(por Robert E. Howard)
Originalmente publicado em Weird Tales, fevereiro de 1935.
1) O Horror nos Pinheiros
O silêncio na
floresta de pinheiros era como um manto pairando ao redor da alma de Bristol
McGrath. As sombras negras pareciam fixas, imóveis como o peso da superstição
que pendia sobre aquela esquecida região remota. Vagos temores ancestrais se agitaram
no fundo da mente de McGrath; pois ele havia nascido nas florestas de
pinheiros, e 16 anos de perambulação pelo mundo não haviam apagado suas
sombras. Os contos medonhos, diante dos quais ele estremecera quando criança,
sussurravam novamente em sua consciência: histórias de sombras negras
espreitando as clareiras à meia noite...
Amaldiçoando
estas lembranças infantis, McGrath apressou o passo. A trilha indistinta
serpenteava tortuosamente entre paredes densas de árvores gigantes. Não era de
se espantar que ele fora incapaz de pagar alguém na distante aldeia do rio,
para levá-lo à propriedade de Ballville. A estrada era intransitável para um veículo,
obstruída por troncos apodrecidos de árvores e vegetação. À sua frente, ela
tinha uma curva nítida.
McGrath parou
bruscamente e se congelou imóvel. O silêncio fora finalmente quebrado, de forma
a fazer um arrepio lhe formigar nas costas das mãos. Pois o som havia sido o
inconfundível gemido de um ser humano em agonia. McGrath só ficou imóvel por um
instante. Logo, ele estava deslizando ao redor da curva da trilha, com o andar
silencioso de uma pantera caçando.
Um revólver
azul havia aparecido, como se por mágica, em sua mão direita. Sua esquerda se
fechou involuntariamente no bolso sobre um pedaço de papel, o qual era responsável
por sua presença naquela floresta sombria. Aquele papel era um desesperado e
misterioso pedido de ajuda; estava assinado pelo pior inimigo de McGrath, e
continha o nome de uma mulher há muito tempo morta.
McGrath
contornou a curva na trilha, com todos os nervos tensos e alertas, esperando
qualquer coisa – exceto o que ele realmente viu. Seus olhos surpreendidos pairaram
sobre o horrível objeto por um instante, e então varreram o muro da floresta.
Nada se movia nela. A menos de quatro metros da trilha, a visibilidade
desaparecia num crepúsculo vampiresco, onde qualquer coisa poderia espreitar
invisível. McGrath se apoiou num dos joelhos, ao lado da figura deitada na
trilha à sua frente.
Era um homem,
estendido como uma águia, mãos e pés amarrados a quatro estacas, enfiadas
profundamente na terra bastante socada: um homem de barba negra, nariz aquilino
e pele morena.
- Ahmed! –
murmurou McGrath. – O criado árabe de Ballville! Deus!
Pois não eram
as cordas amarradas que deixavam vidrados os olhos do árabe. Um homem mais
fraco que McGrath ficaria nauseado com as mutilações que facas afiadas haviam
bordado no corpo do homem. McGrath reconheceu o trabalho de um especialista na
arte da tortura. Mas uma fagulha de vida ainda pulsava na estrutura forte do
árabe. Os olhos cinzas de McGrath ficaram ainda mais desolados, quando ele
notou a posição do corpo da vítima, e sua mente voou de volta para outra selva,
mais sombria, e para um homem negro e meio esfolado, morto numa trilha como
aviso para o homem branco que ousasse invadir uma terra proibida.
Ele cortou as
cordas e colocou o moribundo numa posição mais confortável. Era tudo o que
podia fazer. Viu o delírio diminuir momentaneamente naqueles olhos injetados de
sangue, e viu o reconhecimento brilhar lá. Coágulos de espuma sangrenta
salpicavam a barba emaranhada. Os lábios se torciam sem emitir som, e McGrath
vislumbrou o toco sangrento de uma língua cortada.
Os dedos de
unhas negras começaram a escarafunchar a poeira. Eles balançavam, curvando-se
erraticamente, mas com propósito. McGrath se curvou para perto dele, tenso de
interesse, e viu linhas tortuosas aparecerem sob os dedos trêmulos. Com o
último esforço de uma vontade de ferro, o árabe traçava uma mensagem com os
caracteres da própria linguagem. McGrath reconheceu o nome: “Richard
Ballville”; foi seguido por “perigo”, e a mão acenou fracamente trilha acima;
então – e McGrath se enrijeceu convulsivamente –: “Constance”. Um esforço final
do dedo que escrevia traçou: “John De Al...”.
Súbito, a
forma ensangüentada foi abalada por uma última e aguda agonia; a mão magra e
forte se emaranhou convulsivamente, e depois caiu flácida. Ahmed ibn Suleyman
estava além da vingança ou da piedade.
McGrath se
levantou, sacudindo o pó das mãos, consciente da tensa quietude da floresta sombria
ao seu redor; consciente de um fraco sussurrar em suas profundezas, o qual não
era causado por nenhuma brisa. Ele desceu o olhar para a figura mutilada, com
piedade involuntária, embora bem conhecesse a sujeira do coração daquele árabe;
uma maldade capaz de se igualar à do amo de Ahmed: Richard Ballville. Bom,
parecia que amo e homem haviam finalmente encontrado seu igual em perversidade
humana. Mas quem, ou o quê? Durante 100 anos, os Ballvilles haviam governado
supremos aquela área remota, primeiramente sobre suas grandes plantações e
centenas de escravos, e depois sobre os descendentes submissos daqueles escravos.
Richard, o último dos Ballvilles, havia exercido tanta autoridade sobre aquelas
terras de pinheiro quanto qualquer um de seus ancestrais autocráticos. Mas,
desta região, onde homens haviam se curvado aos Ballvilles por um século, havia
saído aquele grito desesperado de medo, um telegrama que McGrath agarrava no
bolso de seu paletó.
O silêncio se
seguiu ao sussurro, mais sinistro que qualquer som. McGrath sabia estar sendo
observado; sabia que o local onde jazia o corpo de Ahmed era a invisível e mortífera
linha divisória que havia sido traçada para ele. Ele acreditava que não lhe
permitiriam voltar e retomar seus passos, sem ser molestado, para a aldeia
distante. Sabia que, se continuasse seu caminho, a morte o atacaria subitamente
e sem ser vista. Dando a volta, ele caminhou a passos largos, de volta pelo
caminho do qual viera.
Girou e recuou
diretamente, até passar por outra curva na trilha. Então, ele parou e escutou.
Tudo estava em silêncio. Rapidamente, ele puxou o papel de seu bolso, o desdobrou
e leu novamente, nos duros rabiscos do homem a quem mais odiava na terra:
“Bristol:
Se você ainda
ama Constance Brand, pelo amor de Deus, esqueça seu ódio e venha para a Mansão
Ballville, tão rápido quanto o diabo possa lhe levar.
RICHARD
BALLVILLE”.
Era tudo. Ele
o alcançara via telégrafo naquela cidade bem a oeste, onde McGrath morava desde
que retornara da África. Ele o teria ignorado, exceto pela menção de Constance
Brand. Aquele nome havia mandado uma sufocante e agonizante pulsação de espanto
através de sua alma, e o havia feito correr até a sua terra natal de trem e
avião, como se o diabo estivesse mesmo em seu encalço. Era o nome de alguém que
ele pensou estar morta durante três anos; o nome da única mulher a quem Bristol
McGrath havia realmente amado.
Guardando o
telegrama, ele abandonou a trilha e se dirigiu para oeste, forçando sua
estrutura poderosa por entre as árvores cerradas. Seus pés faziam pouco som nas
emaranhadas folhas de pinheiro. Seu avanço era total, porém sem barulho. Não
foi por nada que ele passara sua infância na região dos grandes pinheiros.
A noventa
metros de distância da velha estrada, ele chegou àquilo que ele procurava – uma
trilha antiga, paralela à estrada. Obstruída por mato recém-crescido, era pouco
mais que uma marca por entre os densos pinheiros. Ele sabia que ela seguia até
os fundos da mansão Ballville; não acreditava que os vigias secretos a estariam
guardando. Pois como eles poderiam saber que ele se lembrava dela?
Correu na
direção sul ao longo dela, seus ouvidos aguçados para qualquer som. Não dava
para confiar apenas na visão, naquela floresta. A mansão, ele sabia, não estava
muito longe agora. Passava agora pelo que outrora haviam sido campos, nos dias
do avô de Richard, quase subindo às pressas para os gramados espaçosos que
cercavam a Mansão. Mas, durante meio século, eles haviam sido abandonados ao
avanço da floresta.
Agora, no
entanto, ele vislumbrava a Mansão, uma sugestão de massa sólida entre os topos
dos pinheiros à sua frente. E, quase simultaneamente, seu coração lhe pulou até
a garganta, quando um grito agudo de angústia humana apunhalou o silêncio. Não
sabia dizer se foi um homem ou uma mulher quem gritou, e seu pensamento de que
poderia ser uma mulher deu asas aos seus pés, na sua corrida temerária em
direção à construção que avultava inflexivelmente logo após a margem das
árvores, que ali ficavam dispersas.
Os pinheiros
jovens haviam invadido até mesmo os outrora generosos gramados. Todo o local
tinha um aspecto de decadência. Atrás da Mansão, os celeiros e dependências que
outrora alojavam famílias de escravos, estavam desmoronando em ruínas. A
própria mansão parecia cambalear acima da desordem – um gigante rangedor, roído
por ratos e apodrecendo, pronto para desabar diante de qualquer evento desagradável.
Com o passo furtivo de um tigre, Bristol McGrath se aproximou de uma janela num
lado da casa. Daquela janela, sons publicavam que havia uma afronta à luz
solar, filtrada pelas árvores, e um horror rastejante para o cérebro.
Encorajando-se
para o que pudesse ver, ele espiou o lado de dentro.
2) Tortura Negra
Ele olhava
para dentro de uma grande câmara empoeirada, a qual devia ter servido como
salão de baile em dias anteriores à guerra; seu teto elevado estava cheio de
teias de aranha, penduradas nele, e suas ricas portas e janelas de carvalho
estavam escuras e manchadas. Mas havia uma fogueira na grande lareira – uma
pequena fogueira, grande apenas o bastante para esquentar a um brilho branco as
finas varas de aço enfiadas nela.
Mas foi apenas
depois que Bristol McGrath viu o fogo e as coisas que brilhavam dentro do
mesmo. Seus olhos foram atraídos, como um feitiço, para o dono da Mansão; e
outra vez, ele olhava para um homem moribundo.
Uma pesada
viga fora pregada à parede cheia de painéis, e dela se sobressaía uma rude
travessa. Daquela travessa, Richard Ballville estava pendurado por cordas amarradas
em seus pulsos. Os dedos dos seus pés mal tocavam o chão, de forma atormentadora,
fazendo-o esticar seu corpo continuamente, num esforço para aliviar o
estiramento agonizante de seus braços. As cordas estavam lhe cortando os
pulsos; o sangue lhe escorria pelos braços; suas mãos estavam negras e
inchadas, quase a ponto de estourarem. Estava nu, exceto pelas calças, e
McGrath viu que os ferros em brasa já tinham sido horrivelmente usados. Havia
motivos suficientes para a palidez mortal do homem e para as frias gotas de
agonia em sua pele. Apenas sua vitalidade feroz o permitiu sobreviver deste
modo, por tanto tempo, às horríveis queimaduras em seus membros e corpo.
Em seu peito,
havia sido queimado um símbolo curioso – um frio percorreu a espinha de
McGrath. Pois ele reconhecia aquele símbolo, e mais uma vez sua memória correu
através do mundo e dos anos, até uma selva negra, sombria e horrenda, onde tambores
berravam na escuridão iluminada por fogueiras, e sacerdotes nus de um culto
odioso traçavam um símbolo medonho em trêmula carne humana.
Entre a
lareira e o moribundo, agachava-se um negro atarracado, vestido apenas com
calças esfarrapadas e lamacentas.
Estava de
costas para a janela, e possuía um impressionante par de ombros. Sua cabeça
pontiaguda se situava entre aqueles ombros gigantescos como a de um sapo, e ele
parecia estar observando avidamente o rosto do homem na travessa.
Os olhos
injetados de sangue de Richard Ballville eram como os de um animal torturado,
mas estavam totalmente sãos e conscientes: ardiam com vitalidade desesperada.
Ele ergueu dolorosamente a cabeça, e seu olhar varreu a sala. Do lado de fora
da porta, McGrath recuou instintivamente. Não sabia se Ballville o vira ou não.
O homem não mostrou sinal de trair a presença do observador ao negro bestial
que o examinava atentamente. Então, o bruto virou sua cabeça em direção à
fogueira, estirando um longo braço simiesco até um ferro em brasa – e os olhos
de Ballville arderam com um significado feroz e urgente, ao qual o observador
não poderia interpretar mal. McGrath não precisou do movimento agonizado da
cabeça torturada que acompanhava o olhar. Com um salto de tigre, ele estava
sobre o parapeito da janela e dentro da sala, no exato momento em que o
surpreso negro se ergueu de um pulo, girando com agilidade simiesca.
McGrath não
puxou sua arma. Não arriscaria um tiro que poderia trazer outros adversários
sobre ele. Havia uma faca de açougueiro no cinto que segurava as calças esfarrapadas
e lamacentas. Ela pareceu saltar como uma coisa viva na mão do negro, quando
ele girou. Mas, na mão de McGrath, brilhava uma curva espada afegã que o
servira bem em muitas batalhas passadas.
Conhecendo a
vantagem de um ataque instantâneo e implacável, ele não parou. Seus pés mal
tocaram o chão interno, antes de o lançarem até o assombrado negro.
Um grito
inarticulado irrompeu dos grossos lábios negros. Os olhos reviraram selvagemente,
a faca de açougueiro recuou e sibilou para a frente com a rapidez de uma naja
atacando, capaz de estripar um homem cujos músculos fossem menos duros que os
de Bristol McGrath.
Mas o negro
involuntariamente tropeçou para trás ao atacar, e aquele ação instintiva
diminuiu a velocidade do seu golpe o suficiente para McGrath evitá-lo com uma
torção, rápida como um raio, de seu torso. A longa lâmina assobiou sob sua
axila, cortando roupa e pele – e simultaneamente, a adaga afegã rasgou a negra
garganta taurina.
Não houve
grito, mas apenas um gorgolejo abafado quando o homem caiu, esguichando sangue.
McGrath saltou livremente, como um lobo após dar o golpe fatal. Sem emoção, ele
examinou seu trabalho. O negro já estava morto, sua cabeça meio separada do
corpo. Aquele salto decepador para o lado, que matou em silêncio, cortando a garganta
até a coluna cervical, era um golpe favorito dos peludos homens das colinas,
que habitam os penhascos que se sobressaem sobre o Passo Khyber. Menos de uma
dúzia de homens brancos dominavam tal golpe. Bristol McGrath era um deles.
McGrath se
voltou para Richard Ballville. Espuma pingava no peito queimado e nu, e sangue
escorria dos lábios. McGrath temia que Ballville houvesse sofrido a mesma
mutilação que deixara Ahmed mudo; mas era apenas o sofrimento e choque que
haviam entorpecido a língua de Ballville. McGrath lhe cortou as cordas, e o deitou
sobre um leito desgastado e velho ali perto. O corpo magro e musculoso de Ballville
tremia, como fios esticados de aço, sob as mãos de McGrath. Ele gaguejou, encontrando
sua voz.
- Eu sabia que
você viria! – arfou, contorcendo-se ao contato do leito contra sua pele
queimada. – Eu lhe odiei durante anos, mas sabia...
A voz de
McGrath foi áspera como o raspar de aço:
- O que você
quis dizer, ao mencionar o nome de Constance Brand? Ela está morta.
Um sorriso
medonho torceu aqueles lábios finos:
- Não, não
está morta! Mas logo estará, se você não se apressar. Rápido! Brandy! Lá,
naquela mesa... aquele animal não bebeu tudo!
McGrath ergueu
a garrafa até os lábios dele; Ballville bebeu avidamente. McGrath se espantou
com o vigor férreo do homem. Que ele estava em agonia medonha, era óbvio. Ele
deveria estar gritando em delírio de dor. Mas ele se mantinha com a mente sã e
falava de forma lúcida, embora sua voz fosse um grasnar doloroso.
- Não tenho
muito tempo – ele falou sufocado. – Não interrompa! Deixe suas pragas para mais
tarde. Nós dois amávamos Constance Brand. Ele lhe amava. Três anos atrás, ela
desapareceu. Suas roupas foram encontradas na margem de um rio. Seu corpo nunca
foi encontrado. Você foi até a África, para afogar sua tristeza; eu me retirei
à propriedade de meus ancestrais, e me tornei um recluso.
“O que você
não sabia – o que o mundo não sabia – era que Constance Brand veio comigo! Não,
ela não se afogou. Aquele ardil foi idéia minha. Durante três anos, Constance
Brand viveu nesta casa!”. Ele soltou, com muito esforço, uma horrível
gargalhada. “Oh, não fique tão assombrado, Bristol. Ela não veio por livre e
espontânea vontade. Ela lhe amava demais. Eu a raptei e trouxe à força até aqui
– Bristol!”. Sua voz se ergueu a um grito estridente. “Se me matar, você nunca
vai saber onde ela está!”.
As mãos
furiosas, que haviam se fechado em seu pescoço musculoso, relaxaram, e a
sanidade voltou aos olhos vermelhos de Bristol McGrath.
- Prossiga –
ele sussurrou, numa voz que nem ele próprio reconhecia.
- Não pude
evitar – ofegou o moribundo. – Ela foi a única mulher que já amei... oh, não
zombe de mim, Bristol. As outras não contam. Eu a trouxe para cá, onde eu era
rei. Ela não podia escapar, não podia se comunicar com o mundo externo. Ninguém
mora nesta região, exceto negros, descendentes dos escravos que minha família
possui. Minha palavra é... era... a única lei deles.
“Juro que não
a machuquei. Apenas a mantive prisioneira, tentando forçá-la a se casar comigo.
Eu não a queria de nenhuma outra forma. Eu estava louco, mas não pude evitar.
Vim de uma raça de autocratas, que tomavam aquilo que quisessem e não reconheciam
outra lei, exceto seus próprios desejos. Você sabe disso. Você mesmo vem da
mesma raça.
“Constance me
odeia, se isso lhe serve de consolo, maldito. Ela também é forte. Pensei que eu
pudesse domar o espírito dela. Mas eu não conseguia; não sem o chicote, e eu
não suportaria usá-lo”.
Ele sorriu
larga e horrivelmente diante da rosnadela selvagem que se ergueu solta até os
lábios de McGrath. Os olhos do enorme homem eram brasas de fogo.
Um espasmo
torturou Ballville, e o sangue lhe brotou dos lábios. Seu sorriso desapareceu,
e ele se apressou em continuar.
- Tudo ia bem,
até o demônio repugnante me inspirar a mandar chamar John De Albor. Eu o
encontrei em Viena, anos atrás. Ele é da África Oriental... um demônio em forma
humana! Ele viu Constance... e a desejou intensamente, como apenas um homem do
tipo dele pode. Quando finalmente percebi isso, tentei matá-lo. Então, vi que
ele era mais forte que eu; que era capaz de se fazer chefe dos negros... meus
negros, para os quais minha palavra sempre foi lei. Ele os contou a respeito de
seu culto diabólico...
- Vodu – McGrath
murmurou involuntariamente.
- Não! Vodu é
infantil, comparado com esse demonismo negro. Olhe para o símbolo em meu peito,
onde De Albor o traçou com ferro em brasa. Você já esteve na África. Você
compreende a marca de Zambebwei.
“De Albor
jogou meus negros contra mim. Tentei fugir com Constance e Ahmed. Meus próprios
negros me encurralaram. Contrabandeei um telegrama até a aldeia, através de um
homem que continuou fiel a mim – suspeitaram dele e o torturaram até ele
confessar. John De Albor me trouxe a cabeça dele.
“Antes da
ruptura final, escondi Constance num lugar onde ninguém a encontraria, exceto
você. De Albor torturou Ahmed, até ele contar que eu mandara chamar um amigo da
jovem para nos ajudar. Então, De Albor mandou seus homens estrada acima, com o
que pouparam de Ahmed, como um aviso para você, caso viesse. Foi nesta manhã
que ele nos capturou; escondi Constance na noite passada. Nem mesmo Ahmed sabia
onde foi. De Albor me torturou, para me fazer dizer...”. As mãos do moribundo
se fecharam, e uma feroz luz colérica brilhou em seus olhos. McGrath sabia que
nem todos os tormentos, de todos os infernos, poderiam arrancar aquele segredo
dos lábios de ferro de Ballville.
- Era o mínimo
que você poderia fazer – ele disse, sua voz áspera de emoções conflitantes. –
Vivi no inferno durante três anos, por causa de você... e Constance também.
Você merece morrer. Se já não estivesse morrendo, eu mesmo lhe mataria.
- Maldito
seja; você acha que quero seu perdão? – arfou o moribundo. – Estou contente por
você ter sofrido. Se Constance não precisasse de sua ajuda, eu adoraria ver
você morrer como estou morrendo, e lhe esperaria no inferno. Mas chega disto.
De Albor me deixou por algum tempo, para subir a estrada e se certificar de que
Ahmed estava morto. Este animal foi beber meu conhaque, e decidiu ele mesmo me
torturar um pouco.
“Agora escute:
Constance está escondida em Lost Cave. Nenhum homem na terra sabe da sua
existência, exceto você e eu – nem mesmo os negros. Há muito tempo, coloquei
uma porta de ferro na entrada e matei o homem que fez o trabalho; portanto, o
segredo está a salvo. Não há chave. Você terá que abri-la, usando certas
maçanetas”.
Era cada vez
mais difícil para o homem se expressar de forma inteligível. O suor lhe pingava
do rosto, e os músculos de seus braços tremiam.
- Passe seus
dedos sobre a beirada da porta, até encontrar três maçanetas que formam um triângulo.
Você não pode vê-las; terá de sentir. Pressione cada uma em sentido
anti-horário, três vezes. Então, puxe a tranca. A porta se abrirá. Pegue
Constance e abra caminho para sair. Se você ver que eles irão lhe pegar, atire
nela! Não a deixe cair nas mãos daquele animal negro...
A voz se
ergueu até um guincho, a espuma respingou dos pálidos lábios contorcidos, e
Richard Ballville se ergueu quase ereto, e depois desabou flácido para trás. A
vontade de ferro que animara o corpo quebrado, havia finalmente se partido,
como um arame esticado.
McGrath desceu
os olhos para a forma imóvel, seu cérebro um turbilhão de emoções fervilhantes;
então, girou, olhando ferozmente, sua pistola lhe aparecendo na mão.
3) O Sacerdote Negro
Havia um homem
na portada que se abria para o grande salão externo – um homem alto, vestindo
roupas estranhas. Usava um turbante e um casaco de seda, preso por um cinto
colorido. Seus pés calçavam chinelos turcos. Sua pele não era muito mais escura
que a de McGrath, e suas feições eram distintamente orientais, apesar dos
pesados óculos que usava.
- Quem diabos
é você? – exigiu McGrath, mirando-o.
- Ali ibn
Suleyman, efêndi – respondeu o outro
em Árabe impecável. – Vim para este lugar de demônios a pedido urgente de meu
irmão, Ahmed ibn Suleyman, a cuja alma o Profeta conforta. Em Nova Orleans, a
carta chegou até a mim. Apressei-me para cá. E eis que, esgueirando-me pela
floresta, vi negros arrastando o cadáver de meu irmão até o rio. Prossegui,
procurando o amo dele.
McGrath
apontou silenciosamente para o homem morto. O árabe curvou a cabeça em
majestosa reverência.
- Meu irmão o
amava – ele disse. – Eu queria vingar meu irmão e o amo do meu irmão. Efêndi, deixe-me ir com você.
- Tudo bem. –
McGrath estava incendiado de impaciência. Ele conhecia a fanática lealdade
tribal dos árabes, e sabia que o caráter decente de Ahmed havia sido uma devoção
feroz pelo canalha a quem servia. – Siga-me.
Com um último
olhar ao dono da Mansão e ao corpo negro estatelado como um sacrifício humano
diante dele, McGrath abandonou a câmara de tortura. Assim mesmo, ele refletiu,
um dos ancestrais reis-guerreiros de Ballville deve ter jazido em alguma
obscura era passada, com um escravo trucidado aos seus pés, para servir seu
espírito na terra dos fantasmas.
Com o árabe
atrás de si, McGrath adentrou o círculo de pinheiros que adormecia no calor
parado do meio-dia. Uma brisa errante lhe trazia fracamente aos ouvidos um distante
pulsar de som. Soava como o bater de um tambor longínquo.
- Vamos! –
McGrath caminhou através do agrupamento de dependências e mergulhou na floresta
que se erguia atrás delas. Aqui também, haviam outrora se estendido os campos
que fizeram a fortuna dos aristocráticos Ballvilles; mas, há muitos anos, eles
foram abandonados. Os caminhos se espalhavam irregularmente através da
vegetação descomposta, até, dentro em pouco, a crescente densidade das árvores
dizer aos invasores que eles estavam na floresta, a qual jamais conhecera o
machado de um lenhador. McGrath procurava uma trilha. Impressões recebidas na
infância são sempre permanentes. As lembranças permanecem, recobertas por
coisas posteriores, mas infalíveis ao longo dos anos. McGrath achou a trilha
que procurava, um vago vestígio serpenteando pelas árvores.
Foram forçados
a andar em fila única; os galhos lhes arranhavam as roupas, e seus pés
afundavam no carpete de agulhas de pinheiros. A terra se inclinava gradualmente
para baixo. Os pinheiros davam lugar a ciprestes, abafados por vegetação
rasteira. Poços espumados de água estagnada brilhavam levemente sob as árvores.
Grandes rãs grasnavam, e mosquitos zumbiam com insistência enlouquecedora ao
redor deles. Novamente, o tambor distante pulsava através das terras de
pinheiros. Aquele tambor despertava lembranças que se ajustavam bem a estes
arredores sombrios. Seus pensamentos recuavam à horrível cicatriz queimada
sobre o peito nu de Richard Ballvillle. Ballville havia suposto que ele,
McGrath, conhecia seu significado; mas não sabia. Que aquilo pressagiava negro
horror e loucura, ele sabia, mas seu total significado ele não conhecia. Somente
uma vez, ele havia visto aquele símbolo, na região assombrada de Zambebwei,
dentro da qual poucos homens brancos já haviam se aventurado, e da qual apenas
um homem branco escapara vivo. Bristol McGrath era este homem, e ele havia
penetrado apenas a orla daquela terra abismal de selva e negros pântanos. Ele
não fora capaz de mergulhar fundo o bastante naquele domínio proibido, para
provar nem refutar as histórias medonhas que os homens sussurravam, de um culto
antigo que sobrevivia a uma era pré-histórica; do culto a uma monstruosidade
cujo feitio violava leis aceitas da Natureza. Ele vira pouco; mas o que ele
havia visto o preenchera com um horror estremecedor, que às vezes retornava em
pesadelos escarlates.
Nenhuma
palavra foi trocada entre os dois homens, desde que deixaram a Mansão. McGrath
continuou mergulhado na vegetação que obstruía a trilha. Um réptil gordo e de
cauda sem ponta deslizou sob seus pés, e desapareceu. A água não devia estar
longe; mais alguns passos a revelariam. Estavam no limite de um pântano úmido e
lodoso, do qual se erguia um cheiro de matéria vegetal apodrecida. Os ciprestes
o sombreavam. A trilha acabava no limite dela. O pântano se estendia
indefinidamente, sumindo rapidamente de vista na obscuridade crepuscular.
- E agora, efêndi? – perguntou Ali. – Iremos nadar
neste pântano?
- Está cheio
de atoleiros sem fundo – respondeu McGrath. – Seria suicídio para um homem
mergulhar nele. Nem mesmo os negros da floresta de pinheiro tentaram atravessá-lo.
Mas há um caminho para alcançar a colina que se ergue no meio dele. Você mal
pode vislumbrá-lo, entre as sombras dos ciprestes, vê? Anos atrás, quando
Ballville e eu éramos garotos... e amigos... descobrimos uma trilha indígena
bem antiga, uma estrada secreta e submersa que guiava até aquela colina. Há uma
caverna na colina, e uma mulher está aprisionada naquela caverna. Estou indo
para lá. Quer me seguir, ou me esperar aqui? A trilha é perigosa.
- Eu vou, efêndi – respondeu o árabe.
McGrath
assentiu em apreço, e começou a examinar as árvores ao seu redor. Em seguida,
percebeu que estava procurando por um brilho fraco num enorme cipreste, uma
velha marca, quase imperceptível. Sem hesitar, ele adentrou o pântano ao lado
da árvore. Ele próprio havia feito aquela marca, anos atrás. Água estagnada se
erguia sobre as solas de seus sapatos, mas não mais alto. Ele estava numa rocha
plana, ou melhor, numa pilha de rochas, na qual a mais alta estava logo abaixo
da superfície estagnada. Localizando um certo cipreste retorcido, lá longe na
sombra do pântano, começou a caminhar diretamente até ele, espaçando
cautelosamente seus passos largos, cada um deles o levando a um degrau de rocha
sob a água escura. Ahmed ibn Suleyman o seguia, imitando-lhe os movimentos.
Atravessaram o
pântano, seguindo as árvores marcadas que eram seus postes indicadores. McGrath
se indagou novamente sobre os motivos que levaram os antigos construtores
daquela trilha a trazer essas enormes rochas de longe e amontoá-las dentro do
lodo. O trabalho deve ter sido estupendo, sem exigir a menor habilidade
técnica. Por que os índios haviam construído esta estrada quebrada até Lost
Island? Certamente, esta ilha e a caverna nela tinham algum significado
religioso para os homens vermelhos; ou talvez fosse o refúgio deles contra
algum inimigo mais forte.
A ida foi
lenta; um passo em falso significava um mergulho em lama pantanosa, dentro do
lamaçal instável e capaz de engolir um homem vivo. A ilha ficava fora das
árvores adiante deles – uma pequena colina arredondada, cercada por uma praia
obstruída por vegetação. Através da folhagem, via-se a parede rochosa que se
erguia perpendicularmente da praia, a uns 15 ou 18 metros de altura. Era quase
como um bloco de granito, se erguendo de uma orla plana de areia. O cume quase
não tinha vegetação.
McGrath estava
pálido, sua respiração chegando em rápidas arfadas. Enquanto caminhavam sobre a
faixa em forma de praia, Ali, com um olhar de compaixão, puxou um frasco do
bolso.
- Beba um
pouco de conhaque, efêndi – ele
insistiu, tocando a boca até os próprios lábios, à moda oriental. – Vou lhe
ajudar.
McGrath sabia
que Ali havia pensado que sua evidente agitação fosse uma conseqüência da
exaustão. Mas ele mal sabia de seus esforços recentes. Eram as emoções que
rugiam dentro dele – o pensamento em Constance Brand, cuja bela forma lhe
assombrara os sonhos perturbados durante três anos sombrios. Ele engoliu
sôfrega e intensamente a bebida alcoólica, mal sentindo seu gosto, e devolveu o
frasco.
- Vamos!
As fortes
batidas de seu próprio coração eram sufocantes, afogando o tambor distante,
enquanto ele se enfiava pela vegetação sufocante ao pé do penhasco. Na rocha
cinza acima da máscara verde, aparecia um curioso símbolo entalhado, como ele o
vira anos atrás, quando a descoberta deste o guiara e a Richard Ballville até
esta caverna oculta. Ele afastou para os lados as vinhas e folhas de parreira
entrelaçadas, e inspirou involuntariamente ao ver uma pesada porta de ferro,
situada na entrada estreita que se abria na parede de granito.
Os dedos de
McGrath tremiam enquanto deslizavam sobre o metal, e atrás dele, podia ouvir
Ali respirar ofegante. Um pouco da agitação do homem branco havia sido
transmitida ao árabe. As mãos de McGrath haviam encontrado as três maçanetas,
que formavam os vértices de uma saliência triangular e não-visível. Controlando
seus nervos agitados, ele as pressionou como Ballville o instruiu, e sentiu
cada uma ceder na terceira pressão. Então, segurando o fôlego, ele agarrou a
barra que estava fundida no meio da porta, e puxou. Suavemente, sobre
dobradiças lubrificadas, a porta maciça se abriu.
Eles olhavam
para um túnel largo, que terminava em outra porta, esta uma grade de barras de
aço. O túnel não era escuro; era claro e espaçoso, e o teto era perfurado para
permitir a entrada de luz, os buracos cobertos com cortinas para impedir a
entrada de insetos e répteis. Mas, através da grade, ele vislumbrou algo que o
fez correr ao longo do túnel, seu coração quase lhe arrebentando as costelas.
Ali estava logo atrás dele.
A porta de
grades não estava trancada. Ela se abriu para fora sob seus dedos. Ele ficou
imóvel, quase atordoado pelo impacto de suas emoções.
Seus olhos
estavam aturdidos por um brilho de ouro; um raio de sol se inclinava para
baixo, através do perfurado teto de rocha, e refletia suavemente na gloriosa
abundância de cabelo dourado, que fluía sobre o braço branco, o qual descansava
a bela cabeça sobre a entalhada mesa de carvalho.
- Constance! –
Foi um grito de ânsia e saudade que irrompeu de seus lábios pálidos.
Ecoando o
grito, a jovem se ergueu sobressaltada, arregalando arrebatadamente os olhos,
as mãos nas têmporas, seu cabelo bruxuleante se agitando sobre os ombros. Para
seu olhar aturdido, ela parecia flutuar numa auréola de luz dourada.
- Bristol!
Bristol McGrath! – ela ecoou seu chamado com um grito assombrado e incrédulo.
Logo, estava nos braços dele, com os braços brancos agarrando-o num abraço
frenético, como se temendo que ele não passasse de um fantasma que pudesse
sumir dela.
Pois, naquele
momento, o mundo parou de existir para Bristol McGrath. Ele poderia estar cego,
surdo e mudo para o resto do universo. Seu cérebro maravilhado só estava ciente
da mulher em seus braços, seus sentidos embriagados pela maciez e fragrância
dela, e sua alma atordoada com a realização irresistível de um sonho que ele
pensava estar morto e desaparecido para sempre.
Quando
conseguiu pensar consecutivamente outra vez, ele se sacudiu como um homem que
saía de um transe, e olhou estupidamente ao redor de si. Estava numa câmara
espaçosa, entalhada na rocha sólida. Assim como o túnel, era iluminada pelo
alto, e o ar era fresco e limpo. Havia cadeiras, mesas e uma rede de dormir,
tapetes no chão rochoso, latas de comida e um refrigerador de água. Ballville
não deixara de fornecer para o conforto de sua cativa. McGrath olhou para o
árabe, e o viu fora da grade. Cortesmente, ele não havia importunado seu
reencontro.
- Três anos! –
a garota soluçava. – Esperei por três anos. Eu sabia que você viria! Eu sabia
disso! Mas devemos ter cuidado, meu querido. Richard lhe matará caso lhe encontre...
matará a nós dois!
- Ele não pode
mais matar ninguém – respondeu McGrath. – Mas mesmo assim, temos que sair
daqui.
Os olhos dela
luziram com novo terror:
- Sim! John De
Albor! Ballville tinha medo dele. Foi por isso que ele me trancou aqui. Ele
disse que mandaria lhe chamar. Eu temia por você...
- Ali! –
McGrath gritou. – Venha aqui. Estamos saindo daqui agora, e seria melhor se
levássemos um pouco de água e comida conosco. Talvez tenhamos que nos esconder
nos pântanos por...
Subitamente,
Constance lançou um grito agudo e se soltou dos braços de seu amado. E McGrath,
congelado pelo súbito e terrível medo nos grandes olhos dela, sentiu o surdo e
surpreendente impacto de um golpe selvagem na base do crânio. A consciência não
o abandonou, mas uma estranha paralisia tomou conta dele. Ele caiu como um saco
vazio sobre o chão de pedra e ficou estirado lá, como um homem morto, olhando
indefeso para a cena que matizava seu cérebro com loucura: Constance se
debatendo freneticamente nas mãos do homem a quem ele conhecera como Ahmed ibn
Suleyman, agora terrivelmente transformado.
O homem havia
arrancado o turbante e óculos. E, nos tenebrosos brancos de seus olhos, McGrath
leu a verdade com suas pavorosas implicações: o homem não era árabe. Era
mestiço de negro. Mas um pouco de seu sangue deveria ser árabe, pois havia um
leve molde semita em seu rosto; e este molde, junto com sua roupa oriental e
perfeita atuação, o fez parecer genuíno. Mas agora tudo isso foi descartado, e
a raça negróide era predominante; até mesmo sua voz, a qual pronunciara o
sonoro Árabe, era agora gutural como a de um negro.
- Você o
matou! – a garota soluçou histericamente, debatendo-se em vão para escapar dos
dedos cruéis que lhe aprisionavam os punhos brancos.
- Ele não está
morto ainda – riu o octoroon (*).
– O idiota bebeu conhaque misturado com uma droga, a qual só é encontrada nas
selvas de Zambebwei. Ela fica inativa no sistema nervoso, até fazer efeito,
através de um golpe feroz num centro nervoso.
- Por favor,
faça algo por ele! – ela implorou.
O sujeito riu
brutalmente.
- Por que eu
deveria? Ele já teve sua serventia. Que fique aí, até os insetos do pântano
roerem seus ossos. Eu adoraria assistir isso... mas estaremos bem longe, antes
do anoitecer. – Os olhos dele ardiam com a satisfação bestial da posse. A visão
desta beldade branca, se debatendo em suas mãos, parecia despertar toda a
luxúria selvagem daquele homem. A fúria e agonia de McGrath só encontravam
expressão em seus olhos injetados de sangue. Não conseguia mexer as mãos nem os
pés.
- Foi bom eu
ter voltado sozinho à Mansão – riu o octoroon.
– Esgueirei-me até a janela, enquanto este idiota conversava com Richard
Ballville. Veio até a mim a idéia de deixá-lo me guiar até o local onde você
estava escondida. Nunca me ocorreu que houvesse um esconderijo no pântano. Vi o
casaco, chinelos e turbante do árabe; achei que poderia usá-los em algum
momento. Os óculos ajudaram também. Não foi difícil me disfarçar de árabe. Este
homem nunca tinha visto John De Albor. Nasci na África Oriental e cresci como
escravo na casa de um árabe, antes de fugir e perambular até a terra de
Zambebwei.
“Mas chega.
Temos que ir. O tambor murmurou o dia todo. Os negros estão inquietos. Prometi
a eles um sacrifício para Zemba. Eu ia usar o árabe, mas, após tê-lo torturado
para conseguir a informação que desejava, ele não era mais adequado para um
sacrifício. Bom, que eles batam seu tambor idiota. Vão gostar de tê-la como a
Noiva de Zemba, mas não sabem que eu lhe encontrei. Tenho uma lancha a
gasolina, escondida no rio a oito quilômetros daqui”.
- Idiota! –
guinchou Constance, debatendo-se irascivelmente. – Você pensa que pode carregar
uma garota branca rio abaixo, como uma escrava?
Tenho uma
droga que lhe fará parecer uma mulher morta – ele disse. – Você ficará no fundo
da lancha, coberta por sacos. Quando eu embarcar no navio a vapor, que nos
levará destas praias, você irá dentro da minha cabine, num tronco grande e
bem-ventilado. Você não sentirá nada dos desconfortos da viagem. Acordará na
África...
Ele tateava a
própria camisa, tendo que soltá-la com uma das mãos. Com um grito frenético e
uma desesperada torção violenta, ela se soltou e saiu correndo pelo túnel. John
De Albor saltou atrás dela, berrando. Uma bruma vermelha flutuou diante dos olhos
enlouquecidos de McGrath. A garota pularia para a morte nos pântanos, a menos que
se lembrasse das guias de marca – talvez fosse a morte o que ela procurava, em
preferência ao destino planejado para ela por aquele negro demoníaco.
Eles sumiram
de sua vista, túnel afora; mas subitamente Constance gritou outra vez, com uma
nova pungência. Aos ouvidos de McGrath, chegou uma excitada tagarelice de
guturais negros. Os sotaques de De Albor foram elevados em protesto furioso.
Constance soluçava histericamente. As vozes se distanciavam. McGrath teve um
vago vislumbre de um grupo de figuras, através da cobertura de vegetação,
enquanto elas se moviam de um lado a outro da linha de entrada do túnel. Viu
Constance ser arrastada por meia-dúzia de gigantes negros típicos das terras de
pinheiro e, atrás deles, vinha John De Albor, suas mãos eloqüentes em
discordância. Apenas aquele vislumbre, através das folhas de palmeira, e então
a entrada do túnel ficou vazia e o som de água salpicada desapareceu através do
pântano.
4) A Fome do Deus Negro
No silêncio
que pairava na caverna, Bristol McGrath jazia encarando inexpressivamente o
alto; sua alma, um inferno fervilhante. Idiota, idiota, por ser enganado tão facilmente!
Mas como ele poderia saber? Nunca tinha visto John De Albor; ele pensava que
fosse um negro de sangue puro. Ballville o havia chamado de animal negro, mas
ele deveria estar se referindo à sua alma. De Albor, exceto pelo negro
traiçoeiro de seus olhos, poderia se passar por homem branco em qualquer lugar.
A presença
daqueles homens negros significava apenas uma coisa: haviam seguido a ele e De
Albor, e capturado Constance enquanto ela fugia da caverna. O medo evidente em
De Albor trazia uma implicação hedionda: ele dissera que os negros queriam
sacrificar Constance; ela agora estava nas mãos deles.
- Deus! – A
palavra irrompeu dos lábios de McGrath, sobressaltando no silêncio e
sobressaltando a quem falou. Ele estava eletrificado: poucos momentos antes,
estava mudo. Mas agora ele descobriu que podia mover seus lábios e sua língua.
A vida retornava furtivamente aos seus membros mortos; eles formigavam, como
quando a circulação volta. Furiosamente, ele incentivava este fluxo lento. Com
muito trabalho, mexia suas extremidades: seus dedos, mãos, pulsos e,
finalmente, com uma onda de triunfo selvagem, seus braços e pernas. Talvez a
droga infernal de De Albor tenha perdido um pouco de seu poder através das
eras. Talvez a resistência incomum de McGrath tenha anulado os efeitos, como
outro homem não conseguiria.
A porta do
túnel não havia sido fechada, e McGrath sabia o motivo: eles não queriam afastar
os insetos que logo iriam se livrar de um corpo indefeso; as pragas já estavam
fluindo através da porta, numa horda barulhenta.
McGrath
finalmente se levantou, cambaleando como um bêbado, mas com sua vitalidade
aumentando cada vez mais a cada segundo. Quando andou com passos trôpegos para
fora da caverna, não viu nenhuma coisa viva. Horas haviam se passado desde que
os negros haviam se retirado com sua presa. Ele aguçou os ouvidos para escutar
o tambor. Fazia silêncio. A quietude se erguia como uma invisível bruma negra
ao seu redor. Aos tropeços, ele chafurdou ao longo da trilha de rochas que
levava à terra firme. Os negros haviam levado sua cativa de volta à Mansão
assombrada pela morte, ou às profundezas das terras de pinheiro?
Seus rastros
estavam claros na lama: seis pares de pés descalços e achatados, as pegadas
delgadas dos sapatos de Constance e as marcas dos chinelos turcos de De Albor.
Ele os seguia com dificuldade crescente, à medida que o solo ficava mais alto e
duro.
Ele teria
perdido o ponto no qual saíram da trilha indistinta, se não fosse o tremular de
um pedaço de seda na brisa fraca. Constance havia roçado contra um tronco de
árvore lá, e a rude casca havia rasgado um fragmento de seu vestido. O bando se
dirigira para leste, para a Mansão. No ponto onde pendia o pedaço de pano,
haviam virado rapidamente para o sul. As emaranhadas agulhas de pinheiros não
mostravam pegadas, mas vinhas desarrumadas e galhos dobrados para o lado
indicavam seu avanço, até McGrath, seguindo estes sinais, chegar a uma outra
trilha, a qual seguia para o sul.
Aqui e ali,
havia pontos de lama, e estes mostravam as marcas de pés descalços e calçados.
McGrath se apressou ao longo da trilha, pistola na mão e finalmente em plena
posse de suas faculdades. Seu rosto estava sombrio e pálido. De Albor não
tivera oportunidade de desarmá-lo, após dar aquele golpe traiçoeiro. Tanto o octoroon quanto os negros das terras de
pinheiro acreditavam que ele jazia indefeso lá em Lost Cave. Esta, por fim, foi
sua vantagem.
Ele continuou aguçando
os ouvidos em vão, em busca do tambor que escutara no início do dia. O silêncio
não o tranqüilizava. Num sacrifício vodu, tambores sacrificais estariam
trovejando, mas ele sabia estar lidando com algo ainda mais antigo e repugnante
que vodu.
O vodu era uma
religião comparativamente jovem, afinal, nascida nas colinas do Haiti. Por trás
da espuma do vodu haitiano, erguiam-se as religiões sombrias da África, como
penhascos de granito vislumbrados através de uma máscara de folhas verdes de
palmeiras. O vodu era uma criança choramingante ao lado do negro colosso
imemorial que erguera sua forma terrível na terra mais antiga, através de eras
incontáveis: Zambebwei! O próprio nome o fazia estremecer, por simbolizar
horror e medo. Era mais que o nome de uma região e da tribo misteriosa que
habitava aquela região; significava algo terrivelmente antigo e maligno, algo
que havia sobrevivido à sua época natural – uma religião da Noite, e uma
divindade cujo nome era Morte e Horror.
Ele não vira
cabanas de negros. Sabia que a maioria delas ficava mais distantes a leste e
sul, amontoadas ao longo das margens do rio e de seus arroios tributários. Era
instinto do homem negro construir sua habitação perto de um rio, como ele o
havia o havia construído próximo ao Congo, ao Nilo e ao Níger, desde a primeira
aurora cinza do Tempo. Zambebwei! A palavra latejava, como o pulsar de um
tambor, pelo cérebro de Bristol McGrath. A alma do negro não havia mudado,
através dos séculos sonolentos. A mudança poderia chegar no clangor das ruas,
nos ritmos crus do Harlem; mas os pântanos do Mississipi não eram diferentes o
bastante para causar qualquer grande transmutação numa raça que era antiga,
antes que o primeiro rei branco trançasse o teto de palha de sua cabana de
barro coberta com varas de vime.
Seguindo
aquela trilha sinuosa através da escuridão crepuscular dos grandes pinheiros,
McGrath não achou motivos em sua alma para se assombrar que negros tentáculos
lodosos das profundezas da África houvessem se estirado por todo o mundo, para
gerar pesadelos numa terra estrangeira. Certas condições naturais produzem
certos efeitos, geram certas pestilências de corpo ou alma, independente de sua
situação geográfica. As terras de pinheiros, cheias de rios, eram tão abismais
quanto as das rançosas selvas africanas.
A direção da
trilha se afastou do rio. A terra se inclinou bem devagar para o alto, e todos
os sinais de pântano desapareceram.
A trilha
serpenteava, mostrando sinais de uso freqüente. McGrath ficou nervoso. A
qualquer momento, ele poderia encontrar alguém. Dirigiu-se para as densas
florestas ao lado da trilha, forçou seu caminho para a frente, cada movimento
soando alto como um canhão para seus ouvidos aguçados. Suando de tensão
nervosa, ele chegou dentro em pouco a uma trilha menor, a qual serpenteava na
direção que desejava seguir. As terras de pinheiro eram marcadas por tais
trilhas.
Ele a seguiu
com grande facilidade e furtividade, logo chegando a uma curva na qual a viu se
juntar à trilha principal. Próxima ao ponto de junção, havia uma pequena cabana
de troncos e, entre ele e a cabana, acocorava-se um enorme negro. Este homem
estava escondido atrás do tronco de um enorme pinheiro, ao lado da trilha
estreita, e observando ao redor em direção à cabana. Obviamente, ele estava
espionando alguém, e logo ficou evidente quem era este alguém, quando John De
Albor chegou à porta e fitou desesperadamente a larga trilha. O observador
negro se enrijeceu e ergueu os dedos até a boca, como se para dar um assobio,
mas De Albor encolheu os ombros, sem saber o que fazer. O negro relaxou, apesar
de não alterar sua vigilância.
O que isto
pressagiava, McGrath não sabia, nem parou para especular. Ao ver De Albor, uma
bruma vermelha transformou a luz do sol em sangue, na qual o corpo negro diante
dele flutuava como um duende de ébano.
Uma pantera se
aproximando furtivamente de sua caça teria feito tanto barulho quanto McGrath
fez ao deslizar em direção ao negro agachado. Ele sabia não ter qualquer
inimizade pessoal contra o homem, que não passava de um obstáculo em seu caminho
de vingança. Esquecido de tudo o mais, ele não se moveu nem girou... até a coronha
da pistola descer sobre sua cabeça de cabelos crespos, com um impacto que o
estirou sem sentidos entre as agulhas dos pinheiros.
McGrath
agachou-se sobre sua vítima imóvel, aguçando os ouvidos. Não havia qualquer som
próximo – mas, súbito, bem longe, ergueu-se um guincho prolongado que
estremeceu e desvaneceu. O sangue congelou nas veias de McGrath. Ele já ouvira
aquele som uma vez – nas colinas baixas e cobertas por florestas, que formam as
fronteiras da proibida Zambebwei; seus jovens negros haviam ficado pálidos e
caído prostrados. Não sabia o que era; e a explicação oferecida pelos nativos
trêmulos havia sido monstruosa demais para ser aceita por uma mente racional.
Eles a chamaram de a voz do deus de Zambebwei.
Pronto para
agir, McGrath desceu a trilha e se lançou contra a porta dos fundos da cabana.
Ele não sabia quantos negros haviam lá dentro; e não se importava. Estava tomado
pela mágoa e fúria.
A porta se
espatifou para dentro sob o impacto. Ele entrou agachado, a pistola à altura da
cintura, os lábios rosnando.
Mas somente um
homem o encarava: John De Albor, que se ergueu de um pulo com um grito
sobressaltado. A pistola caiu dos dedos de McGrath. Nem chumbo nem aço
conseguiam saciar seu ódio agora. Tinha que ser com as mãos nuas, regressando
pelas páginas da civilização até os dias da aurora vermelha do primordial.
Com um
rosnado, que parecia menos o grito de um homem do que o grunhido de um leão
atacando, as mãos ferozes de McGrath se fecharam ao redor do pescoço do octoroon. De Albor foi levado para trás
pela colisão, e os homens se espatifaram juntos sobre a cama de campo,
esmagando-a em ruínas. E, ao rolarem sobre o chão sujo, McGrath se pôs a matar
seu inimigo com os dedos nus.
O octooron era um homem alto, de membros
longos e forte. Mas, contra a fúria do branco, ele não tinha chance. Foi
arremessado como um saco de palha, golpeado repetida e selvagemente contra o
chão; e os dedos de ferros que lhe apertavam a garganta afundaram cada vez
mais, até sua língua sair dos lábios azulados e abertos, e seus olhos estarem
saltando de sua cabeça. Com a morte a apenas uma mão de distância do octoroon, certo grau de sanidade
retornou a McGrath.
Sacudiu a
cabeça, como um touro atordoado, aliviou um pouco seu terrível aperto e rosnou:
- Onde está a
garota? Rápido, antes que eu mate você!
De Albor
sentiu ânsia de vômito e lutou para respirar, com o rosto pálido.
- Os negros! –
ele arfou. – Eles a haviam levado para ser a Noiva de Zemba! Não consegui
impedi-los. Eles exigem um sacrifício. Eu lhe ofereci a eles, mas disseram que
você estava paralisado e morreria de qualquer forma... eram mais inteligentes
do que eu pensava. Seguiram-me de volta à Mansão desde o ponto onde deixamos o
árabe na estrada... seguiram-nos da Mansão até a ilha.
“Estão fora de
controle – loucos, em sua sede de sangue. Mas, mesmo eu, que conheço negros
como ninguém mais os conhece, havia esquecido que nem mesmo um sacerdote de
Zambebwei pode controlá-los, quando o fogo da adoração corre em suas veias. Sou
sacerdote e amo deles – mas, quando tentei salvar a garota, eles me forçaram
para dentro desta cabana e colocaram um homem para me vigiar até o sacrifício
estar terminado. Você deveria tê-lo matado; ele nunca lhe deixaria entrar
aqui”.
Com fria
severidade, McGrath pegou sua pistola.
- Você chegou
aqui como amigo de Richard Ballville – ele disse, sem emoção. – Para se
apoderar de Constance Brand, você transformou negros em adoradores do demônio.
Merece morrer por isso. Quando as autoridades européias que governam a África
capturam um sacerdote de Zambebwei, elas o enforcam. Você já admitiu ser um
sacerdote. Você pode pagar com a vida por isso também. Mas é por causa de seus
ensinamentos infernais que Constance Brand está prestes a morrer, e é por essa
razão que vou estourar seus miolos.
John De Albor
ficou paralisado.
- Ela ainda
não morreu – ele arfou, com grandes gotas de transpiração lhe pingando do rosto
pálido. – Ela não morrerá, até que a lua fique alta sobre os pinheiros. Ela
está cheia esta noite, a Lua de Zambebwei. Não me mate. Somente eu posso
salvá-la. Sei que falhei antes. Mas se eu for até eles, aparecer para eles
subitamente e sem aviso, vão pensar que é por causa de poderes sobrenaturais
que consegui escapar da cabana, sem ser visto pelo vigia. Isso renovará meu
prestígio.
“Você não pode
salvá-la. Você pode balear uns poucos negros, mas ainda haveria vintenas para
lhe matar – e a ela. Mas tenho um plano – sim, sou um sacerdote de Zambebwei.
Quando eu era menino, fugi de meu senhor árabe e perambulei para longe, até
chegar à terra de Zambebwei. Lá eu cresci até a idade adulta e me tornei um
sacerdote, até o sangue branco em mim me puxar para o mundo externo novamente,
para aprender os modos dos homens brancos. Quando cheguei à América, eu trouxe
um Zemba comigo – não posso lhe dizer como.
“Deixe-me
salvar Constance Brand!”. Ele estendia a mão em forma de garra para McGrath,
tremendo como se estivesse com febre. “Eu a amo, tanto quanto você a ama.
Jogarei limpo com vocês dois, eu juro! Deixe-me salvá-la! Podemos lutar por ela
depois, e eu lhe matarei se puder”.
A franqueza
daquela declaração balançou McGrath mais do que qualquer outra coisa que o octoroon possa ter dito. Era um jogo desesperado
– mas, afinal, Constance não estaria pior com John De Albor vivo, do que ela já
estava. Ela estaria morta antes da meia-noite, a não ser que algo fosse feito
rapidamente.
- Onde é o
local do sacrifício? – perguntou McGrath.
- A cerca de
cinco quilômetros daqui, numa clareira aberta – respondeu De Albor. – Ao sul
pela trilha que passa por minha cabana. Todos os negros estão reunidos lá, exceto
meu guarda e alguns outros que estão vigiando a trilha sob a cabana. Estão
dispersos ao longo dela; o mais próximo, longe do alcance visual de minha
cabine, mas ao alcance do assobio alto e estridente com o qual essas pessoas
sinalizam umas às outras.
“Meu plano é o
seguinte: você espera aqui na minha cabana, ou na floresta, se preferir.
Evitarei os vigias na trilha, e aparecerei subitamente diante dos negros na
Casa de Zemba. Uma aparição súbita irá impressioná-los intensamente, como eu
disse. Não posso convencê-los a abandonar o plano deles, mas os farei adiar o
sacrifício até pouco antes do amanhecer. E, antes daquela hora, conseguirei
surrupiar a garota e fugir com ela. Retornarei ao seu esconderijo, e juntos
abriremos à força nosso caminho para fora”.
McGrath riu:
- Você acha
que sou um completo idiota? Você mandaria seus negros para me assassinarem,
enquanto carregaria Constance, como você planejou. Irei com você. Vou me
esconder no limite da clareira, para lhe ajudar se você precisar de ajuda. E,
se der um passo em falso, vou lhe matar, caso eu não mate mais ninguém.
Os olhos
escuros do octoroon brilharam, mas
ele balançou a cabeça em consentimento.
- Ajude-me a
trazer seu guarda para dentro da cabine – disse McGrath. – Logo ele acordará.
Vamos amarrá-lo, amordaçá-lo e deixá-lo aqui.
O sol estava
se pondo, e crepúsculo se movia furtivamente sobre as terras de pinheiro,
quando McGrath e seu estranho companheiro deslizaram silenciosamente através da
floresta sombria. Deram uma volta para oeste, a fim de evitar os vigias na trilha,
e agora seguiam pelas muitas veredas estreitas que traçavam seu caminho através
da floresta. O silêncio reinava à frente deles, e McGrath mencionou isto.
- Zemba é um
deus do silêncio – murmurou De Albor. – Do pôr-do-sol ao nascer do sol, na
noite de lua cheia, nenhum tambor é tocado. Se um cão late, deve ser morto. Se
um bebê chora, deve ser morto. O silêncio fecha as mandíbulas do povo até Zemba
rugir. Apenas a voz dele é erguida na noite da Lua de Zemba.
McGrath
estremeceu. Aquela divindade repugnante era um espírito intangível, é claro,
corporificado apenas na lenda; mas De Albor falava dele como se fosse uma coisa
viva.
Algumas
estrelas começavam a aparecer e piscar, e sombras se espalhavam pela floresta
espessa, turvando os troncos das árvores que se fundiam na escuridão. McGrath
sabia que não deviam estar longe da Casa de Zemba. Ele sentia a presença
próxima de uma multidão, embora não ouvisse nada.
De Albor, à
frente dele, parou subitamente, agachando-se. McGrath parou, tentando enxergar
através da máscara de galhos entrelaçados que os cercava.
- O que é
isso? – murmurou o homem branco, estendendo a mão em direção à pistola.
De Albor
sacudiu a cabeça, ficando de pé. McGrath não conseguia ver a pedra na mão dele,
pega do chão quando ele parou.
- Está ouvindo
alguma coisa? – exigiu McGrath.
De Albor
gesticulou para que ele se curvasse para a frente, como se para sussurrar em
seu ouvido. Pego de guarda aberta, McGrath se curvou em direção a ele – ainda assim,
adivinhou a intenção do traiçoeiro africano, mas era tarde demais. A pedra de
De Albor se espatifou repugnantemente contra a têmpora do branco. McGrath caiu
como um boi abatido, e De Albor saiu correndo vereda abaixo, até desaparecer
como um fantasma na escuridão.
5) A Voz de Zemba
Na escuridão
da trilha na floresta, McGrath finalmente se movia e erguia cambaleando. Aquele
golpe desesperado poderia ter esmagado o crânio de um homem, cujo físico e
vitalidade não fossem os de um touro. Sua cabeça latejava, e havia sangue seco
em sua têmpora; mas sua sensação maior era o ardente menosprezo a si mesmo, por
ter sido vítima de John De Albor. Além disso, quem suspeitaria daquele golpe?
Ele sabia que De Albor o mataria se pudesse, mas não esperava um ataque antes
do resgate de Constance. O sujeito era perigoso e imprevisível como uma naja. Seu
pedido para ser permitido tentar resgatar Constance não passava de uma
artimanha para escapar à morte pelas mãos de McGrath?
McGrath
encarou atordoado as estrelas que brilhavam através dos galhos de ébano, e
suspirou de alívio ao ver que a lua ainda não havia se erguido. A floresta de
pinheiro estava negra como somente terras de pinheiro podem estar, com uma
escuridão quase tangível, como uma substância capaz de ser cortada com uma
faca.
McGrath tinha
motivo para ser grato por sua constituição vigorosa. Por duas vezes naquele
dia, John De Albor lhe passara a perna, e por duas vezes, a estrutura férrea do
homem branco havia sobrevivido ao ataque. Sua pistola estava embainhada, e sua
faca também. De Albor não havia parado para revistar, nem para dar um segundo
golpe por garantia. Talvez tivesse havido um toque de pânico nas ações do
africano.
Bom... isto
não mudava muito as coisas. Ele acreditava que De Albor se esforçaria para
salvar a garota. E McGrath pretendia estar próximo, fosse para se virar sozinho
ou para ajudar o octoroon. Esta não
era hora para velhos rancores, com a vida da jovem em perigo. Desceu a trilha
tateando, instigado por um brilho que se erguia ao leste.
Chegou à
clareira quase antes de percebê-la. A lua pendia nos galhos baixos, vermelha
como sangue, alta o bastante para iluminá-la e à multidão de pessoas negras que
se acocoravam num vasto semicírculo ao redor dela, encarando a lua. Os olhos
revirados brilhavam como leite nas sombras, e seus rostos eram máscaras
grotescas. Nenhuma cabeça se voltou em direção aos arbustos, atrás dos quais
ele se agachava.
Ele tivera uma
vaga expectativa de fogueiras queimando, um altar manchado de sangue, tambores
e o canto de adoradores enlouquecidos – aquilo seria vodu. Mas isto não era
vodu, e havia um grande abismo entre os dois cultos. Não havia fogueiras nem
altares. Mas o ar sibilava entre seus dentes fechados. Numa terra distante, ele
procurava em vão pelos rituais de Zambebwei; agora, os assistia a apenas seis
quilômetros do local onde nascera.
No centro da
clareira, o chão se erguia levemente a um nível plano. Neste, havia uma pesada
estaca amarrada com ferro, a qual era o tronco afiado de um pinheiro de bom
tamanho, cravado bem fundo no chão. E havia alguma coisa viva acorrentada àquela
estaca – algo que fez McGrath prender o fôlego em horrorizada descrença.
Ele estava
olhando para o deus de Zambebwei. Estórias haviam sido contadas sobre tais
criaturas; contos loucos que saíam à deriva da região proibida, repetidos por
nativos trêmulos, sobre fogueiras nas selvas, passados adiante até alcançarem
os ouvidos de céticos comerciantes brancos. McGrath nunca havia realmente
acreditado naquelas estórias, embora ele estivesse procurando pelo ser ao qual
elas descreviam. Pois elas falavam de uma besta que era uma blasfêmia contra a
Natureza – uma besta que procurava comida estranha à sua espécie natural.
A coisa
acorrentada à estaca era um macaco, mas um macaco como o mundo em geral nunca
tinha visto, nem mesmo em pesadelos. Seu desgrenhado pêlo cinza era raiado com
a prata que brilhava na lua ascendente; parecia gigantesco, ao se acocorar como
um vampiro sobre os quadris. De pé, sobre suas pernas arqueadas e nodosas,
deveria ser tão alto quanto um homem, e bem mais largo e compacto. Mas seus
dedos preênseis estavam armados com garras semelhantes às de um tigre – não as
grandes unhas cegas do antropóide natural, mas as cruéis garras, curvas como
cimitarras, do grande carnívoro. Seu rosto era como o de um gorila – testa
baixa, narinas largas e sem queixo –; mas, quando rosnava, seu nariz largo e
chato se franzia como o de um grande felino, e a boca cavernosa mostrava presas
em forma de sabre, as presas de uma besta predadora. Este era Zemba, a criatura
sagrada para o povo da terra de Zambebwei: uma monstruosidade, uma violação de
uma lei aceita na Natureza – um macaco carnívoro. Os homens haviam rido da
estória – caçadores, zoólogos e comerciantes.
Mas agora
McGrath sabia que tais criaturas viviam na negra Zambebwei e eram adoradas,
pois o homem primitivo é propenso a adorar uma obscenidade ou perversão da Natureza.
Ou um sobrevivente de eons passados; era isso o que os macacos carnívoros de
Zambebwei eram – sobreviventes de uma época esquecida, remanescentes de uma
desaparecida era pré-histórica, quando a Natureza fazia experiências com a
matéria, e a vida assumia muitas formas monstruosas.
A visão
daquela monstruosidade encheu McGrath de repulsa; era abismal, uma lembrança
daquele passado bruto e sombreado de horror, do qual a humanidade rastejara tão
dolorosamente, eons atrás. Esta coisa era uma afronta à sanidade; pertencia ao
pó do esquecimento, juntamente com o dinossauro, o mastodonte e o
tigre-dentes-de-sabre.
Era maciça
além da estatura das bestas modernas – modelada no plano de outra era, quando
todas as coisas eram fundidas num molde mais poderoso. Ele se perguntava se o
revólver em seu quadril teria algum efeito naquilo; e se perguntava por quais
meios obscuros e astutos John De Albor havia trazido aquele monstro, de
Zambebwei até as terras de pinheiro.
Mas alguma
coisa estava acontecendo na clareira, anunciada pelo balançar da corrente do
animal, quando este esticou para a frente sua cabeça de pesadelo.
Das sombras
das árvores, saiu uma fila de homens e mulheres negros, jovens e nus, exceto
por um manto de pele de macaco e plumas de papagaio, lançado sobre os ombros de
cada um. John De Albor, sem dúvida, trazia mais insígnias. Eles formaram um
semi-círculo a uma distância segura do animal, e caíram de joelhos, curvando
suas cabeças até o chão diante deles. Este movimento foi repetido três vezes.
Então, levantando-se, formaram duas filas, homens e mulheres encarando uns aos
outros, e começaram a dançar; pelo menos, aquilo poderia, por cortesia, ser
chamado de dança. Mal moviam seus pés, mas todas as outras partes de seus
corpos estavam em constante movimento, retorcendo, girando e se contorcendo. Os
movimentos calculados e ritmados não tinham ligação alguma com as danças vodu
que McGrath havia testemunhado. Esta dança era inquietantemente arcaica em sua
sugestão, embora ainda mais depravada e bestial – desnudas paixões primitivas,
emolduradas numa cínica orgia de movimento.
Nenhum som
saía dos dançarinos, nem dos devotos acocorados ao redor do círculo de árvores.
Mas o macaco, aparentemente enfurecido pelos movimentos contínuos, ergueu sua
cabeça e mandou noite adentro o guincho assustador que McGrath ouvira uma vez,
antes daquele dia – ele ouvira nas colinas que formam a fronteira da negra Zambebwei.
A fera saltou até a extremidade de sua pesada corrente, espumando e rangendo
suas presas; e os dançarinos fugiram como espuma soprada por uma rajada de
vento. Eles se dispersaram em todas as direções – e então, McGrath deu um pulo
sobressaltado em seu esconderijo, mal sufocando um grito.
Das sombras
profundas, havia saído uma figura que brilhava morena, em contraste com as
formas negras ao seu redor. Era John De Albor, vestindo apenas um manto de
plumas brilhantes e, em sua cabeça, um diadema dourado que devia ter sido
forjado na Atlântida. Em sua mão, ele trazia um bastão de ouro que era o cetro
dos sumos sacerdotes de Zambebwei.
Atrás dele,
vinha uma figura lastimosa, à cuja visão a floresta enluarada oscilava diante
do olhar de McGrath.
Constance
havia sido drogada. Seu rosto era o de uma sonâmbula; ela não parecia
consciente do perigo que corria, ou do fato de que estava nua. Caminhava como
um robô, respondendo mecanicamente ao puxar da corda amarrada ao redor de seu
pescoço branco. A outra extremidade daquela corda estava na mão de John De
Albor, e ele meio a guiava, meio a arrastava, em direção ao horror que se
acocorava no centro da clareira. O rosto de De Albor estava cinza no luar que
agora inundava a clareira com prata derretida. O suor lhe brotava do rosto.
Seus olhos brilhavam de medo e impiedosa determinação. E, num instante
desconcertante, McGrath soube que aquele homem havia falhado, que ele fora
incapaz de salvar Constance, e que agora, para salvar sua vida de seus desconfiados
seguidores, ele próprio arrastava a jovem para o sangrento sacrifício.
Nenhum som
vocal saía dos devotos, mas o inspirar sibilava através de lábios grossos, e as
filas de corpos negros balançavam como juncos ao vento. O enorme macaco se
ergueu de um pulo, seu rosto uma abjeta máscara demoníaca; ele uivou com
impaciência medonha, rangendo suas grandes presas, as quais ansiavam afundar
naquela suave pele branca e no sangue quente sob ela. Encapelou-se contra sua
corrente, e o poste resistente tremeu. McGrath, nas moitas, ficou congelado,
paralisado pela iminência do horror. E então, John De Albor deu um passo para
trás da garota sem resistência e deu-lhe um forte empurrão que a fez cambalear
para a frente, até cair no chão sob as garras do monstro.
E
simultaneamente McGrath se moveu. Seu movimento era mais instintivo que
consciente. Sua pistola 44 pulou para dentro de sua mão e falou, e o grande
macaco gritou como um homem golpeado mortalmente e cambaleou, batendo as mãos
disformes na cabeça.
Num instante,
a multidão se encolheu congelada, os olhos brancos arregalados e as mandíbulas
pendendo moles. Então, antes que qualquer um pudesse se mover, o macaco, com o
sangue lhe jorrando da cabeça, agarrou a corrente com ambas as mãos e a
arrebentou com um puxão que torceu os elos maciços como se fossem papel.
John De Albor
se erguia diretamente diante da fera enlouquecida, com os pés paralisados.
Zemba urrou e saltou, e o africano caiu sob ele, estripado pelas garras afiadas
como navalhas, sua cabeça esmagada como uma pasta vermelha por um giro da
grande pata.
Voraz, o
monstro atacou por entre os devotos, dilacerando com as garras, rasgando,
golpeando e gritando intoleravelmente. Zambebwei falava, e a morte estava em
seu bramido. Guinchando, uivando e lutando, as pessoas negras agarravam umas às
outras em sua fuga louca. Homens e mulheres caíam sob aquelas garras cortantes
e eram desmembrados por aquelas presas que rangiam. Era um sangrento drama
primitivo – destruição distribuída às cegas e por toda a parte. Sangue e miolos
inundavam a terra; corpos e membros negros, e fragmentos de corpos se
alastravam pela clareira enluarada em pilhas medonhas, antes que o último dos
desafortunados uivantes encontrasse refúgio entre as árvores. Os sons de sua
fuga aos tropeções e em pânico ficaram para trás.
McGrath havia
saltado de seu esconderijo quase ao mesmo tempo em que atirara. Despercebido
pelos aterrorizados negros, e ele próprio mal consciente da matança que rugia
ao redor de si, correu pela clareira até a lastimosa figura branca que jazia
flacidamente ao lado da estaca amarrada com ferro.
- Constance! –
ele gritou, aninhando-a no peito.
Languidamente,
ela abriu os olhos turvos. Ele a abraçava apertado, desatento aos guinchos e
devastação ao redor deles. O reconhecimento cresceu naqueles olhos amáveis.
- Bristol! –
ela murmurou incoerentemente. Então, ela gritou e se agarrou a ele, soluçando
histericamente. – Bristol! Disseram-me que você estava morto! Os negros! Os
horríveis negros! Eles vão me matar! Iam matar De Albor também, mas ele
prometeu sacrificar...
- Não, garota,
não! – Ele abrandou-lhe os tremores frenéticos. – Está tudo bem agora... – Abruptamente,
ele ergueu o olhar para o rosto ensangüentado de pesadelo e morte, o qual
arreganhava os dentes. O grande macaco havia parado de dilacerar suas vítimas
mortas, e se movia furtivamente em direção ao casal vivo no centro da clareira.
O sangue corria do ferimento em seu crânio inclinado, o qual o havia
enlouquecido.
McGrath saltou
em sua direção, protegendo a jovem prostrada; sua pistola jorrou fogo, enfiando
um pedaço de chumbo no peito enorme, enquanto a fera atacava.
Ela continuou
avançando, e a confiança dele diminuiu. Bala após bala, ele mandou,
espatifando-as dentro de seus órgãos vitais, mas a coisa não parava. Agora, ele
lançava a arma descarregada em cheio no rosto de gárgula, sem efeito, e, com
uma guinada e rolando, ela o agarrou. Quando os braços gigantescos se fecharam
esmagadoramente ao seu redor, ele abandonou toda a esperança, mas, seguindo seu
instinto de luta até o fim, enfiou sua adaga até o cabo naquela barriga peluda.
Mas, enquanto
golpeava, sentiu um estremecimento percorrer aquela estrutura gigantesca. Os
enormes braços desabaram – e então, ele foi arremessado ao chão na última
convulsão mortal do monstro, e a coisa oscilou, seu rosto uma máscara de morte.
Morta em pé, ela se contorceu, desabou ao chão, estremeceu e jazeu imóvel. Nem
mesmo um macaco antropófago de Zambebwei conseguiria sobreviver àquela rajada,
à queima-roupa, de chumbo ininterrupto.
Quando o homem
se ergueu cambaleante, Constance se levantou e cambaleou dentro dos braços
dele, chorando histericamente.
- Está tudo
bem agora, Constance – ele ofegou, apertando-a contra si. – O Zemba está morto,
De Albor está morto, Ballville está morto e os negros fugiram. Não há nada que
nos impeça de ir embora agora. A Lua de Zambebwei foi o fim para eles. Mas é o
começo da vida para nós.
(*) –
Octoroon: Nome dado antigamente às
pessoas com 1/8 de sangue negro africano (Nota do Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.