O Jovem Matador

(por Fernando Neeser de Aragão)



Figuras pisam fortemente e manobram sobre a neve da aldeia. O som não é do clangor do aço, mas do bater de madeira na pele. Os tamanhos das figuras são desiguais, como se crianças lutassem contra homens e mulheres adultos. E é exatamente o que está acontecendo. Garotos e garotas de vários tamanhos, idade e níveis de habilidade enfrentam homens e mulheres de idade adulta. Nenhum deles usa armadura – os cimérios abominam isso –, mas pesadas roupas de pele, apropriadas para o inverno. Os meninos e meninas variam em tamanho e habilidade – desde crianças que mal aprenderam a andar, golpeando abundantemente os adultos, a pré-adolescentes que exibem habilidade considerável. Em alguns casos, pré-adolescentes lutam uns contra os outros, sob os olhos observadores dos mais velhos. De tempos em tempos, uma luta pára, enquanto um adulto explica algo a uma criança.

Um dos pares de lutadores consiste num homem alto e robusto, de cabeleira grisalha sob sua calvície e rosto bem-barbeado; e um garoto de dez anos, longos e desgrenhados cabelos negros, e vulcânicos olhos azuis, a brilharem de empolgação. O homem é Tassach, ferreiro e pai do ferreiro da tribo; o menino é seu neto Conan. Tassach parece bastante relaxado, movendo-se com facilidade e sem esforço. Quando ele golpeia, parece ser uma pancada leve, mas o golpe ressoa alto. Conan, carregando um pequeno escudo e uma espada, põe os quadris e ombros em movimento ao atacar, demonstrando boa forma ao tentar golpear com toda velocidade e força.

Tassach manda vários golpes leves em direção à cabeça de Conan. Quando este bloqueia a série de golpes, seu escudo se ergue, e seu avô súbita e furtivamente lhe golpeia a perna, deixando Conan estatelado.

- Como fez isto? – pergunta o garoto, surpreso e sacudindo a cabeça.

- Diga-me como – responde o velho guerreiro, inescrutável.

Conan pára e pensa por um momento:

- Você mirou vários golpes à minha cabeça, várias vezes... continuei erguendo meu escudo, até você golpear minha perna com facilidade.

- Muito bem! – sorri Tassach. – Na próxima vez, observe enquanto eu estiver fazendo isto. Sua cabeça é importante, mas não se esqueça de que você tem pernas. Está pronto? Vamos lá!

Eles prosseguem o treino. Conan se estende para o alto, tentando acertar golpes na cabeça de Tassach. Este se curva para trás e golpeia Conan levemente na cabeça.

- O que houve? – Conan pergunta perplexo.

- Você estava tão ansioso por minha cabeça, que acabou me oferecendo a sua própria – o velho sorri de novo.

- Numa travessa?

- Exatamente! – Tassach responde, alargando o sorriso.

Eles fazem uma pausa, para se certificarem de que a lição foi absorvida.

- Pronto? – pergunta Tassach. – Então, vamos continuar!

Eles recomeçam. Desta vez, Conan ataca ferozmente, mantendo a própria defesa e variando seus ataques: em cima, embaixo, à direita, à esquerda e bloqueando os contra-ataques de Tassach. Este aumenta a rapidez, até parecer que está se defendendo a toda velocidade e atacando em velocidade quase total. Ele parece bastante impressionado e feliz. Após algum tempo, eles param para recobrar o fôlego.

Recomeçam. Depois de trocarem mais golpes, Tassach escorrega apenas um pouco no lago congelado onde treinam, mudando sua posição. Sentindo a guarda aberta, Conan tenta golpear o joelho do avô. Tassach consegue bloquear o golpe com sua lâmina, quebrando a espada de madeira do neto. Conan olha aturdido para o toco da espada em sua mão.

Com um sorriso no rosto cicatrizado, Tassach acerta sua espada – desta vez, uma de metal – de lado nas costelas do neto, para lhe atiçar a fúria. Irado pelo golpe – e por ter perdido sua espada de treinamento –, o garoto investe contra o avô, e este enfia a espada no lago congelado, abrindo um enorme buraco neste e fazendo o pequeno Conan cair na água gelada.

- Vai ter que melhorar bastante se quiser me ferir, moleque! – gargalha o velho Tassach ao neto frustrado, o qual se debate um pouco na água antes de se levantar. – Agora vá patrulhar a floresta, Conan! – acrescenta o ex-aventureiro, ainda com um sorriso zombeteiro no rosto.

Conan pega sua lança e algumas armas, e se dirige à floresta que cerca sua tribo. Chegando ao pé de uma colina – a única com rocha nua ao redor da aldeia –, o garoto ouve um som abafado de patas macias sobre a superfície daquela elevação e, levantando o olhar, vê uma pantera o encarando. Em uma época de pouca caça como o inverno, o menino percebe automaticamente a intenção daquele felino que desce lentamente da colina, e agarra a lança.

Súbito, a pantera pára e se crispa, sua cauda inquieta se move e um som de rocha desmoronando se forma em sua garganta, recolhendo todas as palpitações dos músculos que se concentram para o salto.

Conan vê as unhas se firmando na pedra, e intui o instante em que o animal voa em sua direção. E é nesse instante que o menino endireita o corpo, arremessa sua lança e salta para o lado, sentindo o bafo morno da fera, a qual cai morta com um baque surdo sobre o chão duro e pedregoso.

Arrancando a lança dos intestinos do animal sem vida, o garoto olha ao redor e aguça os ouvidos. Um uivo distante apunhala o ar; mas seus dez anos de existência naquele meio selvagem lhe dizem que não se trata de um lobo.

Então, seis selvagens aparecem silenciosa e abruptamente ali. Seus longos cabelos negros, olhos grandes, narizes e lábios finos pouco diferem das feições de um cimério – mas, ao contrário do povo daquela região montanhosa e nublada, os recém-chegados têm pele ainda mais escura, olhos negros e são atarracados. Suas roupas consistem em tangas e mocassins, suas peles estão lambuzadas de pintura corporal e eles usam machados de cobre. Apesar de nunca tê-los visto antes, o garoto já ouvira diversas vezes a descrição daqueles selvagens, feitas pelos seus conterrâneos. Pictos! Muito provavelmente, estavam se esgueirando como batedores, até perceberem que havia um menino patrulhando aquela tribo, e que devem matá-lo antes que ele alerte a aldeia.

Percebendo isso, Conan solta seu machado de sílex do cinto e não espera que aqueles inimigos hereditários dos cimérios partam para o ataque. Há ações para as quais o ser humano nasce, e para as quais se tem um talento que ultrapassa o mero ensinamento. Ele, que nunca antes havia tido um machado em punho, exceto para cortar madeira, o percebe como uma coisa viva em sua mão, manejada com instinto inimaginável. Ao sentir o cabo do machado na mão, força e uma estranha confiança correm como fogo pelas veias do garoto.

E ele percebe, novamente, que sua rapidez de olhos, mãos e pés não pode ser igualada por aqueles pictos. Eles uivam e golpeiam como se seus machados fossem facas de açougueiro, enquanto ele golpeia em silêncio mortal, e com precisão também mortal.

Com seu machado de sílex, ele mata três pictos em segundos – partindo a cabeça de um, estripando o segundo e abrindo o coração do terceiro. Mas, quando um dos demônios pintados lhe corta o cabo da arma com a lâmina de um dos machados de cobre, Conan golpeia um dos selvagens com o pé, ao mesmo tempo em que solta seu machado de ferro, forjado pelo pai – ele ainda é jovem demais, segundo os costumes cimérios, para manejar sua própria espada, embora já recebesse aulas de luta com uma das armas mais valorizadas por seu povo.

Naquele momento, as lições de esgrima e luta, ensinadas por seu pai e avô, se combinam com seus instintos e reflexos naturais, transformando-o num alvo móvel, veloz e mortífero para os pictos. O garoto já esquecera da lança com a qual matara a pantera e continua usando seu machado. O mais próximo deles cai com o sangue esguichando de seu corpo sem cabeça; o segundo, com os miolos escorrendo do crânio rachado, enquanto o terceiro cai ajoelhado, com as tripas ensangüentadas lhe escorrendo do ventre aberto, enquanto solta golfadas de sangue pela boca e narinas – seu estertor de morte transformado num grunhido de fúria.

Após matar aqueles selvagens, o garoto ouve um uivo diferente do dos pictos que matara. Antes que possa tirar suas armas dos cadáveres humanos, ele vê uma alcatéia convergir em sua direção. Sabendo que só terá chance de sobreviver caso mate o líder, Conan grunhe para o lobo que lidera aquele bando. Os lobos hesitam, mas percebem que tal desafio tem que ser enfrentado pelo líder deles.

O lobo investe contra o pequeno Conan, e este se esquiva, acertando um murro na face do animal e um chute na barriga do mesmo. O lobo reage, abocanhando o antebraço esquerdo do garoto, mas este acerta outro chute no abdome de seu antagonista peludo. O lobo investe mais uma vez, mas Conan lhe agarra as patas dianteiras e as quebra com as mãos nuas. O animal fica indefeso, deitado de papo para o ar e, no momento seguinte, o garoto de 10 anos lhe agarra o pescoço peludo com ambos os braços, e o quebra num estalo seco.

A alcatéia começa a recuar, mas outros animais selvagens aparecem ali, atraídos pelo cheiro dos cadáveres pictos. São uma pantera e um tigre – provavelmente desgarrados de seus respectivos bandos –, e outros lobos, cuja aparição encoraja um novo avanço daqueles que estavam recuando. Arremessando seu machado no crânio da fera mais próxima, Conan corre e se esconde, por saber que, sozinho, não conseguirá dar conta de todos aqueles predadores.

Seu instinto – nascido de mil ancestrais bárbaros – de não trair sua posição indefesa, faz com que o jovem se mantenha escondido e em silêncio, enquanto as feras selvagens lhe rondam o esconderijo. Algumas delas saciam a fome com os cadáveres pictos. Outras, no entanto, farejam e anseiam pela carne fresca daquele menino de dez anos. Ele aguardará pelo ataque de uma delas e matará até morrer.

Súbito, lá fora, dois lobos são atingidos mortalmente por lanças. Conan escuta os uivos de morte deles e se anima, pegando uma lança e espiando o que se passa lá fora. Então, ele vê o pai acertar um golpe de espada certeiro no crânio de um e pescoço de outro, enquanto Tassach derrama as entranhas de uma pantera e parte a cervical de um terceiro lobo. O velho ex-aventureiro é derrubado por um tigre, mas agarra a garganta deste com a mão direita, puxa a faca e, com a esquerda, perfura a jugular do animal, cuja vida se esvai junto com o sangue que lhe jorra aos borbotões. Criomnthan arranca sua lança da carcaça de um dos lobos e a enfia na boca de outro, usando apenas a mão esquerda – pois não quer soltar a espada da mão direita. Vendo aquilo, Conan sai de seu esconderijo, arremessando sua lança certeira nos intestinos de um dos lobos e agarrando, pela garganta, outro lobo, que avança contra ele, e matando-o com um golpe descendente de seu recém-recuperado machado no crânio, a fazer espirrar miolos.

Ele ainda mata mais um deles com uma estocada de sua lança, e o outro, com um arremesso da mesma. Vendo que não são páreos para aqueles três homens ensangüentados, os animais remanescentes fogem dali.

Ao ver o neto, Tassach sorri:

- Vejo, mais uma vez, que você tem o coração forte e sem medo, como todos da nossa raça, Conan. Você agiu como um guerreiro de verdade: sem temer a morte, nem correr estupidamente até ela.

- E parabéns por ter matado aqueles demônios pintados, filho! – acrescenta o ferreiro Criomnthan, orgulhoso.

- Volte para a tribo e conte a todos o que aconteceu, filho! – diz Tassach a Criomnthan, alargando o sorriso de satisfação, imitado pelo garoto. – E não se esqueça de levar as cabeças desses demônios pintados como prova.

Após isso, o pequeno Conan é convidado pelo avô a subir uma colina.

Na base da montanha, o garoto olha para cima apenas uma vez. A regra dos cimérios é: não olhe para cima, não olhe para baixo, apenas estude a superfície à sua frente. A intranqüilidade domina todo o percurso. Toda vez que soltasse o peso para baixo em uma saliência ou apertasse os dedos em volta de um afloramento, era preciso testá-lo outra vez, acrescentando-se devagar mais pressão, nunca tendo certeza se ele resistiria.

Contrário às expectativas de um escalador inexperiente, não é aconselhável comprimir-se no rochedo. A maneira adequada de escalá-lo e sobreviver é pender da superfície da rocha. Aquela posição lhe dá uma visão melhor dos platozinhos seguintes para mãos e pés. Também possibilita que ele estique os braços e pernas e os relaxe.

Começando a subir, escolhendo seus platozinhos com extremo cuidado, lembrou-se do segredo para escalar que seu pai lhe ensinou uma vez: fique suspenso e solto.

Assim, ele continua, irresoluta e orgulhosamente, a galgar aquela montanha. Chegando ao topo, o velho Tassach lhe conta a história de como deixou sua tribo do sul para vir ao noroeste:

- Ao raptar uma bela jovem gunderlandesa pela qual eu havia me interessado, acabei atraindo o ódio dos conterrâneos dela, os quais me seguiram até minha antiga tribo, através das Marcas Bossonianas. Após derrotarmos aqueles homens de cabelos claros do sul, comecei a ouvir reclamações do chefe da tribo sobre manter uma estrangeira conosco. Certo dia, após retornar de uma caçada, eu a encontrei esfaqueada e morta em minha choupana. Furioso, matei o chefe num duelo, e isto atraiu a ira de todo o clã contra mim e precisei fugir. Após longas viagens pelos reinos hiborianos do sul, lutando, matando, pilhando e amando, eu retornei à Ciméria e me refugiei aqui, no noroeste, onde conheci a bela Iuchra e me casei com ela. Apesar de amar as maravilhas do sul, meu amor por sua avó foi tão grande, que acabei decidindo que o meu lugar é aqui.

FIM



Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Osvaldo Magalhães, de Brasília (DF) e Steve “Ironhand” Block, dos EUA.


A seguir: Maioridade Ciméria





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