O Cavaleiro do Trovão

(por Robert E. Howard)


Outrora, eu fui Coração de Ferro, o falcão de guerra comanche.

Isto que falo não é fantasia, nem sofro alucinações; falo com conhecimento seguro, da memória da medicina, a única herança que me foi deixada pela raça que conquistou meus ancestrais.

Isto não é sonho. Estou aqui, sentado em meu cargo eficientemente nomeado, 15 andares acima das ruas que trovejam e rugem com o tráfego da maior civilização artificial que o planeta já conheceu. Olhando pela janela mais próxima, vejo o céu azul somente entre os pináculos dos edifícios que se erguem acima desta Babilônia recente. Se eu olhar para baixo, só verei listras de concreto, sobre as quais flui um rio de humanidade aglomerada e máquinas com rodas. Aqui não há expansões oceânicas de campinas nuas e marrons sob um desnudo céu azul; aqui não há capim seco, ondulando diante dos pés invisíveis do também invisível povo dos ermos; aqui não há solidão, vastidão e mistério para velar a mente com a cegueira que tudo vê, e para construir sonhos, visões e profecia. Aqui, tudo é matéria reduzida à sua mais mecânica tangibilidade – poder que não pode ser visto, tocado nem ouvido; força e energia que esmagam todos os sonhos, e transformam homens e mulheres em autômatos chorões.

Sim, eu me sento aqui em meio a esta nova selva, de aço, pedra e eletricidade, e repito o inexplicável: fui Coração de Ferro, o Tirador de Escalpos, o Vingador, o Cavaleiro do Trovão.

Não sou mais escuro que muitos de meus fregueses e patrocinadores. Visto as roupas da civilização com a mesma facilidade que qualquer um deles. Por que eu não deveria? Meu pai vestia manta, touca de guerra e tanga indígena em sua juventude, mas nunca usei quaisquer roupas que não fossem as dos homens brancos. Falo Inglês – e também Francês, Espanhol e Alemão – sem sotaque, exceto por um leve acento do tipo que você encontra em qualquer branco de Oklahoma ou Texas. Atrás de mim, existem anos de vida acadêmica – Carlisle, Universidade do Texas, Princeton. Sou aceito sem questionamento no círculo social que escolhi – uma sociedade de homens e mulheres de pura descendência anglo-saxônica. Meus associados mal pensam em mim como um índio. Aparentemente, eu me tornei um homem branco e, no entanto...

Uma herança permanece. Uma lembrança. Não há nada vago ou ilusório nela. Assim como me lembro do meu passado como John Garfield, também me lembro de dias mais distantes, a vida e os atos de Coração de Ferro. Enquanto me sento aqui e olho para o novo ermo de aço, concreto e rodas, tudo parece subitamente tão tênue e irreal quanto a neblina que sobe das margens do Rio Vermelho, de manhã cedo. Vejo através dela e além, de volta às pardacentas e marrons Montanhas Wichita, onde nasci; vejo o capim seco ondulando sob o vento do sudoeste, e o alto cavalo branco de Quanah Parker avultando contra o céu azul como o aço. Vejo a cabana onde nasci, e os cavalos magros e vacas raquíticas pastando no capim ressecado pelo sol, as filas secas e dispersas de cereal no pequeno campo próximo – mas vejo além daquilo também. Vejo uma extensão de pradaria, marrom, seca e com uma vastidão de tirar o fôlego, onde não há alto cavalo branco, ou cabana, ou campo de cereal – apenas a grama marrom e ondulante, e tipis (*) de pele de búfalo; e um bronzeado guerreiro nu, com plumas se arrastando como o rastro de um meteoro brilhante, cavalgando como o vento na louca alegria da exultação selvagem.

Nasci na cabana de um branco. Nunca usei pintura de guerra, nem segui a trilha da guerra, nem dancei a dança do escalpo. Não sou capaz de empunhar uma lança ou atirar uma flecha num enorme búfalo rosnante. Qualquer jovem fazendeiro de Oklahoma consegue me superar em equitação. Sou, em suma, um homem civilizado, e mesmo assim...

No início de minha juventude, percebi uma inquietude que me atormentava, um desconforto e uma súbita insatisfação com minha existência. Eu lia os livros, estudava, e me aplicava nas coisas que os homens brancos estimam, com um zelo que gratificava meus professores brancos. Eles me apontavam com orgulho. Eles me diziam – e achavam que estavam me elogiando – que eu era um homem branco, tanto no pensamento quanto nos hábitos.

Mas a inquietude aumentava, embora ninguém suspeitasse disso, pois eu escondia isso por trás da máscara do rosto de um índio, como meus ancestrais, amarrados a uma estaca apache, escondiam sua agonia do olhar de seus inimigos exultantes.

Mas ela estava lá. Escondia-se no fundo de minha mente na sala de aula, quando eu escutava, ocultando meu desprezo inato pelo aprendizado que eu procurava a fim de desenvolver minha riqueza material. Ela coloria meus sonhos. E esses sonhos, obscuros na minha infância, ficaram mais vividos e distintos à medida que eu ficava mais velho – sempre um bronzeado guerreiro nu, destacado contra um fundo de tempestade, nuvem, fogo e trovão, cavalgando como um centauro, com seu chapéu de guerra ondulando ao vento, e a luz lívida brilhando na ponta de uma lança erguida.

Os instintos e superstições raciais começaram a se agitar em mim, diante desta visita repetida. Meus sonhos começaram a colorir minha vida que despertava, pois os sonhos sempre tinham uma grande importância na vida dos índios. Minha mente começou a se avermelhar. Comecei a perder o entendimento da existência de homem branco que eu escolhera para mim mesmo. A sombra de um gotejante machado de guerra indígena norte-americano começou a tomar forma, até pairar sobre mim. Havia uma necessidade em minha mente; um impulso desenfreado e indomável para ação violenta; uma inquietude que, eu comecei a temer, somente o sangue poderia saciar. Eu me agitava sobre minha cama à noite, com medo de dormir, temendo ser engolfado por esta onda inexorável dos negros reservatórios insondáveis da subconsciência racial. Se isto acontecesse, eu sabia que eu mataria súbita e selvagemente, e, de acordo com o entendimento do homem branco, insensatamente.

Não desejava matar homens que nunca me fizeram mal, e ser enforcado depois. Embora eu desprezasse – e ainda despreze – a filosofia e leis do homem branco, achava – e acho – desejáveis as coisas materiais de sua civilização, uma vez que a vida de meus ancestrais me é negada.

Tentei descarregar esta ânsia primitiva e assassina nos esportes. Mas achei que futebol americano, boxe e luta greco-romana só faziam aumentar o sentimento. Quanto mais ferozmente eu lançava meu corpo de músculos sólidos em combate, menos satisfação obtinha deste conflito artificial e mais eu ansiava por algo que eu não sabia o que era.

Por fim, procurei ajuda. Não fui a um médico ou psicólogo branco. Voltei à região onde nasci, e busquei o velho Pena de Águia, um homem da medicina que morava sozinho entre as colinas, e que desprezava amargamente as maneiras do homem branco. Em minhas roupas de homem branco, sentei-me de pernas cruzadas em seu tipi de velhas peles de búfalo e, enquanto conversava, eu mergulhava minha mão na panela de carne cozida de boi, a qual ficava entre nós dois. Ele era velho – não sei qual a idade que tinha. Seus mocassins eram desfiados e desgastados; sua manta, pardacenta e remendada. Ele participara do grupo ao qual o General MacKenzie capturara em Palo Duro e, quando o general baleou todos os cavalos deles, ele arruinara o velho Pena de Águia, pois a riqueza do homem da medicina estava na carne do cavalo, como a de todos da tribo.

Ele me ouviu do começo ao fim, sem dizer uma palavra, e depois ficou um longo tempo sentado e imóvel, a cabeça curvada sobre o peito, seu queixo enrugado quase tocando seu bracelete pawnee (**) de dentes. No silêncio, ouvi o vento noturno suspirar através dos pinheiros, e uma coruja piava fantasmagoricamente nas profundezas da floresta. Finalmente, ele levantou a cabeça e falou:

- Há uma memória medicinal que lhe incomoda. Este guerreiro que você vê é o homem que você outrora foi. Ele não vem para lhe incitar a enfiar um machado nas cabeças dos homens brancos. Ele vem em resposta a uma ferocidade em sua própria alma. Você vem de uma longa linhagem de guerreiros. Seu avô cavalgou com Lone Wolf, e com Peta Nocona. Ele levou muitos escalpos. Os livros dos homens brancos não conseguem lhe satisfazer. Se você não achar uma saída, sua mente ficará vermelha e os espíritos de seus ancestrais cantarão em seus ouvidos. Então, você matará, como um homem num sonho, sem saber o motivo, e os homens brancos lhe enforcarão. Não é bom para um comanche ser sufocado num laço até a morte. Ele não pode cantar sua canção de morte, sua alma não pode deixar seu corpo e viverá para sempre sob o chão com seus ossos apodrecendo.

“Você não pode ser um guerreiro. Esta época é passada. Mas há um meio de escapar dos maus trabalhos de sua medicina. Se você pudesse se lembrar – um comanche, quando morre, vai, por um tempo, para o Terreno da Caçada Feliz, para descansar e caçar o búfalo branco. Então, cem anos depois, ele renasce numa tribo – a menos que seu espírito seja destruído pela perda de seu escalpo. Ele não se lembra – ou, se lembra, apenas um pouco, como figuras se movendo numa névoa. Mas há uma medicina para fazê-lo lembrar – uma medicina poderosa e terrível, à qual nenhum homem fraco sobrevive. Eu me lembro. Eu me lembro dos homens cujos corpos minha alma habitou em eras passadas. Posso perambular na névoa e conversar com grandes pessoas, cujos espíritos ainda não renasceram – com Quanah Parker e com Peta Nocona, o pai dele, e com Camisa de Ferro, pai dele; com Satanta, o kiowa; Touro Sentado, o ogalalla, e muitos outros grandes.

“Se você for um bravo, poderá se lembrar, viver suas antigas vidas e ficar contente, conhecendo seu valor e bravura no passado”.

Ele estava me oferecendo uma solução – uma substituição para uma vida violenta em minha existência atual –, uma válvula segura de escape para a ferocidade inata que espreita no fundo de minha alma.

Devo lhe contar sobre o ritual medicinal, através do qual ganhei lembrança total dos meus passados? Sozinho nas colinas, tendo apenas o velho Pena de Águia como testemunha, lutei meu combate solitário contra uma grande agonia, com a qual os homens brancos só sonham em pesadelos. É uma medicina muito, muito antiga; uma medicina secreta, inimaginada até mesmo pelos oniscientes antropólogos. Ela sempre foi comanche; dela, os sioux tomaram emprestados os rituais de sua Dança do Sol; e, dos sioux, os arikaras se apossaram de parte dela para sua Dança da Chuva. Mas sempre foi um rito secreto, com apenas um homem da medicina para assistir – sem dança, nem multidões animadas de mulheres e bravos para inspirar um homem, para solidificar sua resolução ouvindo suas canções de guerra e bravatas... somente a total força silenciosa de sua resistência, lá na escuridão ventosa sob as antigas estrelas.

Pena de Águia fez cortes profundos nos músculos de minhas costas. As cicatrizes estão lá até hoje; um homem é capaz de pôr seus punhos fechados nos buracos. Ele cortou profundamente os músculos e, passando tiras de couro cru pelos talhos, amarrou-as. Então, lançou as tiras sobre um galho grosso de carvalho e, com uma força que apenas um homem da medicina poderia explicar, ele me puxou para o alto até meus pés ficarem pendurados bem acima do solo gramado. Amarrou as tiras e me deixou pendurado lá. Ele se agachou diante de mim e começou a bater um tambor, cujo alto era a pele de um chefe lipan. Ele o batia devagar e incessantemente, de modo que seu suave ribombar sinistro tocava um meio-tom incessante através da minha agonia, misturando-se com o vento noturno nas árvores.

A noite se arrastou, as estrelas mudaram, o vento morreu, voltou e morreu novamente. O tambor soou monotonamente sem parar, até o som ser mudado de vez em quando, e não era mais um tambor, e sim o trovejar de cascos descalços de cavalos tocando o tambor das campinas. O pio da coruja não era mais um pio, mas o grito de morte de guerreiros esquecidos. E a chama da agonia diante de meus olhos enevoados era um fogo que urrava, e ao redor do qual figuras negras saltavam e cantavam. Eu não mais balançava em tiras sangrentas num galho de carvalho, mas estava de pé contra uma estaca, com chamas envolvendo meus pés, e cantava minha canção de morte em desafio aos meus inimigos. Passado e presente se fundiam e combinavam fantástica e terrivelmente, e mil personalidades lutavam dentro de mim, até não existir tempo, nem espaço, nem vulto nem forma – apenas um caos que se torcia, enrolava e rodopiava de homens, coisas, acontecimentos e espíritos, até tudo ser destruído triunfantemente em nada por um cavaleiro bronzeado, pintado e exultante sobre um cavalo pintado, cujos cascos arrancavam faíscas das campinas. Eles percorriam uma cortina acobreada de pôr-do-sol, numa exultação bárbara, cavalo e cavaleiro, negros contra o brilho, e, com sua passagem, meu cérebro atormentado cedeu e não tive mais consciência de nada.

Na aurora cinza, enquanto eu pendia flácido e inconsciente, Pena de Águia amarrou fileiras de crânios de búfalo aos meus pés, e seu peso rasgou carne e tendões, de modo que caí até a grama do antigo carvalho. A dor daquele ferimento recente me reviveu, mas a agonia sem nome de carne retalhada e rasgada não era nada diante da grande percepção de poder que caiu sobre mim. Naquela hora escura antes do amanhecer, quando o tambor fundiu passado e presente, e a consciência natural que sempre luta com os sentidos mais obscuros havia sucumbido, o conhecimento que eu procurava se fizera meu. A dor foi necessária – grande dor, para conquistar a parte consciente do espírito que governa o corpo material. Aquilo fora um despertar e uma junção de sentidos e sensibilidades, e a memória permaneceu. Chame isso de psicologia, magia ou o que quiser. Não serei mais atormentado pela falta de algo, nem pelo impulso de violência, que era apenas um instinto arraigado, criado por mil anos de perambulação, caça e luta. Em minhas lembranças, pude encontrar alívio ao reviver os dias selvagens dos meus passados. Então...

Eu me lembro de muitas vidas passadas, vidas que se estendem cada vez mais para trás, até uma antiguidade que espantaria os historiadores. Isto eu verifiquei: cem anos não separavam as vidas de um comanche. Às vezes, o renascimento era quase instantâneo... às vezes, havia uma extensão de anos entre as vidas, por qual razão incompreensível, eu não sei.

Sei que o ego que agora habita o corpo de um cidadão americano, agora chamado John Garfield, animou muitas figuras selvagens e pintadas no passado – e um passado não muito distante, também. Por exemplo, em minha última aparição como um guerreiro no cenário do grande Sudoeste, eu me chamava Esatema, que cavalgou com Quanah Parker e Satanta, o kiowa, e foi morto na batalha de Adobe Walls, no verão de 1874. Houve um interlúdio entre Esatema e John Garfield, na forma de uma criança fraca e deformada, que nasceu durante a fuga da tribo desde a reserva em 1878 e, sendo inapta, foi deixada para morrer em algum lugar de Llano Estacado. Fui... mas por que procurar enumerar todas as vidas e corpos que foram meus no passado? É uma cadeia infinita de figuras pintadas, emplumadas e nuas, se estendendo para trás e para trás, até um passado imemorial – um passado tão distante e impensável, que eu mesmo hesito diante de sua entrada.

Certamente, meu leitor branco, não tentarei lhe sobrecarregar comigo. Pois minha raça é uma raça muito antiga; ela era antiga, quando morávamos nas montanhas ao norte de Yellowstone e viajávamos a pé, com nossos pertences escassos nas costas de cães. As pesquisas dos brancos param aqui, e é bom, para sua paz de espírito e suas teorias belamente ordenadas do passado da humanidade, que parem; mas posso lhe contar coisas que lhe tiraria da tolerância divertida, com a qual você está lendo esta narrativa de uma raça à qual seus ancestrais subjugaram. Eu poderia lhe contar sobre longas perambulações sobre um continente ainda cheio de terrores pré-humanos – mas chega.

Falarei-lhe de Coração de Ferro, o Tirador de Escalpos. De todos os corpos que foram meus, o de Coração de Ferro parece, de alguma forma, mais estreitamente ligado com o de John Garfield, do século 20. Era Coração de Ferro a quem eu via em meus sonhos; eram as lembranças de Coração de Ferro, obscuras e não-interpretadas, que assombravam minha infância e adolescência. Embora eu lhe fale de Coração de Ferro, devo falar como, e através dos lábios, de John Garfield; do contrário, a história seria um delírio incoerente e sem sentido para você. Eu, John Garfield, sou um homem de dois mundos, com uma mente que não é totalmente vermelha nem totalmente branca, mas com uma compreensão confusa de cada uma. Deixe-me interpretar para você a história de Coração de Ferro – não como o próprio Coração de Ferro lhe contaria, mas como John Garfield contará, para que você entenda.

Lembre-se, há muita coisa que não contarei. Há crueldades e selvagerias que eu, John Garfield, entendo como produtos naturais da vida que Coração de Ferro viveu, mas que você não entenderia, não conseguiria entender e das quais você ficaria horrorizado. Há outras coisas que passarei por alto na narrativa. O barbarismo tem seus defeitos e sofismas, não menos que a civilização. Seus sarcasmos e sofisticações são fracos e infantis ao lado da misantropia elementar, a sofisticação vital que vocês chamam de selvageria. Se nossas virtudes eram puras como um filhote recém-nascido de pantera, nossos pecados eram mais antigos que Nínive. Se... mas basta. Eu lhe falarei de Coração de Ferro e do Horror que ele enfrentou; um horror saído de um Tempo mais antigo que as ruínas esquecidas que jazem ocultas nas selvas de Iucatán.

Coração de Ferro viveu na parte final do século XVI. Os eventos que descreverei devem ter se passado em algum lugar por volta de 1575. Já éramos uma tribo de montadores de cavalos. Mais de um século antes, havíamos descido das Montanhas Shoshone para nos tornarmos homens das planícies e caçadores de búfalos, seguindo os rebanhos a pé, do Grande Lago do Escravo até o Golfo, lutando eternamente contra os crows, os kiowas, os pawnees e os apaches. Foi uma viagem longa e cansativa. Mas a chegada do cavalo mudou tudo aquilo – nos mudou, num curto espaço de tempo, de uma pobre raça de aventureiros ineptos, para uma nação de guerreiros invencíveis, percorrendo uma trilha vermelha de conquista desde as aldeias de Blackfoot, em Bighorn, até os assentamentos espanhóis de Chihuahua.

Os historiadores dizem que os comanches começaram a montar em 1714. Nessa época, já andávamos a cavalo havia mais de um século. Quando Coronado chegou, em 1541, procurando as fabulosas Cidades de Cibolo, já éramos uma raça de cavaleiros. As crianças eram ensinadas a montar antes de aprenderem a andar. Quando eu, Coração de Ferro, tinha quatro anos de idade, já montava meu próprio pônei e vigiava um rebanho de cavalos.

Coração de Ferro era um homem poderoso, de estatura média, robusto e musculoso, como muitos de sua raça. Vou lhe contar como adquiri o nome. Eu tinha um irmão um pouco mais velho que eu, cujo nome era Faca Vermelha. Afeição entre irmãos não é muito comum entre os índios, mas eu sentia por ele a intensa e ardente admiração e respeito de um jovem por um irmão mais velho.

Era uma época de migração racial. Ainda não havíamos nos assentado no grande Cânion de Palo Duro como terra natal de nossa raça. Nossa extensão setentrional ainda ia para o norte de Platte, embora estivéssemos invadindo as planícies de Llano Estacado, ao sul, empurrando os apaches à nossa frente numa série de batalhas remoinhantes.  Cento e vinte e cinco anos depois, quebramos o poder deles para sempre, numa batalha de sete dias no Rio Wichita, e os lançamos, quebrados e derrotados, para oeste, para dentro das montanhas do Novo México. Mas, na época de Coração de Ferro, eles ainda reivindicavam as Planícies do Sul como seu domínio, e a maioria de nossas guerras eram com os siouxes, e não com os apaches.

E foram os siouxes que mataram Faca Vermelha.

Eles nos pegaram perto da margem do Platte, a um quilômetro e meio de uma colina íngreme, coroada por vegetação mirrada. Corremos para aquela colina, com um pensamento entre nós. Pois esta não era uma incursão comum; era um ataque em massa; 300 guerreiros cavalgavam lá – tetons, brules e yanktons. Eles pretendiam cair sobre o acampamento comanche, ao sul. Se a tribo não fosse avisada, seria pega e esmagada pelos siouxes. Alcancei a colina, mas o cavalo de Faca Vermelha caiu com ele, e os siouxes o pegaram. Levaram-no à base da colina, em cujo topo, escondido das flechas, eu já estava pronto para mandar um sinal de fumaça. Os siouxes não tentaram galgar a colina sob a mira de minha lança e flechas, onde só poderia passar um homem de cada vez. Mas eles me gritaram que, se eu deixasse de mandar o sinal, dariam uma morte rápida a Faca Vermelha e continuariam sua cavalgada sem me fazerem mal.

Faca Vermelha gritou para mim:

- Acenda a fogueira! Avise nosso povo! Morte aos siouxes!

E assim, eles se puseram a torturá-lo – mas não dei atenção, apesar da pradaria nadar num mar vermelho ao meu redor. Eles a despedaçaram lentamente, membro a membro, enquanto ele ria deles e cantava sua canção de morte até seu próprio sangue sufocá-lo. Viveu muito mais do que seria possível um homem viver, cortado como ele foi. Mas não dei atenção, e a fumaça rolando até o céu avisou nossa gente distante.

Então, os siouxes viram que haviam perdido, montaram e cavalgaram dali, antes mesmo que a primeira nuvem de poeira ao sul indicasse a chegada de meus irmãos guerreiros.  Com a vida de meu irmão, comprei a vida da tribo, e depois disso ganhei um novo nome, e foi Coração de Ferro. E o sentido de minha vida, depois disso, foi pagar aos siouxes o débito que eu tinha com eles, e repetidas vezes eu o paguei, com flechas assobiantes, enfiando lanças; sim, e com fogo e pequenas facas retalhadoras – eu era Coração de Ferro, o Tirador de Escalpos, o Vingador, o Cavaleiro do Trovão. Pois, quando o rolar do trovão ecoava pelas campinas, fazendo os chefes mais valentes esconderem as cabeças, eu estava acostumado a galopar a cavalo, balançando minha lança e cantando meus feitos, sem me importar com deuses nem homens. Pois o medo morrera no meu coração, lá na pequena colina onde eu vira meu irmão morrer sob as facas dos tetons, e apenas por uma vez em toda a minha vida, ele acordou por um tempo. E é sobre esse despertar que eu lhe contarei.

No outono daquele ano de 1575 – como eu o calculo agora –, 40 de nós cavalgavam para o sul, para atacar os assentamentos espanhóis. Era setembro, mais tarde chamado de Lua Mexicana, quando os guerreiros cavalgaram para o sul, em busca de cavalos, escalpos e mulheres. Sim, era uma trilha antiga na época de Esatema, e muitas vezes eu a percorri a cavalo, em um corpo ou outro, mas, nos dias de Coração de Ferro, ela tinha menos de 40 anos.

Íamos atrás de cavalos, mas esta incursão em particular nunca alcançou o Rio Grande. Viramos para o lado, a fim de atacar os lipans no rio agora chamado de San Saba, e o sol estava nascendo. Mas éramos guerreiros jovens, ansiosos para golpearmos nossos antigos inimigos, e ainda não havíamos aprendido que cavalos eram mais importantes que mulheres, e mulheres mais importantes que escalpos. Pegamos os lipans de surpresa e fizemos uma magnífica matança entre eles, mas não sabíamos que havia sido feita trégua entre eles e os canibais tonkewas – inimigos sempre implacáveis para os comanches, até resolvermos aquela rixa de uma vez por todas no inverno de 1864, quando os derrotamos em sua reserva no Rio Clear Fork do Brazos. Esatema estava naquela luta, e ele – eu! – mergulhou suas mãos em sangue, com um entusiasmo que tinha suas raízes num passado obscuro e esquecido.

Mas aquele outono de 1575 estava muito distante da matança no Brazos. Seguindo os lipans derrotados que fugiam, corremos bem para dentro de uma horda de tonkewas e seus aliados wichitas.

Com os lipans, havia quase cinco mil guerreiros nos enfrentando – grande inferioridade numérica, até mesmo para comanches. Além disso, estávamos lutando numa região comparativamente arborizada, e lá estávamos em desvantagem, por sermos nascidos e criados nas planícies, e preferíamos lutar em locais abertos, onde havia espaço para nossas primitivas manobras de cavalos.

Quando nos livramos do matagal e fugimos para o norte, só havia sobrado 15 de nós na fuga, e os tonkewas nos acossaram por uns 150 quilômetros, mesmo depois que os lipans desistiram da perseguição. Como eles nos odiavam! Cada um deles estava ansioso para encher a barriga com a carne de um comanche, devidamente assada, pois acreditavam que transferiam o espírito guerreiro de um comanche para quem o devorasse; acreditávamos nisso também, e esta é a razão pela qual, além de nossa aversão natural a canibalismo, odiávamos os tonkewas tão rancorosamente quanto eles a nós.

Foi perto do Rio Double Mountain Fork Brazos, que encontramos os apaches. Havíamos atacado-os em nossa estrada sul e os mandado uivando para lamber suas feridas no chaparral, e eles estavam loucos por vingança. Eles a tiveram. Foi uma luta rápida em cavalos cansados e, dos 40 bravos que cavalgaram tão orgulhosamente para o sul, somente cinco de nós viveram para cruzar o Caprok – aquela áspera trincheira irregular que se assemelha a um degrau gigante de um lado a outro das planícies, galgando para um nível mais alto.

Eu poderia lhe dizer como os índios das planícies lutavam. Nenhuma luta como aquela fora vista neste planeta antes, e nunca será novamente, pois as condições que a produziram cessaram para sempre. Do Rio Milk ao Golfo, lutávamos igual – a cavalo, girando, disparando como vespões com ferrões mortais, lançando chuvas de flechas de corniso com pontas de sílex, atacando, cercando, recuando, ilusórios como vespas e perigosos como najas. Mas, neste encontro sob o Caprock, não houve luta neste sentido. Éramos 15 comanches contra 100 apaches, e fugimos, virando para lançar flechas ou enfiar lanças somente quando não podíamos mais evitá-los. Era quase pôr-do-sol, quando eles diminuíram a pressão – do contrário, a saga de Coração de Ferro teria terminado ali, e seu escalpo ido para a fumaça de um tipi apache, junto com os outros dez que os Tigres da Pradaria tiraram naquele dia.

Mas, de alguma forma, quando a noite caiu, nós nos dispersamos, escapamos deles e nos juntamos novamente sobre o Caprock – cansados, famintos, com aljavas vazias e montados em cavalos exaustos. Às vezes, caminhávamos e os guiávamos, o que mostra o estado em que estávamos, pois um comanche nunca andava, a não ser que a necessidade fosse a mais desesperada. Mas seguimos cambaleando, sentindo que já estávamos condenados, tateando nosso caminho para o norte, oscilando mais para oeste do que qualquer um de nós já tinha ido antes, na esperança de evitarmos nossos implacáveis inimigos. Estávamos no coração da região apache, e nenhum de nós tinha a esperança de alcançar vivo nosso acampamento no Cimarron. Mas prosseguíamos, avançando com dificuldade através de um ermo vasto e sem água, onde não crescia sequer cacto, e no qual nem mesmo o casco descalço de um cavalo deixava qualquer pegada no solo duro como ferro.

Deve ter sido perto da aurora que cruzamos a Linha. Mais do que isso, não sei dizer. Não havia uma linha de verdade lá, mas, com uma passada, todos nós sentimos – nós soubemos – que havíamos entrado num país diferente. Houve uma espécie de choque vago, sentido tanto pelos cavalos quanto pelos homens. Estávamos todos andando e guiando nossos cavalos, quando caímos de joelhos, como se derrubados pelo abalo de um terremoto. Os cavalos bufaram, empinaram, e teriam se libertado e disparado, se não estivessem fracos demais.

Sem fazer comentários – havíamos ido muito longe para nos importar com qualquer coisa –, nós nos levantamos e prosseguimos, notando que nuvens aparentemente haviam se formado no céu, pois as estrelas estavam indistintas e quase obscuras. Além disso, o vento, que sopra quase incessantemente por aquele planalto, havia parado subitamente, de modo que foi num estranho silêncio que cambaleamos através da planície, sempre na direção norte, até a aurora chegar lenta, sombria e obscuramente, e paramos e encaramos desvairadamente uns aos outros, como fantasmas na manhã posterior à destruição do mundo.

Sabíamos estar num país assombrado. De alguma forma, em algum momento na noite, havíamos cruzado uma linha que separava esta região estranha, assombrada e esquecida do resto do mundo natural. Como o restante da planície, estendia-se lúgubre, plana e monótona de horizonte a horizonte. Mas uma obscuridade pairava sobre ela, uma espécie de bruma escura, que era menos bruma do que uma diminuição da luz do sol. Quando este se ergueu, estava pálido e aquoso, mais parecendo a lua que o sol. De fato, havíamos entrado na Terra do Anoitecer, a terrível região ainda sussurrada na mitologia cherokee, embora eu não saiba como eles chegaram a tomar conhecimento dela.

Não conseguíamos ver além de seus limites, mas conseguíamos enxergar, à nossa frente, um agrupamento de tipis cônicos na planície. Montamos nossos cavalos cansados e cavalgamos devagar em direção a eles. Sabíamos instintivamente que não havia nada ali. Olhávamos para um acampamento de mortos. Silenciamos nossos cavalos, sob o céu cor de chumbo, com o ermo monótono e escurecido se estendendo para bem longe de nós. Era como olhar através de um vidro esfumaçado. Longe, a oeste de nós, avultava uma massa mais sólida de bruma, à qual nossa visão não conseguia penetrar.

Cotopah estremeceu e desviou os olhos, cobrindo a boca com a mão:

- Não é um local de medicina – ele disse. – Não é bom ficar aqui. – E ele fez um movimento involuntário para pôr sobre as costas a manta perdida durante a longa fuga diante dos tonkewas.

Mas eu era Coração de Ferro, e o medo estava morto em mim. Conduzi meu cavalo aterrorizado para o tipi mais próximo – e eram todos de pele de búfalo branco –, e puxei a aba para um lado. Então, embora eu não estivesse com medo, minha pele se arrepiou, pois vi o morador daquela tenda.

Havia uma lenda muito, muito antiga, a qual fora esquecida por mais de 100 anos. Durante a vida de Coração de Ferro, já era obscura, vaga e distorcida. Mas ela contava como há muito, muito tempo atrás, antes das tribos terem tomado forma como os homens as conhecem agora, um povo estranho e terrível veio do Norte, o qual estava então povoado por muitas tribos selvagens e temíveis. Eles foram para o sul, matando e destruindo tudo em seu caminho, até desaparecerem nas grandes planícies elevadas do sul. Os velhos diziam que eles caminhavam dentro de uma névoa e desapareceram. E aquilo havia sido há muito, muitíssimo tempo atrás, antes mesmo que os ancestrais dos comanches adentrassem o Vale de Yellowstone. Mas aqui, diante de meus olhos, jazia um do Povo Terrível.

Era um gigante, deitado sobre a pele de urso dentro do tipi; ereto, deveria medir mais de 2m10 de altura, e seus ombros poderosos e membros enormes tinham grandes músculos. Seu rosto era o de um bruto: lábios finos, mandíbula saliente e testa inclinada, com uma grenha emaranhada de cabelo desgrenhado. Ao lado dele, havia um machado com uma lâmina de dois gumes, a qual eu sabia ser de jade verde, encaixado na fenda de um tronco, feito de uma estranha madeira dura, a qual outrora crescia no norte distante, e era polida como mogno. Ao vê-lo, desejei possuí-lo, apesar dele ser pesado e ter cabo muito longo para ser facilmente usado a cavalo.

Enfiei minha lança na porta da pequena casa, e puxei a coisa para fora, rindo dos protestos de meus companheiros.

- Não cometi nenhum sacrilégio! – afirmei. – Aqui não é uma cabana da morte, onde guerreiros colocaram o corpo de um grande chefe. Este homem morreu dormindo, como todos eles. Por que ele jaz aqui há tantas eras, sem ser devorado por lobos nem gaviões, e sem sua carne apodrecer, eu não sei; mas toda esta terra é uma terra de medicina. Entretanto, pegarei este machado.

Foi justamente quando eu estava prestes a desmontar e segurá-lo, tendo puxado-o para fora da cabana, que um súbito grito nos fez girar – para encararmos doze pawnees totalmente pintados para a guerra! E um deles era uma mulher! Ela montava seu cavalo como um guerreiro, e brandia um machado-de-guerra com lâmina de sílex.

Mulheres guerreiras eram raras entre as tribos das planícies, mas existiam de vez em quando. Eu a reconheci instantaneamente: Conchita, a jovem guerreira dos pawnees do sul. Ela era realmente um pássaro de guerra, liderando um bando de guerreiros bem-selecionados em pilhagens arrojadas por todo o Sudoeste.

Até hoje, arde vividamente em minha memória o quadro que ela apresentava, quando girei e a vi: uma figura esguia, flexível e arrogante, vibrante de vida e ameaça, barbaricamente magnífica sobre seu corcel empinado e com os ferozes rostos pintados de seus guerreiros próximos a ela. Sua única roupa era uma curta saia com contas, que lhe chegava um pouco acima da metade das coxas. Seu cinto também tinha contas e segurava uma faca, numa bainha com contas. Seus pés esguios calçavam mocassins, e seu cabelo negro, arrumado em duas grossas tranças lustrosas, lhe caía sobre as costas flexíveis. Seus olhos escuros reluziam, e seus lábios vermelhos se abriam num grito de zombaria enquanto ela brandia seu machado em nossa direção, guiando seu corcel sem freio nem sela com uma equitação de tirar o fôlego em sua graça negligente. E ela era uma espanhola de sangue puro, filha de um capitão de Cortez, raptada da terra de Rio Grande pelos apaches quando bebê, e deles raptada por sua vez pelos pawnees do sul para ser criada como uma índia.

Tudo isso eu sei e soube no breve vislumbre quando girei, pois, com um grito estridente, ela se lançou contra nós, e seus bravos avançaram atrás dela. Eu digo “lançou”, pois esta é a palavra. Cavalo e cavaleira mais pareciam saltar sobre nós do que galoparem, de tão rápido que ela atacou.

A luta foi rápida. Como poderia ser diferente? Eram 12 homens, em cavalos relativamente descansados. Éramos cinco comanches cansados, em corcéis exaustos. O chefe alto, de rosto cicatrizado, veio correndo em minha direção. Eles não tinham nos visto na bruma, nem nós a eles, até ficarmos quase próximos. Vendo nossas aljavas vazias, eles vieram acabar conosco com suas lanças e porretes de guerra. O chefe alto estocou em minha direção, e girei meu cavalo, o qual respondeu à cutucada de meu joelho com suas últimas forças. Jamais um pawnee se igualava a um comanche numa luta aberta; nem mesmo um pawnee do sul. A lança passou assobiando perto do meu peito e, quando cavalo e cavaleiro passaram pulando por mim, levados pela própria velocidade, enfiei minha própria lança nas costas do pawnee, de modo que a ponta lhe saiu pelo peito.

Enquanto fazia isso, percebi outro guerreiro se lançando sobre mim pela esquerda, e tentei girar meu cavalo novamente enquanto soltava minha lança. Mas o cavalo estava totalmente exausto. Ele rolou como uma canoa afundando na rápida corrente do Missouri, e o porrete na mão do pawnee caiu com toda a força. Eu me lancei para o lado e salvei meu crânio de ser esmagado como um ovo, mas o porrete atingiu meu ombro, derrubando-me do cavalo. Como um gato, eu fiquei de pé, puxando minha faca, mas logo o quarto dianteiro de um cavalo me atingiu e derrubou estatelado. Foi Conchita quem me derrubou, e agora, enquanto eu, meio atordoado, me esforçava para me erguer sobre os joelhos, ela saltou levemente para baixo e ergueu seu machado de lâmina de sílex acima de minha cabeça.

Vi o leve brilho do gume, percebido de uma forma tão obtusa e atordoada que não pude evitar o giro descendente – e então, ela parou, com o machado erguido, olhando fixamente de olhos arregalados para algo além de mim. Impelido contra minha vontade, virei minha cabeça aturdida e olhei.

Os outros comanches estavam mortos, e cinco dos pawnees. Todos os vivos ficaram paralisados, exatamente como Conchita. Um, que se ajoelhava sobre as costas do cadáver de Cotopah, puxando-lhe o escalpo e com a faca entre os dentes, ficou agachado ali, como alguém subitamente petrificado, olhando na direção para a qual todas as cabeças estavam viradas.

Pois a névoa a oeste estava se erguendo, e pairaram à vista as paredes e tetos planos de uma estranha estrutura. Era semelhante, e estranhamente diferente, dos pueblos dos índios criadores de milho no oeste distante. Como eles, era feita de adobe, e a arquitetura era algo similar e, mesmo assim, havia nela uma estranha diferença. E dela saiu uma fileira de figuras estranhas – homens baixos e marrons, vestidos em roupas de plumas pintadas com cores brilhantes; homens que se pareciam um pouco com os índios pueblos. Estavam desarmados e traziam apenas cordas de couro cru e chicotes em suas mãos. Somente o da frente – um índio mais alto e magro – trazia um estranho disco em forma de escudo, feito de metal brilhante, na mão esquerda, e um malho de cobre na direita.

O curioso desfile parou diante de nós, e arregalamos os olhos – a jovem guerreira, com seu machado ainda suspenso; os pawnees, a pé ou a cavalo, feridos ou intactos, e eu, agachado sobre um joelho e sacudindo minha cabeça que rapidamente clareava. Então, Conchita, sentido súbito perigo, gritou uma ordem estridente e desesperada, e saltou, erguendo seu machado – e, quando os guerreiros se retesaram para o ataque, o homem com as plumas de abutre no cabelo bateu o gongo com a marreta, e um terrível som estrondoso saltou em nossa direção, como uma pantera invisível. Aquele som terrível e estrondoso era como o impacto de um raio, uma coisa tão terrível que era quase tangível. Conchita e os pawnees caíram, como se derrubados por um relâmpago; e os cavalos empinaram em agonia e correram em disparada. Conchita rolava no chão, gritando de agonia e tapando os ouvidos. Mas eu era Coração de Ferro, o comanche, e o medo dormia em meu coração.

Saí do chão num pulo, faca na mão, embora meu crânio parecesse explodir por causa daquela medonha rajada de som. Saltei diretamente para a garganta de Peito de Abutre. Mas minha adaga nunca entrou naquela pele marrom. Mais uma vez, o terrível gongo retiniu e mais uma vez, atingindo-me no meio de um pulo como uma força tangível, e me lançando para trás e para trás. E várias e repetidas vezes, a marreta se espatifou contra o gongo, de modo que a terra e o céu pareciam separados por sua reverberação ensurdecedora. Caí como um homem derrubado ao chão por um porrete de guerra.

Quando pude enxergar, ouvir e pensar novamente, percebi que minhas mãos estavam amarradas atrás de mim e que havia uma correia de couro cru ao redor do meu pescoço. Fui posto de pé, e nossos captores começaram a nos conduzir à força em direção à cidade. Eu a chamo assim, embora ela se parecesse mais com um castelo. Conchita e seus pawnees foram tratados da mesma maneira, exceto um que estava mal-amarrado. Eles o haviam matado, cortando-lhe a garganta com a própria faca dele e deixando-o jazendo entre os outros. Um deles pegou o machado que eu arrastara do tipi, o olhou curiosamente e então o lançou sobre o ombro. Ele deve ter usado ambas as mãos para fazê-lo.

Assim, avançamos cambaleando em direção ao castelo, meio estrangulados pelas cordas em nossos pescoços e ocasionalmente encorajados pela picada de um chicote de couro cru sobre nossas espáduas. Somente Conchita não era tratada assim, embora seu captor lhe puxasse brutalmente a corda quando ela andava devagar. Seus guerreiros estavam desfigurados. Eles eram os mais belicosos da nação Pawnee – uma ramificação que vivia nas cabeceiras do Cimarron, e que diferia, em muitas formas e costumes, dos seus irmãos ao norte. Eram mais típicos de uma cultura de planície do que seus parentes tribais, e nunca tiveram contato com os invasores que falam Inglês, pois a varíola os exterminou por volta de 1641. Usavam seus cabelos em longas tranças que se arrastavam pelo chão, como os Crows e Minetarees, e enchiam suas tranças com ornamentos de prata.

O castelo – eu o chamo na língua de John Garfield e em sua própria língua; Coração de Ferro teria se referido a ele como choupana – ficava no alto de uma pequena elevação, indigna de ser chamada de colina, a qual quebrava a monotonia da planície. Havia um muro ao seu redor, e um portão no muro. Numa das plataformas planas do teto, vimos uma figura alta de pé, envolta num manto brilhante de plumas, o qual brilhava mesmo na luz baixa. Um braço erguido fez um gesto imperioso, e a figura se moveu majestosamente através de uma portada e desapareceu.

Os pilares do portão eram de bronze, esculpidos com a serpente emplumada, e, diante daquela visão, os pawnees estremeceram e desviaram os olhos. Como todos os índios das planícies, eles se lembravam daquela abominação desde dias antigos, quando os grandes e terríveis reinos do Sul distante guerrearam com os do distante Norte.

Eles nos levaram através de um pátio, subimos um pequeno lance de escadas de bronze e entramos num corredor; e, uma vez lá dentro, a semelhança com os pueblos acabou. Mas sabíamos que outrora casas como esta foram erguidas em cidades poderosas, nas distantes selvas ocupadas por serpentes do Sul obscuro, pois, em nossas almas, agitavam-se os ecos de lendas antigas.

Adentramos uma grande sala circular, dentro da qual a luz fluía de um domo aberto. Um altar de pedra negra se erguia no centro da sala, com canais manchados de escuro ao longo das bordas. Encarando-o, sobre um estrado erguido, num trono de marfim abarrotado de peles de lontra-marinha, reclinava-se a figura que havíamos visto no teto.

Era um homem alto, magro e forte, com uma testa alta e um, rosto estreito, agudo e aquilino. Não havia piedade naquele rosto – apenas uma arrogância cruel e um cinismo zombeteiro. Era o rosto de um homem que se sentia acima das paixões humanas da ira, piedade ou amor.

Com cruel divertimento, ele passou seus olhos sobre nós, e os pawnees baixaram o olhar. Até Conchita, após corajosamente enfrentar seu olhar por um momento, estremeceu e baixou os olhos. Mas eu era Coração de Ferro, o Comanche, e o medo dormia em mim. Encarei aquele olhar penetrante sem piscar meus olhos negros. Ele me olhou demoradamente, e logo falou na linguagem dos índios pueblos, a qual, naquela época, era a língua comercial das pradarias e entendida pela maioria dos índios que montavam cavalos.

- Você parece uma fera selvagem. Há fogo de matança em seus olhos. Não está com medo?

- Coração de Ferro é um comanche – respondi desdenhosamente. – Pergunte aos siouxes se há algo que ele tema. O machado dele ainda está enfiado em suas cabeças. Pergunte aos apaches, kiowas, cheyennes, lipans, crows e pawnees! Se ele fosse esfolado vivo e sua pele fosse cortada em pedaços menores que a palma da mão de um homem, e cada pedaço usado para cobrir um guerreiro morto que ele matou, os mortos não-cobertos ainda estariam em maior número que os cobertos!

Mesmo em seu medo, os olhos dos pawnees arderam sanguinariamente diante desta bravata. O homem no trono riu sem alegria.

- Ele é resistente, é forte e é encorajado por sua vaidade – ele disse ao homem magro com o gongo. – Ele agüentará muito, Xototl. Ponha-o na última cela.

- E a mulher, lorde Tezcatlipoca? – disse Xototl, curvando-se profundamente, e Conchita estremeceu e encarou com os olhos arregalados a figura fantástica sobre o trono. Ela conhecia as lendas astecas, e aquele nome era o de uma das encarnações do sol; usado, sem dúvida, num espírito de blasfêmia pelo governante daquele castelo maligno.

- Coloque-a na Sala de Ouro – disse Tezcatlipoca, a quem chamavam de Senhor da Bruma. Curiosamente, ele deu uma olhada no machado de jade que havia sido colocado sobre o altar.

- Ora, é o machado de Guar, o chefe dos Nortistas! – ele disse. – Ele jurou que o machado que usava iria, algum dia, rachar meu crânio! Mas Guar e toda a sua tribo está morta em suas tendas de pele de caribu há mais séculos do que eu mesmo gosto de me lembrar, e meu crânio ainda contém a magia dos antigos! Deixem o machado ali e levem-nos! Conversarei com a garota daqui a pouco, e logo haverá diversão, como nos dias dos Reis Dourados!

Eles nos levaram para fora da câmara circular e através de uma série de salas grandes, onde mulheres marrons de pés felinos, beleza sinistra e vestidas apenas com seus ornamentos de ouro, se juntavam para olharem os prisioneiros, especialmente a jovem guerreira dos pawnees. E riam dela – uma risada doce, suave e maligna, peçonhenta como mel envenenado.

Adentramos um longo corredor, com portas pesadas se abrindo para ele, e, dentro de cada cela pela qual passávamos, havia um guerreiro. Eu era o último e, quando fui arrastado para dentro, vi o terror latejar nos lindos olhos de Conchita, enquanto ela era levada. Dentro da cela, fui lançado rudemente ao chão, e minhas pernas estavam amarradas com couro cru. Não me deram comida nem água.

Logo depois, a porta se abriu e ergui o olhar para ver o Senhor da Bruma me olhando.

- Pobre idiota! – ele murmurou. – Eu quase poderia ter pena de você! Besta sanguinária das pradarias, com suas fanfarronices e bazófias, e sua história de escalpos e matanças. Tolo! Logo você uivará por morte!

- Um comanche não grita na estaca – respondi, com meus olhos ardendo vermelhos com o desejo de matar. Meus músculos incharam e se emaranharam, até o couro cru cortar minha pele. Mas as cordas resistiam. Ele riu e saiu silenciosamente da minha cela, fechando a porta atrás de si. Lá fora, uma tranca bateu ruidosamente de volta ao seu lugar.

O que aconteceu depois, eu não vi nem soube, após um longo tempo. Mas Xototl levou Conchita para o alto de um lance de escadas e para dentro de uma câmara onde as paredes, teto e chão eram de ouro. As portas eram de ouro e havia barras de ouro nas janelas. Havia uma cama de ouro, coberta com peles de lontra marinha. Xototl a desamarrou e ficou encarando-a por um momento, com desejo ardente nos olhos. Logo, sombrio e de má-vontade, ele deu a volta e trancou a porta atrás dela, deixando-a só. Então, veio até ela o Senhor da Bruma – alto, caminhando a passos largos como um deus, com seu estranho manto de penas com cores ricas ao seu redor e, sobre sua cabeleira negra, uma faixa em forma de serpente dourada, cuja cabeça se erguia acima da testa dele.

Ele contou a ela que era um mago de um reino muito antigo, o qual estava em declínio antes mesmo que os bárbaros toltecas se aventurassem nele. Por suas próprias razões, ele havia ido para bem longe ao norte e fundado seu reino naquela planície quebrada, lançando sobre ela uma bruma de encantamento. Havia encontrado uma tribo de índios pueblos sitiada pelos invasores do Norte, e eles apelaram por sua ajuda, colocando-se totalmente em suas mãos. Ele havia feito magia e trazido morte para os nortistas. Mas os deixou em suas tendas, e disse ao povo pueblo que poderia trazê-los de volta à vida quando desejasse. Sob suas mãos cruéis, aquele povo havia diminuído até agora não ser mais do que cem pessoas, vivendo às suas ordens. Ele viera do sul, menos de mil anos antes. Não era imortal, mas era quase.

Então, ele a deixou; e, enquanto saía, a grande serpente que cumpria suas ordens deslizou silenciosa e malevolamente pelos corredores atrás dele; esta serpente havia devorado muitos dos súditos do Senhor da Bruma.

Enquanto isso, eu estava deitado em minha cela e os ouvi arrastarem para fora um pawnee e puxarem-no ao longo do corredor. Após um longo tempo, ouvi um medonho e quase animal grito de agonia, e me perguntei qual tormento poderia arrancar um grito da garganta de um pawnee do sul. Eu já os ouvira rir sob as facas dos esfoladores. Então, pela primeira vez, o medo acordou em mim – não medo físico, mas o medo no qual, sob aquele tormento desconhecido, eu poderia gritar e assim trazer vergonha à nação comanche. Fiquei ali deitado, ouvindo o fim dos pawnees. Cada guerreiro gritava, mas só o fazia uma vez.

Nesse meio tempo, Xototl havia deslizado para dentro do quarto de Conchita, seus olhos vermelhos de desejo.

- Você é macia e bonita – ele murmurou. – Estou cansado destas mulheres.

Ele a agarrou com os braços e a forçou para trás sobre a cama dourada. Ela não ofereceu resistência. Mas subitamente, a adaga que estivera no cinto dele estava na mão dela. Ela a enfiou nas costas dele, rápida e mortalmente. Antes que ele pudesse emitir o grito que lhe fluía até os lábios, ela o sufocou em sua garganta e, caindo com ele no chão, o esfaqueou outras vezes até ele jazer imóvel. Então, levantando-se como um gato, ele atravessou correndo a porta, pegando um arco, uma faca e um punhado de flechas enquanto seguia.

Num instante, ela estava em minha cela, curvada sobre mim, seus olhos grandes ardendo.

- Rápido! – ela sibilou. – Ele está matando o último dos guerreiros! Prove que você é um homem!

A faca era afiada, mas a lâmina era fina e as cordas de couro cru, grossas. Ela continuou de forma persistente, finalmente serrando-a. Logo eu estava de pé, a faca em meu cinto, arco e flechas na mão.

Saímos furtivamente da cela e nos movemos cautelosamente corredor abaixo, para ficarmos cara-a-cara com um guarda surpreso. Deixando minhas armas caírem, eu o agarrei pelo pescoço antes que ele pudesse gritar e, levando-o ao chão, quebrei seu pescoço com minhas mãos nuas, antes que ele pudesse soltar sua lança e usar sua faca.

Levantando-nos, nos esgueiramos corredor abaixo, em direção à sala circular do domo aberto. Diante dela, encontrava-se a gigantesca serpente, que se enroscou ameaçadoramente à nossa aproximação. Rápida e silenciosamente, eu me movi para a frente e enfiei uma única flecha no olho do réptil, e avançamos cautelosamente, passando por suas medonhas convulsões de morte.

Entramos furtivamente na sala abobadada, e vimos o último pawnee morrer num estranho e hediondo tormento. Quando o Senhor da Bruma se virou para nos olhar, lancei uma flecha diretamente em seu peito. Ela resvalou sem feri-lo. Fiquei paralisado de surpresa, quando uma segunda flecha se comportou de forma similar.

Lançando meu arco para o lado, saltei em direção a ele com a faca na mão, e rolamos pela câmara, procurando um aperto mortal. Ele estava só; seus dependentes haviam sido despachados para outra parte do castelo, enquanto ele praticava seu mal.

Minha faca não conseguia penetrar na estranha roupa justa que ele usava sob seu manto de penas e, apesar de todos os meus esforços, não consegui lhe alcançar o pescoço ou rosto. Finalmente, ele me lançou para o lado e se preparou para invocar sua magia, quando Conchita o deteve com um grito:

- Os mortos se levantam das tendas dos Nortistas. Eles marcham em direção ao pueblo!

- Mentira! – ele gritou, ficando pálido. – Eles estão mortos! Não podem se levantar!

- No entanto, eles vêm! – ela gritou, com uma risada selvagem.

Ele hesitou, voltou-se em direção a uma janela e depois girou de volta ao perceber o truque. Ali perto, jazia o machado de Guar O Nortista, uma poderosa arma de outra era. No instante de sua hesitação, eu a agarrei e, girando-o para o alto, saltei para a frente. Quando ele se voltou novamente para mim, o medo lhe surgiu repentinamente nos olhos, enquanto o machado lhe partiu o crânio, derramando seus miolos no chão.

O trovão estrondeou e rolou, e bolas de fogo assolaram a planície; o pueblo estremeceu. Conchita e eu corremos em busca de segurança, os gritos dos prisioneiros ecoando em nossos ouvidos. E, quando a aurora se ergueu sobre as planícies, nenhuma névoa apareceu. Havia apenas uma tênue vastidão banhada de sol, na qual alguns ossos jaziam embolorados.

- Agora iremos até meu povo – eu disse, pegando-lhe o pulso. – Há alguns cavalos que não fugiram.

Mas ela tentou se desvencilhar de mim, gritando desdenhosamente:

- Cão comanche! Você só está vivo por causa de minha ajuda! Siga seu caminho! Você só serve para ser escravo de um pawnee!

Não houve hesitação. Eu a peguei pelas tranças lustrosas e lancei de bruços ao chão. Colocando um pé sobre suas espáduas que se contorciam, surrei seus desnudos quadris e coxas, sem fúria e sem pena, até ela gritar por piedade. Então, eu a puxei de pé e ordenei que me seguisse para capturar os cavalos. Ela o fez chorosamente, esfregando vários hematomas doloridos o tempo todo. Logo, estávamos cavalgando para o norte, em direção ao acampamento no Canadian, e minha bela mulher parecia contente, agora que ela estava no lombo de um cavalo. E percebi que eu havia encontrado uma mulher digna até mesmo de Coração de Ferro, o Cavaleiro do Trovão.


FIM



(*) – Tipis: Cabanas cônicas, onde viviam os índios dos EUA (Nota do Tradutor);

(**) – Pawnee: Tribo nativa norte-americana, que vive atualmente no estado de Nebraska e no norte do estado de Kansas (N. do T.).


Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da Hungria.


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