(por Robert E. Howard)
Como um lobo
que espiona seus caçadores, John Reynolds observava seus perseguidores. Ele se
deitava dentro de um matagal no declive, um inferno de ódio fervendo em seu
coração. Havia cavalgado duramente; no alto da elevação atrás dele, onde a trilha
indistinta serpenteava para o alto saindo do Vale Perdido, estava seu mustang de olhos cansados, a cabeça
pendurada, tremendo após a longa corrida. Abaixo dele, a apenas sete metros de
distância, estavam seus inimigos, recém-chegados da matança de seus parentes.
Na clareira
acima de Ghost Cave, eles haviam desmontado e discutiam uns com os outros. John
Reynolds conhecia a todos com um ódio antigo e amargo. A sombra negra da rixa
estava entre eles.
As rixas do
antigo Texas haviam sido negligenciadas por cronistas que cantaram os feudos
das montanhas do Kentucky, embora os homens que haviam inicialmente se instalado
no Sudoeste fossem da mesma raça daqueles montanheses. Mas havia uma diferença:
na região montanhosa, as rixas se arrastavam por gerações; na fronteira do
Texas, elas eram curtas, ferozes e aterradoramente sangrentas.
O feudo entre
os Reynolds e os McCrill era longo, como os do Texas; cinqüenta anos haviam se
passado desde que o velho Esaú Reynolds apunhalou Braxton McCrill até a morte,
com sua faca de mato, no saloon em
Antelope Wells, numa disputa sobre direitos territoriais. Durante 50 anos, os
Reynolds e seus parentes – os Brills, Allisons e Donnellys – estiveram em
guerra aberta com os McCrills e seus parentes – os Killihers, os Fletchers e os
Ords. Houvera emboscadas nas colinas, assassinatos em áreas abertas e duelos
entre pistoleiros nas ruas das pequenas cidades. Cada clã havia roubado por atacado
o gado do outro. Capangas armados e foras-da-lei, convocados por ambos os lados
para participarem por dinheiro, haviam espalhado um reinado de terror e
anarquia por todas as cercanias. Colonos evitavam a região dilacerada pela
guerra; o feudo se tornou um obstáculo sangrento no caminho do progresso e
desenvolvimento, um retrocesso selvagem que estava desmoralizando a região
inteira.
John Reynolds
pouco se importava. Havia crescido naquele ambiente da rixa, e ela havia se
tornado uma ardente obsessão para ele. A guerra havia cobrado um tributo medonho
em ambos os clãs, mas o dos Reynolds era o que havia mais sofrido. John era o
último dos Reynolds lutadores, pois Esaú, o velho e sombrio patriarca que
governava o clã, jamais voltaria a andar ou a montar numa sela, com suas pernas
paralisadas pelas balas dos McCrill. John tinha visto seus irmãos mortalmente
baleados em emboscadas, ou mortos em terríveis lutas.
Agora, o
último golpe havia quase acabado com o clã que diminuía. John Reynolds
praguejava ao pensar na armadilha na qual entraram, no saloon em Antelope Wells; os inimigos ocultos haviam aberto fogo
sem aviso. Lá, haviam caído seu primo Brill Donnelly; o filho de sua irmã, o
jovem Jonathon Brill; seu cunhado Job Allison, e Steve Kerney, o assalariado
capanga armado. Como ele próprio havia aberto seu caminho e saído aos empurrões
do tumulto, intocado pela destruidora saraivada de chumbo, John Reynolds mal
sabia. Eles o haviam pressionado tão rigorosamente, que ele não teve tempo de
montar seu cavalo baio de patas longas; mas havia sido forçado a pegar a primeira
montaria que alcançara – o mustang de
olhos cansados e veloz, mas mal-descansado, do falecido Jonathon Brill.
Ele havia se
distanciado de seus perseguidores por um tempo; havia alcançado as colinas
inabitadas e dado a volta para o misterioso Vale Perdido, com seus matagais
silenciosos e desagregadas colunas de pedra, onde ele pretendia dobrar de volta
sobre as colinas e alcançar a região dos Reynolds. Mas seu mustang lhe havia falhado. Ele o amarrara no alto da encosta, fora
da vista do fundo do vale e rastejou de volta... para ver seus inimigos
cavalgarem vale adentro. Havia cinco deles: o velho Jonas McCrill, com a
rosnadela perpétua lhe torcendo os lábios lupinos; Saul Fletcher, com sua barba
negra e o caminhar manco e arrastado que uma queda, na sua juventude, de um
selvagem mustang, lhe havia deixado;
os irmãos Bill Ord e Peter Ord, e o fora-da-lei Jack Solomon. A voz de Jonas
McCrill chegou até o observador silencioso:
- E eu digo pra vocês que ele tá escondido em algum lugar deste vale. Ele tava cavalgando aquele mustang
que não tinha força. Aposto que o cavalo deu prumo pra fora nele, a tempo dele chegar aqui.
- Bom – veio a
voz de Saul Fletcher –, o que tamos
esperando? Por que não começamos a caçar ele?
- Não tão
rápido – resmungou o velho Jonas. – Lembrem-se: é John Reynolds quem tamos perseguindo. Temos bastante tempo.
Os dedos de
John Reynolds se enrijeceram na coronha de sua Colt 45. Havia dois cartuchos
intactos no cilindro. Ele empurrou o cano através dos caules do matagal à sua
frente, seu polegar puxando para trás a culatra. Seus olhos cinzas se
estreitaram e ficaram opacos como gelo ao verem o longo cano azul. Num
instante, ele pesou seu ódio e escolheu Saul Fletcher. Todo o ódio em sua alma
se centralizou, por um instante, naquele rosto brutal de barba negra, e no
passo manco que ele ouvira naquela noite em que jazia ferido num curral
sitiado, com o cadáver crivado de balas do irmão ao lado, e enfrentava Saul e
seus irmãos.
O dedo de John
Reynolds se dobrou, e o estrondo do tiro ecoou nas colinas adormecidas. Saul
Fletcher oscilou, lançando sua barba negra para o alto, como um bêbado, e
desabou prostrado ao chão. Os outros, com a rapidez de homens acostumados a
guerras de fronteira, se esconderam atrás das rochas e seus tiros de resposta
rugiram de volta, enquanto vasculhavam cegamente a inclinação. As balas
atravessaram os matagais, assobiando sobre a cabeça do matador invisível. No
alto da elevação, o mustang, fora da
vista dos homens no vale, mas assustado com o barulho, relinchou de forma estridente
e, empinando, partiu as rédeas que o prendiam e fugiu subindo a trilha da
colina. O trovejar de seus cascos nas pedras diminuía à distância.
O silêncio
reinou por um instante, e então se ouviu a voz encolerizada de Jonas McCrill:
- Eu disse a
vocês que ele tava cavalgando aqui! Vamo pra lá; ele pode tar longe.
A estrutura
esguia do velho lutador se ergueu de trás da rocha onde ele se refugiara.
Reynolds, sorrindo ferozmente, fez mira firme; então, algum instinto de
auto-preservação lhe deteve a mão. Os outros saíram em direção à clareira.
- O que ainda tamos esperando? – gritou o jovem Bill
Ord, com lágrimas de fúria em seus olhos. – Aquele coiote baleou Saul aqui, e tá cavalgando rapidamente pra longe
daqui, enquanto ficamos ao redor, tagarelando. Eu vou... – Ele se dirigiu ao
seu cavalo.
- Você vai me
escutar! – rugiu o velho Jonas. – Avisei todos vocês que fossem devagar, mas
vocês queriam ir vorazmente, feito um bando de abutres, e agora Saul tá caído e morto ali. Se a gente não
tomar cuidado, John Reynolds matará todos nós. Eu não disse pra vocês que ele tava aqui? Também parou pra descansar
seu cavalo. Ele não pode ir longe. Isto aqui é uma longa caçada, como eu disse
pra vocês no começo. Deixem ele ganhar uma boa vantagem. Por mais que ele fique
longe de nós, temos que ter cuidado com emboscadas. Ele vai tentar voltar pra
área dos Reynolds. Bom, vamo atrás
dele devagar e com calma, e deixar ele confuso o tempo todo. Estaremos
cavalgando dentro de um grande semicírculo, e ele não vai conseguir fugir de
nós... não naquele mustang cansado.
Simplesmente vamos seguir e pegar ele, quando seu cavalo não puder fazer mais
nada. Eu sei muito bem onde ele vai ser encurralado: no Cânion do Cavalo Cego.
- Vamos ter
que fazer ele passar fome, então – resmungou Jack Solomon.
- Não, não
vamos – sorriu o velho Jonas. – Bill, você volta a Antelope e pega cinco ou
seis bastões de dinamite. Depois, pegue um cavalo descansado e siga nossa
trilha. Se o pegarmos antes que ele alcance o cânion, tudo bem. Se ele nos
derrotar lá e se esconder, esperaremos por você, e então o exploda.
- E quanto a
Saul? – resmungou Peter Ord.
- Tá morto – grunhiu Jonas. – Não há nada
que possamos fazer por ele agora. Não temos tempo de pegar ele de volta. – Ele
olhou para o céu, onde pontos negros já giravam contra o fundo azul. Seu olhar
se desviou para a entrada fechada da caverna, no penhasco íngreme que se erguia
perpendicularmente até a inclinação na qual a trilha serpenteava para o alto.
- Abriremos
aquela caverna e vamos colocar ele dentro dela – ele disse. – Empilharemos as
rochas novamente, e os lobos e urubus não vão pegar ele. Pode demorar vários
dias, até retornarmos.
- Aquela
caverna é assombrada – Bill Ord murmurou inquieto. – Os injuns (*) sempre disseram que, se você botar um homem
morto lá dentro, ele sairá caminhando à meia-noite.
- Cala a boca
e ajude a levantar o pobre Saul – Jonas falou bruscamente. – Temos aqui um
morto de sua própria família e seu assassino cavalgando cada vez mais longe a
cada segundo, e você fala de assombração!
Enquanto
erguiam o cadáver, Jonas puxou seu revólver de seis balas e cano longo, e
enfiou a arma no cinto.
- Pobre Saul –
ele grunhiu. – Tá realmente morto. O
chumbo atravessou o coração dele. Morto antes que atingisse o chão, eu acho.
Bem, vamo fazer aquele maldito Reynolds
pagar por isso.
Carregaram o
morto até a caverna e, colocando-o no chão, tiraram as pedras que bloqueavam a
entrada. Estas foram logo lançadas para o lado, e Reynolds viu os homens
carregarem o corpo para dentro. Eles saíram quase imediatamente, sem sua carga,
e montaram seus cavalos. O jovem Bill Ord girou para baixo do vale e
desapareceu entre as árvores; os demais foram a meio-galope ao longo da trilha
sinuosa que subia para dentro das colinas. Passaram a 30 metros do refúgio
dele, e John Reynolds apertou-se à terra, temendo ser descoberto. Mas não
olharam em sua direção. Ele ouvia o diminuir do som de seus cascos sobre a
trilha rochosa; então, o silêncio se instalou novamente sobre o antigo vale.
John Reynolds
se levantou cautelosamente, olhou ao redor de si, como um lobo caçado o faz, e
então avançou rapidamente inclinação abaixo. Ele tinha um propósito bem
definido em mente. Um único cartucho intacto era sua única munição; mas, ao
redor do cadáver de Saul Fletcher, havia um cinto bem preenchido com cartuchos
calibre 45.
Enquanto ele
tirava as pedras amontoadas na entrada da caverna, pairava na sua mente as
curiosas especulações que a caverna e o próprio vale sempre despertavam nele.
Por que os índios o haviam nomeado O Vale dos Perdidos – nome ao qual os
brancos abreviaram para Vale Perdido? Por que os homens vermelhos o evitavam?
Outrora na memória de homens brancos, um bando de kiowas, fugindo da vingança
de Bigfoot Wallace e seus nômades, haviam se refugiado lá e passado por maus
bocados. Os sobreviventes da tribo haviam fugido, contando histórias
desvairadas nas quais assassinato, fratricídio, insanidade, vampirismo,
carnificina e canibalismo haviam desempenhado grandes papéis. Então, seis
homens brancos, irmãos de sobrenome Stark, haviam se estabelecido em Vale
Perdido. Haviam reaberto a caverna à qual os kiowas haviam bloqueado. O horror
caíra sobre eles e, em uma noite, cinco morreram pelas mãos uns dos outros. O
sobrevivente havia emparedado a entrada da caverna novamente, e partido ninguém
sabe para onde. Pelos assentamentos, correra a notícia de um homem chamado
Stark, que havia chegado por entre os remanescentes daqueles kiowas que outrora
viveram no Vale Perdido e, após uma longa conversa com eles, havia cortado a
própria garganta com sua faca de mato.
Qual era o
mistério do Vale Perdido, senão uma teia de mentiras e lendas? Qual o
significado daquelas pedras em ruínas, as quais, dispersas por todo o vale e
meio ocultas na vegetação das inclinações, tinham uma curiosa simetria,
especialmente ao luar, de modo que algumas pessoas acreditavam quando os índios
juravam que elas eram colunas semi-destruídas de uma cidade pré-histórica, a
qual outrora se erguia no Vale Perdido? Antes que se esmigalhasse numa pilha de
pó cinza, o próprio Reynolds havia visto uma caveira desenterrada, na base de
um penhasco, por um explorador errante. Não parecia caucasiana nem indígena –
uma caveira estranha e pontiaguda, a qual, exceto pelo formato dos ossos da
mandíbula, poderia ter sido a de algum desconhecido animal ante-diluviano.
Tais
pensamentos passaram vaga e momentaneamente pela mente de John Reynolds,
enquanto ele desalojava os matacões, aos quais os McCrills haviam recolocado
negligentemente – apenas firme o bastante para evitar que um lobo ou ave de
rapina entrasse lá. A maioria dos seus pensamentos era ocupada pelos cartuchos
no cinto de Saul Fletcher morto. Uma chance de lutar! Uma garantia de vida! Ele
ainda abriria seu caminho para fora das colinas; traria mais capangas armados e
degoladores para contra-atacarem. Inundaria toda a área com sangue, e
arruinaria a região com sangue, se por esses meios ele pudesse ser vingado.
Durante anos, ele havia sido o administrador na rixa. Quando até mesmo o velho
Esaú havia enfraquecido e desejado paz, John Reynolds havia mantido acesa a
chama do ódio. O feudo havia se tornado o único motivo que o impelia, seu único
interesse na vida e razão para a existência. Os últimos matacões caíram para o
lado.
John Reynolds
entrou na semi-escuridão da caverna. Não era grande, mas as sombras pareciam se
amontoar lá em substância quase tangível. Lentamente, seus olhos se
acostumaram, e uma exclamação involuntária lhe irrompeu dos lábios – a caverna
estava vazia! Ele praguejou perplexo. Havia visto os homens carregarem o
cadáver de Saul Fletcher para dentro da caverna e saírem novamente, de mãos
vazias. Mas não havia cadáver sobre o chão poeirento da caverna. Ele se dirigiu
ao fundo desta, olhou para a parede reta e lisa, curvou-se e examinou o plano
chão de rocha. Seus olhos agudos, forçando contra a escuridão, perceberam uma
mancha fosca de sangue na rocha. Ela parava abruptamente na parede do fundo, e
não havia mancha na parede.
Reynolds se
curvou para mais perto, sustentado por uma mão apoiada contra a parede de
pedra. E, súbita e terrivelmente, a sensação de solidez e estabilidade
desapareceu. A parede cedeu sob sua mão que o apoiava; uma parte girou para
dentro, lançando-o de ponta-cabeça para dentro de uma abertura negra que
surgia. Sua rapidez felina não conseguiu salvá-lo. Era como se as sombras que
se escancaravam esticassem mãos tênues e invisíveis, para puxá-lo de
ponta-cabeça para dentro da escuridão.
Ele não caiu
muito. Suas mãos estendidas bateram no que pareciam ser degraus entalhados na
pedra, e nelas ele se agarrou e atrapalhou por um instante. Então, ele se endireitou
e voltou para a abertura pela qual havia caído. Mas a porta secreta havia se fechado,
e somente uma lisa parede de pedra encontrou seus dedos que tateavam. Ele lutou
contra um pânico crescente. Como os McCrill souberam a respeito desta câmara
secreta, ele não sabia dizer, mas era bem evidente que eles haviam colocado o
corpo de Saul Fletcher nela. E ali, capturado como um rato, encontrariam John
Reynolds quando retornassem. Então, um sorriso sombrio curvou os lábios finos
de Reynolds. Quando abrissem a porta secreta, ele estaria escondido na
escuridão, enquanto eles estariam destacados contra a luz fraca da caverna mais
externa. Onde poderia encontrar uma emboscada mais perfeita? Mas ele primeiro
precisava encontrar o corpo e pegar os cartuchos.
Ele girou para
tatear seu caminho escada abaixo, e seu primeiro passo o levou até um chão
plano. Era uma espécie de túnel estreito, ele percebeu, pois, embora não pudesse
tocar o teto, um passo à direita ou esquerda e sua mão estirada encontrou uma parede
aparentemente muito plana e simétrica para ter sido trabalho da natureza. Ele
avançou devagar, tateando na escuridão, mantendo contato com as paredes e na
expectativa momentânea de se esbarrar no corpo de Saul Fletcher. E, como isso
não aconteceu, um horror vago começou a crescer em sua alma. Os McCrills não
haviam ficado na caverna por tempo suficiente para carregar o corpo para tão
longe na escuridão. Em John Reynolds, crescia uma sensação de que os McCrills
não haviam entrado no túnel – e de que eles não sabiam da sua existência.
Então, onde, em nome da sanidade, estaria o cadáver de Saul Fletcher?
Ele parou
bruscamente, puxando para fora seu revólver de seis tiros. Algo vinha da outra
extremidade do túnel – algo que caminhava ereta e pesadamente.
John Reynolds
notou que era um homem, usando botas altas de cavaleiro; nenhum outro calçado
faz o mesmo som pomposo. Ele ouviu o tinido das esporas. E uma onda negra de
horror sem nome se moveu lentamente no pensamento de John Reynolds, quando
ouviu aquela aproximação de passos claudicantes, e se lembrou da noite quando
ficou cercado naquele velho curral, com o irmão mais jovem morrendo ao seu
lado, e ouviu passos claudicantes e rastejadores circulando interminavelmente o
seu refúgio, na noite em que Saul Fletcher guiou seus lobos e procurou um meio
de atacá-lo pelas costas.
Será que o
homem havia sido apenas ferido? Estes passos soavam rígidos e aos tropeços,
como os de um homem ferido. Não – John Reynolds já vira muitos homens morrerem;
sabia que sua bala havia entrado direto no coração de Saul Fletcher, possivelmente
atravessando o coração de um lado a outro e, com certeza, matando-o instantaneamente.
Além disso, ouvira o velho Jonas McCrill declarar que o homem estava morto.
Não... Saul Fletcher jazia sem vida em algum lugar nesta caverna negra. Era
outro homem manco quem vinha daquele túnel silencioso.
Agora as
passadas pararam. O homem estava à sua frente, separado por apenas alguns
passos de total escuridão. O que havia naquilo para acelerar o pulso de ferro
de John Reynolds, que havia encarado destemidamente a morte por incontáveis
vezes? O que fazia sua pele se arrepiar e sua língua se congelar no céu da
boca? Acordar instintos adormecidos de medo, como um homem que sente a presença
de uma serpente à qual não vê, e fazê-lo sentir que, de alguma forma, o outro
sabia de sua presença com olhos que perfuravam a escuridão?
No silêncio,
John Reynolds ouviu o rápido pulsar do próprio coração. E, com subtaneidade
assustadora, o homem atacou. Os ouvidos atentos de Reynolds escutaram o
primeiro movimento daquela investida, e ele atirou à queima-roupa. E ele gritou
– um grito terrível, semelhante ao de um animal. Braços pesados se fecharam
sobre ele, e dentes invisíveis lhe morderam a pele. Mas, no frenesi espumante
de medo, sua própria força era sobre-humana. Pois, no brilho do tiro, ele vira
um rosto barbado com boca mole e pendente, e arregalados olhos mortos. Saul Fletcher! O morto, vindo do
inferno!
Como num
pesadelo, Reynolds entrou numa batalha demoníaca no escuro, onde o morto
tentava derrubar o vivo. Ele foi arremessado, com uma força de despedaçar os
ossos, contra as paredes de pedra. Lançado ao chão, o horror silencioso se
agachou como um vampiro sobre ele, seus dedos horrendos lhe afundando na
garganta.
Naquele
pesadelo, John Reynolds não teve tempo para duvidar de sua própria sanidade. Ele
sabia que estava lutando contra um homem morto. A pele de seu inimigo era fria
com uma viscosidade úmida de cripta. Sob a camisa rasgada, ele havia sentido o
redondo buraco de bala, empastado de sangue coagulado. Nenhum som saíra dos
lábios frouxos.
Sufocante e
ofegante, John Reynolds puxou as mãos estranguladoras para o lado e lançou a
coisa para longe. Por um instante, a escuridão os separou novamente; então, o
horror se arremessou contra ele outra vez. Quando a coisa atacou, Reynolds o
agarrou às cegas e conseguiu o aperto de luta que desejava; e, lançando toda a
sua força por trás do ataque, arremessou o horror de ponta-cabeça, caindo sobre
ele com todo o seu peso. A espinha de Saul Fletcher se quebrou como um galho
podre, e as mãos dilaceradoras amoleceram e os membros estirados relaxaram.
Alguma coisa fluiu do corpo flácido e sussurrou através da escuridão, como um
vento fantasmagórico, e John Reynolds instintivamente soube que, finalmente,
Saul Fletcher estava realmente morto.
Ofegante e
abalado, Reynolds se levantou. O túnel continuava em escuridão total. Mas lá
dentro, na direção da qual o cadáver andante viera furtivamente, sussurrava um
fraco palpitar, que dificilmente era um som, mas tinha em seu pulsar uma
obscura música sobrenatural. Reynolds estremeceu, e o suor lhe congelou no
corpo. O morto jazia aos seus pés na densa escuridão e, fracamente, lhe chegava
aos ouvidos aquele eco insuportavelmente doce, insuportavelmente maligno, como
tambores diabólicos batendo fracamente e à distância nas cavernas obscuras do
inferno.
A razão o
instigava a voltar – a lutar contra aquela porta simulada, até lhe quebrar a pedra,
se a força humana pudesse arrebentá-la; mas ele percebeu que a razão e sanidade
lhe foram deixadas para trás. Um único passo o havia mergulhado, de um mundo normal
com realidades materiais, para um reino de pesadelo e loucura. Ele decidiu que
estava louco, ou então morto e no inferno. Aqueles tambores indistintos o
arrastavam; eles puxavam lugubremente as cordas de seu coração. Eles o repeliam
e preenchiam sua alma com conjecturas sombrias e monstruosas, mas seu chamado
era irresistível. Ele lutou contra o louco impulso de guinchar, lançar
selvagemente os braços para o alto e sair correndo do túnel negro, como um
coelho que foge da toca de uma marmota para as presas da cascavel que o
aguarda.
Tateando no
escuro, encontrou seu revólver e, ainda tateando, ele o carregou com os
cartuchos do cinto de Saul Fletcher. Não sentia mais aversão agora, ao lhe
tocar o corpo, do que sentiria ao tocar qualquer carne morta. Qualquer que
fosse o prazer profano que animava o cadáver, ele o havia abandonado quando o
quebrar da espinha havia desunido os centos nervosos e rompido as raízes do
sistema muscular.
Logo, de
revólver na mão, John Reynolds seguiu túnel adentro, arrastado por uma força
que não conseguia compreender, em direção a um destino que não conseguia imaginar.
O pulsar dos
tambores só aumentou um pouco de volume, enquanto ele avançava. Ele não sabia a
que distância ele estava abaixo das colinas, mas o túnel se inclinava para
baixo e ele havia avançado muito. Freqüentemente, suas mãos encontravam
portadas – corredores que guiavam para fora do túnel principal, ele acreditava.
Finalmente, percebeu que havia deixado o túnel e saído num vasto espaço aberto.
Não conseguia ver nada, mas, de alguma forma, sentia a vastidão do local. E, na
escuridão, uma luz fraca apareceu. Ela pulsava como os tambores, diminuindo e
aumentando ao ritmo da pulsação, mas crescia devagar, lançando um brilho
fantástico que parecia mais verde do que qualquer cor que Reynolds já tivesse
visto – mas não era de fato verde, nem qualquer outra cor sensata ou terrena.
Reynolds se
aproximou dela. Ela se alargou. Lançou um brilho tremeluzente sobre o liso chão
de pedra, iluminando mosaicos fantásticos. Ela lançou seu esplendor até as
sombras que pairavam no alto, mas ele não conseguiu ver o teto. Agora, via o
teto, alto e abobadado, pairando bem acima dele como o céu escuro da
meia-noite, e paredes altas, brilhantes e escuras, se erguendo a alturas
tremendas, com suas bases orladas por sombras acocoradas, das quais brilhavam
outras luzes, pequenas e cintilantes.
Ele viu a
fonte da iluminação: um estranho altar de pedra entalhada, no qual brilhava o
que parecia ser uma jóia gigante, de cor não-terrena como a luz que emitia. Uma
chama esverdeada jorrava dela; ela ardia como um pedaço de carvão, mas não era
consumida. Logo atrás dela, uma serpente emplumada se erguia de seus rolos, uma
fantasia esculpida em alguma clara substância cristalina, cujas cores naquela
luz fantástica nunca eram as mesmas, mas pulsavam, tremeluziam e mudavam à
medida que os tambores – agora a todos os lados dele – pulsavam e palpitavam.
Súbito, algo
vivo se moveu ao lado do altar, e John Reynolds, embora na expectativa de algo,
recuou. A princípio, ele achou que um enorme réptil houvesse deslizado ao redor
do altar; logo, viu que aquilo se erguia ereto como um homem. Ao se deparar com
o brilho ameaçador de seus olhos, atirou à queima-roupa e a coisa caiu como um
boi abatido, seu crânio despedaçado. Reynolds girou, quando um sussurro
sinistro cresceu em seus ouvidos – pelo menos, estas coisas podiam ser mortas –,
e então, verificou o rosto erguido. As sombras haviam se movido da base das
paredes, e se moviam ao seu redor num círculo largo. E, embora à primeira
vista, possuíssem aparência de homens, não eram humanas.
A luz
sobrenatural palpitava e dançava sobre eles, e lá no fundo das trevas mais profundas,
tambores malignos sussurravam eternamente seu acompanhante meio-tom. John
Reynolds ficou horrorizado com o que viu.
Não foram suas
figuras anãs que o fizeram estremecer; nem mesmo seus pés e mãos de feitio
não-natural – eram suas cabeças. Ele agora sabia de qual raça era o crânio encontrado
pelo explorador. Como aquela, estas cabeças eram pontiagudas e disformes,
curiosamente achatadas nos lados. Não havia sinal de orelhas, como se seus
órgãos auditivos estivessem, assim como os de uma serpente, sob a pele. Os
narizes eram como o focinho de um píton; a boca e mandíbulas, muito menos
humanas na aparência do que sua lembrança do crânio o fizera pensar. Os olhos
eram pequenos, cintilantes e reptilianos. Os lábios escamosos, contorcidos para
trás, mostravam presas pontiagudas, e John Reynolds sentiu que sua mordida
poderia ser tão mortal quanto a de uma cascavel. Não usavam nenhuma roupa, nem
traziam qualquer arma.
Ele se
contraiu para lutar até a morte, mas ninguém o atacou. O povo-serpente se
sentou de pernas cruzadas ao seu redor num grande círculo e, além do círculo,
ele os viu se aglomerarem. E agora ele sentia uma agitação na consciência, um
bater quase tangível de vontades sobre seus sentidos. Estava distintamente
consciente de uma invasão concentrada aos seus pensamentos mais internos, e
percebeu que estes seres estranhos estavam tentando transmitir suas ordens e
vontades a ele, através do pensamento. Em qual plano comum ele poderia encontrar
estas criaturas inumanas? Mas, de alguma forma obscura, estranha e telepática,
elas o fizeram entender algo de seu significado; e ele percebeu, com um choque
pavoroso, que, o que quer que essas coisas fossem agora, elas outrora haviam
sido, pelo menos em parte, humanas – do contrário, jamais seriam capazes de
atravessar deste modo o golfo entre o totalmente humano e o totalmente bestial.
Ele entendeu
ter sido o primeiro homem vivo a adentrar seu reino mais interno, o primeiro a
olhar para a serpente brilhante, a Terrível Inominável, que era mais antiga que
o mundo; que, antes de morrer, saberia tudo o que havia sido negado aos filhos
dos homens sobre aquele vale misterioso; que poderia levar este conhecimento
para a Eternidade consigo, e discutir estes assuntos com aqueles que haviam
partido antes dele.
Os tambores
sussurravam, a estranha luz saltitava e tremeluzia, e, diante do altar, veio um
que parecia ser o líder – um velho monstro, cuja pele era como o couro esbranquiçado
de uma velha serpente e que usava, em sua cabeça pontiaguda, um diadema
dourado, incrustado por estranhas gemas. Ele se curvou e rezou para a serpente
emplumada. Então, com algum tipo de instrumento afiado que deixava uma marca
fosforescente, ele desenhou uma enigmática figura triangular no chão diante do
altar e, na figura, ele espalhou um tipo de pó reluzente. Dela, se ergueu uma
fina espiral que cresceu até uma gigantesca serpente sombria, emplumada e
aterrorizante, e então mudou e sumiu até se tornar uma nuvem de fumaça esverdeada.
Esta fumaça se encapelou para o alto, diante dos olhos de John Reynolds, e
ocultou o anel com olhos de serpente, o altar e a própria caverna. Todo o
universo se dissolveu em fumaça verde, na qual cenários titânicos e paisagens
estranhas se moviam pesadamente e olhavam de soslaio.
Abruptamente,
o caos se cristalizou. Ele olhava para um vale que não reconhecia. De alguma
forma, percebeu que estava na Vale Perdido, mas nele se erguia uma cidade
gigantesca, de pedra pouco brilhante. Jonh Reynolds era um homem de terras
estranhas e locais ermos. Ele nunca tinha visto as grandes cidades do mundo;
mas sabia que, em nenhum lugar do mundo atual, tal cidade se erguia até o céu.
Suas torres e
ameias eram as de uma era estranha. Seu contorno lhe frustrava o olhar, com
seus aspectos não-naturais; era uma cidade de loucura para o olho humano
normal, com suas sugestões de dimensões estranhas e princípios anormais de
arquitetura. Através dela, se moviam figuras estranhas – humanas, mas de uma
humanidade definitivamente diferente da dele próprio. Vestiam túnicas; suas
mãos e pés eram menos anormais, suas orelhas e bocas mais semelhantes às de
humanos normais; mas havia um parentesco indiscutível entre eles e os monstros
da caverna. Ele aparecia no curioso crânio pontiagudo, embora este fosse menos
pronunciado e bestial no povo da cidade.
Ele os viu nas
ruas sinuosas e em suas construções colossais; e estremeceu diante da inumanidade
de suas vidas. Muito do que faziam estava além da sua compreensão; ele não
conseguia entender suas ações e motivos mais do que um selvagem zulu entenderia
os eventos da Londres moderna. Mas entendeu que este povo era muito antigo e
maligno. Ele os viu fazerem rituais que congelaram seu sangue com horror,
obscenidade e blasfêmias além de seu entendimento. Sentiu náuseas com uma
sensação de contaminação. De alguma forma, percebeu que esta cidade era
remanescente de uma era antiquada – que este povo representava os sobreviventes
de uma época perdida e esquecida.
Então, um novo
povo entrou em cena. Sobre as colinas, chegaram homens vestidos em couro e
plumas, armados com arcos e armas de ponta de sílex. Eram, Reynolds sabia,
índios – e, no entanto, não eram índios como ele os conhecia. Tinham olhos oblíquos,
e suas peles eram mais amareladas que cor-de-cobre. De alguma forma, sabia que
eles eram os ancestrais nômades dos toltecas, perambulando e conquistando em
sua longa jornada, antes de se estabelecerem em vales montanhosos bem ao sul e
desenvolverem seus próprios e especiais tipo e civilização. Ainda estavam
próximos à sua primal linhagem-raiz mongol, e ele ofegou diante da gigantesca
alameda de tempo que esta percepção evocava.
Reynolds viu
os guerreiros se moverem como uma onda gigantesca sobre as paredes altas. Viu
homens defenderem as torres e os matando de forma estranha a eles. Viu os invasores
recuarem novamente e novamente, e logo avançarem novamente com a cega
ferocidade dos primitivos. Esta estranha cidade maligna, preenchida por pessoas
misteriosas de uma ordem diferente, estava no caminho deles, e eles não
conseguiriam passar sem a destruir.
Reynolds ficou
maravilhado com a fúria dos invasores, que perdiam suas vidas como água,
enfrentando a cruel e terrível ciência de uma civilização desconhecida com pura
coragem e o poder da força humana. Seus corpos se alastravam pelo planalto, mas
nem todas as forças do inferno conseguiam mantê-los recuados. Rolavam como uma
onda até as bases das torres. Eles escalavam as paredes contra espadas, flechas
e formas medonhas de morte; alcançavam os parapeitos e enfrentavam seus
inimigos corpo-a-corpo. Porretes e machados venciam as lanças arremetidas e as
espadas que eram enfiadas. As figuras altas dos bárbaros se sobressaíam sobre
as formas menores dos defensores.
O inferno
vermelho bramiu na cidade. O cerco se tornou uma batalha nas ruas, a batalha se
tornou uma debandada e a debandada uma carnificina. A fumaça se ergueu e pairou
em nuvens, sobre a cidade condenada.
O cenário
mudou. Reynolds olhava para paredes carbonizadas e arruinadas, das quais a
fumaça ainda se erguia. Os vencedores haviam passado adiante; os sobreviventes
se reuniram num templo manchado de vermelho, diante de seu estranho deus – uma
serpente cristalina, num fantástico altar de pedra. Sua era havia terminado; o
mundo deles desmoronou subitamente. Eram os remanescentes de uma diferente raça
extinta. Não podiam reconstruir sua maravilhosa cidade, e temiam ficar dentro
de seus muros destruídos – uma presa para cada tribo que passasse. Reynolds os
viu pegarem seu altar e deus, e seguirem um velho homem vestido num manto de
penas e usando um aro de ouro incrustado de gemas. Ele os guiou através do vale
até uma caverna oculta. Eles entraram e, comprimindo-se através de uma brecha
estreita na parede dos fundos, adentraram uma vasta rede de cavernas que
formavam vários túneis sob as colinas. Reynolds os viu trabalhar, explorando
esses labirintos, os escavando e ampliando, aplanando as paredes e chão,
ampliando a brecha que leva à caverna exterior e colocando lá uma porta
engenhosamente enfeitada, de modo que parecesse ser parte da parede sólida.
Então, um
panorama sempre mutável indicou a passagem de muitos séculos. Aquele povo vivia
em cavernas e, à medida que o tempo passava, eles se adaptavam cada vez mais ao
seu ambiente, cada geração saindo menos freqüentemente para a luz do sol.
Aprenderam a obter sua comida da terra, de maneiras estremecedoras. Suas
orelhas ficaram menores, seus corpos mais típicos de anões, e seus olhos mais
felinos. John Reynolds ficou horrorizado enquanto via aquela raça mudando
através das eras.
Do lado
externo do vale, a cidade abandonada desmoronou e se transformou em ruínas,
tornando-se presa de líquen, ervas daninhas e árvores. Homens vieram e
meditaram brevemente entre estas ruínas – guerreiros mongóis altos, e escuros e
inescrutáveis povos pequenos, a quem os homens chamavam Os Construtores de Túmulos.
E, à medida que os séculos passavam, os visitantes se ajustavam cada vez mais
ao tipo de índio como ele conhecia, até que finalmente os únicos homens que
chegavam eram apenas homens vermelhos e pintados, com pés furtivos e emplumados
rabos-de-cavalo. Ninguém ficava por muito tempo naquele local assombrado, com
suas ruínas misteriosas.
Enquanto isso,
nas cavernas, o Povo Antigo se abrigava, e ficava estranho e terrível. Eles caíam
cada vez mais na escala da humanidade, esquecendo primeiramente sua linguagem
escrita, e gradualmente sua fala humana. Mas, de outras formas, eles estenderam
as fronteiras da vida. Em seu reino noturno, descobriam outras cavernas, mais
antigas, as quais os levavam para as próprias entranhas da terra. Aprenderam
segredos perdidos, há muito esquecidos ou nunca conhecidos por homens,
adormecidos no escuro bem abaixo das colinas. A escuridão contribui para o
silêncio, de modo que eles perderam gradativamente o poder de fala, com uma
espécie de telepatia tomando o lugar desta. E, a cada ganho medonho, eles
perdiam mais de seus atributos humanos. Suas orelhas desapareceram, seus
narizes ficaram em forma de focinho; seus olhos ficaram incapazes de agüentar a
luz do sol, e até mesmo das estrelas. Haviam há muito abandonado o uso do fogo,
e a única luz que usavam era os brilhos sobrenaturais evocados de sua
gigantesca jóia no altar, e mesmo deste eles não precisavam. Mudaram em outros
aspectos. John Reynolds, enquanto assistia, sentiu o suor frio lhe brotar no
corpo. Pois a transmutação gradual do Povo Antigo era horrível de se ver, e
muitas e hediondas eram as formas que se moveram entre eles, antes que seu
molde e natureza definitivos evoluíssem.
Mas se lembravam
da feitiçaria de seus ancestrais, e adicionaram a ela sua própria magia negra,
desenvolvida bem abaixo das colinas. E finalmente atingiram o pico daquela
necromancia. John Reynolds teve idéias vagas e horripilantes dela em vislumbres
fragmentários dos tempos passados, quando os feiticeiros do Povo Antigo haviam
enviado seus espíritos para fora de seus corpos adormecidos, para sussurrarem
coisas malignas nos ouvidos de seus inimigos.
Uma tribo de
guerreiros altos e pintados adentrou o vale, carregando o corpo de um grande
chefe, morto numa guerra tribal.
Longos eons
haviam se passado. Da antiga cidade, apenas colunas dispersas se erguiam entre
as árvores. Um deslizamento de terra havia deixado exposta a entrada da caverna
externa. Os índios a encontraram e colocaram lá dentro o corpo de seu chefe,
com suas armas quebradas ao lado dele. Então, eles bloquearam a entrada da
caverna com pedras, e iniciaram sua viagem, mas a noite os pegou no vale.
Durante todas
as eras, o Povo Antigo não havia encontrado outra entrada ou saída para os
buracos, exceto a pequena caverna externa; era a única porta entre seus domínios
sombrios e o mundo que eles haviam abandonado há muito. Agora, eles chegavam à
caverna exterior pela porta secreta, cuja luz fraca eles podiam suportar; e o
cabelo de John Reynolds se arrepiou diante do que viu. Pois pegaram o cadáver,
deitaram-no diante do altar da serpente emplumada e um velho feiticeiro se
deitou sobre ele, sua boca contra a boca do morto. Acima deles, os tambores
pulsavam, e estranhos fogos saltitavam, e os devotos mudos com cantos sem som
invocavam deuses esquecidos antes do nascimento do Egito, até vozes inumanas
berrarem na escuridão externa e o varrer de asas monstruosas encher as sombras.
E, lentamente, a vida saiu do feiticeiro e agitou os membros do chefe morto. O
corpo do bruxo rolou flacidamente para o lado, e o cadáver do chefe se ergueu
rapidamente; e, com passos de marionete e vítreos olhos arregalados, ele
atravessou o túnel escuro e a porta secreta para dentro da caverna exterior.
Suas mãos mortas lançaram as pedras para os lados, e o Horror caminhou altivamente
à luz das estrelas.
Reynolds o viu
caminhar rapidamente sob as árvores estremecidas, enquanto as criaturas da
noite fugiam grulhando. Ele o viu adentrar o acampamento dos guerreiros. O
resto foi horror e loucura, enquanto a coisa morta perseguia seus
ex-companheiros e os dilacerava membro a membro. O vale se tornou um matadouro
antes que um dos bravos, vencendo seu terror, se voltasse sobre seu perseguidor
e lhe cortasse a espinha com um machado de pedra.
E, enquanto o
cadáver morto duas vezes caía contorcido, Reynolds viu, no chão da caverna
diante da serpente entalhada, a forma de um feiticeiro despertar e reviver,
quando seu espírito lhe retornou do cadáver ao qual animara.
A alegria muda
de demônios encarnados sacudiu a escuridão rastejante dos buracos, e Reynolds
recuou ao ver aqueles demônios nocivos exultarem com seu poder recém-adquirido,
para distribuírem horror e morte aos filhos dos homens, seus antigos inimigos.
Mas a notícia
se espalhou de clã a clã, e os homens não vieram mais ao Vale dos Perdidos. Por
muitos séculos, ele jazeu sonhando e abandonado sob o céu. Então, vieram
guerreiros pele-vermelha montados, pintados com as cores dos kiowas – guerreiros
do norte, que nada sabiam do vale misterioso. Montaram seus acampamentos nas próprias
sombras daqueles monólitos sinistros, os quais agora não passavam de pedras sem
forma.
Colocaram o
morto deles na caverna. E Reynolds viu os horrores que aconteceram quando o
morto saiu vorazmente pela noite, para matar e devorar – e para arrastar vítimas
aos gritos, para dentro das cavernas anoitecidas e o destino demoníaco que as aguardavam.
As legiões do inferno estavam soltas no Vale dos Perdidos, onde o caos reinava,
e o pesadelo e a loucura andavam altivamente. Aqueles que continuaram vivos e
mentalmente sãos fecharam a caverna, e cavalgaram para fora das colinas, como homens
cavalgando para fora do inferno.
Mais uma vez,
o Vale Perdido ficou desolado sob as estrelas. Então, outra vez, a chegada de
homens quebrou a solidão primordial, e a fumaça se ergueu entre as árvores. E
John Reynolds prendeu sua respiração com um estremecimento de horror, quando
viu que eram homens brancos, vestidos em peles curtidas de tempos passados –
seis deles, tão parecidos, que ele percebeu serem irmãos.
Ele os viu
derrubarem árvores e construírem uma cabana na clareira. Ele os viu caçarem nas
montanhas e começarem a limpar um campo para plantar cereais. E, o tempo todo,
ele viu as criaturas nocivas das colinas aguardando com ânsia vampiresca no escuro.
Não podiam olhar desde suas cavernas, com seus olhos noturnos, mas, através de
sua feitiçaria perversa, sabiam de tudo o que acontecia no vale. Não podiam
sair à luz com os corpos que tinham, mas aguardavam com a paciência da noite e
dos lugares sossegados.
Reynolds viu
um dos irmãos encontrar a caverna e abri-la. Ele entrou, e a porta secreta se
abriu. O homem adentrou o túnel. Não conseguia ver, na escuridão, as formas
babantes de horror que se moviam furtivamente ao seu redor, mas em pânico
súbito, ele ergueu seu rifle carregado e atirou cegamente, gritando quando o
clarão lhe mostrou as formas infernais que o cercavam. Na total escuridão que
se seguiu ao tiro inútil, eles investiram, sobrepujando-o pelo poder de seu
número e afundando suas presas de serpente em sua carne. Enquanto morria, ele
cortou meia-dúzia deles em pedaços com sua faca de mato, mas o veneno surtiu
efeito rapidamente.
Reynolds os
viu arrastarem o cadáver diante do altar; viu novamente a terrível transmutação
do morto, que se levantou com um sorriso vazio e caminhou para fora. O sol
havia se posto numa agitação de vermelho fosco. A noite caíra. Para a cabana
onde seus irmãos dormiam, envoltos em seus cobertores, o morto chegou
furtivamente. Silenciosamente, as mãos que tateavam abriram a porta. O horror
se agachava na escuridão, seus dentes expostos brilhando, seus olhos mortos
vidrados à luz das estrelas. Um dos irmãos se agitou e resmungou, e então se
sentou e encarou a figura imóvel na porta. Ele chamou o nome do morto... e
então, guinchou horrivelmente – o horror saltou...
Da garganta de
John Reynolds irrompeu um grito de horror intolerável. Subitamente, as figuras
desapareceram, com a fumaça. Ele estava no brilho sobrenatural diante do altar,
os tambores pulsando de forma suave e maligna, os rostos demoníacos o cercando.
E agora, dentre eles, rastejava sobre o ventre, como a serpente que era, aquele
que usava o aro com gemas, o veneno lhe pingando das presas nuas. De forma
asquerosa, ele deslizou em direção a John Reynolds, que lutava contra a vontade
de saltar sobre a coisa repugnante e lhe esmagar a vida. Não havia escapatória;
ele poderia mandar suas balas para perfurar o enxame e dizimar tudo o que
estivesse à frente do cano da arma, mas não seriam nada ao lado das centenas
que o encurralavam. Ele morreria ali, na luz pálida, e eles mandariam seu
cadáver desajeitado para fora dali, emprestando-lhe uma paródia de vida com o
espírito do feiticeiro, exatamente como haviam feito com Saul Fletcher. John
Reynolds ficou tenso como aço, quando seu instinto lupino de viver se ergueu acima
do labirinto dentro do qual ele caíra.
E subitamente,
sua mente humana se ergueu acima daqueles parasitas que o ameaçavam, quando foi
eletrificado por um rápido pensamento que parecia uma inspiração. Com um feroz
e inarticulado grito de triunfo, ele saltou de lado no exato momento em que o
monstro investiu. Este o errou, estatelando-se de ponta-cabeça, e Reynolds
tirou a serpente esculpida do altar e, erguendo-a, apontou nela o cano de sua
pistola engatilhada. Ele não precisava falar. Na luz moribunda, seus olhos
ardiam loucamente. O Povo Antigo recuou. Diante deles, jazia um, cujo crânio
pontiagudo a pistola de Reynolds havia despedaçado. Eles sabiam que um apertar
de seu gatilho iria estilhar seu deus fantástico em pedaços brilhantes.
Por um tenso
espaço de tempo, a cena ficou congelada. Então, Reynolds sentiu a silenciosa
rendição deles. Liberdade em troca de seu deus. Estava novamente nele que estes
seres não eram realmente bestiais, vez que bestas de verdade não conhecem deuses.
E este conhecimento era o mais terrível, pois significava que estas criaturas haviam
evoluído para um tipo nem bestial nem humano, um tipo para fora da natureza e
sanidade.
As figuras
serpentinas recuaram a ambos os lados, e a luz que diminuía cresceu novamente.
Quando ele subiu o túnel, elas estavam bem próximas dele e, no brilho dançante
e incerto, ele não conseguia ter certeza se andavam como um homem ou se rastejavam
como serpentes. Teve uma vaga impressão de que o caminhar deles era uma horrenda
mistura de ambos. Desviou-se bem para o lado, para evitar o vulto estatelado
que havia sido Saul Fletcher, e assim, com o cano de sua arma pressionado
contra a brilhante imagem frágil em sua mão esquerda, ele chegou ao curto lance
de degraus que guiava até a porta secreta. Lá, eles pararam. Ele se virou para
encará-los. Cercavam-no num fechado semi-círculo, e ele entendeu que temiam
abrir a porta secreta, com medo de que ele corresse com a imagem deles até a
luz do sol, onde não poderiam seguir. Nem ele largaria o deus, até que a porta
fosse aberta.
Finalmente,
eles se afastaram vários metros, e ele cautelosamente pôs a imagem no chão aos
seus pés, onde ele poderia agarrá-la num instante. Como abriram a porta, ele
nunca soube, mas ela se escancarou e ele recuou devagar pelos degraus, sua arma
apontada para seu deus brilhante. Havia quase alcançado a porta – uma mão
estirada agarrou a beirada –, quando a luz saiu subitamente e a corrida
começou. Uma explosão vulcânica de esforço o lançou para trás, através da
porta, a qual já estava se fechando. Enquanto saltava, esvaziou sua arma cheia
nos rostos demoníacos que subitamente encheram a abertura negra. Elas se
dissolveram numa ruína vermelha e, enquanto ele corria loucamente da caverna
exterior, ouviu o suave fechar da porta secreta, isolando aquele reino de horror
do mundo humano.
No brilho do
sol ocidental, John Reynolds cambaleou como um bêbado, apalpando pedras e
árvores como um louco que agarra realidades. A tensão aguda, que se apossara
dele enquanto lutava por sua vida, o abandonou e o tornou uma concha trêmula de
nervos despedaçados. Um insano riso abafado lhe irrompeu dos lábios e estalou,
para lá e para cá, numa risada medonha à qual ele não conseguia conter.
Então, o tinir
de cascos na pedra o fez saltar para trás de um aglomerado de matacões. Foi
algum instinto obscuro que o levou a se refugiar; sua mente consciente estava
muito aturdida e caótica para pensar ou agir.
Na clareira,
cavalgavam Jonas McCrill e seus seguidores – e um soluço se moveu
impetuosamente pela garganta de Reynolds. A princípio, ele não os reconhecera –
nem percebeu que já os tinha visto antes. A rixa, assim como todas as coisas
sãs e normais, jazia perdida e esquecida lá atrás em panoramas obscuros, além
dos túneis negros da loucura.
Duas figuras
saíram a cavalo do outro lado da clareira – Bill Ord e um dos foras-da-lei
seguidores dos McCrills. Presos à sela de Ord, havia vários bastões de
dinamite, amarrados num fardo compacto.
- Bem – saudou
o jovem Ord –, eu certamente não esperava encontrar todos vocês aqui. Pegaram
ele?
- Não – disse
bruscamente o velho Jonas –, ele nos enganou de novo. Alcançamos o cavalo dele,
mas ele não tava nele. As rédeas tavam partidas, como se ele tivesse amarrado
o cavalo, e tivesse fugido. Não sei onde ele tá, mas vamo pegar ele. Tô indo pra Antelope. Vocês tiram o
corpo de Saul daquela caverna e me seguem o mais rápido que puder.
Ele se afastou
a galope e desapareceu entre as árvores, e Reynolds, com o coração na boca, viu
os outros quatro se aproximarem da caverna.
- Bem, por
Deus! – exclamou ferozmente Jack Solomon. – Alguém teve aqui! Veja! As rocha
tão caída!
John Reynolds
assistia como alguém paralisado. Se ele pulasse e os chamasse, eles o matariam
a tiros antes que pudesse expressar seu aviso. Mas não era isso que o mantinha
no lugar; era puro horror que o privava do pensamento e ação, e lhe congelava a
língua no céu da boca. Seus lábios se abriram, mas não emitiam som algum. Como
num pesadelo, ele viu seus inimigos desaparecerem dentro da caverna. Suas vozes
abafadas chegavam até ele:
- Por Deus,
Saul desapareceu.
- Olhem aqui,
rapazes, tem uma porta na parede do fundo!
- Pelo trovão,
ela tá aberta!
- Vamo dar uma olhada!
Súbito, das
entranhas da colina, estrondeou uma fuzilaria de tiros e um estouro de gritos
hediondos. Então, o silêncio se fechou como um nevoeiro úmido sobre o Vale dos
Perdidos.
John Reynolds,
finalmente encontrando voz, gritou como um animal ferido, e bateu nas têmporas
com os punhos fechados. Ele os brandiu para o céu, guinchando blasfêmias
silenciosas.
Então, ele
correu cambaleando até o cavalo de Bill Ord, que passava tranqüilamente com os
outros entre as árvores. Com mãos pegajosas, abriu o fardo de dinamite e, sem
separar os bastões, abriu um buraco na extremidade do bastão do meio com um
pequeno galho. Então, ele cortou um pedaço curtíssimo de estopim e pôs uma
cápsula explosiva de cartucho sobre uma extremidade, a qual inseriu no buraco
feito na dinamite. Numa bolsa da enrolada capa impermeável atrás da sela,
encontrou uma caixa de fósforos e, acendendo o estopim, ele lançou o fardo para
dentro da caverna. Mal este atingira a parede dos fundos, quando explodiu com
um ribombar de terremoto.
O choque quase
o derrubou. Toda a montanha tremeu e, com um estrondo trovejante, o teto da
caverna desabou. Toneladas e toneladas de rocha despedaçada se espatifaram ao
chão, para eliminar todas as marcas da Caverna Fantasma e fechar para sempre a
porta para os abismos.
John Reynolds
se afastou devagar; e subitamente todo o horror caiu sobre ele. A terra parecia
horrivelmente viva sob seus pés, e o sol repugnante e blasfemo sobre sua cabeça.
A luz ficou doentia, amarelada e maligna, e todas as coisas estavam poluídas
pelo conhecimento profano encerrado em seu crânio, como tambores ocultos
batendo incessantemente na escuridão sob as colinas.
Ele fechara
para sempre uma porta, mas quais outras formas de pesadelo poderiam se esconder
em lugares ocultos e buracos negros da terra, exultando sobre as almas dos
homens? Seu conhecimento era uma blasfêmia rançosa que nunca o deixaria dormir;
para sempre, em sua alma, sussurrariam os tambores que pulsaram naqueles
buracos negros onde se escondiam demônios que outrora haviam sido homens. Ele
havia contemplado a repugnância suprema, e seu conhecimento era uma mancha que
nunca o deixaria totalmente à vontade diante de homem algum, ou tocar a pele de
qualquer coisa viva sem um sobressalto. Se o homem, moldado de divindade, poderia
afundar até tais obscenidades nocivas, quem poderia contemplar seu destino
final sem se abalar? E se existiam coisas como o Povo Antigo, que outros
horrores não poderiam espreitar sob a superfície invisível do universo? Ele
percebeu subitamente que havia vislumbrado a caveira sorridente sob a máscara
de vida, e que aquele vislumbre tornara a vida intolerável. Toda a certeza e
estabilidade haviam sido varridas, deixando um tumulto insensato de loucura,
pesadelo e altivo horror.
John Reynolds
puxou sua arma e seu polegar dolorido puxou para trás o cão da pistola.
Apontando o cano contra a têmpora, ele puxou o gatilho. O tiro ecoou pelas colinas,
e o último dos Reynolds que ainda lutavam caiu de ponta-cabeça.
O velho Jonas
McCrill, galopando de volta ao som do tiro, o encontrou onde ele jazia, e se
perguntou se seu rosto não seria o de um homem muito velho, com o cabelo branco
como gelo.
FIM
(*) – Injus: Nome pejorativo, dado aos índios nos EUA (Nota do
Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da
Hungria.