrotado e todos os seus chefes assassinados; se lutares na Sexta-Feira da Paixão, o Rei Brian morrerá... mas ele será vitorioso.

Brodir praguejou com frio rancor. O sacerdote sacudiu sua cabeça anciã:

- Não consigo compreender o presságio... e sou o último dos sacerdotes do Círculo Flamejante, que aprendeu mistérios aos pés de Thorgils. Vejo batalha e matança... e mais ainda: formas gigantescas e terríveis, que espreitam monstruosamente através das névoas...

- Chega dessa pantomima! – rosnou Brodir. – Se eu cair, quero levar Brian comigo para Helheim. Atacaremos os gaélicos de manhã, e colidiremos com eles! – Ele deu a volta e se afastou a passos largos da câmara.

Brodir atravessou um corredor sinuoso e adentrou outra câmara, mais espaçosa, adornada, como todo o palácio do rei de Dublin, com a pilhagem do mundo inteiro – armas lavradas a ouro, tapeçarias raras, ricos tapetes, divãs de Bizâncio e do Oriente –; saque tomado de todos os povos pelos nômades escandinavos; pois Dublin era o centro do mundo vasto dos vikings – o quartel-general de onde viajavam para pilhar os reis da terra.

Uma forma régia se ergueu para saudá-lo. Kormlada, a quem os gaélicos chamavam Gormlaith, era realmente bela, mas havia crueldade em seu rosto e em seus duros olhos cintilantes. Ela era de sangue irlandês e dinamarquês misturados, e parecia em parte uma rainha bárbara, com suas argolas pendentes, seus braceletes e tornozeleiras de ouro, e suas placas peitorais de prata incrustadas de jóias. Exceto por estas placas peitorais, suas únicas roupas eram uma curta saia de seda – a qual chegava à metade de suas coxas, e era segura por um cinto largo ao redor de sua cintura esbelta –, e sandálias de couro vermelho e macio. Seu cabelo era dourado-avermelhado, seus olhos cinza-claros e cintilantes. Ela já havia sido rainha de Dublin, de Meath e de Thomond. E ainda era rainha, pois tinha seu filho Sitric e seu irmão Mailmora na palma de sua esguia mão branca. Levada num ataque-surpresa em sua infância por Amlaff Cauran, Rei de Dublin, ela havia, desde cedo, descoberto seu poder sobre os homens. Como esposa-mirim do rude dinamarquês, ela havia dominado o reino dele à vontade, e suas ambições cresciam junto com seu poder.


Agora ela encarava Brodir com seu sorriso sedutor e misterioso, mas um desconforto secreto a corroia. No mundo inteiro, só havia uma mulher a quem temia, e apenas um homem. E o homem era Brodir. Com ele, ela nunca estava certa do próprio rumo; ela o ludibriava, como fazia com todos os homens, mas com muitos maus pressentimentos, pois sentia nele uma selvageria elementar, a qual, uma vez solta, ela não seria capaz de controlar.

- O que o sacerdote disse, Brodir? – ela perguntou.

- Se evitarmos lutar pela manhã, nós perderemos – o viking respondeu mal-humorado. – Se lutarmos, Brian vence, mas morre. Lutaremos... principalmente porque meus espiões me contaram que Donagh está longe do acampamento, com um bando poderoso, devastando as terras de Mailmora. Mandamos espiões até Malachi, que tem um velho rancor contra Brian, incitando-o a abandonar o rei... ou, pelo menos, a ficar de lado e não ajudar nenhum de nós. Nós o oferecemos ricas recompensas, e as terras de Brian para governar. Rá! Que ele caia em nossa armadilha! Nós não o daremos ouro, mas uma espada sangrenta. Com Brian esmagado, nós cairemos sobre Malachi e o pisaremos dentro do pó. Mas primeiro: Brian.

Ela fechou as mãos brancas em selvagem exultação:

- Traga-me sua cabeça! Eu a pendurarei sobre nossa cama de núpcias!

- Ouvi histórias estranhas – disse Brodir sombriamente. – Sigurd tem se vangloriado em seus copos.

Kormlada estremeceu e examinou aquele rosto inescrutável. Mais uma vez, ela sentia um tremor de medo ao olhar para o viking sombrio, com sua estatura elevada e poderosa, seu rosto moreno e ameaçador, e seus espessos cabelos negros, os quais ele usava trançados e presos ao cinto de sua espada.

- O que Sigurd disse? – ela perguntou, esforçando-se para tornar sua voz despreocupada.

- Quando Sitric veio até mim em meu skalli, na Ilha de Man – disse Brodir, com brilhos vermelhos começando a arder em seus olhos –, ele jurou que, se eu o ajudasse, eu me sentaria no trono da Irlanda, com você como minha rainha. Agora, aquele idiota das Órcades, Sigurd, se gaba em sua cerveja que a mesma recompensa foi prometida a ele.

Ela forçou uma risada:

- Ele estava bêbado.

Brodir explodiu em pragas selvagens, quando a violência do viking indomado se ergueu nele.

- Está mentindo, sua vadia! – ele gritou, agarrando-lhe o pulso branco num aperto férreo. – Você nasceu para seduzir homens para suas ruínas! Mas não pode descuidar de Brodir de Man!

- Você está louco! – ela exclamou, retorcendo-se em vão no seu aperto. – Solte-me, ou chamarei meus guardas!

- Chame-os – ele rosnou –, e eu deceparei suas cabeças. Irrite-me agora, e correrá sangue à altura dos tornozelos pelas ruas de Dublin. Por Thor, não restará cidade para Brian queimar! Mailmora, Sitric, Sigurd, Amlaff... cortarei os pescoços de todos eles, e lhe arrastarei nua na minha embarcação, pelo seu cabelo amarelo! Ouse chamar!

Ela não ousou. Ele a forçou a se ajoelhar, torcendo-lhe o braço branco tão brutalmente, que ela mordeu o próprio lábio para não gritar.

- Você prometeu a Sigurd a mesma coisa que me prometeu – ele prosseguiu, numa fúria mal-controlada –, sabendo que nenhum de nós jogaria a vida fora por menos!

- Não! Não! – ela guinchou. – Juro pelo anel de Thor! – Então, quando a dor ficou insuportável, ela deixou a máscara cair: – Sim... sim, eu prometi a ele... oh, solte-me!

O viking a lançou com desdém sobre uma pilha de almofadas de seda, onde ela ficou deitada, chorando e desalinhada.

- Você me prometeu e prometeu a Sigurd – ele disse, avultando ameaçadoramente sobre ela –, mas a promessa que fez a mim, você cumprirá... do contrário, será melhor você nunca ter nascido. O trono da Irlanda é pequeno, perto do meu desejo por você... se eu não puder lhe ter, ninguém terá.

- Mas e quanto a Sigurd?

- Ele morrerá na batalha... ou depois – ele respondeu sombriamente.

- Muito bem! – Era realmente medonho o extremo no qual Kormlada não podia contar com a sua sagacidade. – É a você que eu amo, Brodir; só fiz essa promessa a ele, porque, de outro modo, ele não nos ajudaria.

- Amor! – o viking riu amargamente. – Você ama Kormlada, e mais ninguém. Mas você manterá o que me prometeu, ou se arrependerá. – E, dando a volta nos calcanhares, ele se afastou do quarto a passos largos.

Kormlada se levantou, esfregando seu braço onde as marcas azuis de seus dedos lhe desfiguraram a pele branca.

- Que ele caia no primeiro ataque! – ela rangeu entre dentes. – Se um deles sobreviver, que seja aquele idiota alto do Sigurd... parece-me que ele será um marido mais facilmente manejável do que aquele selvagem de cabelos negros. Terei de me casar com ele, se ele sobreviver à batalha, mas, por Thor, ele não requisitará por muito tempo o trono da Irlanda... eu o enviarei para se juntar a Brian...

- Você fala como se o Rei Brian já estivesse morto. – Uma voz calma fez com que Kormlada girasse e encarasse a outra pessoa no mundo a quem ela temia, além de Brodir. Os olhos dela se arregalaram ao verem uma jovem esguia, vestida em verde tremeluzente; uma jovem, cujo cabelo dourado bruxuleava com uma luz sobrenatural ao brilho das velas. A rainha recuou, as mãos esticadas como se para afastá-la.

- Eevin! Para trás, bruxa! Não me lance nenhum feitiço!

- Quem sou eu para enfeitiçar a grande rainha que enfeitiçou tantos homens? – Eevin perguntou zombeteira, segura no conhecimento dos medos supersticiosos da rainha; para aquela mulher dinamarquesa, a jovem picta era algo temível e inumano... um duende sobrenatural das profundezas da floresta.

- Como chegou ao meu palácio? – indagou Kormlada, com um débil esforço para se fazer imperiosa.

- Como a brisa atravessou as árvores? – respondeu a garota Danaan. – Seus guardas vigiam muito bem, mas os bois percebem quando os camundongos do campo correm pelo trigo? Vocês, do povo alto, são como cegos e surdos quando o povo moreno se move furtivamente entre vocês. O que Brodir estava lhe dizendo, antes de eu entrar?

- Se você é uma feiticeira, você sabe – respondeu a rainha, de mau-humor.

Eevin assentiu:

- Sim, eu sei. Estou lendo em sua própria mente. Ele havia consultado o oráculo do povo do mar... o sangue e o coração arrancado – seus lábios graciosos se curvaram de nojo –, e ele lhe disse que atacaria amanhã.

A rainha vacilou e nada respondeu, temendo encontrar os olhos magnéticos de Eevin. Ela se sentia desnudada diante da jovem misteriosa, a qual poderia misteriosamente analisar o conteúdo de sua mente e esvaziá-la de seus segredos.

Eevin ficou com a cabeça curvada por um momento, e então a ergueu subitamente. Kormlada estremeceu, pois algo semelhante ao medo brilhou nos olhos da garota-lobo.

- Quem está neste castelo? – ela gritou.

- Você sabe tanto quanto eu – murmurou Kormlada. – Sitric, Sigurd e Brodir.

- Há outro! – exclamou Eevin, ficando pálida e estremecendo. – Ah, eu o conheço há muito... eu o sinto... ele carrega o frio do Norte consigo, o travo estremecedor de mares gelados...

Ela deu a volta e deslizou rapidamente pelas cortinas de veludo, que cobriam uma portada escondida, a qual Kormlada pensava ser conhecida apenas por ela e suas mulheres, deixando a rainha perplexa e constrangida.


Na câmara sacrifical, o idoso sacerdote ainda resmungava sobre o altar ensangüentado, no qual jazia a última vítima de seu rito.

- Há 50 anos, venho servindo Odin – ele murmurou. – E nunca li tais presságios. Odin pôs sua marca sobre mim, há muito tempo, numa noite de horror. Os anos caem como folhas secas, e meu tempo chega a um fim. Um a um, vi os altares de Odin desmoronarem. Se os cristãos vencerem esta batalha, a época de Odin acabará. Tenho a impressão de que ofereci meu último sacrifício...

Uma voz grave e poderosa falou atrás dele:

- E o que poderia ser mais adequado, do que você acompanhar a alma daquele último sacrifício até o reino de quem você serviu?

O sacerdote girou, com a faca sacrifical lhe caindo da mão. Diante dele, se erguia um homem alto e envolto num manto, sob o qual brilhava uma armadura. Um chapéu desleixado estava puxado para baixo, sobre sua testa, e, quando ele o empurrou para trás, um único olho, brilhante e sombrio como o mar cinza, lhe encontrou o olhar horrorizado.

Guerreiros que correram para dentro da câmara, ao ouvirem o agudo grito estrangulado que saiu horrendamente dali, encontraram o velho sacerdote morto ao lado do altar onde jazia o cadáver; não tinha ferimentos, mas estava com o rosto e corpo murchados, como se vítimas de alguma intempérie, e um horror de sacudir a alma em seus olhos vitrificados. Mas, exceto pelos cadáveres, a câmara estava vazia, e ninguém fora visto entrando nela, desde que Brodir saíra.


Sozinho em sua tenda, com os fortemente armados soldados da infantaria enfileirados lá fora, o Rei Brian tinha um sonho estranho. Em seu sonho, um gigante cinza avultava terrivelmente acima dele e gritava numa voz que era como o trovão entre as nuvens:

- Cuidado, defensor do Cristo branco! Embora você fira meus filhos com a espada e me empurre para dentro dos vácuos escuros de Jotunheim, eu te farei se arrepender! Como você fere meus filhos com a espada, ferirei o filho do seu corpo e, da mesma forma que vou para dentro da escuridão, você também irá, quando as Escolhedoras dos Mortos cavalgarem as nuvens acima do campo de batalha!

O trovejar da voz do gigante e o brilho aterrador de seu único olho, congelaram o sangue do rei que nunca conhecera o medo; e, com um grito sufocado, ele acordou. As tochas grossas, que queimavam lá fora, iluminavam o interior de sua tenda bem o bastante, para que ele pudesse distinguir uma forma esguia.

- Eevin! – ele gritou. – Por minha alma, que bom para os reis você não participar das intrigas dos mortais, quando você pode se mover furtivamente sob os próprios narizes dos guardas, dentro de nossas tendas. Você procura Dunlag?

A jovem picta sacudiu tristemente a cabeça:

- Eu não mais o verei vivo, grande rei. Se eu fosse até ele agora, meu próprio pesar negro poderia desencorajá-lo. Eu o verei entre os mortos amanhã.

O Rei Brian teve um calafrio.

- Mas não é das minhas dores que eu vim falar, milorde – ela continuou, cansada. – Não é costume do Povo Escuro participar das guerras do Povo Alto, mas eu amo um deles. Esta noite, eu falei com Gormlaith.

Brian estremeceu diante do nome de sua rainha divorciada.

- E suas notícias? – ele perguntou.

- Brodir atacará de amanhã.

O rei sacudiu seriamente a cabeça:

- Irrita minha alma derramar sangue no Dia Sagrado. Mas, se Deus quer isso, não aguardaremos o ataque dele... marcharemos ao amanhecer para o enfrentarmos. Mandarei um rápido mensageiro, para trazer Donagh de volta...

Eevin balançou a cabeça mais uma vez:

- Não, grande rei. Deixe Donagh viver. Após a batalha, os dalcasianos precisarão de braços fortes para segurarem o cetro.

Brian olhou fixamente para ela:

- Eu leio minha sina nessas palavras. Você lançou meu destino?

Eevin estendeu os braços, sem saber o que fazer:

- Milorde, nem mesmo o Povo Moreno pode rasgar o Véu à vontade. Não por adivinhações ou a feitiçaria da predição, nem em fumaça ou sangue eu leio, mas há uma sina sobre mim, e eu vejo através da chama e do vago estrondo da batalha.

- E eu morrerei?

Ela prostrou o rosto nas mãos.

- Bom, que aconteça como Deus quiser – disse tranqüilamente o Rei Brian. – Tive uma vida longa e intensa. Não chore... através das névoas mais escuras das trevas e da noite, a aurora ainda se ergue sobre o mundo. Meu clã lhe reverenciará nos longos dias futuros. Agora vá, pois a noite declina em direção à alvorada, e eu gostaria de fazer minhas pazes com Deus.

E Eevin de Craglea saiu, como uma sombra, da tenda do rei.


5) O Banquetear das Águias
“A guerra era como um sonho; não sei dizer
Quantas almas pagãs mandei para o Inferno.
Apenas sei que, acima dos mortos,
Ouvi a voz de Odin gritando para seus filhos,
E senti, em meio ao choque e rugido da batalha,
O conflito dos deuses que estrondeavam no Ragnarok”.
(A Saga de Conn)

Através da névoa da aurora que clareava, homens se moviam como fantasmas, e armas retiniam lugubremente. Conn esticou os braços musculosos, bocejou cavernosamente e soltou a grande lâmina que havia em sua bainha.

- Hoje é o dia em que os corvos bebem sangue, milorde – ele disse, e Dunlag O’Hartigan assentiu distraidamente.

- Venha aqui e me ajude a vestir esta maldita gaiola – disse o jovem chefe. – Vou vesti-la pelo amor de Eevin; mas, pelos santos, eu preferiria entrar na batalha totalmente nu!

Os gaélicos se moviam, marchando desde Kilmainham na mesma formação na qual pretendiam entrar na batalha. Primeiro, vieram os dalcasianos – homens grandes, de membros longos, em suas túnicas amarelas, com um pequeno escudo redondo de madeira de teixo, reforçado com aço, no braço esquerdo, e a mão direita segurando o temido machado dalcasiano, ao qual nenhuma armadura conseguia resistir. Este machado diferia muito da pesada arma dos dinamarqueses; os irlandeses a empunhavam com uma mão, o polegar estirado ao longo do cabo para guiar o golpe, e eles haviam alcançado uma habilidade de luta com machado nunca igualada antes ou depois. Não usavam nenhum tipo de cota-de-malha – nem os gallaglachs (5) nem os kerns –, embora alguns chefes, como Murrogh, usassem leves gorros de aço. Mas, tanto as túnicas dos guerreiros, quanto as dos chefes, haviam sido tecidas com bastante habilidade e colocadas no vinagre, até sua resistência extraordinária proporcionar certa proteção contra espadas e flechas.

À frente dos dalcasianos, caminhava o Príncipe Murrogh, seus olhos ferozes e resplandecentes, sorrindo como se ele fosse a um banquete ao invés de uma matança. De um lado, ia Dunlag em seu corselete romano; e seguido por Conn, que trazia o elmo; e, do outro lado, os dois Turloghs – o filho de Murrogh, e Turlogh Dubh, o único dentre todos os dalcasianos que sempre ia à batalha totalmente blindado. Ele parecia bastante sombrio, apesar de jovem, com seu rosto moreno e ardentes olhos azuis, vestido como sempre em colete de malha negra, perneiras de malha metálica, um elmo de aço com uma proteção de cota-de-malha pendendo do mesmo, e levando um escudo redondo com uma espícula. Diferente do restante dos chefes, que preferiam usar espadas na batalha, Turlogh Dubh lutava com um machado que ele próprio havia forjado; e sua habilidade com aquela arma era quase sobrenatural.

Logo atrás dos dalcasianos, vinham as duas companhias de escoceses com seus chefes, os Grandes Stewards da Escócia, os quais, veteranos de longas guerras com os saxões, usavam elmos com cristas de crina de cavalo e cotas-de-malha. Com eles, vinham os homens do sul de Munsten, comandados pelo Príncipe Meathla O’Faelan.

A terceira divisão consistia nos guerreiros de Connacht – homens selvagens do oeste, com cabeleiras desgrenhadas e vestidos apenas com suas tangas de pele de lobo, com seus chefes O’Kelly e O’Hyne. E O’Kelly marchava como um homem cuja alma é pesada, pois a sombra de seu encontro com o Rei Malachi na noite anterior caía pesadamente sobre ele.

Um pouco afastados das três principais divisões, marchavam os altos gallaglachs e kerns de Meath, o rei deles cavalgando devagar à frente.

E, diante de todo o exército, cavalgava o Rei Brian Boru, num cavalo branco, suas mechas brancas sopradas ao redor de seu rosto idoso e seus olhos estranhos, de modo que os selvagens kerns olhavam para ele com medo e respeito supersticiosos.

Assim, os gaélicos chegaram diante de Dublin, onde eles viram os exércitos de Lochlann e de Leinster parados em formação de batalha, estirados numa larga lua crescente que ia da Ponte de Dubhgall ao estreito rio Tolka, o qual corta a planície de Clontarf. Três divisões principais estavam lá: os estrangeiros nórdicos, os vikings, com Sigurd e o sombrio Brodir; flanqueando-os a um dos lados, os ferozes dinamarqueses de Dublin sob o comando do chefe deles, um nômade sombrio cujo nome nenhum homem sabia, mas que era chamado de Dubhgall, O Forasteiro Escuro –; e, no outro lado, os irlandeses de Leinster, com seu rei Mailmora, irmão de Kormlada. A fortaleza dinamarquesa, na colina além do Rio Liffey, estava eriçada de homens armados onde o Rei Sitric guardava a cidade.

Só havia um único caminho para a cidade desde o norte – a direção pela qual os gaélicos estavam avançando, pois naquela época Dublin ficava toda ao sul do Liffey –: era a ponte chamada Ponte de Dubhgall. Os dinamarqueses tinham apenas uma ponta de sua linha guardando esta entrada, suas fileiras se curvando para fora, em direção ao Tolka, e suas costas voltadas para o mar. Os gaélicos avançavam ao longo da planície que se estendia entre o Bosque de Tomar e a praia.

Com pouco mais que um tiro de arco separando as hostes, os gaélicos pararam, e o Rei Brian cavalgou diante deles, erguendo bem alto um crucifixo.

- Filhos de Goidhel! – sua voz vibrou como o soar de uma trombeta. – Não me é dado liderá-los para dentro do conflito, como eu fazia antigamente. Mas armei minha tenda atrás de suas fileiras, onde vocês podem me pisar se fugirem! Vocês não fugirão. Lembrem-se dos cem anos de atrocidades e infâmia! Lembrem-se de seus lares queimados, seus parentes assassinados, suas mulheres violentadas e seus bebês escravizados! Seus opressores estão diante de vocês! Neste dia, nosso bom Senhor morreu por vocês! Ali estão as hordas pagãs que injuriam Seu nome e matam Seu povo! Só tenho uma ordem a dar: vençam ou morram!

As hordas selvagens bradaram como lobos, e uma floresta de machados foi brandida no alto. O Rei Brian curvou a cabeça, e seu rosto estava subitamente sombrio.

- Deixe-os me guiarem de volta à minha tenda – ele sussurrou para Murrogh. – A idade me definhou da luta de machados, e meu destino está inflexivelmente sobre mim. Avancem, e que Deus lhes enrijeça os braços para a matança!

Quando o rei cavalgou lentamente de volta à sua tenda, entre seus guardas, houve um apertar de cintos, um puxar de lâminas e um vestir de escudos. Conn colocou o capacete romano na cabeça de Dunlag e sorriu com o resultado; pois o jovem chefe parecia algum mítico monstro de ferro, saído das lendas nórdicas. As hostes se moviam inexoravelmente, uma em direção à outra.

Os vikings haviam assumido sua formação favorita em forma de cunha, com Sigurd e Brodir na extremidade. Os escandinavos faziam um forte contraste com as fileiras soltas dos gaélicos seminus. Eles se moviam em filas compactas, blindados por elmos com chifres, espessas cotas-de-malha de escamas lhes alcançando os joelhos, e perneiras de amadurecidos couros de lobo, reforçadas com placas de ferro, e carregavam grandes escudos em forma de papagaios, feitos de madeira de tília com bordas de ferro, e longas lanças. Os mil guerreiros na frente também usavam longas perneiras e manoplas de malha, de modo que, da cabeça aos calcanhares, estavam vestidos em aço. Estes marchavam numa parede sólida, os escudos lhes cobrindo parcialmente e, sobre suas fileiras de ferro, pairava a sombria bandeira do corvo, a qual sempre trazia vitória para Jarl Sigurd, embora trouxesse a morte para quem a segurasse. Agora, ela era trazida pelo velho Rane, filho de Asgrimm, que sentia que a hora de sua morte estava próxima.

À frente da cunha, como a ponta de uma lança, estavam os campeões de Lochlann – Brodir, em sua malha azul, à qual nenhuma lâmina havia amassado; Jarl Sigurd, alto, de barba loira e resplandecente em sua cota-de-malha de escamas douradas; Hrafn, o Vermelho, em cuja alma se escondia um demônio zombeteiro que o levava a rir gigantescamente, mesmo na loucura da batalha; os companheiros altos Thorstein e Asmund; o Príncipe Amlaff, filho errante do Rei da Noruega; Platt, da Dinamarca; Athelstane, o saxão; Thorwald Raven, das Hébridas, e Anrad, o berserk.

Os irlandeses avançavam em direção a esta formação formidável, a passos rápidos, em formação mais-ou-menos aberta e dando pouca atenção a fileiras ordenadas. Mas Malachi e seus guerreiros giraram subitamente e se retiraram até a extrema esquerda, assumindo suas posições num local alto em Cabra. E, quando Murrogh viu isto, ele praguejou em voz baixa e Turlogh O Negro rosnou:

- Quem disse que um O’Neill esquece um velho rancor? Por Crom, Murrogh, temos que vigiar nossas costas tão bem quanto nossas frentes, antes que esta luta seja ganha!

Repentinamente, das fileiras vikings, afastou-se Platt da Dinamarca, seu cabelo vermelho esvoaçando como um véu escarlate ao redor de sua cabeça descoberta, e sua malha prateada brilhando. Os exércitos observavam ansiosamente; pois, naquela época, poucas batalhas começavam sem duelos preliminares.

- Donald! – gritou Platt, erguendo sua espada desembainhada, de modo que o sol nascente se refletia nela com um brilho prateado. – Onde está Donald de Mar? Você está aí, Donald, como esteve em Rhu Stoir, ou está se escondendo da luta?

- Estou aqui, patife! – respondeu o chefe escocês, saindo a passos largos, alto e magro, de entre seus homens e lançando sua bainha para longe.

Escocês das montanhas e dinamarquês se defrontaram no meio do espaço entre as hostes; Donald, cauteloso como um lobo caçando, e Platt, saltando para dentro, indiferente e temerário, olhos acesos e dançando com uma loucura risonha. Mas foi o pé do cauteloso Steward que escorregou subitamente numa pedra solta e, antes que ele pudesse recuperar o equilíbrio, a espada de Platt entrou tão ferozmente nele que a ponta afiada lhe atravessou as escamas do corselete e afundou no coração. O berro de louca exultação de Platt se tornou um arfar. Mesmo enquanto se contorcia, Donald de Mar lançou um golpe moribundo que partiu a cabeça do dinamarquês, e os dois caíram juntos.

Nesse lugar, um rugido grave se ergueu até os céus, e os dois grandes exércitos rolaram juntos como uma onda de maré. Então, foram dados os primeiros golpes da batalha. Não havia manobras de estratégia, nem ataques de cavalaria, nem vôos de flechas. Os 40 mil homens lutavam a pé, corpo-a-corpo, homem a homem, matando e morrendo num caos vermelho. A batalha sangrenta se quebrou em ondas uivantes ao redor das lanças e machados dos guerreiros. Os primeiros a se colidirem foram os dalcasianos e os vikings; e, ao se encontrarem, ambas as linhas tremeram ao impacto. O grito rouco dos escandinavos se misturava aos berros dos gaélicos, e as lanças do norte se estilhavam entre os machados do oeste. À frente do conflito, o grande corpo de Murrogh saltava e se esforçava, enquanto ele rugia e golpeava a torto e a direito, com uma espada pesada em cada mão, ceifando homens como se fossem trigo. Nem escudo nem elmo resistiam aos seus terríveis golpes; e, atrás dele, vinham seus guerreiros, talhando e uivando como demônios. Contra as linhas compactas dos dinamarqueses de Dublin, trovejavam os selvagens homens tribais de Connacht, e os homens do sul de Munster caíam vingativamente sobre os irlandeses de Leinster.

As fileiras de ferro se contorciam e entrelaçavam de um lado a outro da planície. Conn, seguindo Dunlag, sorria selvagemente enquanto matava com sua lâmina gotejante, e seus olhos ferozes procuravam por Thorwald Raven entre as lanças. Mas, naquele louco mar de batalha, onde rostos selvagens iam e vinham como ondas, era difícil distinguir um único homem.

Inicialmente, ambas as fileiras resistiram sem ceder uma só polegada; pés firmados, esforçando-se peito contra peito, eles rosnavam e retalhavam, escudo comprimido fortemente contra escudo. Em toda a fileira de batalha, lâminas tremeluziam e relampejavam como a espuma do mar ao sol, e o rugido estremecia os corvos que giravam como valquírias no alto. Então, quando a carne e o sangue humanos não puderam mais resistir, as fileiras cerradas começaram a rolar para frente ou para trás. Os homens de Leinster recuaram diante do ataque feroz dos clãs de Munster e seus aliados escoceses, retrocedendo lentamente, passo a passo, amaldiçoados pelo rei deles, o qual lutava a pé com uma espada, à frente do conflito.

Mas, no outro flanco, os dinamarqueses de Dublin, sob a liderança do terrível Dubhgall, resistiram ao primeiro e destruidor ataque das tribos do Oeste, embora suas fileiras cambaleassem diante da colisão, e agora os homens selvagens, em suas peles de lobo, estivessem caindo como semente acumulada, diante dos machados dinamarqueses.

No centro, a batalha rugia mais ferozmente; a muralha de escudos em forma de cunha, dos vikings, resistia e, contra suas fileiras de ferro, os dalcasianos arremessavam em vão seus corpos seminus. Uma pilha medonha rodeava aquela muralha sombria, quando Brodir e Sigurd começaram a avançar lenta e firmemente, o inexorável avanço dos vikings talhando cada vez mais fundo para dentro da formação solta dos gaélicos.

Nos muros do Castelo de Dublin, o Rei Sitric, assistindo à luta com Kormlada e a esposa, exclamou:

- Bem, os reis do mar realmente ceifam o campo!

Os belos olhos de Kormlada ardiam em exultação selvagem.

- Morra, Brian! – ela gritou ferozmente. – Morra, Murrogh! E morra também, Brodir! Deixem os corvos alimentados!

A voz dela vacilou, quando seus olhos caíram sobre uma figura alta e usando manto, erguida sobre as ameias e distante das pessoas – um gigante sombrio e cinza, pairando sobre a batalha. Um medo frio se moveu nela, e ela congelou as palavras nos lábios. Puxou o manto de Sitric.

- Quem é ele? – ela sussurrou, apontando.

Sitric olhou e estremeceu:

- Não sei. Não lhe dê atenção. Não chegue perto dele. Quando mal me aproximei dele, ele não falou comigo, nem olhou para mim, mas um vento frio soprou sobre mim e meu coração se encolheu. Melhor assistirmos à batalha. Os gaélicos estão recuando.

Mas, no ponto mais adiantado do avanço gaélico, a linha resistia. Lá, como o centro convexo de um curvado machado de batalha, lutavam Murrogh e seus chefes. O grande príncipe já derramava sangue de talhos em seus membros, mas suas espadas pesadas flamejavam em golpes duplos que distribuíam morte como uma colheita, e os chefes ao seu lado ceifavam o trigo da batalha. Murrogh tentava alcançar Sigurd através da turba. Ele viu o Jarl alto avultando do outro lado das lanças e cabeças, dando golpes semelhantes a pancadas de trovão, e aquela visão enlouqueceu o príncipe. Mas ele não conseguia alcançar o viking.

- Os guerreiros estão sendo forçados para trás – arfou Dunlag, tentando sacudir o suor de seus olhos. O jovem chefe estava intocado; tanto lanças quanto machados se quebravam no capacete romano, ou resvalavam na antiga couraça, mas, desacostumado a lutar de armadura, ele se sentia como um lobo acorrentado.

Murrogh deu uma única olhada de relance: em ambos os lados do amontoado de chefes, os gallaglachs estavam caindo para trás, lenta e selvagemente, vendendo com sangue cada passo no chão, incapazes de deter o irresistível avanço dos escandinavos vestidos em malha. Estes também caíam, todos ao longo da linha de batalha, mas eles fechavam as fileiras e forçavam seu caminho para a frente, as pernas fortemente firmadas, os corpos retesados, impelindo suas lanças incessantemente e sem pausa; através de uma sangrenta rebentação de mortos e moribundos, eles continuavam avançando penosamente.

- Turlogh! – ofegou Murrogh, salpicando o sangue e suor dos olhos. – Depressa... saia da batalha e vá até Malachi! Mande-o atacar, em nome de Deus!

Mas o frenesi da matança estava sobre Turlogh O Negro; seus lábios estavam salpicados de espuma, e seus olhos eram os de um louco.

- O Diabo leve Malachi! – ele gritou, partindo o crânio de um dinamarquês, num golpe que parecia o da pata retalhadora de um tigre.

- Conn! – gritou Murrogh, agarrando o ombro do enorme kern e arrastando-o para trás. – Corra até Malachi... precisamos da ajuda dele.

Relutante, Conn se afastou do conflito, abrindo seu caminho com golpes trovejantes. Do outro lado do mar cambaleante de lâminas e elmos que tremiam, ele viu as formas elevadas de Jarl Sigurd e seus lordes – as dobras encapeladas da bandeira do corvo flutuavam acima deles, enquanto suas espadas sibilantes derrubavam homens como trigo diante do ceifeiro.

Longe da pressão, o kern correu rapidamente ao longo da linha de batalha, até chegar ao solo mais alto de Cabra, onde os homens de Meath se aglomeravam, tensos e trêmulos como cães de caça, enquanto seguravam suas armas e olhavam ansiosos para o rei deles. Malachi estava afastado, assistindo à luta com olhos taciturnos, sua cabeça leonina curvada e seus dedos enroscados na barba dourada.

- Rei Melaghlin – disse Conn rudemente. – O Príncipe Murrogh insiste que você ataque, pois a pressão é grande e os homens dos gaélicos estão sendo duramente atacados por todos os lados.

O grande O’Neill ergueu sua cabeça e olhou distraidamente para o kern. Conn pouco imaginava o conflito caótico que acontecia na alma de Malachi – as visões rubras que lhe invadiam o cérebro: riquezas, poder e o governo de toda Erin, pesadas contra a negra vergonha da traição. Ele estendeu o olhar de um lado a outro do campo, onde a bandeira de seu sobrinho O’Kelly se elevava entre as lanças. E Malachi estremeceu, mas sacudiu a cabeça.

- Não – disse ele –; não é hora... Atacarei... quando chegar a hora...

Por um instante, rei e kern olharam nos olhos um do outro. Os olhos de Malachi se abaixaram. Conn deu a volta sem dizer uma só palavra, e desceu correndo a inclinação. Enquanto corria, ele viu que o avanço de Lennox e dos homens de Desmond havia sido impedido. Mailmora, esbravejando como um selvagem, havia matado o Príncipe Meathla O’Faelan com as próprias mãos; uma lança, estocada ao acaso, havia ferido o Grande Steward, e agora os homens de Leinster resistiam firmemente ao ataque dos Munster e dos clãs escoceses. Mas, onde os dalcasianos lutavam, a batalha estava travada; o Príncipe de Thomond interrompia o avanço dos escandinavos, como um penhasco saliente que quebra o mar.

Na convulsão da batalha, Conn chegou novamente até Murrogh:

- Melaghlin disse que atacará quando chegar a hora.

- Ao Inferno com a alma dele – gritou Turlogh O Negro. – Fomos traídos!

Os olhos azuis de Murrogh se incendiaram:

- Então, em nome de Deus – ele rugiu –, vamos atacar e morrer!

Os homens que lutavam foram atiçados por seu grito. A ira cega do gaélico se ergueu, gerada pelo desespero; as fileiras se enrijeceram, e um enorme grito sacudiu o campo, fazendo o Rei Sitric, na muralha de seu castelo, empalidecer e agarrar o parapeito. Ele já tinha ouvido aquele grito antes.

Agora, quando Murrogh saltava para a frente, os gaélicos despertavam para uma fúria vermelha, como em homens que não têm esperança. A proximidade da ruína despertou um frenesi neles e, como loucos inspirados, lançaram seu último ataque e golpearam a parede de escudos que cambaleava diante dos golpes. Nenhum poder humano conseguia deter o avanço. Murrogh e seus chefes não tinham mais esperança de ganhar, ou mesmo de viver, mas apenas de saciar suas fúrias enquanto morriam; e, em seu desespero, eles lutavam como tigres feridos – decepando membros, partindo crânios, e abrindo peitos e omoplatas. Logo atrás de Murrogh, flamejava o machado de Turlogh O Negro, e as espadas de Dunlag e dos chefes; sob aquela torrente de aço, a fileira de ferro entortou e cedeu, e através daquela brecha, os furiosos gaélicos entraram em grande quantidade. A formação de escudos se desfez.

Naquele exato momento, os homens selvagens de Connacht lançaram novamente um ataque desesperado contra os dinamarqueses de Dublin. O’Hyne e Dubhgall caíram juntos, e os homens de Dublin foram golpeados para trás, disputando cada passo. Todo o campo se dissolvia numa massa misturada de lutadores que retalhavam sem fileiras ou formações. Em meio a uma pilha dilacerada de dalcasianos mortos, Murrogh finalmente caiu sobre Jarl Sigurd. Atrás do jarl, estava o sombrio e velho Rane Filho de Asgrimm, segurando a bandeira do corvo. Murrogh o matou com um único golpe. Sigurd virou-se, sua espada rasgou a túnica de Murrogh e lhe talhou o peito, mas o príncipe irlandês golpeava tão ferozmente o escudo do escandinavo, que Jarl Sigurd cambaleou para trás.

Thorleif Hordi havia pegado a bandeira, mas ele mal a erguera, quando Turlogh O Negro, com os olhos resplandecendo ferozmente, quebrou a fileira e lhe partiu o crânio até os dentes. Sigurd, vendo sua bandeira caída novamente, golpeou Murrogh com fúria tão desesperada que sua espada atravessou o morion do príncipe e lhe talhou o couro cabeludo. O sangue esguichou pelo rosto de Murrogh e ele cambaleou, mas, antes que Sigurd pudesse atacar novamente, o machado de Turlogh O Negro golpeou como o tremular de um relâmpago. O escudo protetor do Jarl lhe caiu despedaçado do braço, e Sigurd recuou por um instante, intimidado pelo manejo daquele machado mortífero. Então, uma investida de guerreiros separou os chefes enfurecidos.

- Thorstein! – gritou Sigurd. – Pegue a bandeira!

- Não toque nela – gritou Asmund. – Quem a segura, morre!

Enquanto ele falava, a espada de Dunlag lhe esmagou o crânio.

- Hrafn! – Sigurd gritou desesperadamente. – Segure a bandeira!

- Segure sua própria maldição! – respondeu Hrafn. – Isto é o fim de todos nós!

- Covardes! – rugiu o Jarl, erguendo ele mesmo a bandeira e se esforçando para enrolá-la com o próprio manto, enquanto Murrogh, com o rosto ensangüentado e os olhos resplandecendo, correu até ele através da multidão. Sigurd ergueu a espada... tarde demais. A arma na mão direita de Murrogh se estilhou naquele elmo, arrebentando as correias que o prendiam e arrancando-o da cabeça de Sigurd; e a espada da mão direita de Murrogh, assobiando atrás do primeiro golpe, despedaçou o crânio do Jarl, fazendo-o cair morto nas dobras ensangüentadas da sua bandeira, que o enrolavam enquanto caía.

Agora um grande rugido se erguia, e os gaélicos redobravam seus golpes. Com a formação da parede de escudos desfeita, as malhas dos vikings não conseguiam salvá-los; pois machados dalcasianos, reluzindo ao sol, cortavam através tanto de cota-de-malha quanto de placas de ferro, dilacerando escudos de madeira de tília e elmos com chifres. Mas os dinamarqueses não se romperam.

Nas altas trincheiras, o Rei Sitric havia ficado pálido, suas mãos tremendo enquanto ele agarrava o parapeito. Ele sabia que aqueles homens selvagens não podiam ser derrotados, pois eles derramavam suas vidas como água, lançando seus corpos nus várias vezes para dentro das presas da lança e do machado. Kormlada estava silenciosa, mas a esposa de Sitric e filha do Rei Brian gritava de alegria, pois seu coração pertencia ao seu próprio povo.

Murrogh lutava para alcançar Brodir, mas o viking de cabelos negros tinha visto Sigurd morrer, e não estava ansioso para enfrentar o príncipe enlouquecido. O mundo de Brodir estava desmoronando; até mesmo sua ostentada malha lhe estava falhando, pois, embora houvesse até o momento lhe salvado a pele, ela agora estava esfarrapada. Nunca antes o viking de Man havia enfrentado o temível machado dalcasiano. Ele recuou da investida de Murrogh. Na aglomeração, um machado se espatifou no elmo de Murrogh, fazendo-o cair de joelhos e o cegando momentaneamente com o impacto. A espada de Dunlag fez um círculo de morte acima do príncipe caído.

A pressão afrouxou quando Turlogh O Negro, Conn e o mais jovem Turlogh entraram cortando e furando, e Dunlag, enlouquecido pelo calor da batalha, arrancou o elmo e o lançou para o lado, arrancando também sua couraça.

- O Diabo devore essas gaiolas! – ele gritou, agarrando o príncipe cambaleante para ajudá-lo; e, naquele instante, Thorstein O Dinamarquês correu para dentro e enfiou sua lança no lado de Dunlag. O jovem dalcasiano cambaleou e caiu aos pés de Murrogh; Conn pulou para a frente, para arrancar a cabeça de Thorstein dos ombros, de modo que a mesma girou pelo ar com os dentes arreganhados, numa chuva escarlate.

Murrogh sacudiu a escuridão dos olhos.

- Dunlag! – ele gritou, numa voz terrível, caindo de joelhos ao lado do amigo e lhe erguendo a cabeça.

Mas os olhos de Dunlag já estavam vitrificados.

- Murrogh! Eevin! – ele sussurrou, e então o sangue lhe jorrou dos lábios e ele amoleceu nos braços de Murrogh.

Murrogh se ergueu de um pulo, com um grito de fúria demoníaca. Ele correu até a parte mais aglomerada dos vikings, e seus homens correram para dentro, atrás dele.

Na colina de Cabra, Malachi gritou, lançando dúvidas e planos ao vento. Assim como Brodir havia conspirado, ele também havia. Ele só tinha que ficar à parte, até que ambos os exércitos fossem despedaçados, e depois se apoderar de Erin, trapaceando os dinamarqueses da mesma forma que eles pretendiam traí-lo. Mas seu sangue gritava contra ele e não podia ser acalmado. Ele agarrou o colar dourado de Tomar ao redor do pescoço – o colar que ele havia pegado, tantos anos antes, do rei dinamarquês a quem sua espada havia partido –, e o velho fogo se ergueu.

- Ataquem e morram! – ele gritou, desembainhando a espada, e atrás dele, os homens de Meath ganiram como uma alcatéia caçando e desceram campo adentro.

Sob o choque do ataque dos homens de Meath, os enfraquecidos dinamarqueses cambalearam e se romperam. Eles se separaram violentamente em grupos açoitadores e desesperados, procurando alcançar a baía onde seus navios estavam ancorados. Mas os homens de Meath lhes haviam rompido a retirada, e os navios estavam distantes, pois as ondas estavam em enchente. Aquela terrível batalha rugira o dia todo, mas para Conn, que olhava surpreso para o sol poente, parecia que menos de uma hora havia se passado desde que as primeiras fileiras se chocaram.

Os escandinavos fugitivos alcançaram o rio, e os gaélicos mergulharam atrás deles para afogá-los. Entre os fugitivos e os grupos de escandinavos que, aqui e ali, ofereciam resistências determinadas, os chefes irlandeses estavam divididos. O garoto Turlogh estava longe do lado de Murrogh, e nenhum homem o viu novamente, até arrastarem seu corpo afogado da represa de pesca do Tolka, seus dedos emaranhados nos cabelos desgrenhados de um dinamarquês.

Os clãs de Leinster não caíram, até Turlogh O Negro correr como uma besta enlouquecida para a parte mais aglomerada da batalha, e matar Mailmora em meio aos seus guerreiros.

Murrogh, ainda louco por sangue, mas cambaleando de cansaço e perda de sangue, caiu sobre um grupo de vikings, os quais, com as costas coladas umas às outras, resistiam aos seus vencedores. O líder deles era Anrad o Berserker, que, quando viu Murrogh, correu até ele. Murrogh, cansado demais para deter o golpe do dinamarquês, largou a própria espada e se engalfinhou com Anrad, lançando-o ao chão. A espada foi arrancada da mão do dinamarquês enquanto caíam. Ambos tentaram agarrá-la, mas Murrogh pegou o cabo e Anrad a lâmina. O príncipe gaélico a puxou, passando a lâmina afiada pela mão do viking, e cortando nervos e músculos; e, pondo um joelho sobre o peito de Anrad, Murrogh enfiou a espada três vezes no corpo dele. Anrad, morrendo, puxou uma adaga, mas sua força declinava tão rapidamente, que seu braço arriou. E então, uma mão enorme lhe agarrou o pulso e deu o golpe que ele tentara dar, de modo que a lâmina afiada afundou no coração de Murrogh. Este caiu moribundo para trás, e seu último olhar lhe mostrou um gigante cinza avultando acima, seu manto se encapelando ao vento, seu único e brilhante olho frio e terrível. Mas os olhos confusos dos guerreiros ao redor só viram morte e matança.

Todos os dinamarqueses estavam fugindo agora; e, no muro alto, o Rei Sitric via suas altas ambições desapareceram, enquanto Kormlada assistia, com olhos arregalados, à ruína, derrota e vergonha.

Conn corria entre os moribundos e fugitivos, procurando Thorwald Raven. O broquel do kern havia desaparecido, despedaçado entre os machados. Seu peito largo estava talhado em meia-dúzia de lugares; uma lâmina de espada lhe havia aberto o couro cabeludo, quando apenas sua cabeleira emaranhada lhe havia salvado. Uma lança havia afundado em sua coxa. Mas agora, no calor da fúria, ele mal sentia estes ferimentos.

Uma mão enfraquecida agarrou o joelho de Conn, enquanto ele tropeçava sobre homens mortos, vestidos em pele de lobo, e cadáveres blindados. Ele se curvou e viu O’Kelly, sobrinho de Malachi e chefe de Hy Many. Os olhos do chefe estavam vidrados pela morte. Conn lhe ergueu a cabeça e um sorriso curvou aqueles lábios abatidos.

- Ouço o grito-de-guerra dos O’Neill! – ele sussurrou. – Malachi não conseguiria nos trair! Ele não conseguiria ficar fora do conflito, apesar de suas ambições! A Mão... Vermelha... a Mão Vermelha... para a... Vitória!

Conn se ergueu quando O’Kelly morreu, e avistou uma figura familiar. Thorwald Raven havia saído da multidão, e agora fugia só e rapidamente, não em direção ao mar ou ao rio, onde seus companheiros morriam sob os machados gaélicos, mas em direção ao Bosque de Tomar. Apressado pelo ódio, Conn o seguiu.

Thorwald o viu e deu a volta, rosnando. Assim, o escravo encontrou seu primeiro dono. Enquanto Conn corria para uma luta corpo-a-corpo, o escandinavo agarrou o cabo de sua lança com ambas as mãos e arremeteu ferozmente; mas a ponta resvalou no grande colar de cobre ao redor do pescoço do kern. Conn, curvando-se, arremeteu para cima com toda a sua força, de modo que a grande lâmina rasgou a esfarrapada malha metálica e derramou suas entranhas sobre o chão.

Virando-se, Conn viu que a perseguição o levara para perto da tenda do rei, armada atrás das fileiras de batalha. Ele viu o Rei Brian Boru de pé, em frente à tenda, suas madeixas brancas esvoaçando ao vento, e apenas um homem o atendendo. Conn correu para a frente.

- Kern, quais são as notícias? – perguntou o rei.

- Os estrangeiros estão fugindo – disse Conn –, mas Murrogh morreu.

- Você traz péssimas notícias – disse Brian, a idade caindo subitamente sobre ele, como uma nuvem fria. – Erin nunca verá outra vez um campeão como ele.

- Onde estão seus guardas, meu senhor? – perguntou Conn.

- Eles se juntaram à perseguição.

- Deixe-me levá-lo a um lugar mais seguro – disse Conn. – Os galls estão correndo por todos os lugares ao nosso redor.

O Rei Brian sacudiu a cabeça:

- Não, eu sei que não sairei daqui vivo, pois Eevin de Craglea me disse, na noite passada, que eu cairia neste dia. E de que me vale sobreviver à morte de Murrogh e dos campeões dos gaélicos? Deixe-me repousar em Armagh, na paz de Deus.

Logo, o acompanhante gritou:

- Meu rei, estamos arruinados! Homens sombrios e nus estão sobre nós!

- Os dinamarqueses blindados! – gritou Conn.

O Rei Brian desembainhou sua espada pesada.

Um grupo de vikings manchados de sangue se aproximava, liderado por Brodir e o Príncipe Amlaff. Suas gabadas cotas-de-malha pendiam em tiras; suas espadas estavam denteadas, marcadas e gotejando. Brodir havia marcado a localização da tenda do rei desde longe, e se concentrava em assassinar, pois sua alma rugia de vergonha e fúria, e ele estava acossado por visões, nas quais Brian, Sigurd e Kormlada giravam numa dança infernal. Ele havia perdido a batalha, a Irlanda e Kormlada – agora, estava disposto a abandonar a própria vida num último e moribundo golpe de vingança.

Brodir correu em direção ao rei, com o Príncipe Amlaff atrás de si. Conn saltou para lhes barrar o caminho. Mas Brodir se desviou para um lado e se esquivou do kern, deixando-o para Amlaff, enquanto corria para cima do rei. E Conn recebeu a lâmina de Amlaff no braço esquerdo, e deu um único e terrível golpe, que rasgou a cota-de-malha do príncipe como se fosse de papel e lhe despedaçou a espinha. Então, ele pulou de volta para proteger o Rei Brian.

Então, ao dar a volta, Conn viu Brodir aparar o golpe de Brian e enfiar sua espada no coração do velho rei. Brian caiu, mas, ao cair, apoiou-se num dos joelhos e atacou como um leão moribundo. A lâmina afiada atravessou carne e ossos, decepando ambas as pernas de Brodir sob ele, e o grito de triunfo do viking se transformou num gemido horrível, enquanto desabava numa crescente poça escarlate, onde se debateu convulsivamente e jazeu imóvel.

Conn ficou olhando aturdido ao redor. A companhia de homens de Brodir havia fugido, e os gaélicos chegavam à tenda de Brian. O som do lamento pelos heróis já se erguia, para se misturar aos gritos que ainda vinham das hordas que se debatiam ao longo do rio. Estavam trazendo o corpo de Murrogh à tenda do rei, andando lentamente – homens cansados e ensangüentados, com as cabeças baixas. Atrás da liteira que carregava o corpo do príncipe, vinham outras – com os corpos de Turlogh, filho de Murrogh; de Donald, Steward de Mar; de O’Kelly e O’Hyne, os chefes do oeste; do Príncipe Meathla O’Faelan, e de Dunlag O’Hartigan. Ao lado desta liteira, caminhava Eevin de Craglea, sua cabeça dourada afundada no peito. Ela não gritava nem chorava. Andava como se estivesse em transe.

Os guerreiros abaixaram as liteiras e se reuniram, silenciosos e cansados, ao redor do cadáver do Rei Brian Boru. Eles olhavam calados, suas mentes ainda tão inertes da agonia do conflito, que mal sabiam o que viam ou faziam. Eevin de Craglea estava imóvel ao lado do corpo de seu amado, como se ela própria estivesse morta; não havia lágrimas em seus olhos, e nenhum grito lhe escapava dos lábios pálidos.

O clamor da batalha estava morrendo, enquanto o sol poente banhava o campo pisoteado com sua luz rosada. Os fugitivos, esfarrapados e cortados, coxeavam para dentro dos portões de Dublin, e os guerreiros do Rei Sitric estavam se preparando para agüentarem um cerco. Mas os irlandeses não estavam em condições de sitiar a cidade. Quatro mil guerreiros e chefes tribais haviam caído, e quase todos os campeões dos gaélicos estavam mortos. Contudo, mais de sete mil dinamarqueses e homens de Leinster jaziam estirados sobre a terra encharcada de sangue, e o poder dos vikings estava quebrado. Em Clontarf, seu reinado de ferro havia acabado.

Conn caminhava em direção ao rio, sentindo agora a dor de seus ferimentos que se solidificavam. Ele encontrou Turlogh Dubh. A loucura da batalha havia deixado Turlogh O Negro, e seu rosto moreno era inescrutável. Da cabeça aos pés, ele estava manchado de sangue.

- Meu senhor – disse Conn, dedilhando o grande aro de cobre ao redor do pescoço –, já matei o homem que pôs esta marca de escravo em mim. Eu gostaria de ficar livre dela.

Turlogh O Negro pegou a cabeça ensangüentada do machado nas mãos e, pressionando-a contra o aro, atravessou o metal mais mole com a lâmina afiada. O machado fez um talho no ombro de Conn, mas nenhum deles deu importância a isso.

- Agora, estou realmente livre – disse Conn, flexionando os braços poderosos. – Meu coração está pesado pelos chefes que morreram, mas minha mente está emaranhada com maravilha e glória. Quando haverá uma batalha como esta novamente? Foi realmente um banquete de corvos, um mar de matança...

Sua voz se arrastou e parou, e ele ficou como uma estátua, a cabeça lançada para trás, os olhos encarando os céus nublados. O sol afundava num oceano escuro de escarlate. Grandes nuvens rolavam e se revolviam, amontoadas gigantescamente contra o vermelho ardente do pôr-do-sol. Um vento saiu delas, penetrante e frio, e, carregada no vento, destacada sombriamente contra as nuvens, uma forma vaga e gigantesca ia voando, a barba e as selvagens mechas sopradas no temporal, o manto aberto e encapelado como grandes asas – correndo para dentro das misteriosas brumas azuis, que pulsavam e tremeluziam no Norte meditativo.

- Veja lá em cima... no céu! – gritou Conn. – O homem cinza! É ele! O homem cinza com seu terrível e único olho. Eu o vi nas montanhas de Torka. Eu o vislumbrei meditando nos muros de Dublin, enquanto a batalha rugia. Eu o vi avultando sobre o Príncipe Murrogh, quando este morreu. Olhe! Ele cavalga no vento e corre entre as nuvens altas. Ele diminui. Ele desvanece dentro do vazio! Ele some!

- É Odin, deus do povo do mar – disse sombriamente Turlogh. – Seus filhos estão derrotados, seus altares desmoronam e seus adoradores caíram diante das espadas do Sul. Ele foge dos novos deuses e de seus filhos, e retorna aos golfos azuis do Norte, que o fizeram nascer. Nunca mais haverá vítimas indefesas uivando sob as adagas de seus sacerdotes... nunca mais ele espreitará as nuvens negras. – Ele sacudiu a cabeça sombriamente: – O Deus Cinza parte, e nós também estamos partindo, apesar de termos vencido. Os dias de crepúsculo vêm com toda a força, e tenho uma estranha sensação de uma era que declina. O que somos todos nós, além de fantasmas declinando e minguando noite adentro?

E ele prosseguiu anoitecer adentro, deixando Conn com sua liberdade – livre da escravidão e crueldade, enquanto tanto ele quanto todos os gaélicos estavam agora livres da sombra do Deus Cinzento, e de seus impiedosos adoradores.


FIM




1) Skalli: Habitação viking, a qual consistia numa casa longa (Nota do Tradutor);

2) Danelaw: Nome dado historicamente à parte da Grã-Bretanha na qual as leis dos dinamarqueses eram hegemônicas (N. do T);

3) Jarl: Nome dado aos escandinavos de classe alta e grandes proprietários de terra (idem);

4) “Eles [os irlandeses] vão à batalha sem armadura, considerando-a um peso, e achando bravo e honroso lutarem sem ela” (Giraldus Cambresis);

5) Gallaglach: Soldado fortemente armado da infantaria (Nota do Tradutor).



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fontes: Sword Woman and Other Historical Adventures e The Best of Robert E. Howard # 1 – Crimson Shadows.

Agradecimentos especiais: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da Hungria, e à grande amiga Manuela Queiroz – sobrinha de minha amada esposa e minha sobrinha do coração.



Nota: O destino definitivo de Odin, bem como sua natureza – na concepção de Robert E. Howard –, pode ser visto no conto “O Túmulo no Promontório”, publicado em http://cronicasdacimeria.blogspot.com.br/2007/08/o-tmulo-no-promontrio.html?q=%22o+t%C3%BAmulo+no+promont%C3%B3rio%22


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