Lua de Zambebwei

(por Robert E. Howard)


Originalmente publicado em Weird Tales, fevereiro de 1935.


1) O Horror nos Pinheiros

O silêncio na floresta de pinheiros era como um manto pairando ao redor da alma de Bristol McGrath. As sombras negras pareciam fixas, imóveis como o peso da superstição que pendia sobre aquela esquecida região remota. Vagos temores ancestrais se agitaram no fundo da mente de McGrath; pois ele havia nascido nas florestas de pinheiros, e 16 anos de perambulação pelo mundo não haviam apagado suas sombras. Os contos medonhos, diante dos quais ele estremecera quando criança, sussurravam novamente em sua consciência: histórias de sombras negras espreitando as clareiras à meia noite...

Amaldiçoando estas lembranças infantis, McGrath apressou o passo. A trilha indistinta serpenteava tortuosamente entre paredes densas de árvores gigantes. Não era de se espantar que ele fora incapaz de pagar alguém na distante aldeia do rio, para levá-lo à propriedade de Ballville. A estrada era intransitável para um veículo, obstruída por troncos apodrecidos de árvores e vegetação. À sua frente, ela tinha uma curva nítida.

McGrath parou bruscamente e se congelou imóvel. O silêncio fora finalmente quebrado, de forma a fazer um arrepio lhe formigar nas costas das mãos. Pois o som havia sido o inconfundível gemido de um ser humano em agonia. McGrath só ficou imóvel por um instante. Logo, ele estava deslizando ao redor da curva da trilha, com o andar silencioso de uma pantera caçando.

Um revólver azul havia aparecido, como se por mágica, em sua mão direita. Sua esquerda se fechou involuntariamente no bolso sobre um pedaço de papel, o qual era responsável por sua presença naquela floresta sombria. Aquele papel era um desesperado e misterioso pedido de ajuda; estava assinado pelo pior inimigo de McGrath, e continha o nome de uma mulher há muito tempo morta.

McGrath contornou a curva na trilha, com todos os nervos tensos e alertas, esperando qualquer coisa – exceto o que ele realmente viu. Seus olhos surpreendidos pairaram sobre o horrível objeto por um instante, e então varreram o muro da floresta. Nada se movia nela. A menos de quatro metros da trilha, a visibilidade desaparecia num crepúsculo vampiresco, onde qualquer coisa poderia espreitar invisível. McGrath se apoiou num dos joelhos, ao lado da figura deitada na trilha à sua frente.

Era um homem, estendido como uma águia, mãos e pés amarrados a quatro estacas, enfiadas profundamente na terra bastante socada: um homem de barba negra, nariz aquilino e pele morena.

- Ahmed! – murmurou McGrath. – O criado árabe de Ballville! Deus!

Pois não eram as cordas amarradas que deixavam vidrados os olhos do árabe. Um homem mais fraco que McGrath ficaria nauseado com as mutilações que facas afiadas haviam bordado no corpo do homem. McGrath reconheceu o trabalho de um especialista na arte da tortura. Mas uma fagulha de vida ainda pulsava na estrutura forte do árabe. Os olhos cinzas de McGrath ficaram ainda mais desolados, quando ele notou a posição do corpo da vítima, e sua mente voou de volta para outra selva, mais sombria, e para um homem negro e meio esfolado, morto numa trilha como aviso para o homem branco que ousasse invadir uma terra proibida.

Ele cortou as cordas e colocou o moribundo numa posição mais confortável. Era tudo o que podia fazer. Viu o delírio diminuir momentaneamente naqueles olhos injetados de sangue, e viu o reconhecimento brilhar lá. Coágulos de espuma sangrenta salpicavam a barba emaranhada. Os lábios se torciam sem emitir som, e McGrath vislumbrou o toco sangrento de uma língua cortada.

Os dedos de unhas negras começaram a escarafunchar a poeira. Eles balançavam, curvando-se erraticamente, mas com propósito. McGrath se curvou para perto dele, tenso de interesse, e viu linhas tortuosas aparecerem sob os dedos trêmulos. Com o último esforço de uma vontade de ferro, o árabe traçava uma mensagem com os caracteres da própria linguagem. McGrath reconheceu o nome: “Richard Ballville”; foi seguido por “perigo”, e a mão acenou fracamente trilha acima; então – e McGrath se enrijeceu convulsivamente –: “Constance”. Um esforço final do dedo que escrevia traçou: “John De Al...”.

Súbito, a forma ensangüentada foi abalada por uma última e aguda agonia; a mão magra e forte se emaranhou convulsivamente, e depois caiu flácida. Ahmed ibn Suleyman estava além da vingança ou da piedade.

McGrath se levantou, sacudindo o pó das mãos, consciente da tensa quietude da floresta sombria ao seu redor; consciente de um fraco sussurrar em suas profundezas, o qual não era causado por nenhuma brisa. Ele desceu o olhar para a figura mutilada, com piedade involuntária, embora bem conhecesse a sujeira do coração daquele árabe; uma maldade capaz de se igualar à do amo de Ahmed: Richard Ballville. Bom, parecia que amo e homem haviam finalmente encontrado seu igual em perversidade humana. Mas quem, ou o quê? Durante 100 anos, os Ballvilles haviam governado supremos aquela área remota, primeiramente sobre suas grandes plantações e centenas de escravos, e depois sobre os descendentes submissos daqueles escravos. Richard, o último dos Ballvilles, havia exercido tanta autoridade sobre aquelas terras de pinheiro quanto qualquer um de seus ancestrais autocráticos. Mas, desta região, onde homens haviam se curvado aos Ballvilles por um século, havia saído aquele grito desesperado de medo, um telegrama que McGrath agarrava no bolso de seu paletó.

O silêncio se seguiu ao sussurro, mais sinistro que qualquer som. McGrath sabia estar sendo observado; sabia que o local onde jazia o corpo de Ahmed era a invisível e mortífera linha divisória que havia sido traçada para ele. Ele acreditava que não lhe permitiriam voltar e retomar seus passos, sem ser molestado, para a aldeia distante. Sabia que, se continuasse seu caminho, a morte o atacaria subitamente e sem ser vista. Dando a volta, ele caminhou a passos largos, de volta pelo caminho do qual viera.

Girou e recuou diretamente, até passar por outra curva na trilha. Então, ele parou e escutou. Tudo estava em silêncio. Rapidamente, ele puxou o papel de seu bolso, o desdobrou e leu novamente, nos duros rabiscos do homem a quem mais odiava na terra:

Bristol:

Se você ainda ama Constance Brand, pelo amor de Deus, esqueça seu ódio e venha para a Mansão Ballville, tão rápido quanto o diabo possa lhe levar.

RICHARD BALLVILLE”.

Era tudo. Ele o alcançara via telégrafo naquela cidade bem a oeste, onde McGrath morava desde que retornara da África. Ele o teria ignorado, exceto pela menção de Constance Brand. Aquele nome havia mandado uma sufocante e agonizante pulsação de espanto através de sua alma, e o havia feito correr até a sua terra natal de trem e avião, como se o diabo estivesse mesmo em seu encalço. Era o nome de alguém que ele pensou estar morta durante três anos; o nome da única mulher a quem Bristol McGrath havia realmente amado.

Guardando o telegrama, ele abandonou a trilha e se dirigiu para oeste, forçando sua estrutura poderosa por entre as árvores cerradas. Seus pés faziam pouco som nas emaranhadas folhas de pinheiro. Seu avanço era total, porém sem barulho. Não foi por nada que ele passara sua infância na região dos grandes pinheiros.

A noventa metros de distância da velha estrada, ele chegou àquilo que ele procurava – uma trilha antiga, paralela à estrada. Obstruída por mato recém-crescido, era pouco mais que uma marca por entre os densos pinheiros. Ele sabia que ela seguia até os fundos da mansão Ballville; não acreditava que os vigias secretos a estariam guardando. Pois como eles poderiam saber que ele se lembrava dela?

Correu na direção sul ao longo dela, seus ouvidos aguçados para qualquer som. Não dava para confiar apenas na visão, naquela floresta. A mansão, ele sabia, não estava muito longe agora. Passava agora pelo que outrora haviam sido campos, nos dias do avô de Richard, quase subindo às pressas para os gramados espaçosos que cercavam a Mansão. Mas, durante meio século, eles haviam sido abandonados ao avanço da floresta.

Agora, no entanto, ele vislumbrava a Mansão, uma sugestão de massa sólida entre os topos dos pinheiros à sua frente. E, quase simultaneamente, seu coração lhe pulou até a garganta, quando um grito agudo de angústia humana apunhalou o silêncio. Não sabia dizer se foi um homem ou uma mulher quem gritou, e seu pensamento de que poderia ser uma mulher deu asas aos seus pés, na sua corrida temerária em direção à construção que avultava inflexivelmente logo após a margem das árvores, que ali ficavam dispersas.

Os pinheiros jovens haviam invadido até mesmo os outrora generosos gramados. Todo o local tinha um aspecto de decadência. Atrás da Mansão, os celeiros e dependências que outrora alojavam famílias de escravos, estavam desmoronando em ruínas. A própria mansão parecia cambalear acima da desordem – um gigante rangedor, roído por ratos e apodrecendo, pronto para desabar diante de qualquer evento desagradável. Com o passo furtivo de um tigre, Bristol McGrath se aproximou de uma janela num lado da casa. Daquela janela, sons publicavam que havia uma afronta à luz solar, filtrada pelas árvores, e um horror rastejante para o cérebro.

Encorajando-se para o que pudesse ver, ele espiou o lado de dentro.


2) Tortura Negra

Ele olhava para dentro de uma grande câmara empoeirada, a qual devia ter servido como salão de baile em dias anteriores à guerra; seu teto elevado estava cheio de teias de aranha, penduradas nele, e suas ricas portas e janelas de carvalho estavam escuras e manchadas. Mas havia uma fogueira na grande lareira – uma pequena fogueira, grande apenas o bastante para esquentar a um brilho branco as finas varas de aço enfiadas nela.

Mas foi apenas depois que Bristol McGrath viu o fogo e as coisas que brilhavam dentro do mesmo. Seus olhos foram atraídos, como um feitiço, para o dono da Mansão; e outra vez, ele olhava para um homem moribundo.

Uma pesada viga fora pregada à parede cheia de painéis, e dela se sobressaía uma rude travessa. Daquela travessa, Richard Ballville estava pendurado por cordas amarradas em seus pulsos. Os dedos dos seus pés mal tocavam o chão, de forma atormentadora, fazendo-o esticar seu corpo continuamente, num esforço para aliviar o estiramento agonizante de seus braços. As cordas estavam lhe cortando os pulsos; o sangue lhe escorria pelos braços; suas mãos estavam negras e inchadas, quase a ponto de estourarem. Estava nu, exceto pelas calças, e McGrath viu que os ferros em brasa já tinham sido horrivelmente usados. Havia motivos suficientes para a palidez mortal do homem e para as frias gotas de agonia em sua pele. Apenas sua vitalidade feroz o permitiu sobreviver deste modo, por tanto tempo, às horríveis queimaduras em seus membros e corpo.

Em seu peito, havia sido queimado um símbolo curioso – um frio percorreu a espinha de McGrath. Pois ele reconhecia aquele símbolo, e mais uma vez sua memória correu através do mundo e dos anos, até uma selva negra, sombria e horrenda, onde tambores berravam na escuridão iluminada por fogueiras, e sacerdotes nus de um culto odioso traçavam um símbolo medonho em trêmula carne humana.

Entre a lareira e o moribundo, agachava-se um negro atarracado, vestido apenas com calças esfarrapadas e lamacentas.

Estava de costas para a janela, e possuía um impressionante par de ombros. Sua cabeça pontiaguda se situava entre aqueles ombros gigantescos como a de um sapo, e ele parecia estar observando avidamente o rosto do homem na travessa.

Os olhos injetados de sangue de Richard Ballville eram como os de um animal torturado, mas estavam totalmente sãos e conscientes: ardiam com vitalidade desesperada. Ele ergueu dolorosamente a cabeça, e seu olhar varreu a sala. Do lado de fora da porta, McGrath recuou instintivamente. Não sabia se Ballville o vira ou não. O homem não mostrou sinal de trair a presença do observador ao negro bestial que o examinava atentamente. Então, o bruto virou sua cabeça em direção à fogueira, estirando um longo braço simiesco até um ferro em brasa – e os olhos de Ballville arderam com um significado feroz e urgente, ao qual o observador não poderia interpretar mal. McGrath não precisou do movimento agonizado da cabeça torturada que acompanhava o olhar. Com um salto de tigre, ele estava sobre o parapeito da janela e dentro da sala, no exato momento em que o surpreso negro se ergueu de um pulo, girando com agilidade simiesca.

McGrath não puxou sua arma. Não arriscaria um tiro que poderia trazer outros adversários sobre ele. Havia uma faca de açougueiro no cinto que segurava as calças esfarrapadas e lamacentas. Ela pareceu saltar como uma coisa viva na mão do negro, quando ele girou. Mas, na mão de McGrath, brilhava uma curva espada afegã que o servira bem em muitas batalhas passadas.

Conhecendo a vantagem de um ataque instantâneo e implacável, ele não parou. Seus pés mal tocaram o chão interno, antes de o lançarem até o assombrado negro.

Um grito inarticulado irrompeu dos grossos lábios negros. Os olhos reviraram selvagemente, a faca de açougueiro recuou e sibilou para a frente com a rapidez de uma naja atacando, capaz de estripar um homem cujos músculos fossem menos duros que os de Bristol McGrath.

Mas o negro involuntariamente tropeçou para trás ao atacar, e aquele ação instintiva diminuiu a velocidade do seu golpe o suficiente para McGrath evitá-lo com uma torção, rápida como um raio, de seu torso. A longa lâmina assobiou sob sua axila, cortando roupa e pele – e simultaneamente, a adaga afegã rasgou a negra garganta taurina.

Não houve grito, mas apenas um gorgolejo abafado quando o homem caiu, esguichando sangue. McGrath saltou livremente, como um lobo após dar o golpe fatal. Sem emoção, ele examinou seu trabalho. O negro já estava morto, sua cabeça meio separada do corpo. Aquele salto decepador para o lado, que matou em silêncio, cortando a garganta até a coluna cervical, era um golpe favorito dos peludos homens das colinas, que habitam os penhascos que se sobressaem sobre o Passo Khyber. Menos de uma dúzia de homens brancos dominavam tal golpe. Bristol McGrath era um deles.

McGrath se voltou para Richard Ballville. Espuma pingava no peito queimado e nu, e sangue escorria dos lábios. McGrath temia que Ballville houvesse sofrido a mesma mutilação que deixara Ahmed mudo; mas era apenas o sofrimento e choque que haviam entorpecido a língua de Ballville. McGrath lhe cortou as cordas, e o deitou sobre um leito desgastado e velho ali perto. O corpo magro e musculoso de Ballville tremia, como fios esticados de aço, sob as mãos de McGrath. Ele gaguejou, encontrando sua voz.

- Eu sabia que você viria! – arfou, contorcendo-se ao contato do leito contra sua pele queimada. – Eu lhe odiei durante anos, mas sabia...

A voz de McGrath foi áspera como o raspar de aço:

- O que você quis dizer, ao mencionar o nome de Constance Brand? Ela está morta.

Um sorriso medonho torceu aqueles lábios finos:

- Não, não está morta! Mas logo estará, se você não se apressar. Rápido! Brandy! Lá, naquela mesa... aquele animal não bebeu tudo!

McGrath ergueu a garrafa até os lábios dele; Ballville bebeu avidamente. McGrath se espantou com o vigor férreo do homem. Que ele estava em agonia medonha, era óbvio. Ele deveria estar gritando em delírio de dor. Mas ele se mantinha com a mente sã e falava de forma lúcida, embora sua voz fosse um grasnar doloroso.

- Não tenho muito tempo – ele falou sufocado. – Não interrompa! Deixe suas pragas para mais tarde. Nós dois amávamos Constance Brand. Ele lhe amava. Três anos atrás, ela desapareceu. Suas roupas foram encontradas na margem de um rio. Seu corpo nunca foi encontrado. Você foi até a África, para afogar sua tristeza; eu me retirei à propriedade de meus ancestrais, e me tornei um recluso.

“O que você não sabia – o que o mundo não sabia – era que Constance Brand veio comigo! Não, ela não se afogou. Aquele ardil foi idéia minha. Durante três anos, Constance Brand viveu nesta casa!”. Ele soltou, com muito esforço, uma horrível gargalhada. “Oh, não fique tão assombrado, Bristol. Ela não veio por livre e espontânea vontade. Ela lhe amava demais. Eu a raptei e trouxe à força até aqui – Bristol!”. Sua voz se ergueu a um grito estridente. “Se me matar, você nunca vai saber onde ela está!”.

As mãos furiosas, que haviam se fechado em seu pescoço musculoso, relaxaram, e a sanidade voltou aos olhos vermelhos de Bristol McGrath.

- Prossiga – ele sussurrou, numa voz que nem ele próprio reconhecia.

- Não pude evitar – ofegou o moribundo. – Ela foi a única mulher que já amei... oh, não zombe de mim, Bristol. As outras não contam. Eu a trouxe para cá, onde eu era rei. Ela não podia escapar, não podia se comunicar com o mundo externo. Ninguém mora nesta região, exceto negros, descendentes dos escravos que minha família possui. Minha palavra é... era... a única lei deles.

“Juro que não a machuquei. Apenas a mantive prisioneira, tentando forçá-la a se casar comigo. Eu não a queria de nenhuma outra forma. Eu estava louco, mas não pude evitar. Vim de uma raça de autocratas, que tomavam aquilo que quisessem e não reconheciam outra lei, exceto seus próprios desejos. Você sabe disso. Você mesmo vem da mesma raça.

“Constance me odeia, se isso lhe serve de consolo, maldito. Ela também é forte. Pensei que eu pudesse domar o espírito dela. Mas eu não conseguia; não sem o chicote, e eu não suportaria usá-lo”.

Ele sorriu larga e horrivelmente diante da rosnadela selvagem que se ergueu solta até os lábios de McGrath. Os olhos do enorme homem eram brasas de fogo.

Um espasmo torturou Ballville, e o sangue lhe brotou dos lábios. Seu sorriso desapareceu, e ele se apressou em continuar.

- Tudo ia bem, até o demônio repugnante me inspirar a mandar chamar John De Albor. Eu o encontrei em Viena, anos atrás. Ele é da África Oriental... um demônio em forma humana! Ele viu Constance... e a desejou intensamente, como apenas um homem do tipo dele pode. Quando finalmente percebi isso, tentei matá-lo. Então, vi que ele era mais forte que eu; que era capaz de se fazer chefe dos negros... meus negros, para os quais minha palavra sempre foi lei. Ele os contou a respeito de seu culto diabólico...

- Vodu – McGrath murmurou involuntariamente.

- Não! Vodu é infantil, comparado com esse demonismo negro. Olhe para o símbolo em meu peito, onde De Albor o traçou com ferro em brasa. Você já esteve na África. Você compreende a marca de Zambebwei.

“De Albor jogou meus negros contra mim. Tentei fugir com Constance e Ahmed. Meus próprios negros me encurralaram. Contrabandeei um telegrama até a aldeia, através de um homem que continuou fiel a mim – suspeitaram dele e o torturaram até ele confessar. John De Albor me trouxe a cabeça dele.

“Antes da ruptura final, escondi Constance num lugar onde ninguém a encontraria, exceto você. De Albor torturou Ahmed, até ele contar que eu mandara chamar um amigo da jovem para nos ajudar. Então, De Albor mandou seus homens estrada acima, com o que pouparam de Ahmed, como um aviso para você, caso viesse. Foi nesta manhã que ele nos capturou; escondi Constance na noite passada. Nem mesmo Ahmed sabia onde foi. De Albor me torturou, para me fazer dizer...”. As mãos do moribundo se fecharam, e uma feroz luz colérica brilhou em seus olhos. McGrath sabia que nem todos os tormentos, de todos os infernos, poderiam arrancar aquele segredo dos lábios de ferro de Ballville.

- Era o mínimo que você poderia fazer – ele disse, sua voz áspera de emoções conflitantes. – Vivi no inferno durante três anos, por causa de você... e Constance também. Você merece morrer. Se já não estivesse morrendo, eu mesmo lhe mataria.

- Maldito seja; você acha que quero seu perdão? – arfou o moribundo. – Estou contente por você ter sofrido. Se Constance não precisasse de sua ajuda, eu adoraria ver você morrer como estou morrendo, e lhe esperaria no inferno. Mas chega disto. De Albor me deixou por algum tempo, para subir a estrada e se certificar de que Ahmed estava morto. Este animal foi beber meu conhaque, e decidiu ele mesmo me torturar um pouco.

“Agora escute: Constance está escondida em Lost Cave. Nenhum homem na terra sabe da sua existência, exceto você e eu – nem mesmo os negros. Há muito tempo, coloquei uma porta de ferro na entrada e matei o homem que fez o trabalho; portanto, o segredo está a salvo. Não há chave. Você terá que abri-la, usando certas maçanetas”.

Era cada vez mais difícil para o homem se expressar de forma inteligível. O suor lhe pingava do rosto, e os músculos de seus braços tremiam.

- Passe seus dedos sobre a beirada da porta, até encontrar três maçanetas que formam um triângulo. Você não pode vê-las; terá de sentir. Pressione cada uma em sentido anti-horário, três vezes. Então, puxe a tranca. A porta se abrirá. Pegue Constance e abra caminho para sair. Se você ver que eles irão lhe pegar, atire nela! Não a deixe cair nas mãos daquele animal negro...

A voz se ergueu até um guincho, a espuma respingou dos pálidos lábios contorcidos, e Richard Ballville se ergueu quase ereto, e depois desabou flácido para trás. A vontade de ferro que animara o corpo quebrado, havia finalmente se partido, como um arame esticado.

McGrath desceu os olhos para a forma imóvel, seu cérebro um turbilhão de emoções fervilhantes; então, girou, olhando ferozmente, sua pistola lhe aparecendo na mão.


3) O Sacerdote Negro

Havia um homem na portada que se abria para o grande salão externo – um homem alto, vestindo roupas estranhas. Usava um turbante e um casaco de seda, preso por um cinto colorido. Seus pés calçavam chinelos turcos. Sua pele não era muito mais escura que a de McGrath, e suas feições eram distintamente orientais, apesar dos pesados óculos que usava.

- Quem diabos é você? – exigiu McGrath, mirando-o.

- Ali ibn Suleyman, efêndi – respondeu o outro em Árabe impecável. – Vim para este lugar de demônios a pedido urgente de meu irmão, Ahmed ibn Suleyman, a cuja alma o Profeta conforta. Em Nova Orleans, a carta chegou até a mim. Apressei-me para cá. E eis que, esgueirando-me pela floresta, vi negros arrastando o cadáver de meu irmão até o rio. Prossegui, procurando o amo dele.

McGrath apontou silenciosamente para o homem morto. O árabe curvou a cabeça em majestosa reverência.

- Meu irmão o amava – ele disse. – Eu queria vingar meu irmão e o amo do meu irmão. Efêndi, deixe-me ir com você.

- Tudo bem. – McGrath estava incendiado de impaciência. Ele conhecia a fanática lealdade tribal dos árabes, e sabia que o caráter decente de Ahmed havia sido uma devoção feroz pelo canalha a quem servia. – Siga-me.

Com um último olhar ao dono da Mansão e ao corpo negro estatelado como um sacrifício humano diante dele, McGrath abandonou a câmara de tortura. Assim mesmo, ele refletiu, um dos ancestrais reis-guerreiros de Ballville deve ter jazido em alguma obscura era passada, com um escravo trucidado aos seus pés, para servir seu espírito na terra dos fantasmas.

Com o árabe atrás de si, McGrath adentrou o círculo de pinheiros que adormecia no calor parado do meio-dia. Uma brisa errante lhe trazia fracamente aos ouvidos um distante pulsar de som. Soava como o bater de um tambor longínquo.

- Vamos! – McGrath caminhou através do agrupamento de dependências e mergulhou na floresta que se erguia atrás delas. Aqui também, haviam outrora se estendido os campos que fizeram a fortuna dos aristocráticos Ballvilles; mas, há muitos anos, eles foram abandonados. Os caminhos se espalhavam irregularmente através da vegetação descomposta, até, dentro em pouco, a crescente densidade das árvores dizer aos invasores que eles estavam na floresta, a qual jamais conhecera o machado de um lenhador. McGrath procurava uma trilha. Impressões recebidas na infância são sempre permanentes. As lembranças permanecem, recobertas por coisas posteriores, mas infalíveis ao longo dos anos. McGrath achou a trilha que procurava, um vago vestígio serpenteando pelas árvores.

Foram forçados a andar em fila única; os galhos lhes arranhavam as roupas, e seus pés afundavam no carpete de agulhas de pinheiros. A terra se inclinava gradualmente para baixo. Os pinheiros davam lugar a ciprestes, abafados por vegetação rasteira. Poços espumados de água estagnada brilhavam levemente sob as árvores. Grandes rãs grasnavam, e mosquitos zumbiam com insistência enlouquecedora ao redor deles. Novamente, o tambor distante pulsava através das terras de pinheiros. Aquele tambor despertava lembranças que se ajustavam bem a estes arredores sombrios. Seus pensamentos recuavam à horrível cicatriz queimada sobre o peito nu de Richard Ballvillle. Ballville havia suposto que ele, McGrath, conhecia seu significado; mas não sabia. Que aquilo pressagiava negro horror e loucura, ele sabia, mas seu total significado ele não conhecia. Somente uma vez, ele havia visto aquele símbolo, na região assombrada de Zambebwei, dentro da qual poucos homens brancos já haviam se aventurado, e da qual apenas um homem branco escapara vivo. Bristol McGrath era este homem, e ele havia penetrado apenas a orla daquela terra abismal de selva e negros pântanos. Ele não fora capaz de mergulhar fundo o bastante naquele domínio proibido, para provar nem refutar as histórias medonhas que os homens sussurravam, de um culto antigo que sobrevivia a uma era pré-histórica; do culto a uma monstruosidade cujo feitio violava leis aceitas da Natureza. Ele vira pouco; mas o que ele havia visto o preenchera com um horror estremecedor, que às vezes retornava em pesadelos escarlates.

Nenhuma palavra foi trocada entre os dois homens, desde que deixaram a Mansão. McGrath continuou mergulhado na vegetação que obstruía a trilha. Um réptil gordo e de cauda sem ponta deslizou sob seus pés, e desapareceu. A água não devia estar longe; mais alguns passos a revelariam. Estavam no limite de um pântano úmido e lodoso, do qual se erguia um cheiro de matéria vegetal apodrecida. Os ciprestes o sombreavam. A trilha acabava no limite dela. O pântano se estendia indefinidamente, sumindo rapidamente de vista na obscuridade crepuscular.

- E agora, efêndi? – perguntou Ali. – Iremos nadar neste pântano?

- Está cheio de atoleiros sem fundo – respondeu McGrath. – Seria suicídio para um homem mergulhar nele. Nem mesmo os negros da floresta de pinheiro tentaram atravessá-lo. Mas há um caminho para alcançar a colina que se ergue no meio dele. Você mal pode vislumbrá-lo, entre as sombras dos ciprestes, vê? Anos atrás, quando Ballville e eu éramos garotos... e amigos... descobrimos uma trilha indígena bem antiga, uma estrada secreta e submersa que guiava até aquela colina. Há uma caverna na colina, e uma mulher está aprisionada naquela caverna. Estou indo para lá. Quer me seguir, ou me esperar aqui? A trilha é perigosa.

- Eu vou, efêndi – respondeu o árabe.

McGrath assentiu em apreço, e começou a examinar as árvores ao seu redor. Em seguida, percebeu que estava procurando por um brilho fraco num enorme cipreste, uma velha marca, quase imperceptível. Sem hesitar, ele adentrou o pântano ao lado da árvore. Ele próprio havia feito aquela marca, anos atrás. Água estagnada se erguia sobre as solas de seus sapatos, mas não mais alto. Ele estava numa rocha plana, ou melhor, numa pilha de rochas, na qual a mais alta estava logo abaixo da superfície estagnada. Localizando um certo cipreste retorcido, lá longe na sombra do pântano, começou a caminhar diretamente até ele, espaçando cautelosamente seus passos largos, cada um deles o levando a um degrau de rocha sob a água escura. Ahmed ibn Suleyman o seguia, imitando-lhe os movimentos.

Atravessaram o pântano, seguindo as árvores marcadas que eram seus postes indicadores. McGrath se indagou novamente sobre os motivos que levaram os antigos construtores daquela trilha a trazer essas enormes rochas de longe e amontoá-las dentro do lodo. O trabalho deve ter sido estupendo, sem exigir a menor habilidade técnica. Por que os índios haviam construído esta estrada quebrada até Lost Island? Certamente, esta ilha e a caverna nela tinham algum significado religioso para os homens vermelhos; ou talvez fosse o refúgio deles contra algum inimigo mais forte.

A ida foi lenta; um passo em falso significava um mergulho em lama pantanosa, dentro do lamaçal instável e capaz de engolir um homem vivo. A ilha ficava fora das árvores adiante deles – uma pequena colina arredondada, cercada por uma praia obstruída por vegetação. Através da folhagem, via-se a parede rochosa que se erguia perpendicularmente da praia, a uns 15 ou 18 metros de altura. Era quase como um bloco de granito, se erguendo de uma orla plana de areia. O cume quase não tinha vegetação.

McGrath estava pálido, sua respiração chegando em rápidas arfadas. Enquanto caminhavam sobre a faixa em forma de praia, Ali, com um olhar de compaixão, puxou um frasco do bolso.

- Beba um pouco de conhaque, efêndi – ele insistiu, tocando a boca até os próprios lábios, à moda oriental. – Vou lhe ajudar.

McGrath sabia que Ali havia pensado que sua evidente agitação fosse uma conseqüência da exaustão. Mas ele mal sabia de seus esforços recentes. Eram as emoções que rugiam dentro dele – o pensamento em Constance Brand, cuja bela forma lhe assombrara os sonhos perturbados durante três anos sombrios. Ele engoliu sôfrega e intensamente a bebida alcoólica, mal sentindo seu gosto, e devolveu o frasco.

- Vamos!

As fortes batidas de seu próprio coração eram sufocantes, afogando o tambor distante, enquanto ele se enfiava pela vegetação sufocante ao pé do penhasco. Na rocha cinza acima da máscara verde, aparecia um curioso símbolo entalhado, como ele o vira anos atrás, quando a descoberta deste o guiara e a Richard Ballville até esta caverna oculta. Ele afastou para os lados as vinhas e folhas de parreira entrelaçadas, e inspirou involuntariamente ao ver uma pesada porta de ferro, situada na entrada estreita que se abria na parede de granito.

Os dedos de McGrath tremiam enquanto deslizavam sobre o metal, e atrás dele, podia ouvir Ali respirar ofegante. Um pouco da agitação do homem branco havia sido transmitida ao árabe. As mãos de McGrath haviam encontrado as três maçanetas, que formavam os vértices de uma saliência triangular e não-visível. Controlando seus nervos agitados, ele as pressionou como Ballville o instruiu, e sentiu cada uma ceder na terceira pressão. Então, segurando o fôlego, ele agarrou a barra que estava fundida no meio da porta, e puxou. Suavemente, sobre dobradiças lubrificadas, a porta maciça se abriu.

Eles olhavam para um túnel largo, que terminava em outra porta, esta uma grade de barras de aço. O túnel não era escuro; era claro e espaçoso, e o teto era perfurado para permitir a entrada de luz, os buracos cobertos com cortinas para impedir a entrada de insetos e répteis. Mas, através da grade, ele vislumbrou algo que o fez correr ao longo do túnel, seu coração quase lhe arrebentando as costelas. Ali estava logo atrás dele.

A porta de grades não estava trancada. Ela se abriu para fora sob seus dedos. Ele ficou imóvel, quase atordoado pelo impacto de suas emoções.

Seus olhos estavam aturdidos por um brilho de ouro; um raio de sol se inclinava para baixo, através do perfurado teto de rocha, e refletia suavemente na gloriosa abundância de cabelo dourado, que fluía sobre o braço branco, o qual descansava a bela cabeça sobre a entalhada mesa de carvalho.

- Constance! – Foi um grito de ânsia e saudade que irrompeu de seus lábios pálidos.

Ecoando o grito, a jovem se ergueu sobressaltada, arregalando arrebatadamente os olhos, as mãos nas têmporas, seu cabelo bruxuleante se agitando sobre os ombros. Para seu olhar aturdido, ela parecia flutuar numa auréola de luz dourada.

- Bristol! Bristol McGrath! – ela ecoou seu chamado com um grito assombrado e incrédulo. Logo, estava nos braços dele, com os braços brancos agarrando-o num abraço frenético, como se temendo que ele não passasse de um fantasma que pudesse sumir dela.

Pois, naquele momento, o mundo parou de existir para Bristol McGrath. Ele poderia estar cego, surdo e mudo para o resto do universo. Seu cérebro maravilhado só estava ciente da mulher em seus braços, seus sentidos embriagados pela maciez e fragrância dela, e sua alma atordoada com a realização irresistível de um sonho que ele pensava estar morto e desaparecido para sempre.

Quando conseguiu pensar consecutivamente outra vez, ele se sacudiu como um homem que saía de um transe, e olhou estupidamente ao redor de si. Estava numa câmara espaçosa, entalhada na rocha sólida. Assim como o túnel, era iluminada pelo alto, e o ar era fresco e limpo. Havia cadeiras, mesas e uma rede de dormir, tapetes no chão rochoso, latas de comida e um refrigerador de água. Ballville não deixara de fornecer para o conforto de sua cativa. McGrath olhou para o árabe, e o viu fora da grade. Cortesmente, ele não havia importunado seu reencontro.

- Três anos! – a garota soluçava. – Esperei por três anos. Eu sabia que você viria! Eu sabia disso! Mas devemos ter cuidado, meu querido. Richard lhe matará caso lhe encontre... matará a nós dois!

- Ele não pode mais matar ninguém – respondeu McGrath. – Mas mesmo assim, temos que sair daqui.

Os olhos dela luziram com novo terror:

- Sim! John De Albor! Ballville tinha medo dele. Foi por isso que ele me trancou aqui. Ele disse que mandaria lhe chamar. Eu temia por você...

- Ali! – McGrath gritou. – Venha aqui. Estamos saindo daqui agora, e seria melhor se levássemos um pouco de água e comida conosco. Talvez tenhamos que nos esconder nos pântanos por...

Subitamente, Constance lançou um grito agudo e se soltou dos braços de seu amado. E McGrath, congelado pelo súbito e terrível medo nos grandes olhos dela, sentiu o surdo e surpreendente impacto de um golpe selvagem na base do crânio. A consciência não o abandonou, mas uma estranha paralisia tomou conta dele. Ele caiu como um saco vazio sobre o chão de pedra e ficou estirado lá, como um homem morto, olhando indefeso para a cena que matizava seu cérebro com loucura: Constance se debatendo freneticamente nas mãos do homem a quem ele conhecera como Ahmed ibn Suleyman, agora terrivelmente transformado.

O homem havia arrancado o turbante e óculos. E, nos tenebrosos brancos de seus olhos, McGrath leu a verdade com suas pavorosas implicações: o homem não era árabe. Era mestiço de negro. Mas um pouco de seu sangue deveria ser árabe, pois havia um leve molde semita em seu rosto; e este molde, junto com sua roupa oriental e perfeita atuação, o fez parecer genuíno. Mas agora tudo isso foi descartado, e a raça negróide era predominante; até mesmo sua voz, a qual pronunciara o sonoro Árabe, era agora gutural como a de um negro.

- Você o matou! – a garota soluçou histericamente, debatendo-se em vão para escapar dos dedos cruéis que lhe aprisionavam os punhos brancos.

- Ele não está morto ainda – riu o octoroon (*). – O idiota bebeu conhaque misturado com uma droga, a qual só é encontrada nas selvas de Zambebwei. Ela fica inativa no sistema nervoso, até fazer efeito, através de um golpe feroz num centro nervoso.

- Por favor, faça algo por ele! – ela implorou.

O sujeito riu brutalmente.

- Por que eu deveria? Ele já teve sua serventia. Que fique aí, até os insetos do pântano roerem seus ossos. Eu adoraria assistir isso... mas estaremos bem longe, antes do anoitecer. – Os olhos dele ardiam com a satisfação bestial da posse. A visão desta beldade branca, se debatendo em suas mãos, parecia despertar toda a luxúria selvagem daquele homem. A fúria e agonia de McGrath só encontravam expressão em seus olhos injetados de sangue. Não conseguia mexer as mãos nem os pés.

- Foi bom eu ter voltado sozinho à Mansão – riu o octoroon. – Esgueirei-me até a janela, enquanto este idiota conversava com Richard Ballville. Veio até a mim a idéia de deixá-lo me guiar até o local onde você estava escondida. Nunca me ocorreu que houvesse um esconderijo no pântano. Vi o casaco, chinelos e turbante do árabe; achei que poderia usá-los em algum momento. Os óculos ajudaram também. Não foi difícil me disfarçar de árabe. Este homem nunca tinha visto John De Albor. Nasci na África Oriental e cresci como escravo na casa de um árabe, antes de fugir e perambular até a terra de Zambebwei.

“Mas chega. Temos que ir. O tambor murmurou o dia todo. Os negros estão inquietos. Prometi a eles um sacrifício para Zemba. Eu ia usar o árabe, mas, após tê-lo torturado para conseguir a informação que desejava, ele não era mais adequado para um sacrifício. Bom, que eles batam seu tambor idiota. Vão gostar de tê-la como a Noiva de Zemba, mas não sabem que eu lhe encontrei. Tenho uma lancha a gasolina, escondida no rio a oito quilômetros daqui”.

- Idiota! – guinchou Constance, debatendo-se irascivelmente. – Você pensa que pode carregar uma garota branca rio abaixo, como uma escrava?

Tenho uma droga que lhe fará parecer uma mulher morta – ele disse. – Você ficará no fundo da lancha, coberta por sacos. Quando eu embarcar no navio a vapor, que nos levará destas praias, você irá dentro da minha cabine, num tronco grande e bem-ventilado. Você não sentirá nada dos desconfortos da viagem. Acordará na África...

Ele tateava a própria camisa, tendo que soltá-la com uma das mãos. Com um grito frenético e uma desesperada torção violenta, ela se soltou e saiu correndo pelo túnel. John De Albor saltou atrás dela, berrando. Uma bruma vermelha flutuou diante dos olhos enlouquecidos de McGrath. A garota pularia para a morte nos pântanos, a menos que se lembrasse das guias de marca – talvez fosse a morte o que ela procurava, em preferência ao destino planejado para ela por aquele negro demoníaco.

Eles sumiram de sua vista, túnel afora; mas subitamente Constance gritou outra vez, com uma nova pungência. Aos ouvidos de McGrath, chegou uma excitada tagarelice de guturais negros. Os sotaques de De Albor foram elevados em protesto furioso. Constance soluçava histericamente. As vozes se distanciavam. McGrath teve um vago vislumbre de um grupo de figuras, através da cobertura de vegetação, enquanto elas se moviam de um lado a outro da linha de entrada do túnel. Viu Constance ser arrastada por meia-dúzia de gigantes negros típicos das terras de pinheiro e, atrás deles, vinha John De Albor, suas mãos eloqüentes em discordância. Apenas aquele vislumbre, através das folhas de palmeira, e então a entrada do túnel ficou vazia e o som de água salpicada desapareceu através do pântano.


4) A Fome do Deus Negro

No silêncio que pairava na caverna, Bristol McGrath jazia encarando inexpressivamente o alto; sua alma, um inferno fervilhante. Idiota, idiota, por ser enganado tão facilmente! Mas como ele poderia saber? Nunca tinha visto John De Albor; ele pensava que fosse um negro de sangue puro. Ballville o havia chamado de animal negro, mas ele deveria estar se referindo à sua alma. De Albor, exceto pelo negro traiçoeiro de seus olhos, poderia se passar por homem branco em qualquer lugar.

A presença daqueles homens negros significava apenas uma coisa: haviam seguido a ele e De Albor, e capturado Constance enquanto ela fugia da caverna. O medo evidente em De Albor trazia uma implicação hedionda: ele dissera que os negros queriam sacrificar Constance; ela agora estava nas mãos deles.

- Deus! – A palavra irrompeu dos lábios de McGrath, sobressaltando no silêncio e sobressaltando a quem falou. Ele estava eletrificado: poucos momentos antes, estava mudo. Mas agora ele descobriu que podia mover seus lábios e sua língua. A vida retornava furtivamente aos seus membros mortos; eles formigavam, como quando a circulação volta. Furiosamente, ele incentivava este fluxo lento. Com muito trabalho, mexia suas extremidades: seus dedos, mãos, pulsos e, finalmente, com uma onda de triunfo selvagem, seus braços e pernas. Talvez a droga infernal de De Albor tenha perdido um pouco de seu poder através das eras. Talvez a resistência incomum de McGrath tenha anulado os efeitos, como outro homem não conseguiria.

A porta do túnel não havia sido fechada, e McGrath sabia o motivo: eles não queriam afastar os insetos que logo iriam se livrar de um corpo indefeso; as pragas já estavam fluindo através da porta, numa horda barulhenta.

McGrath finalmente se levantou, cambaleando como um bêbado, mas com sua vitalidade aumentando cada vez mais a cada segundo. Quando andou com passos trôpegos para fora da caverna, não viu nenhuma coisa viva. Horas haviam se passado desde que os negros haviam se retirado com sua presa. Ele aguçou os ouvidos para escutar o tambor. Fazia silêncio. A quietude se erguia como uma invisível bruma negra ao seu redor. Aos tropeços, ele chafurdou ao longo da trilha de rochas que levava à terra firme. Os negros haviam levado sua cativa de volta à Mansão assombrada pela morte, ou às profundezas das terras de pinheiro?

Seus rastros estavam claros na lama: seis pares de pés descalços e achatados, as pegadas delgadas dos sapatos de Constance e as marcas dos chinelos turcos de De Albor. Ele os seguia com dificuldade crescente, à medida que o solo ficava mais alto e duro.

Ele teria perdido o ponto no qual saíram da trilha indistinta, se não fosse o tremular de um pedaço de seda na brisa fraca. Constance havia roçado contra um tronco de árvore lá, e a rude casca havia rasgado um fragmento de seu vestido. O bando se dirigira para leste, para a Mansão. No ponto onde pendia o pedaço de pano, haviam virado rapidamente para o sul. As emaranhadas agulhas de pinheiros não mostravam pegadas, mas vinhas desarrumadas e galhos dobrados para o lado indicavam seu avanço, até McGrath, seguindo estes sinais, chegar a uma outra trilha, a qual seguia para o sul.

Aqui e ali, havia pontos de lama, e estes mostravam as marcas de pés descalços e calçados. McGrath se apressou ao longo da trilha, pistola na mão e finalmente em plena posse de suas faculdades. Seu rosto estava sombrio e pálido. De Albor não tivera oportunidade de desarmá-lo, após dar aquele golpe traiçoeiro. Tanto o octoroon quanto os negros das terras de pinheiro acreditavam que ele jazia indefeso lá em Lost Cave. Esta, por fim, foi sua vantagem.

Ele continuou aguçando os ouvidos em vão, em busca do tambor que escutara no início do dia. O silêncio não o tranqüilizava. Num sacrifício vodu, tambores sacrificais estariam trovejando, mas ele sabia estar lidando com algo ainda mais antigo e repugnante que vodu.

O vodu era uma religião comparativamente jovem, afinal, nascida nas colinas do Haiti. Por trás da espuma do vodu haitiano, erguiam-se as religiões sombrias da África, como penhascos de granito vislumbrados através de uma máscara de folhas verdes de palmeiras. O vodu era uma criança choramingante ao lado do negro colosso imemorial que erguera sua forma terrível na terra mais antiga, através de eras incontáveis: Zambebwei! O próprio nome o fazia estremecer, por simbolizar horror e medo. Era mais que o nome de uma região e da tribo misteriosa que habitava aquela região; significava algo terrivelmente antigo e maligno, algo que havia sobrevivido à sua época natural – uma religião da Noite, e uma divindade cujo nome era Morte e Horror.

Ele não vira cabanas de negros. Sabia que a maioria delas ficava mais distantes a leste e sul, amontoadas ao longo das margens do rio e de seus arroios tributários. Era instinto do homem negro construir sua habitação perto de um rio, como ele o havia o havia construído próximo ao Congo, ao Nilo e ao Níger, desde a primeira aurora cinza do Tempo. Zambebwei! A palavra latejava, como o pulsar de um tambor, pelo cérebro de Bristol McGrath. A alma do negro não havia mudado, através dos séculos sonolentos. A mudança poderia chegar no clangor das ruas, nos ritmos crus do Harlem; mas os pântanos do Mississipi não eram diferentes o bastante para causar qualquer grande transmutação numa raça que era antiga, antes que o primeiro rei branco trançasse o teto de palha de sua cabana de barro coberta com varas de vime.

Seguindo aquela trilha sinuosa através da escuridão crepuscular dos grandes pinheiros, McGrath não achou motivos em sua alma para se assombrar que negros tentáculos lodosos das profundezas da África houvessem se estirado por todo o mundo, para gerar pesadelos numa terra estrangeira. Certas condições naturais produzem certos efeitos, geram certas pestilências de corpo ou alma, independente de sua situação geográfica. As terras de pinheiros, cheias de rios, eram tão abismais quanto as das rançosas selvas africanas.

A direção da trilha se afastou do rio. A terra se inclinou bem devagar para o alto, e todos os sinais de pântano desapareceram.

A trilha serpenteava, mostrando sinais de uso freqüente. McGrath ficou nervoso. A qualquer momento, ele poderia encontrar alguém. Dirigiu-se para as densas florestas ao lado da trilha, forçou seu caminho para a frente, cada movimento soando alto como um canhão para seus ouvidos aguçados. Suando de tensão nervosa, ele chegou dentro em pouco a uma trilha menor, a qual serpenteava na direção que desejava seguir. As terras de pinheiro eram marcadas por tais trilhas.

Ele a seguiu com grande facilidade e furtividade, logo chegando a uma curva na qual a viu se juntar à trilha principal. Próxima ao ponto de junção, havia uma pequena cabana de troncos e, entre ele e a cabana, acocorava-se um enorme negro. Este homem estava escondido atrás do tronco de um enorme pinheiro, ao lado da trilha estreita, e observando ao redor em direção à cabana. Obviamente, ele estava espionando alguém, e logo ficou evidente quem era este alguém, quando John De Albor chegou à porta e fitou desesperadamente a larga trilha. O observador negro se enrijeceu e ergueu os dedos até a boca, como se para dar um assobio, mas De Albor encolheu os ombros, sem saber o que fazer. O negro relaxou, apesar de não alterar sua vigilância.

O que isto pressagiava, McGrath não sabia, nem parou para especular. Ao ver De Albor, uma bruma vermelha transformou a luz do sol em sangue, na qual o corpo negro diante dele flutuava como um duende de ébano.

Uma pantera se aproximando furtivamente de sua caça teria feito tanto barulho quanto McGrath fez ao deslizar em direção ao negro agachado. Ele sabia não ter qualquer inimizade pessoal contra o homem, que não passava de um obstáculo em seu caminho de vingança. Esquecido de tudo o mais, ele não se moveu nem girou... até a coronha da pistola descer sobre sua cabeça de cabelos crespos, com um impacto que o estirou sem sentidos entre as agulhas dos pinheiros.

McGrath agachou-se sobre sua vítima imóvel, aguçando os ouvidos. Não havia qualquer som próximo – mas, súbito, bem longe, ergueu-se um guincho prolongado que estremeceu e desvaneceu. O sangue congelou nas veias de McGrath. Ele já ouvira aquele som uma vez – nas colinas baixas e cobertas por florestas, que formam as fronteiras da proibida Zambebwei; seus jovens negros haviam ficado pálidos e caído prostrados. Não sabia o que era; e a explicação oferecida pelos nativos trêmulos havia sido monstruosa demais para ser aceita por uma mente racional. Eles a chamaram de a voz do deus de Zambebwei.

Pronto para agir, McGrath desceu a trilha e se lançou contra a porta dos fundos da cabana. Ele não sabia quantos negros haviam lá dentro; e não se importava. Estava tomado pela mágoa e fúria.

A porta se espatifou para dentro sob o impacto. Ele entrou agachado, a pistola à altura da cintura, os lábios rosnando.

Mas somente um homem o encarava: John De Albor, que se ergueu de um pulo com um grito sobressaltado. A pistola caiu dos dedos de McGrath. Nem chumbo nem aço conseguiam saciar seu ódio agora. Tinha que ser com as mãos nuas, regressando pelas páginas da civilização até os dias da aurora vermelha do primordial.

Com um rosnado, que parecia menos o grito de um homem do que o grunhido de um leão atacando, as mãos ferozes de McGrath se fecharam ao redor do pescoço do octoroon. De Albor foi levado para trás pela colisão, e os homens se espatifaram juntos sobre a cama de campo, esmagando-a em ruínas. E, ao rolarem sobre o chão sujo, McGrath se pôs a matar seu inimigo com os dedos nus.

O octooron era um homem alto, de membros longos e forte. Mas, contra a fúria do branco, ele não tinha chance. Foi arremessado como um saco de palha, golpeado repetida e selvagemente contra o chão; e os dedos de ferros que lhe apertavam a garganta afundaram cada vez mais, até sua língua sair dos lábios azulados e abertos, e seus olhos estarem saltando de sua cabeça. Com a morte a apenas uma mão de distância do octoroon, certo grau de sanidade retornou a McGrath.

Sacudiu a cabeça, como um touro atordoado, aliviou um pouco seu terrível aperto e rosnou:

- Onde está a garota? Rápido, antes que eu mate você!

De Albor sentiu ânsia de vômito e lutou para respirar, com o rosto pálido.

- Os negros! – ele arfou. – Eles a haviam levado para ser a Noiva de Zemba! Não consegui impedi-los. Eles exigem um sacrifício. Eu lhe ofereci a eles, mas disseram que você estava paralisado e morreria de qualquer forma... eram mais inteligentes do que eu pensava. Seguiram-me de volta à Mansão desde o ponto onde deixamos o árabe na estrada... seguiram-nos da Mansão até a ilha.

“Estão fora de controle – loucos, em sua sede de sangue. Mas, mesmo eu, que conheço negros como ninguém mais os conhece, havia esquecido que nem mesmo um sacerdote de Zambebwei pode controlá-los, quando o fogo da adoração corre em suas veias. Sou sacerdote e amo deles – mas, quando tentei salvar a garota, eles me forçaram para dentro desta cabana e colocaram um homem para me vigiar até o sacrifício estar terminado. Você deveria tê-lo matado; ele nunca lhe deixaria entrar aqui”.

Com fria severidade, McGrath pegou sua pistola.

- Você chegou aqui como amigo de Richard Ballville – ele disse, sem emoção. – Para se apoderar de Constance Brand, você transformou negros em adoradores do demônio. Merece morrer por isso. Quando as autoridades européias que governam a África capturam um sacerdote de Zambebwei, elas o enforcam. Você já admitiu ser um sacerdote. Você pode pagar com a vida por isso também. Mas é por causa de seus ensinamentos infernais que Constance Brand está prestes a morrer, e é por essa razão que vou estourar seus miolos.

John De Albor ficou paralisado.

- Ela ainda não morreu – ele arfou, com grandes gotas de transpiração lhe pingando do rosto pálido. – Ela não morrerá, até que a lua fique alta sobre os pinheiros. Ela está cheia esta noite, a Lua de Zambebwei. Não me mate. Somente eu posso salvá-la. Sei que falhei antes. Mas se eu for até eles, aparecer para eles subitamente e sem aviso, vão pensar que é por causa de poderes sobrenaturais que consegui escapar da cabana, sem ser visto pelo vigia. Isso renovará meu prestígio.

“Você não pode salvá-la. Você pode balear uns poucos negros, mas ainda haveria vintenas para lhe matar – e a ela. Mas tenho um plano – sim, sou um sacerdote de Zambebwei. Quando eu era menino, fugi de meu senhor árabe e perambulei para longe, até chegar à terra de Zambebwei. Lá eu cresci até a idade adulta e me tornei um sacerdote, até o sangue branco em mim me puxar para o mundo externo novamente, para aprender os modos dos homens brancos. Quando cheguei à América, eu trouxe um Zemba comigo – não posso lhe dizer como.

“Deixe-me salvar Constance Brand!”. Ele estendia a mão em forma de garra para McGrath, tremendo como se estivesse com febre. “Eu a amo, tanto quanto você a ama. Jogarei limpo com vocês dois, eu juro! Deixe-me salvá-la! Podemos lutar por ela depois, e eu lhe matarei se puder”.

A franqueza daquela declaração balançou McGrath mais do que qualquer outra coisa que o octoroon possa ter dito. Era um jogo desesperado – mas, afinal, Constance não estaria pior com John De Albor vivo, do que ela já estava. Ela estaria morta antes da meia-noite, a não ser que algo fosse feito rapidamente.

- Onde é o local do sacrifício? – perguntou McGrath.

- A cerca de cinco quilômetros daqui, numa clareira aberta – respondeu De Albor. – Ao sul pela trilha que passa por minha cabana. Todos os negros estão reunidos lá, exceto meu guarda e alguns outros que estão vigiando a trilha sob a cabana. Estão dispersos ao longo dela; o mais próximo, longe do alcance visual de minha cabine, mas ao alcance do assobio alto e estridente com o qual essas pessoas sinalizam umas às outras.

“Meu plano é o seguinte: você espera aqui na minha cabana, ou na floresta, se preferir. Evitarei os vigias na trilha, e aparecerei subitamente diante dos negros na Casa de Zemba. Uma aparição súbita irá impressioná-los intensamente, como eu disse. Não posso convencê-los a abandonar o plano deles, mas os farei adiar o sacrifício até pouco antes do amanhecer. E, antes daquela hora, conseguirei surrupiar a garota e fugir com ela. Retornarei ao seu esconderijo, e juntos abriremos à força nosso caminho para fora”.

McGrath riu:

- Você acha que sou um completo idiota? Você mandaria seus negros para me assassinarem, enquanto carregaria Constance, como você planejou. Irei com você. Vou me esconder no limite da clareira, para lhe ajudar se você precisar de ajuda. E, se der um passo em falso, vou lhe matar, caso eu não mate mais ninguém.

Os olhos escuros do octoroon brilharam, mas ele balançou a cabeça em consentimento.

- Ajude-me a trazer seu guarda para dentro da cabine – disse McGrath. – Logo ele acordará. Vamos amarrá-lo, amordaçá-lo e deixá-lo aqui.

O sol estava se pondo, e crepúsculo se movia furtivamente sobre as terras de pinheiro, quando McGrath e seu estranho companheiro deslizaram silenciosamente através da floresta sombria. Deram uma volta para oeste, a fim de evitar os vigias na trilha, e agora seguiam pelas muitas veredas estreitas que traçavam seu caminho através da floresta. O silêncio reinava à frente deles, e McGrath mencionou isto.

- Zemba é um deus do silêncio – murmurou De Albor. – Do pôr-do-sol ao nascer do sol, na noite de lua cheia, nenhum tambor é tocado. Se um cão late, deve ser morto. Se um bebê chora, deve ser morto. O silêncio fecha as mandíbulas do povo até Zemba rugir. Apenas a voz dele é erguida na noite da Lua de Zemba.

McGrath estremeceu. Aquela divindade repugnante era um espírito intangível, é claro, corporificado apenas na lenda; mas De Albor falava dele como se fosse uma coisa viva.

Algumas estrelas começavam a aparecer e piscar, e sombras se espalhavam pela floresta espessa, turvando os troncos das árvores que se fundiam na escuridão. McGrath sabia que não deviam estar longe da Casa de Zemba. Ele sentia a presença próxima de uma multidão, embora não ouvisse nada.

De Albor, à frente dele, parou subitamente, agachando-se. McGrath parou, tentando enxergar através da máscara de galhos entrelaçados que os cercava.

- O que é isso? – murmurou o homem branco, estendendo a mão em direção à pistola.

De Albor sacudiu a cabeça, ficando de pé. McGrath não conseguia ver a pedra na mão dele, pega do chão quando ele parou.

- Está ouvindo alguma coisa? – exigiu McGrath.

De Albor gesticulou para que ele se curvasse para a frente, como se para sussurrar em seu ouvido. Pego de guarda aberta, McGrath se curvou em direção a ele – ainda assim, adivinhou a intenção do traiçoeiro africano, mas era tarde demais. A pedra de De Albor se espatifou repugnantemente contra a têmpora do branco. McGrath caiu como um boi abatido, e De Albor saiu correndo vereda abaixo, até desaparecer como um fantasma na escuridão.


5) A Voz de Zemba

Na escuridão da trilha na floresta, McGrath finalmente se movia e erguia cambaleando. Aquele golpe desesperado poderia ter esmagado o crânio de um homem, cujo físico e vitalidade não fossem os de um touro. Sua cabeça latejava, e havia sangue seco em sua têmpora; mas sua sensação maior era o ardente menosprezo a si mesmo, por ter sido vítima de John De Albor. Além disso, quem suspeitaria daquele golpe? Ele sabia que De Albor o mataria se pudesse, mas não esperava um ataque antes do resgate de Constance. O sujeito era perigoso e imprevisível como uma naja. Seu pedido para ser permitido tentar resgatar Constance não passava de uma artimanha para escapar à morte pelas mãos de McGrath?

McGrath encarou atordoado as estrelas que brilhavam através dos galhos de ébano, e suspirou de alívio ao ver que a lua ainda não havia se erguido. A floresta de pinheiro estava negra como somente terras de pinheiro podem estar, com uma escuridão quase tangível, como uma substância capaz de ser cortada com uma faca.

McGrath tinha motivo para ser grato por sua constituição vigorosa. Por duas vezes naquele dia, John De Albor lhe passara a perna, e por duas vezes, a estrutura férrea do homem branco havia sobrevivido ao ataque. Sua pistola estava embainhada, e sua faca também. De Albor não havia parado para revistar, nem para dar um segundo golpe por garantia. Talvez tivesse havido um toque de pânico nas ações do africano.

Bom... isto não mudava muito as coisas. Ele acreditava que De Albor se esforçaria para salvar a garota. E McGrath pretendia estar próximo, fosse para se virar sozinho ou para ajudar o octoroon. Esta não era hora para velhos rancores, com a vida da jovem em perigo. Desceu a trilha tateando, instigado por um brilho que se erguia ao leste.

Chegou à clareira quase antes de percebê-la. A lua pendia nos galhos baixos, vermelha como sangue, alta o bastante para iluminá-la e à multidão de pessoas negras que se acocoravam num vasto semicírculo ao redor dela, encarando a lua. Os olhos revirados brilhavam como leite nas sombras, e seus rostos eram máscaras grotescas. Nenhuma cabeça se voltou em direção aos arbustos, atrás dos quais ele se agachava.

Ele tivera uma vaga expectativa de fogueiras queimando, um altar manchado de sangue, tambores e o canto de adoradores enlouquecidos – aquilo seria vodu. Mas isto não era vodu, e havia um grande abismo entre os dois cultos. Não havia fogueiras nem altares. Mas o ar sibilava entre seus dentes fechados. Numa terra distante, ele procurava em vão pelos rituais de Zambebwei; agora, os assistia a apenas seis quilômetros do local onde nascera.

No centro da clareira, o chão se erguia levemente a um nível plano. Neste, havia uma pesada estaca amarrada com ferro, a qual era o tronco afiado de um pinheiro de bom tamanho, cravado bem fundo no chão. E havia alguma coisa viva acorrentada àquela estaca – algo que fez McGrath prender o fôlego em horrorizada descrença.

Ele estava olhando para o deus de Zambebwei. Estórias haviam sido contadas sobre tais criaturas; contos loucos que saíam à deriva da região proibida, repetidos por nativos trêmulos, sobre fogueiras nas selvas, passados adiante até alcançarem os ouvidos de céticos comerciantes brancos. McGrath nunca havia realmente acreditado naquelas estórias, embora ele estivesse procurando pelo ser ao qual elas descreviam. Pois elas falavam de uma besta que era uma blasfêmia contra a Natureza – uma besta que procurava comida estranha à sua espécie natural.

A coisa acorrentada à estaca era um macaco, mas um macaco como o mundo em geral nunca tinha visto, nem mesmo em pesadelos. Seu desgrenhado pêlo cinza era raiado com a prata que brilhava na lua ascendente; parecia gigantesco, ao se acocorar como um vampiro sobre os quadris. De pé, sobre suas pernas arqueadas e nodosas, deveria ser tão alto quanto um homem, e bem mais largo e compacto. Mas seus dedos preênseis estavam armados com garras semelhantes às de um tigre – não as grandes unhas cegas do antropóide natural, mas as cruéis garras, curvas como cimitarras, do grande carnívoro. Seu rosto era como o de um gorila – testa baixa, narinas largas e sem queixo –; mas, quando rosnava, seu nariz largo e chato se franzia como o de um grande felino, e a boca cavernosa mostrava presas em forma de sabre, as presas de uma besta predadora. Este era Zemba, a criatura sagrada para o povo da terra de Zambebwei: uma monstruosidade, uma violação de uma lei aceita na Natureza – um macaco carnívoro. Os homens haviam rido da estória – caçadores, zoólogos e comerciantes.

Mas agora McGrath sabia que tais criaturas viviam na negra Zambebwei e eram adoradas, pois o homem primitivo é propenso a adorar uma obscenidade ou perversão da Natureza. Ou um sobrevivente de eons passados; era isso o que os macacos carnívoros de Zambebwei eram – sobreviventes de uma época esquecida, remanescentes de uma desaparecida era pré-histórica, quando a Natureza fazia experiências com a matéria, e a vida assumia muitas formas monstruosas.

A visão daquela monstruosidade encheu McGrath de repulsa; era abismal, uma lembrança daquele passado bruto e sombreado de horror, do qual a humanidade rastejara tão dolorosamente, eons atrás. Esta coisa era uma afronta à sanidade; pertencia ao pó do esquecimento, juntamente com o dinossauro, o mastodonte e o tigre-dentes-de-sabre.

Era maciça além da estatura das bestas modernas – modelada no plano de outra era, quando todas as coisas eram fundidas num molde mais poderoso. Ele se perguntava se o revólver em seu quadril teria algum efeito naquilo; e se perguntava por quais meios obscuros e astutos John De Albor havia trazido aquele monstro, de Zambebwei até as terras de pinheiro.

Mas alguma coisa estava acontecendo na clareira, anunciada pelo balançar da corrente do animal, quando este esticou para a frente sua cabeça de pesadelo.

Das sombras das árvores, saiu uma fila de homens e mulheres negros, jovens e nus, exceto por um manto de pele de macaco e plumas de papagaio, lançado sobre os ombros de cada um. John De Albor, sem dúvida, trazia mais insígnias. Eles formaram um semi-círculo a uma distância segura do animal, e caíram de joelhos, curvando suas cabeças até o chão diante deles. Este movimento foi repetido três vezes. Então, levantando-se, formaram duas filas, homens e mulheres encarando uns aos outros, e começaram a dançar; pelo menos, aquilo poderia, por cortesia, ser chamado de dança. Mal moviam seus pés, mas todas as outras partes de seus corpos estavam em constante movimento, retorcendo, girando e se contorcendo. Os movimentos calculados e ritmados não tinham ligação alguma com as danças vodu que McGrath havia testemunhado. Esta dança era inquietantemente arcaica em sua sugestão, embora ainda mais depravada e bestial – desnudas paixões primitivas, emolduradas numa cínica orgia de movimento.

Nenhum som saía dos dançarinos, nem dos devotos acocorados ao redor do círculo de árvores. Mas o macaco, aparentemente enfurecido pelos movimentos contínuos, ergueu sua cabeça e mandou noite adentro o guincho assustador que McGrath ouvira uma vez, antes daquele dia – ele ouvira nas colinas que formam a fronteira da negra Zambebwei. A fera saltou até a extremidade de sua pesada corrente, espumando e rangendo suas presas; e os dançarinos fugiram como espuma soprada por uma rajada de vento. Eles se dispersaram em todas as direções – e então, McGrath deu um pulo sobressaltado em seu esconderijo, mal sufocando um grito.

Das sombras profundas, havia saído uma figura que brilhava morena, em contraste com as formas negras ao seu redor. Era John De Albor, vestindo apenas um manto de plumas brilhantes e, em sua cabeça, um diadema dourado que devia ter sido forjado na Atlântida. Em sua mão, ele trazia um bastão de ouro que era o cetro dos sumos sacerdotes de Zambebwei.

Atrás dele, vinha uma figura lastimosa, à cuja visão a floresta enluarada oscilava diante do olhar de McGrath.

Constance havia sido drogada. Seu rosto era o de uma sonâmbula; ela não parecia consciente do perigo que corria, ou do fato de que estava nua. Caminhava como um robô, respondendo mecanicamente ao puxar da corda amarrada ao redor de seu pescoço branco. A outra extremidade daquela corda estava na mão de John De Albor, e ele meio a guiava, meio a arrastava, em direção ao horror que se acocorava no centro da clareira. O rosto de De Albor estava cinza no luar que agora inundava a clareira com prata derretida. O suor lhe brotava do rosto. Seus olhos brilhavam de medo e impiedosa determinação. E, num instante desconcertante, McGrath soube que aquele homem havia falhado, que ele fora incapaz de salvar Constance, e que agora, para salvar sua vida de seus desconfiados seguidores, ele próprio arrastava a jovem para o sangrento sacrifício.

Nenhum som vocal saía dos devotos, mas o inspirar sibilava através de lábios grossos, e as filas de corpos negros balançavam como juncos ao vento. O enorme macaco se ergueu de um pulo, seu rosto uma abjeta máscara demoníaca; ele uivou com impaciência medonha, rangendo suas grandes presas, as quais ansiavam afundar naquela suave pele branca e no sangue quente sob ela. Encapelou-se contra sua corrente, e o poste resistente tremeu. McGrath, nas moitas, ficou congelado, paralisado pela iminência do horror. E então, John De Albor deu um passo para trás da garota sem resistência e deu-lhe um forte empurrão que a fez cambalear para a frente, até cair no chão sob as garras do monstro.

E simultaneamente McGrath se moveu. Seu movimento era mais instintivo que consciente. Sua pistola 44 pulou para dentro de sua mão e falou, e o grande macaco gritou como um homem golpeado mortalmente e cambaleou, batendo as mãos disformes na cabeça.

Num instante, a multidão se encolheu congelada, os olhos brancos arregalados e as mandíbulas pendendo moles. Então, antes que qualquer um pudesse se mover, o macaco, com o sangue lhe jorrando da cabeça, agarrou a corrente com ambas as mãos e a arrebentou com um puxão que torceu os elos maciços como se fossem papel.

John De Albor se erguia diretamente diante da fera enlouquecida, com os pés paralisados. Zemba urrou e saltou, e o africano caiu sob ele, estripado pelas garras afiadas como navalhas, sua cabeça esmagada como uma pasta vermelha por um giro da grande pata.

Voraz, o monstro atacou por entre os devotos, dilacerando com as garras, rasgando, golpeando e gritando intoleravelmente. Zambebwei falava, e a morte estava em seu bramido. Guinchando, uivando e lutando, as pessoas negras agarravam umas às outras em sua fuga louca. Homens e mulheres caíam sob aquelas garras cortantes e eram desmembrados por aquelas presas que rangiam. Era um sangrento drama primitivo – destruição distribuída às cegas e por toda a parte. Sangue e miolos inundavam a terra; corpos e membros negros, e fragmentos de corpos se alastravam pela clareira enluarada em pilhas medonhas, antes que o último dos desafortunados uivantes encontrasse refúgio entre as árvores. Os sons de sua fuga aos tropeções e em pânico ficaram para trás.

McGrath havia saltado de seu esconderijo quase ao mesmo tempo em que atirara. Despercebido pelos aterrorizados negros, e ele próprio mal consciente da matança que rugia ao redor de si, correu pela clareira até a lastimosa figura branca que jazia flacidamente ao lado da estaca amarrada com ferro.

- Constance! – ele gritou, aninhando-a no peito.

Languidamente, ela abriu os olhos turvos. Ele a abraçava apertado, desatento aos guinchos e devastação ao redor deles. O reconhecimento cresceu naqueles olhos amáveis.

- Bristol! – ela murmurou incoerentemente. Então, ela gritou e se agarrou a ele, soluçando histericamente. – Bristol! Disseram-me que você estava morto! Os negros! Os horríveis negros! Eles vão me matar! Iam matar De Albor também, mas ele prometeu sacrificar...

- Não, garota, não! – Ele abrandou-lhe os tremores frenéticos. – Está tudo bem agora... – Abruptamente, ele ergueu o olhar para o rosto ensangüentado de pesadelo e morte, o qual arreganhava os dentes. O grande macaco havia parado de dilacerar suas vítimas mortas, e se movia furtivamente em direção ao casal vivo no centro da clareira. O sangue corria do ferimento em seu crânio inclinado, o qual o havia enlouquecido.

McGrath saltou em sua direção, protegendo a jovem prostrada; sua pistola jorrou fogo, enfiando um pedaço de chumbo no peito enorme, enquanto a fera atacava.

Ela continuou avançando, e a confiança dele diminuiu. Bala após bala, ele mandou, espatifando-as dentro de seus órgãos vitais, mas a coisa não parava. Agora, ele lançava a arma descarregada em cheio no rosto de gárgula, sem efeito, e, com uma guinada e rolando, ela o agarrou. Quando os braços gigantescos se fecharam esmagadoramente ao seu redor, ele abandonou toda a esperança, mas, seguindo seu instinto de luta até o fim, enfiou sua adaga até o cabo naquela barriga peluda.

Mas, enquanto golpeava, sentiu um estremecimento percorrer aquela estrutura gigantesca. Os enormes braços desabaram – e então, ele foi arremessado ao chão na última convulsão mortal do monstro, e a coisa oscilou, seu rosto uma máscara de morte. Morta em pé, ela se contorceu, desabou ao chão, estremeceu e jazeu imóvel. Nem mesmo um macaco antropófago de Zambebwei conseguiria sobreviver àquela rajada, à queima-roupa, de chumbo ininterrupto.

Quando o homem se ergueu cambaleante, Constance se levantou e cambaleou dentro dos braços dele, chorando histericamente.

- Está tudo bem agora, Constance – ele ofegou, apertando-a contra si. – O Zemba está morto, De Albor está morto, Ballville está morto e os negros fugiram. Não há nada que nos impeça de ir embora agora. A Lua de Zambebwei foi o fim para eles. Mas é o começo da vida para nós.



(*) – Octoroon: Nome dado antigamente às pessoas com 1/8 de sangue negro africano (Nota do Tradutor).


Tradução: Fernando Neeser de Aragão.


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