A Estrada das Águias (versão original)

(por Robert E. Howard)


1)

Embora os canhões tivessem parado de soar, o trovejar deles ainda parecia ecoar assombrosamente por entre as colinas que se sobressaíam da água azul. A uma légua da costa, o perdedor daquela sombria batalha naval nadava nas ondas escarlates; fora do alcance de um tiro de canhão, o vencedor se afastava enfraquecido. Era uma cena bastante comum no Mar Negro, no ano de Nosso Senhor de 1595.

O navio, que girava como um bêbado no deserto azul, era uma galera de esporão alto, como as que eram usadas pelos temíveis corsários berberes. A morte havia feito uma sombria colheita ali. Homens mortos se alastravam na popa alta; pendiam flácidos sobre o parapeito marcado; jaziam entre as ruínas do castelo da popa; despencaram sobre a pista que transpunha o poço, onde os remadores estraçalhados jaziam entre seus bancos despedaçados. Mesmo na morte, estes últimos não tinham a aparência de homens nascido para a escravidão – eram homens altos, com feições morenas e aquilinas. Em cercados ao redor da base do mastro, cavalos enlouquecidos de medo lutavam e relinchavam insuportavelmente.

Amontoados na popa estilhada, estavam os sobreviventes – 20 homens, muitos deles pingando sangue dos ferimentos. O ranço da pólvora queimada e sangue fresco pairava sobre o navio, como uma mortalha. Aqueles homens eram um estranho bando pitoresco – muitos deles altos e magros, como homens que passavam suas vidas na sela de um cavalo. De fato, eles não pareciam estar totalmente em casa na água. Eram bronzeados pelo sol, não tinham barba e seus bigodes pendiam abaixo de seus queixos; suas cabeças estavam raspadas, exceto por um rabo-de-cavalo no topo do crânio. Estavam vestidos com botas e calças folgadas de couro, nanquim ou seda; alguns usavam kalpaks, gorros de pele de cordeiro; outros usavam gorros de aço, enquanto muitos não usavam nada na cabeça. Alguns vestiam camisas de cota-de-malha, outros estavam nus até suas cinturas envoltas por faixas, seus ombros largos e musculosos quase enegrecidos pelo sol. Tinham lâminas desembainhadas em suas mãos – cimitarras turcas e longos sabres húngaros. Seus olhos escuros eram inquietos; havia algo de águia em todos eles – algo selvagem e indomável, dos elementos fundamentais da Vida.

Eles estavam ao redor de um homem que jazia moribundo na popa. O bigode caído deste homem era acinzentado. Seu rosto era cheio de velhas cicatrizes. Seu manto estava puxado para trás, sua camisa manchada pelo sangue que fluía de um corte de espada no lado.

- Onde está Ivan... Ivan Sablianka? – ele murmurou.

- Aqui está ele, asavul. – respondeu o coro, enquanto um guerreiro alto se aproximava a passos largos.

- Sim, aqui estou, tio. – o homem grande torceu incerto seu bigode. Era o homem mais alto ali, e de constituição pesada. Vestido como os outros, ele diferia estranhamente dos demais. Seus olhos grandes eram azuis como as águas de um mar profundo, seu rabo-de-cavalo e bigode gracioso de cor de ouro tecido. Ele havia perdido o elmo e, em seu enorme punho, segurava a grande arma que lhe dava nome: sablianka – pequena espada.

Ele se inclinou para ouvir as palavras do moribundo asavul.

- Ele fugiu de nós, caros irmãos. – este sussurrou – Algum dos capitães ainda vive?

- Não, pequeno tio. – respondeu um guerreiro magro e moreno, o qual amarrava uma rude bandagem ao redor do antebraço talhado – Tashko levou um tiro, e...

- Não; eu vi os outros morrerem. – murmurou o homem mais velho – Sou o único oficial entre vocês, e estou morrendo. Ivan... irmãos... sua tarefa ainda não acabou. Não posso ir com vocês, mas vocês não devem vacilar. Quando ficamos ao redor do corpo mutilado de Skol Ostap, nosso atamã, nas margens do Pai Dnieper, todos nós juramos por nossa honra cossaca que não descansaríamos até trazermos de volta ao Sjetch a cabeça do demônio que matou a ele e a nossos camaradas. Agora, após o termos seguido pelo Mar Negro na galera que tomamos dele, ele nos derrotou e se afasta cambaleante; não, ele não pode cavalgar muito longe num cavalo que desunhamos com balas de canhões. Ele correrá para dentro da costa. Vocês têm cavalos... sigam! Para Istambul ou para o inferno! Ivan, você agora é o sargento. Vá! Morra ou traga a cabeça de Osman Pasha... que... matou... Skol... Ostap...

A cabeça raspada caiu sobre o peito cicatrizado. Os cossacos se levantaram e murmuraram sob seus bigodes. Olharam em expectativa para Ivan Sablianka. Ele mastigava reflexivamente o bigode, olhava rapidamente para a vela triangular que pendia no ar sem vento, e encarava o litoral. Além da de seu inimigo, nenhuma outra vela estava visível no mar; nenhum porto ou cidade naquela selvagem costa solitária. Pequenas colinas cobertas por árvores se erguiam da linha d’água, erguendo-se rapidamente até montanhas azuis à distância, nas quais os picos de cumes nevados eram avermelhados pelo sol poente. Havia uma razão pela qual Ivan deveria saber mais sobre mares e navios que seus camaradas, mas ele não tinha idéia exata sobre onde estavam. Eles haviam cruzado o Mar Negro; portanto, estavam agora em território muçulmano; essas colinas estavam, sem dúvida, cheias de turcos – em sua mente, ele englobava todas as raças maometanas num único e desdenhoso termo.

Com os olhos protegidos por sua mão larga, ele mirou a embarcação que recuava lentamente – uma duplicata daquela onde estavam. Sua tripulação estava feliz o suficiente por ter escapado do aperto da morte. Ivan sabia que ela estava inutilizada além de qualquer reparo, embora em melhor forma do que o navio incapacitado que afundava sob seus pés. O corsário se dirigia a um arroio que serpenteava das colinas, entre penhascos altos. A embarcação se movia devagar, adernando para pôr o leme a bombordo, mas Ivan acreditava que ela conseguiria. Na popa, ele ainda conseguia distinguir uma figura que fazia sua garganta ribombar – uma figura alta, em cuja malha e elmo o sol poente cintilava. Ivan se lembrava do rosto sob aquele elmo, vislumbrado no frenesi caótico da batalha – de nariz aquilino, olhos cinzas e barba negra –, atiçando, no cossaco, uma sensação ilusória de semi-recordação. Aquele era Osman Pasha, até recentemente o flagelo do Levante e o mais renomado de todos os corsários argelinos.

Ivan examinou a costa. Ele não poderia ir até a desembocadura do arroio, mas acreditava que poderia desembarcar a galera num promontório inclinado, mais próximo deles. Ele foi até uma das direções de varredura.

- Togrukh e Yermak, peguem a outra. – ele mandou – Demetri e Konstantine, acalmem os cavalos. O resto de vocês, cães-irmãos, enfaixem seus cortes, e depois entrem no poço e remem o melhor que puderem. Se algum daqueles porcos argelinos ainda estiver vivo, acerte-o na cabeça.

Devagar e laboriosamente, eles desembarcaram o navio. O sol estava se pondo, as longas sombras dos penhascos mudando do azul-escuro para a púrpura aveludada. Uma névoa suavemente azul pairava sobre a água escura, à qual o pôr-do-sol tornava ametista parda. Algumas estrelas piscavam no céu. A galera pirata havia entrado vacilante na desembocadura do arroio, desaparecendo entre os penhascos sobressalentes.

Ivan e seus companheiros trabalhavam imperturbavelmente. O parapeito do estibordo estava quase inundado, e os cossacos abandonaram os remos e subiram à popa. Os cavalos relinchavam novamente, enlouquecidos de medo pela água que subia. Os cossacos olharam para a margem e se aglomeraram, pois todos sabiam que havia tribos hostis, mas nada disseram. Eles seguiam as ordens de Ivan tão implicitamente quanto se ele tivesse sido eleito atamã por um conclave normal no Sjetsch, aquela fortaleza de homens livres no baixo Dnieper.

Foi a única democracia verdadeira que já existiu na terra; uma democracia onde não havia distinção de classe, exceto aquela de bravura e coragem pessoais. Para a fortaleza Saporoska, chegavam homens de todas as terras e raças, os quais deixavam seus passados para trás para se incorporarem à nova raça que se formava. Mudavam de nomes e entravam em novas vidas. Ninguém perguntava seus nomes verdadeiros, nem de onde vinham. Eram de vários sangues. Togrukh, por exemplo, era o filho de um renegado coronel húngaro com uma escrava tártara.

De onde Ivan viera, ninguém sabia nem se importava. Ele havia perambulado para dentro do Sjetsch cinco anos antes, falando entrecortadamente a fala dos russos. Havia despertado um pouco de suspeita, no início. Ele afirmava crer em Deus – que era uma das poucas perguntas feitas a um aspirante do forte –, mas relutava em fazer o sinal da cruz. Após um debate, ele se comprometeu a fazer uma cruz no ar com sua espada. Foi muito vigiado por algum tempo, mas logo provou sua honestidade em batalhas contra os turcos e contra os tártaros da Criméia. Qualquer que fosse sua vida e língua anteriores, ele agora era totalmente cossaco. Ele devia ter nascido e sido criado nas estepes do sul.

Sua espada tinha um formato diferente, entre homens onde espadas curvas eram a regra quase universal. Era uma espada reta, de 137 centímetros da ponta ao pomo; larga, de dois gumes, com uma lâmina tanto para enfiar quanto cortar. Não era muito inferior em peso às espadas de pouco mais de 1,20m, usadas pelos guerreiros valacos e germanos, e era para ser brandida com uma única mão. Da larga travessa à pesada bola de prata que era o pomo, havia um curvo e largo guarda-mão em linhas flamejantes de ferro lavrado a ouro. Menos de meia-dúzia de homens na fronteira conseguiam manejar aquela espada com uma mão só. Ela agora estava nos dedos de Ivan, agora que ele se curvava sobre um remo inutilizado e olhava fixamente para o promontório, o qual ficava cada vez mais próximo a cada subida e balanço da galera vacilante.


2)

No vale fértil de Ekrem, algo estava acontecendo. O rio, que serpenteava através de pequenas campinas e plantações, estava sendo tingido de vermelho; e as montanhas, que se erguiam a ambos os lados, testemunhavam uma cena apenas um pouco menos antiga que elas. O horror caía sobre os pacíficos moradores do vale, na forma de magros cavaleiros cruéis de terras estrangeiras. Eles não voltavam os olhos para o castelo que pairava, como se estivesse suspenso na encosta perpendicular no alto das montanhas – havia opressores escondidos lá também.

O clã de Ilbars Khan, o turcomano, expulso da Pérsia para o oeste devido a uma rixa tribal, estava cobrando pedágio entre os aldeões armênios no Vale de Ekrem. Era apenas mais uma incursão dentre outras, por gado, escravos e pilhagem, a fim de impor sua soberania sobre os cães caphares. Ele era ambicioso; seus sonhos abrangiam mais do que a liderança de uma tribo nômade. Chefes já haviam construído reinos nestas colinas antes.

Mas naquele momento, assim como seus guerreiros, ele estava embriagado pela matança. As cabanas dos armênios jaziam em ruínas fumegantes. Os estábulos foram poupados, pois continham forragem para cavalos, bem como as medas de palha. Os cavaleiros magros corriam vale abaixo e acima, apunhalando e soltando suas flechas. Homens gritavam quando o aço acertava o alvo; mulheres guinchavam ao serem puxadas nuas até as selas dos saqueadores.

Os cavaleiros, em suas peles de carneiro e altos kalpaks de pele, estavam se aglomerando nas ruas irregulares da aldeia maior – um esquálido agrupamento de cabanas de barro e pedra. Arrancados de seus deploráveis esconderijos, os aldeões se ajoelhavam, implorando em vão por misericórdia, ou corriam em vão, para serem derrubados enquanto fugiam.

Quem mais se destacava nesse divertimento era Ilbars Khan, e desse modo perdeu a chance de um reino. Ele cavalgava a toda brida entre as cabanas e pela campina, perseguindo um infeliz esfarrapado cujos calcanhares pareciam ter asas por medo da morte. A ponta da lança de Ilbars Khan o acertou entre as espáduas. A haste da lança se quebrou e os cascos trovejantes empurraram o corpo que se contorcia, enquanto o chefe passava.

- Allah il allah! – Barbas se embranqueciam com espuma, diante do grito louco por sangue.

Os iatagãs zuniam, terminando no barulho de carne e ossos partidos. Com um grito desvairado, um fugitivo girou, enquanto Ilbars Khan se lançava sobre ele, seu largo caftan se dilatando ao vento como as asas de um falcão. Naquele instante, os olhos arregalados do armênio viram, como num sonho, o magro rosto barbado, com seu fino nariz aquilino; o colete ornamentado a ouro sob o manto esvoaçante, cruzado pelo largo cinto de seda, do qual se projetavam os cabos de marfim de meia-dúzia de adagas, e a manga larga que caía do esguio braço musculoso e erguido, o qual terminava num largo brilho curvo de aço. Naquele instante, também, o turcomano viu a esguia figura curvada e tensa sob os farrapos, os olhos grandes mirando ao longo do cano de um mosquete. Um grito selvagem vibrou dos lábios do homem caçado, afogado no rugir explosivo da espingarda de pederneira. Uma rodopiante nuvem de fumaça envolveu as figuras, na qual um raio brilhante de aço cortou a escuridão como o palpitar de um relâmpago. Daquela nuvem saiu correndo um corcel sem cavaleiro, as rédeas esvoaçando soltas. Um sopro de vento dissipou a fumaça.

Uma das figuras no chão ainda se contorcia; lentamente, ela se ergueu sobre um cotovelo. Era o armênio, com a vida jorrando rapidamente de um corte medonho do pescoço ao ombro. Arfando e lutando duramente por sua vida, ele mirou, com os olhos selvgemente arregalados, a outra forma. O kalpak do turcomano jazia a metros de distância, arremessado pelo tiro a queima-roupa; quase todos os seus miolos estavam nele. A barba de Ilbars Khan apontava para cima, como se numa medonha surpresa cômica. O braço do armênio cedeu, e seu rosto se espatifou no chão sujo, lhe enchendo a boca de poeira. Ele a cuspiu, manchada de vermelho. Uma risada medonha lhe escorreu dos lábios espumantes. A risada se ergueu até um grito que assustou os abutres que giravam. Ele caiu para trás, amassando a areia com as mãos e gritando com alegria delirante. Quando os horrorizados turcomanos chegaram lá, o armênio estava morto, com um horrível sorriso congelado nos lábios. Ele reconhecera sua vítima.

Os turcomanos se acocoraram ao redor, como abutres de olhos malignos ao redor de um carneiro morto, e conversaram sobre o corpo do khan deles. Sua fala era maligna, como seus rostos, e, quando se levantaram daquele conclave de urubus, estava selado o destino de cada armênio do vale de Ekrem.

Celeiros, medas de palha e estábulos poupados por Ilbars Khan foram incendiados. Todos os prisioneiros foram mortos – crianças de colo lançadas vivas nas chamas, jovens garotas estripadas e arremessadas para dentro das ruas manchadas de sangue. Ao lado do cadáver do khan, crescia uma pilha de cabeças decepadas; os montadores galopavam, balançando as horríveis relíquias pelos cabelos e lançando-as na pirâmide medonha. Cada lugar que pudesse presumivelmente esconder um coitado trêmulo era rasgado e aberto.

Foi empenhado nisto, que um dos homens tribais, espetando uma pilha de feno, percebeu um movimento na palha. Com um grito lupino, ele saltou sobre o feno e arrastou sua vítima para a luz, ganindo em exultação lasciva ao ver seu prisioneiro. Era uma jovem, e não uma atarracada armênia. Arrancando o manto que ela tentava enrolar em sua forma esguia, ele deleitou os olhos de abutre em sua beleza, mal coberta pela roupa de uma dançarina persa. Sobre seu tênue yasmaq – seu leve véu –, os olhos dela, sombreados por longos cílios pintados de khol, estavam eloqüentes de medo.

Ela nada disse, se debatendo ferozmente e seus membros esguios se torcendo no cruel aperto da mão dele. Ele a arrastou até o cavalo dele... logo, rápida e mortalmente como uma naja atacando, ela puxou uma adaga curva do cinto dele e a afundou, até o cabo, no coração do homem. Com um gemido, ele caiu, suas peles de carneiro tingidas de vermelho, e ela saltou como uma pantera até o cavalo dele, parecendo voar até a sela de crista alta, de tão rápidos que era seus movimentos. O cavalo alto relinchava e empinava, e ela o fez girar com um puxão forte e correu vale acima. Atrás dela, a alcatéia gania, correndo em perseguição ardente. Flechas assobiavam ao redor de sua cabeça, e ela se encolhia enquanto elas zuniam venenosamente por perto, mas ela instigava o corcel a esforços mais frenéticos.

Ela o conduzia diretamente à parede montanhosa do sul, onde uma garganta estreita se abria dentro do vale. Aqui a passagem era perigosa, e os turcomanos cavalgavam num passo menos impetuoso entre as pedras soltas e matacões quebrados. Mas a jovem cavalgava como uma folha soprada por uma tempestade, e foi assim que ela seguiu à frente deles por várias centenas de metros, quando chegou a um amontoado de matacões, nos quais cresciam tamarixes, que se erguia como uma ilha acima do nível do chão do desfiladeiro. Havia uma fonte entre aqueles matacões, e homens ali.

Ela os viu entre as rochas, e eles gritaram para que ela parasse. De início, ela pensou que fossem turcomanos; logo, percebeu seu erro. Eram altos e fortes, com cotas-de-malha brilhando sob seus mantos. Seus turbantes estavam enrolados em gorros de aço que se erguiam até uma ponta em forma de espiral. Seus rostos escuros eram fortes e indiferentes. Se os turcomanos eram chacais, esses homens eram falcões. Tudo isto ela viu naquele momento, sua rápida percepção anormalmente aguçada pelo desespero. Ela também viu as bocas dos arcabuzes entre as rochas, e a luz trêmula de fusíveis ardentes. E ela tomou uma decisão instantaneamente. Saltando do cavalo, ela correu até as rochas e caiu de joelhos.

- Ajude-me, em nome de Alá, o Piedoso, o Compassivo!

Um homem saiu de um aglomerado de moitas e desceu os olhos para ela. E, ao olhar, ela gritou novamente, incrédula.

- Osman Pasha! – Logo, lembrando-se de sua necessidade urgente, ela lhe abraçou os joelhos, gritando: – Yah kawand, me proteja! Salve-me desses lobos que me seguem!

- Por que eu deveria arriscar minha vida por você? – ele perguntou indiferente.

- Eu lhe conheci há muito tempo, na corte do padixá! – ela gritou desesperadamente, arrancando o véu – Dancei para você. Sou Ayesha...

- Muitas mulheres já dançaram para mim. – ele respondeu – Não tenho nenhuma rixa com esses cães do deserto.

- Então, vou lhe dar um talsmin. – ela disse, em desespero final – Ouça!

E, quando ela lhe sussurrou um nome no ouvido, ele estremeceu como se houvesse sido picado. Rapidamente, ele ergueu a cabeça, fitando-a como se para sondar as profundezas de seus pensamentos mais íntimos. Por um instante, ele ficou imóvel, seus olhos cinzentos se voltaram para dentro e logo, subindo num grande matacão, ele encarou, com a mão erguida, os cavaleiros que se aproximavam:

- Sigam seus caminhos em paz, em nome de Alá!

A resposta deles foi um assobio de flecha ao redor de seus ouvidos. Ele saltou para baixo, agitando a mão. Instantaneamente, os arcabuzes começaram a estrondear de entre as rochas, a fumaça se encapelando ao redor da pequena e arredondada colina coberta por matagal. Doze cavaleiros selvagens rolaram de suas selas e jazeram se contorcendo. O resto recuou, gritando de terror. Giraram e voltaram rapidamente a meio-galope pelo desfiladeiro, em direção ao vale principal.

Osman Pasha se voltou para Ayesha, que havia, com recato, recolocado o véu. Ele era um homem alto, com olhos cinzas como gelo e aço. Havia, em suas maneiras, certa franqueza impiedosa que era rara num oriental. Seu manto era de seda escarlate, e seu corselete de malha metálica era costurado a ouro. Seu turbante verde era preso por um broche com jóias, e seu elmo espiralado era lavrado em prata. Coronhas ebúrneas de pistolas com encaixes dourados se sobressaíam de seu cinto de couro cru, o qual resplandecia com uma grande fivela dourada, e suas botas eram do mais fino couro espanhol. Água salgada, fumaça de pólvora e sangue lhe manchavam o vestuário, mas a riqueza de suas roupas e armas era notável, mesmo naquela era de vestes exuberantes.

Seus homens estavam aglomerados ao seu redor – 40 piratas argelinos, impiedosos e corajosos como uma raça que sempre caminhava num convés, eriçados de armas de fogo e cimitarras. Numa depressão atrás da baixa colina arredondada, havia cavalos de uma raça inferior.

- Minha filha – disse Osman Pasha, de uma maneira benévola, a qual era desmentida por seus olhos cruéis –, já fiz inimigos nesta terra estranha, e lutei uma escaramuça em sua defesa, por causa de um nome sussurrado em meu ouvido. Acreditei em você...

- Se eu mentir, quero que minha pele seja arrancada de mim – ela jurou.

- Ela será. – ele prometeu gentilmente – Eu cuidarei disso pessoalmente. Você falou o nome do Príncipe Orkhan. O que sabe sobre ele?

- Por três anos, compartilhei seu exílio.

- Onde ele está agora?

Ela apontou para cima, em direção às montanhas que se sobressaíam no vale distante, onde os torreões do castelo estavam mal visíveis entre os penhascos.

- Do outro lado do vale, lá no castelo de El Afdhal Shirkuh, o Curdo.

- Será difícil tomá-lo. – ele refletiu.

- Mande o restante de seus falcões para lá! – ela gritou – Conheço um caminho para lhe levar ao próprio coração daquele castelo!

Ele sacudiu a cabeça:

- Estes que tu vês são todo o meu bando.

Então, vendo-lhe o olhar incrédulo, ele disse:

- Não estou surpreso por você se espantar com minha mudança de sorte. Vou lhe contar...

E, com sua desconcertante franqueza, a qual seus companheiros muçulmanos achavam tão inexplicável, Osman Pasha contou rapidamente sua queda. Ele não contou a ela seus triunfos; eles eram conhecidos demais para serem repetidos. Cinco anos antes, ele havia aparecido subitamente no palco do Mediterrâneo, como um capitão do famoso corsário Seyf ed-din Ghazi. Ele logo superou seu mestre e obteve sua própria frota, a qual não possuía lealdade a governante algum, nem mesmo aos beis (*) berberes. Inicialmente um aliado do Grão-Turco e um convidado bem-vindo da Porta Otomana, ele mais tarde enfurecera o Sultão, por causa de seus ataques-surpresa sobre embarcações turcas.

Uma rixa mortal surgira entre eles e, finalmente, o destino se declarou em favor de Murad. Saqueando ao longo do Dardanelos, o corsário fora pego numa cilada por uma frota otomana, e todos os seus navios foram destruídos, exceto dois. Mas o Sultão lhe poupara a vida, dando a ele uma tarefa que praticamente equivalia a uma sentença de morte. Ele recebeu ordens de navegar pelo Mar Negro, até a desembocadura do Dnieper, e lá destruir outro inimigo do Turco: Skol Ostap, o Atamã dos Cossacos Zaporozhianos, cujas incursões dentro dos domínios turcos haviam deixado o sultão quase louco.

Os cossacos, de tempos em tempos, mudavam seu Sjetsch – seu acampamento armado – de ilha em ilha, secretamente, para evitarem ataques-surpresa, mas a sorte estava até certo ponto com Osman. Um traidor grego o havia guiado até a ilha do Dnieper, então ocupada pelos guerreiros livres, e num momento em que muitos deles estavam distantes numa incursão contra os tártaros do outro lado do rio. O rápido ataque havia falhado em capturar Skol Ostap, o qual jazia indefeso devido a um velho ferimento, devido à feroz resistência dos cossacos que estavam com ele. No meio da batalha, os incursores haviam retornado do ataque aos tártaros, e Osman fugiu, deixando um de seus navios nas mãos deles. Ele sabia a punição para quem falha e, ao invés de fugir em direção à frota turca que esperava na costa, ele atravessou o Mar Negro, logo perseguido pelos cossacos em seu navio capturado, usando sua tripulação como remadores. Ele não entendia a ferocidade da perseguição deles, pois não sabia que uma bala explosiva de seu canhão havia matado o ferido Skol Ostap e enlouquecido desse modo seus kunaks.

Quando a costa leste ficara visível, os cossacos pararam à distância de um tiro de canhão e, na batalha que se seguiu, somente a revolta dos remadores salvara o dia do corsário.

- Assim, desembarcamos a galé no arroio. Poderíamos tê-la consertado, mas para onde iríamos? As frotas do Sultão detêm a saída pelo Mar Negro, e ele tem uma corda de estrangulamento pronta para mim, quando souber que falhei. Encontramos uma aldeia ao longo do arroio... um tipo de mulçumanos, que labutavam entre vinhedos e redes de pesca. Conseguimos cavalos ali e atravessamos as montanhas, procurando não sabemos o quê... um caminho para fora dos domínios otomanos, ou um novo reino para governar. Quem sabe?

Eles haviam prosseguido através das montanhas durante dias, preferindo a selvagem desolação de uma terra inabitada ao risco de caírem em conflito com postos avançados turcos. Osman Pasha tinha a idéia de que mensageiros velozes já haviam levado a notícia por todo o império, de que ele estava condenado. Quem quer que os sultões turcos fossem ou não, eles eram meticulosos em sua vingança. Ele vagara sem planos, confiando na sorte. O fatalismo dos turcos não fazia parte de sua natureza.

Ayesha escutou e, sem comentar, começou a contar sua história. Como Osman bem sabia, era costume dos sultões, ao subirem ao trono, assassinarem seus irmãos e os filhos de seus irmãos. Bayazid I deu início a esse costume e, independente dos seus aspectos morais, não se podia negar que isto salvava o império de muitas desastrosas guerras civis, com cada príncipe otomano considerando o trono sua regalia. Às vezes, uma prisão tomava o lugar da corda de estrangulamento, como no caso do Príncipe Jem, irmão de Bayazid II, que foi por muitos anos o convidado indesejado, primeiramente dos Cavaleiros de São João, em Rhodes, aos quais o Sultão pagava 45.000 ducados por ano como propina de carcereiro; e, mais tarde, de dois papas sucessivos, o último dos quais, Alexandre Borgia, envenenara o príncipe por uma volumosa soma de ouro do Sultão.

Este precedente foi seguido mais tarde, com o Píncipe Orkhan, filho de Selim o Bêbado e irmão de Murad III. Um curioso paralelo pode ser notado aqui. Exatamente como no caso de Jem e Bayazid, quando o irmão mais fraco venceu o mais forte por força das circunstâncias, aconteceu no caso seguinte. Quando Selim o Bêbado morreu, saindo de sua vida apatetada, Orkhan estava no Egito. Murad estava em Skutari. Na conseqüente corrida até a capital, o resultado é obvio. Há muito era costume entre os turcos dar a coroa a qualquer herdeiro que chegasse primeiro a Constantinopla após a morte do Sultão. Os vizires e beis, temendo a guerra civil, geralmente apoiavam o primeiro a chegar, o qual, por sua vez, comprava os janízaros (**) com ricos presentes e, com a ajuda deles, punha-se a eliminar seus irmãos. Mesmo com esta vantagem, o fraco Murad jamais conseguiria resistir ao seu mais agressivo irmão, se não fosse por sua concubina favorita Safia, uma veneziana da família Baffo. Ela era a verdadeira governante da Turquia e, com seus ardis, através dos quais os venezianos foram trazidos para ajudarem o Sultão, a arremetida de Orkhan pelo trono foi derrotada, e ele foi exilado.

Inicialmente, ele buscou refúgio na corte persa, e o xá havia prometido ajudá-lo a ganhar a coroa. Mas algumas escaramuças com os temíveis janízaros esfriaram o entusiasmo persa, e Orkhan descobriu que o xá estava se correspondendo com Safia no intuito de o envenenarem. Ele fugiu, mas, ao tentar alcançar a Índia, foi capturado pelos nômades bashkires, que o reconheceram e venderam às mãos dos otomanos. Orkhan achou que seu destino estivesse selado, mas Murad não ousava matá-lo, pois ele ainda era muito popular entre o povo – especialmente os vassalos, mas sempre turbulentos, mamelucos do Egito, e os sipahis, ou independentes donos de terras da Anatólia. Ele foi confinado num castelo próximo a Erzurum, e suprido com todas as luxúrias e formas de dispersão calculadas para suavizar sua índole.

Isto foi gradualmente efetuado, disse Ayesha. Ela era uma das dançarinas mandadas para entretê-lo. Ela se apaixonara violentamente pelo belo príncipe, e trabalhou duramente para lhe devolver a coragem. Ela havia tido um sucesso tão grande – embora não se suspeitasse disso como o motivo principal –, que o príncipe fora rápida e secretamente tirado de Erzurum e levado até as montanhas acima de Ekrem, para lá ficar aos cuidados de El Afdal Shirkuh, um feroz chefe semi-bandido, cuja família havia reinado como lordes sobre o vale por mais ou menos uma geração, saqueando os habitantes, mas sem protegê-los.

- Ficamos lá por mais de um ano – concluiu Ayesha. – O Príncipe Orkhan afundou na apatia. Ninguém o reconheceria como a jovem águia que liderou os cavaleiros egípcios contra os próprios janízaros. Aprisionamento, bhang e vinho lhe drogaram os sentidos. Ele fica sentado em suas almofadas, entorpecido por fumaça de kaif, só despertando quando canto ou danço para ele. Mas ele tem sangue de conquistadores. Seu avô, Suleyman O Magnífico, renasceu nele. Ele é um leão que está apenas adormecido...

“Quando os turcomanos cavalgaram para dentro do vale, eu fugi do castelo e fui procurar pelo chefe deles, Ilbars Khan, pois eu tinha ouvido falar de sua bravura e ambições. Eu desejava poder encontrar um homem destemido o bastante para libertar Orkhan. Que as asas da jovem águia sintam o vento outra vez, e ele se erguerá e sacudirá o pó de seu cérebro. Será novamente Orkhan, o Esplêndido. Procurei Ilbars Khan, mas eu o vi morto antes que pudesse alcançá-lo; e então, os turcomanos ficaram loucos feito cães. Fiquei com medo e me escondi, mas me arrastaram para fora.

“Oh, meu senhor, ajude-nos! Que importa se você não tem navio e só possui um punhado de homens lhe seguindo? Reinos já foram construídos com menos! Quando souberem que o príncipe está livre – e que tu estás com ele! –, muitos homens se unirão a nós! Os lordes feudais e os timariotes já o apoiaram antes, e não se afastarão dele agora. Não, se eles soubessem o lugar onde ele está confinado, já teriam destruído aquela fortaleza pedra por pedra! O Sultão é apatetado. O povo odeia Safia e seu filho mestiço Muhammad.

“O posto turco mais próximo fica a três dias de cavalgada daqui. O vale de Ekrem é isolado – desconhecido por muitos, exceto os nômades curdos e os infelizes armênios. Aqui, um império pode ser planejado sem incômodos. Você também é um proscrito. Vamos nos unir. Libertaremos Orkhan e o colocaremos em seu trono de direito! Se Orkhan for padixá, toda riqueza, poder e honra serão seus; Murad, por sua vez, só lhe oferece uma corda no pescoço!”.

Ela se ajoelhava diante dele, seus dedos brancos lhe agarrando convulsivamente o manto, seu véu arrancado novamente e seus olhos escuros ardendo com o entusiasmo de seu pedido. Osman Pasha estava em silêncio, mas luzes frias lampejavam em seus olhos de aço. Ele sabia que o que a jovem disse, sobre a popularidade de Orkhan, era verdade; nem ele subestimava o próprio poder. Um fazedor de rei! Era um papel com o qual ele sonhara. E esta aventura desesperada, com morte ou um trono como preço, lhe atiçava a alma ao extremo. Súbito, ele riu, e fossem quais fossem os crimes que manchassem a alma do homem, sua risada foi vibrante e prazerosa como uma rajada de vento marinho, se erguendo de forma estranha para os lábios de um muçulmano.

- Precisaremos dos turcomanos nesta aventura. – ele disse, e a garota bateu palmas, com um breve e entusiasmado grito de alegria, sabendo que seu pedido fora atendido.


3)

- Alto, kunaks! – Ivan Sablianka freou seu cavalo e olhou ao redor, esticando o pescoço para a frente. Atrás dele, seus camaradas se moviam em suas selas. Estavam num desfiladeiro estreito, flanqueado a ambos os lados por inclinações íngremes e cobertas por moitas e raquíticos abetos. Diante delas, uma pequena fonte girava para cima em meio a árvores irregulares, e escorria por um canal verde devido ao musgo.

- Água, finalmente. – grunhiu Ivan – Os cavalos estão cansados. Desmontem.

Sem dizer uma palavra, os cossacos desmontaram, retiraram as selas e permitiram aos cavalos cansados beberem, antes de satisfazerem sua própria sede. Durante dias, eles haviam seguido a trilha dos argelinos errantes. Desde que deixaram a costa e a aldeia ao longo do arroio, eles só tinham visto um sinal de vida – um amontoado de cabanas de barro, empoleirado no alto entre os penhascos, abrigando indefiníveis criaturas vestidas de pele, as quais fugiram uivando entre as ravinas diante da aproximação deles. Haviam sido completamente saqueadas pelos argelinos, de modo que os cossacos tiveram dificuldade em economizar comida para os cavalos. Para os homens, não havia comida. Mas os cossacos já haviam passado fome antes.

As provisões, com as quais eles haviam enchido suas selas antes de deixar a aldeia no arroio, haviam se esgotado. Os argelinos haviam cobrado um pesado pedágio de seus armazéns e celeiros; e os cossacos, chegando depois, os haviam despojado. Havia, nessas montanhas, pouco capim para pasto. Agora os cossacos estavam sem comida, e haviam perdido a trilha dos corsários.

O anoitecer anterior os havia encontrado alcançando rapidamente sua presa, como mostrado pela clareza das pegadas, e eles haviam temerariamente avançado, pensando em atacar de surpresa o acampamento argelino à noite. Mas, com o pôr da lua nova, eles perderam a trilha num labirinto de ravinas e penhascos, e perambularam cegamente e ao acaso. Agora, ao amanhecer, eles haviam encontrado água, mas seus cavalos estavam exaustos, e eles próprios completamente perdidos. Isto jamais aconteceria, se eles estivessem sendo guiados por um verdadeiro sotnik ou chefe. Mas eles não tinham palavra para condenarem Ivan, cuja descuidada indiferença os havia levado à sua presente situação.

- Durmam um pouco. – resmungou Ivan – Togrukh; você, Stefan e Vladimir assumem o primeiro turno de guarda. Quando o sol estiver sobre aquele abeto, acordem outros três para fazerem a vigia. Vou fazer um reconhecimento deste desfiladeiro.

Ele se afastou a passos largos garganta adentro, logo se perdendo entre a vegetação irregular. Logo, o caminho se inclinou para o alto, e as inclinações em ambos os lados se transformaram em penhascos elevados, que se erguiam perpendicularmente do chão alastrado de rochas. E, com uma subtaneidade de parar o coração, uma selvagem figura peluda saltou de dentro de um emaranhado de moitas e matacões quebrados, e encarou o cossaco. Ivan sibilou entre dentes, enquanto sua espada cintilava no ar; logo, ele deteve o golpe, ao ver que a aparição estava sem armas. Era um homem magro, com aparência de gnomo e vestido em peles de carneiro. Seus olhos, a mirarem feroz e selvagemente de um emaranhado de cabelos escorridos, absorviam cada detalhe do gigante cossaco, desde seu rabo-de-cavalo até suas botas de saltos prateados. Examinavam a manchada cota-de-malha, enfiada em suas largas calças de nanquim; as coronhas das pistolas se sobressaindo de seu largo cinto de seda, e a espada em sua mão enorme.

- Deus dos meus ancestrais! – disse o vagabundo, na fala dos cossacos – O que faz alguém da irmandade livre, nesta terra assombrada por turcos?

- Quem é você? – Ivan grunhiu desconfiado.

- Um homem que acabou de ver seu povo massacrado. – respondeu o outro, com uma risada selvagem de louco desespero – Eu era o filho de um kral dos armênios... chame-me de Kral. Um nome é tão bom quanto outro para um proscrito. O que faz aqui?

- O que há além deste desfiladeiro? – Ivan perguntou, ao invés de responder.

- Sobre aquela aresta lá longe, a qual encerra a última extremidade, há um emaranhado de ravinas e penhascos. Se você trilhar seu caminho entre eles, avistará do alto o amplo vale de Ekrem, que até ontem era o lar de minha tribo, e que agora contém seus ossos carbonizados.

- Há comida lá?

- Sim... e morte. Uma horda de turcomanos ocupa o vale.

Enquanto Ivan refletia sobre isto, um rápido passo o fez girar para ver Togrukh se aproximando.

-Hai! – Ivan franziu a sobrancelha – Você recebeu ordens de vigiar enquanto os kunaks dormiam!

- Os kunaks estão famintos demais para dormirem. – replicou o sombrio cossaco, olhando desconfiado para o armênio.

- O diabo te morda, Togrukh. – respondeu o enorme guerreiro – Não posso conjurar carne de carneiro do ar, para eles. Eles devem roer os polegares, até acharmos uma aldeia para saquear...

- Posso lhes guiar até comida suficiente para alimentar um regimento. – interrompeu Kral.

- Não zombe de mim, ermênio – Ivan carranqueou –; você acabou de dizer que os turcomanos...

- Não. – gritou Kral – Há um lugar, não muito longe daqui, desconhecido pelos muçulmanos, onde meu povo depositava comida secretamente. Eu estava indo para lá, quando lhe vi entrando no desfiladeiro e lhe reconheci como um cossaco.

Togrukh olhou para Ivan, que puxou uma pistola e a engatilhou.

- Então, vá à frente, Kral – disse o zaporozhiano –; mas, ao primeiro movimento em falso... bang!... você ganha uma bala na cabeça.

O armênio riu – uma risada selvagem e desdenhosa – e gesticulou para que eles o seguissem. Ele se dirigiu ao penhasco mais próximo e, tateando entre um agrupamento de moitas quebradiças, revelou o que parecia ser uma fenda rasa na parede. Acenando para eles que estavam atrás, ele se curvou e rastejou para dentro.

- Dentro desse covil de lobo? – Togrukh olhou com suspeita, mas Ivan seguiu o armênio e o outro veio atrás dele. Eles se viram dentro, não de uma caverna, mas de uma fenda estreita, em ofegante escuridão crepuscular. Ivan praguejou e grunhiu, ao alavancar seu enorme tamanho entre as paredes salientes, mas, em poucos passos, ela se alargou até que o gigante pudesse caminhar com facilidade. Quarenta passos depois, eles chegaram a um largo espaço circular, cercado por paredes elevadas que lembravam monstruosos favos de mel.

- Estas eram as tumbas de um povo antigo e desconhecido, que ocupava esta terra antes da chegada de meus ancestrais. – disse Kral – Seus ossos viraram pó há muito tempo. As cavernas estavam vazias, e nelas meu povo depositava comida, para quando houvesse fome e pilhagens. Pegue o quanto quiser; não há mais armênios que precisem dela.

Ivan olhou curioso ao redor de si. Era como estar no fundo de um poço gigante. O chão era de rocha sólida, desgastado até ficar liso e plano, como se pelos pés de 10 mil gerações. As paredes em forma de favo, com fileiras regulares de tumbas por 15 metros em todos os lados, se erguia de forma estupenda, terminando num pequeno círculo de céu azul. Um abutre pairava naquele disco azul, como um pequeno ponto negro.

- Seu povo deveria ter morado nestas cavernas. – disse Togrukh – Assim, quando os turcos viessem... para cortar e retalhar... um homem poderia manter esta fenda externa contra uma horda.

O armênio encolheu os ombros:

- Aqui não tem água. Quando os turcomanos caíram sobre nós, não houve tempo para fugir e se esconder. Meu povo não era guerreiro. Só desejava cultivar o solo.

Togrukh sacudiu a cabeça, incapaz de entender tais naturezas. Kral estava tirando, das grutas mais baixas, comida para homens e animais – sacos de couro com capim, arroz, queijo mofado, carne seca e odres de vinho azedo.

- Vá trazer alguns dos rapazes para ajudarem a carregar o material, kunak. – ordenou Ivan, curvando as enormes costas em direção aos calcanhares, para olhar em direção às cavernas mais altas – Ficarei aqui com Kral.

Togrukh se afastou a passos arrogantes, suas solas prateadas batendo na pedra, e Kral deu um puxão no braço encouraçado de Ivan.

- Agora acredita que sou um homem leal, efêndi?

- Sim, por Deus. – Ivan respondeu, mastigando um punhado de figos secos – Qualquer homem que me guia até comida é um amigo meu. Mas onde ficavam as aldeias destes antigos? Eles não conseguiriam plantar capim naquele desfiladeiro rochoso lá fora.

- Eles moravam no vale de Ekrem. Há muito, muito tempo, meus ancestrais vieram do norte e os encontraram cultivando o solo. Mataram todos eles e tomaram sua terra.

- Bem – Ivan grunhiu –; é assim que as coisas acontecem. Agora os turcos estão massacrando vocês, camaradas. Mas não se preocupe; um dia, nós, cossacos, cavalgaremos sobre as montanhas e cortaremos as gargantas deles. Cortes, tiros... é assim que as coisas serão. Mas, se o povo antigo morava no vale, por que não sepultavam seus mortos perto dali? Deve ser um longo e íngreme caminho, daqui até o Ekrem.

Os olhos de Kral lampejaram como os de um lobo faminto:

- Esse é o segredo trancado no coração destas montanhas, conhecido apenas pelo meu povo. Mas vou lhe mostrar isto... e mais, se você confiar em mim.

- Bem, Kral – disse Ivan, mastigando com gosto –; nós, zaporozhianos, não precisamos mentir nem esconder, como um judeu. Estamos seguindo aquele demônio negro Osman Pasha, o corsário, que está em algum lugar nestas montanhas...

- Osman Pasha está a não mais que três horas de cavalgada daqui.

- Há! – Ivan derrubou a comida que estava mastigando e agarrou a espada, seus olhos azuis resplandecentes.

- Kubadar, tome cuidado! – gritou Kral – Há 40 corsários, armados com mosquetes e entrincheirados entre os matacões do desfiladeiro de Diva. E eles se juntaram a Arap Ali e seus 150 turcomanos. Quantos guerreiros você tem, efêndi?

Ivan torceu o bigode gracioso sem responder, franzindo fortemente a testa. Ele coçou a cabeça, perguntando-se o que um atamã faria nessas circunstâncias. Pensar intensamente sempre o deixava sonolento, e ele detestava o esforço. Sua cabeça andava à roda e seus braços pesados doíam, com o desejo de puxar sua grande espada e esquecer a fadiga de refletir, na aplicação de gigantescos golpes. Era importante que, embora fosse o maior espadachim do Sjetsch, ele nunca antes havia assumido a liderança de seus camaradas. Ele agora praguejava, por causa da necessidade. Era mais sábio que seus kunaks, mas ele admitia francamente que não tinha grande evidência de prudência. Como eles, era totalmente temerário e improvidente. Bem liderados, eles eram invencíveis. Sem uma liderança sábia, desperdiçariam suas vidas por um capricho. Ele havia errado ao prosseguir após o escurecer, na noite passada, mas aquele fato provavelmente não ocorrera a nenhum deles. Kral o observava agudamente, lendo os grandes esforços mentais do cossaco em seu largo rosto rude, porém cordial.

- Osman Pasha é seu inimigo?

- Inimigo! – Ivan repetiu ofendido – Vou forrar minha sela com a pele dele...

- Pekki! Então venha comigo, kazak, e lhe mostrarei o que nenhum homem, exceto na Armênia, já viu em mil anos.

- Do que se trata? – Ivan exigiu, desconfiado.

- Um caminho secreto... e uma estrada mortal para nossos inimigos!

Ivan deu um passo à frente, e então parou.

- Espere. Lá vêm meus irmãos. Ouça-os praguejarem, aqueles cães.

- Mande-os de volta para dentro do desfiladeiro, com a comida. – sussurrou Kral, enquanto meia-dúzia de guerreiros com rabos-de-cavalo saíam a passos arrogantes da fenda e ficavam curiosamente boquiabertos com o que havia ao redor. Ivan os encarou portentosamente, com as pernas calçadas bem abertas, a barriga de fora e os polegares enfiados no seu cinto.

- Peguem isto e arrastem de volta à fonte, kunaks. – ele disse, gesticulando de forma magnífica – Eu disse que acharia comida para vocês e os cavalos.

- E quanto a você? – perguntou Togrukh, o qual foi mordido pelo demônio da curiosidade, enquanto mastigava uma tira de pasderma, ou carne de carneiro seca ao sol.

- Não se preocupe comigo. – rugiu Ivan – Não sou o essaul? Já conversei com Kral. Voltem ao acampamento e comam feijão, diabos!

Depois que o ruído das solas de suas botas desapareceu pela fenda, Kral foi à frente em direção à parede oposta e mostrou a Ivan uma série de degraus entalhados na rocha. Ele os subiu como um gato, enquanto o zaporozhiano seguia mais devagar, desconfiando dos apoios para as mãos. Bem acima da última camada de tumbas, a indistinta escada de mão terminava na entrada de uma caverna, a qual Ivan havia notado lá embaixo. Era muito maior que as outras; nela, Ivan conseguia ficar ereto. Ele viu que, ao invés de ser um mero corte no penhasco, esta caverna recuava e desaparecia na escuridão.

- Os antigos vinham até este poço, carregando seus mortos. – disse Kral – Ele leva até o vale de Ekrem. Outrora, outro poço guiava, de camada em camada, até o chão deste palácio, mas ele foi há muito obstruído pela queda das paredes. Se você seguir este túnel, sairá atrás do castelo do curdo El Afdal Shirkuh, que dá vista para o Ekrem.

- Que proveito nos trará? – grunhiu Ivan.

- Ouça, e eu lhe contarei uma história! – exclamou Kral, acocorando-se na semi-escuridão, suas costas contra a parede da caverna – Ontem, quando começou a chacina, lutei por algum tempo contra os cães turcos; então, quando meus camaradas foram mortos, eu fugi e, deixando o vale, desci correndo o desfiladeiro de Diva. No meio deste desfiladeiro, há um grande amontoado de matacões, coberto por matagal. Procurei refúgio lá, apenas para encontrá-lo ocupado por um estranho bando de guerreiros. Eu já estava entre eles antes de percebê-los, eles me surraram com os canos de suas pistolas e me amarraram, fazendo-me perguntas sobre quem continuava dentro do vale... pois, enquanto cavalgavam pelo desfiladeiro, eles tinham ouvido os tiros e gritos, e parado e se entrincheirado na pequena colina arredondada, e estavam prestes a mandar batedores à frente. Eram piratas argelinos, e chamavam seu emir Osman Pasha.

“Enquanto me interrogavam, uma garota veio cavalgando feito uma louca, com os turcomanos em seu encalço. Quando ela saltou de seu cavalo e implorou por ajuda a Osman Pasha, eu a reconheci como a dançarina persa que mora no castelo. Ele e seus homens dispersaram os turcomanos com uma rajada de seus arcabuzes, e então ele conversou com a jovem, de nome Ayesha. Eles haviam me esquecido e fiquei deitado próximo, amarrado, e ouvi tudo que diziam.

“Por mais de um ano, Shirkuh havia mantido um prisioneiro em seu castelo. Eu sei, porque já levei sementes e carneiros até o castelo, para ser pago à maneira curda... com maldições e golpes. Kazak, o prisioneiro é Orkhan, irmão do padixá Marad!”.

O cossaco grunhiu de surpresa.

- Essa Ayesha se mostrou a Osman, e ele jurou ajudá-la na libertação do príncipe. Enquanto eles conversavam, os turcomanos retornavam com força total e cavalgavam à distância, desejosos de atacar, mas temendo os mosquetes. Osman os saudou e eles conversaram, ele e o chefe deles Arap Ali, que comanda desde que o khan deles foi morto; e, finalmente, os turcomanos adentraram as rochas, se agacharam à fogueira de Osman e partilharam pão e sal. E os três planejaram resgatar o Príncipe Orkhan, e colocá-lo no trono otomano.

“Ayesha havia descoberto uma saída secreta do castelo. Neste dia, logo antes do pôr-do-sol, os turcomanos irão atacar o castelo abertamente e, enquanto atraem desta forma a atenção dos curdos, Osman e seus argelinos irão até o castelo pelo caminho secreto. Ayesha terá retornado para Orkhan, e abrirá a porta secreta para eles. Eles levarão o príncipe e cavalgarão para dentro das colinas, recrutando guerreiros. Enquanto conversavam, a noite caiu, eu roí minhas cordas e fugi.

“Você deseja vingança – eis uma chance, tanto para vingança quanto lucro, yah kahwand! Vou lhe mostrar como emboscar Osman. Mate-o... mate a garota... e seus seguidores... leve Orkhan e arrebate um bom resgate de Safia. Ele lhe pagará ricamente para deixá-lo fora do caminho, ou para matá-lo”.

- Mostre-me. – grunhiu o cossaco, incrédulo. Kral assentiu. Tateando dentro de uma pilha de mercadorias, ele acendeu uma tocha com pederneira e aço. Então, acenando para Ivan, ele começou a adentrar a caverna. O zaporozhiano puxou sua espada de lâmina larga e o seguiu.

- Nada de truques, Kral – ele avisou –; ou sua cabeça abandonará seus ombros.

A risada do armênio ressoou selvagemente amarga na escuridão:

- Eu trairia cristãos para aqueles que assassinaram meu povo? Você e seus fanfarrões podem apodrecer no inferno, por mim. Mas, através de você, terei vingança. Portanto, siga-me.

Ivan não respondeu, e Kral seguiu à frente, através de uma estrada estreita e para dentro de um túnel além. Aqui, o teto abobadado era mais alto do que um homem podia alcançar, e três cavalos podiam ser montados lado a lado. O chão liso de rocha se inclinava levemente para baixo e, de tempos em tempos, eles chegavam a curtos lances de escadas esculpidos na pedra, os quais davam para níveis mais baixos. Ivan torceu o bigode reflexivamente e olhava ao redor de si. A trêmula luz da tocha brilhava em formas entalhadas ao longo das paredes, em baixo-relevo. Eram quase todas figuras de homens baixos e atarracados, com cabeças redondas e narizes largos. Guerreavam uns com os outros, caçavam leões; traziam presentes para uma fantástica figura antropomórfica, a qual devia ter sido um deus e, em alguns dos entalhes, lutavam homens de uma raça inconfundivelmente diferente – homens mais altos e mais simetricamente formados, com barbas longas e narizes em forma de gancho. Ivan detectou uma leve semelhança entre estas figuras e Kral.

Enquanto avançavam, o cossaco parecia ouvir um murmúrio de água, de tempos em tempos. Ele mencionou isto.

- Já deixamos o túnel que os antigos fizeram. – respondeu Kral – Agora estamos num antigo curso d’água. Outrora um rio corria aqui, cortando a rocha sólida. Por alguma razão, ele mudou seu curso, só Deus sabe há quantos milênios. É isso o que você ouve, fluindo pela escuridão a pouca distância daqui, mas através de outro canal. Logo, você o verá. Sua nascente é lá entre as montanhas, mas é sobretudo subterrâneo.

Dali a pouco, Ivan ouviu o inconfundível sussurro de água cadente, e à sua frente, o túnel terminava de forma abrupta, no que parecia ser uma sólida parede de rocha. Mas ela era lisa e simétrica demais para ser trabalho da Natureza; era um enorme bloco de pedra, modelado pela mão de homem, e, ao redor das beiradas, deslizava furtivamente uma fina luz cinza. Apagando a tocha, Kral tateou na escuridão, e Ivan o ouviu se esforçar e grunhir. Então, o bloco, que estava sobre um eixo de pedra, girou para o lado e uma camada prateada tremeluziu diante dos olhos do cossaco.

Estavam na entrada estreita do túnel, a qual era oculta por uma camada de água que se precipitava sobre o penhasco lá no alto. Ao pé da cascata, um poço circular espumava e remoinhava, e dele corria um estreito curso d’água desfiladeiro abaixo. Kral apontou uma saliência que saía da abertura da caverna, margeando a beira do poço, e Ivan o seguiu, primeiramente envolvendo com cuidado seu frasco de pólvora e pistolas em sua faixa de seda. Na beirada, a água cadente formava uma camada tão fina que nenhum homem ficava totalmente encharcado ao alcançar o mundo externo. Ivan viu que estava numa garganta estreita, a qual parecia um corte de faca nas colinas. Em nenhum lugar, tinha mais do que 40 ou 50 passos de largura e, em cada lado, penhascos íngremes se erguiam por centenas de metros, mais altos à esquerda que à direita. Não crescia vegetação em lugar algum, exceto por uma franja ao redor da beira do poço, e ao longo do curso do estreito córrego. Este córrego cruzava o chão do desfiladeiro, serpenteando até mergulhar numa fenda estreita no penhasco oposto – até finalmente encontrar seu caminho dentro do rio que atravessava Ekrem, disse Kral. Ivan olhou para trás, em direção ao caminho pelo qual tinha vindo; a cascata escondia completamente a entrada do túnel. Mesmo com o bloco da porta puxado para o lado, ele seria capaz de jurar que as cascatas desciam por uma parede de pedra sem abertura.

Ele seguiu Kral pelo desfiladeiro que não corria reto, mas dava voltas e se retorcia como uma cobra torturada. Dentro de 300 passos, eles perderam a queda d’água de vista, e apenas um murmúrio confuso lhes chegava aos ouvidos. Neste ponto, também, o chão da garganta começava a se inclinar para o alto, numa declividade íngreme. Mais algumas centenas de passos, e o armênio, indo à frente com cautela redobrada, recuou, agarrando o braço de seu companheiro. Havia uma árvore raquítica num ângulo agudo da parede de pedra e, atrás dela, Kral se acocorou, apontando.

Olhando por cima de seu ombro, o zaporozhiano grunhiu. Além do ângulo, o desfiladeiro corria por talvez 80 passos e depois terminava num obstáculo sem abertura. Mas, do lado direito, o penhasco parecia curiosamente alterado, e ele olhou fixamente por um instante, antes de perceber que estava olhando para uma parede feita pela mão do homem. Estavam quase atrás de um castelo construído num desfiladeiro entre os penhascos. Sua parede se erguia perpendicular desde a beirada de uma fenda profunda; nenhuma ponte se estendia sobre esta brecha, e aparentemente a única entrada na parede era uma pesada porta reforçada com ferro.

- Foi por este caminho que a garota Ayesha escapou. – disse Kral – Esta garganta corre quase paralela ao Ekrem; ela se estreita a oeste, e finalmente adentra o vale além de onde ficavam as aldeias. Os curdos bloquearam a entrada lá com pedras, de modo que não pode ser descoberta do vale externo, a menos que alguém saiba dela. Eles raramente usam esta estrada. E nem mesmo eles sabem do túnel além da queda d’água, ou das Cavernas dos Mortos. Mas aquela porta lá longe é a que Ayesha abrirá para Osman Pasha.

Ivan roeu o bigode. Ele ansiava saquear o castelo, mas não viu meios de chegar até ele. A brecha era larga demais para um homem pular, e de qualquer modo, não havia saliência à qual se agarrar no outro lado.

- Por Alá, Kral – ele disse –, eu gostaria de olhar para esse famoso vale.

O armênio olhou para o tamanho dele e sacudiu a cabeça:

- Há um caminho que chamamos A Estrada da Águia, mas não é para alguém como você.

- Por Deus! – rugiu o gigante cossaco, irritando-se instantaneamente – Um pagão vestido em peles é um homem melhor que um zaporozhiano? Vou para qualquer lugar que você ousar!

Kral encolheu os ombros e guiou o caminho de volta, garganta abaixo, até chegarem novamente à queda d’água. Lá, eles pararam diante do que parecia, à primeira vista, um rego raso, desgastado pela corrosão na parede mais alta do penhasco. Olhando atentamente, Ivan viu uma série de rasos apoios para as mãos, entalhados na rocha sólida. Perplexo, ele torceu o bigode.

- Cachorros lhe mordam, Kral – ele resmungou –; um macaco mal conseguia escalar estas bexigas.

- Subi esta escada de mão, antes de ter visto 15 invernos. – Kral sorriu sem alegria – Abaixe seu cinto, e eu lhe ajudarei enquanto subimos.

O orgulho de Ivan lutou contra sua curiosidade, de forma clara em seu rosto largo, por um instante; então, com um encolher de ombros, ele chutou fora suas botas com solas prateadas e desenrolou seu cinto – um grande comprimento, de metro de seda. Uma extremidade ele amarrou ao cinto da espada, e a outra ao cinto do armênio. Assim equipados, eles começaram a jornada vertiginosa. Subiam devagar, mas Ivan teve uma sensação desconfortável de que Kral conseguiria subir a “escada de mão” feito um gato, se estivesse galgando sozinho. O cossaco se agarrava aos buracos rasos com os dedos dos pés e as unhas dos dedos das mãos, e repetidas vezes os cabelos de seu rabo-de-cavalo se arrepiavam e seu sangue gelava, quando ele escorregava no penhasco. Meia-dúzia de vezes, somente o suporte de Kral o salvava. Mas eles finalmente alcançaram o topo, e Ivan se sentou, seus pés balouçando sobre a beirada, e tentou recuperar seu fôlego. Ele desceu o olhar para o poço estreito do qual haviam subido, e praguejou. O desfiladeiro se retorcia como uma trilha de cobra sob ele; e, de sua posição, ele olhava, sobre a muralha sul, para o vale de Ekrem, com seu rio dando voltas sinuosas através dele.

A fumaça ainda flutuava preguiçosamente das massas enegrecidas que outrora foram aldeia. Vale abaixo, na margem direita do rio, havia várias tendas de pele. Ivan distinguiu homens se aglomerando ao redor daquelas tendas, parecendo formigas à distância. Pareciam estar selando os cavalos. Ali estavam os turcomanos, disse Kral, e apontou a entrada de um estreito desfiladeiro vale acima, e para o lado sul, no qual, ele disse, os argelinos estavam acampados. Contudo, era o castelo que atraía o interesse de Ivan.

Este castelo estava assentado num promontório de rocha quase sólida, que se sobressaía dos penhascos e se inclinava até o vale. O castelo tinha frente para o vale, inteiramente cercado por um muro maciço, de 6 metros de altura, e guarnecido por torres no lado que recuava contra o penhasco atrás. Um enorme portão, flanqueado em ambos os lados por uma torre perfurada com fendas estreitas para flechas, dominava a inclinação externa.

Deste portão, o penhasco descia até o chão do vale, não tão íngreme que não pudesse ser galgado com facilidade. Mas a subida não oferecia proteção. Homens atacando por baixo estariam vulneráveis a uma varredura de tiros desde as torres. Ivan encolheu seus ombros gigantescos.

- O próprio diabo não conseguiria tomar esse castelo de assalto, nem mesmo com canhões. Ninguém conseguiria arrastá-los inclinação acima, com aqueles cães na muralha atirando. Se os canhões estivessem no desfiladeiro... mas ao diabo com isso; não temos canhões. Como chegaremos ao irmão do sultão naquela pilha de rocha? Leve-nos até Osman Pasha. Quero levar a cabeça dele ao Sjetsch.

- Seja cauteloso se deseja conservar a sua própria cabeça, kazak. – Kral respondeu sombriamente – Olhe para bem dentro do desfiladeiro. O que vê?

- Uma vastidão de pedra nua e uma margem verde ao longo do curso d’água. – grunhiu Ivan, esticando o pescoço grosso.

Kral arreganhou os dentes como um lobo:

- Taib! E você percebe que a margem é mais densa do lado direito, o qual também é mais alto que o outro? Escute! Escondidos atrás da queda d’água, podemos vigiar até os argelinos alcançarem o desfiladeiro. Então, nos esconderemos entre as moitas ao longo do rio e os atacaremos de surpresa, enquanto eles retornam com o príncipe. Nós mataremos a todos, exceto Orkhan, a quem capturaremos. Então, voltaremos ao longo do túnel através das Cavernas dos Mortos, até os cavalos, e retornaremos à sua terra.

- Isso é fácil. – respondeu Ivan, torcendo seu longo bigode – Tomaremos um navio dos turcos; ficaremos deitados à espera, na costa, até vermos um deles ancorar. Então, sairemos a nado na noite, com nossos sabres nos dentes, e escalaremos as correntes dos navios. Retalharemos e apunhalaremos até a morte aquelas almas de cães! É a maneira como será. Deceparemos as cabeças dos begs e acorrentaremos o restante aos remos, para nos levar de volta através do mar. Mas o que é isto?

Kral se enrijeceu quando o cossaco apontou. Homens saíam a galope do distante acampamento turcomano, fustigando seus cavalos através do rio raso. A luz do sol brilhava nas pontas das lanças. Nos muros dos castelos, elmos começavam a cintilar.

- O ataque! – gritou Kral, olhando ferozmente – Jannan! Eles mudaram seus planos! Eles não iam atacar até o cair da noite! Rápido! Temos que descer o desfiladeiro, antes que os argelinos o alcancem e nos peguem como ratos numa armadilha!

Ele desceu o olhar para o desfiladeiro, o qual desaparecia a oeste como um corte de sabre entre os penhascos, forçando os olhos em busca do brilho de um escudo ou elmo, que pudesse avisar sobre guerreiros que se aproximavam. Até onde conseguia ver, a garganta estava vazia de vida. Ele apressou Ivan sobre o penhasco, e o enorme guerreiro alavancou cuidadosamente seu volume dentro do raso sulco, praguejando amargamente enquanto batia seus cotovelos. A descida parecia ainda mais perigosa que a subida, mas eles finalmente chegaram à garganta, e Kral correu em direção à cascata – uma furtiva figura apressada, grotesca em suas peles de carneiro. Ele suspirou quando alcançaram o poço, atravessaram a saliência e a cascata. Mas, mesmo enquanto chegavam à fantasmagórica penumbra além, ele parou, agarrando o braço coberto de aço de Ivan. Acima do grande movimento da água, seus ouvidos agudos haviam detectado o tilintar de aço na rocha. Eles olharam para fora, através da prateada camada tremeluzente que fazia tudo parecer espectral e irreal, e se esconderam eficazmente dos olhos de qualquer um lá fora. Um estremecimento sacudiu Kral. Por pouco, não haviam ganhado seu refúgio.

Um bando de homens vinha chegando ao longo de desfiladeiro – homens altos e fortes, em cotas-de-malha e elmos amarrados por turbantes. À frente deles, caminhava a passos largos um homem mais alto que os demais, cujo rosto, barbado e aquilino como o deles, ainda diferia sutilmente do de seus seguidores. Seus estreitos olhos cinzentos pareceram mirar diretamente para os ardentes olhos azuis do gigante cossaco, quando o corsário olhou de relance para a queda d’água. Um suspiro profundo se ergueu das profundezas da ampla barriga de Ivan, e sua mão de ferro se fechou convulsivamente no cabo de sua arma. Impulsivamente, ele deu um passo rápido à frente, mas Kral lançou os braços nodosos ao redor dele e se agarrou desesperadamente.

- Em nome de Deus, kazak! – ele exclamou num sussurro desesperado – Não jogue fora nossas vidas! Nós os temos numa armadilha. Se você sair correndo agora, eles vão te balear como a um rato... e então, quem levará a cabeça de Osman para o Sjetsch?

Kral conhecia o espírito temerário dos cossacos, pois havia perambulado entre eles como comerciante, como muitos de sua raça.

- Eu podia balear a cabeça dele, daqui mesmo. – murmurou Ivan.

- Não, isso denunciaria nosso esconderijo, e mesmo que você o matasse, não conseguiria pegar a cabeça dele. Paciência... oh, paciência! Eu lhe digo: nós pegaremos todos eles. Nenhum daqueles cães escapará. Ódio? Olhe para aquele abutre magro em peles de carneiro e kalpak, ao lado de Osman. Aquele é Arap Ali, o chefe turcomano que matou minha jovem irmã e o marido dela. Você odeia Osman? Pelo Deus dos meus ancestrais, meu próprio cérebro fica tonto de loucura, ao pensar em pular sobre Arap Ali e rasgar a garganta dele com meus dentes! Mas paciência! Paciência!

Os argelinos cruzavam o rio estreito, seus khalats enrolados no alto, e segurando seus mosquetes acima das cabeças para manterem as cargas de pólvora secas. Pararam na outra margem, numa atitude de escuta. Dali a pouco, acima do som das águas, os homens na entrada da caverna ouviram um fraco ribombar, o qual vinha do alto do desfiladeiro.

- Os curdos estão atirando desde as torres! – sussurrou Kral. Como se fosse um sinal pelo qual estivessem esperando, os argelinos prepararam suas armas e começaram a subir rapidamente a garganta. Kral tocou o braço do cossaco:

- Aguardai aqui e fique vigiando. Correrei de volta e trarei os senhores irmãos. Será arriscado se eu conseguir trazê-los para cá antes que os piratas retornem.

- Apresse-se, então. – grunhiu o gigante, e Kral escapuliu como uma sombra.


4)

Numa vasta câmara, exuberante com tapeçarias trabalhadas a ouro, divãs de seda e bordados travesseiros de veludo, deitava-se o Príncipe Orkhan. Parecia uma figura de voluptuosa indolência, enquanto se reclinava lá em verde camiseta de cetim, khalat prateado e chinelos de veludo, com um jarro de cristal com vinho ao alcance. Seus olhos escuros, pensativos e introspectivos eram os de um sonhador, cujos sonhos são tingidos com haxixe e ópio. Mas havia linhas firmes em seu rosto penetrante, ainda não apagadas pela preguiça e dissipação; e, sob o rico robe, seus membros eram bem-proporcionados e firmes. Seu olhar repousava em Ayesha, que agarrava tensamente as barras de uma janela, fitando ansiosamente o lado de fora, mas havia uma aparência distraída nos olhos dele. Ele parecia não perceber os tiros, gritos e clamor que rugiam lá fora. Distraidamente, ele murmurava as linhas escritas por um exilado mais famoso de sua casa:

- Jam-i-Jem nush eyle, ey Jem, bu Firankistan dir...

Ayesha se movia inquieta, lançando-lhe um rápido olhar sobre o ombro magro. Em algum lugar desta filha do Irã, ardia o sangue de antigos conquistadores arianos, que não conheciam o Destino. Mil gerações de fatalismo oriental não haviam desgastado isso. Exteriormente, Ayesha era uma muçulmana devota. No fundo, ela era uma indomável pagã. Havia lutado como uma tigresa, para evitar que Orkhan caísse no abismo da degeneração e resignação que seus captores haviam preparado para ele. “É a vontade de Alá” – aquela frase, que segue toda uma filosofia turaniana, é ao mesmo tempo desculpa e consolo para o fracasso. Mas, nas veias de Ayesha, corria forte o sangue feroz dos reis loiros que haviam pisado sobre Nínive e Babilônia em sua estrada ao império, e que não reconheciam outro poder senão seus próprios desejos. Ela era o flagelo que mantinha Orkhan picado com vida e ambição.

- É o momento. – ela murmurou, dando as costas ao parapeito – O sol está a pino. Os turcomanos cavalgam inclinação acima, fustigando seus cavalos e soltando suas flechas em vão contra as muralhas. Os curdos atiram neles de cima... ouça o rugir de seus mosquetes! Os corpos dos homens tribais se alastram pelas inclinações, e os sobreviventes recuam... agora, eles vêm novamente, como loucos. Estão morrendo por ti, yah khawand! Devo me apressar... tu ainda sentarás no trono, no Chifre Dourado, meu amado!

Prostrando seu corpo esguio diante dele, ela lhe beijou os pés calçados com chinelos num completo êxtase de paixão, e logo se levantou, correu para fora da câmara – através de outra, onde dez gigantes negros mudos montavam guarda noite e dia – e, atravessando um corredor, encontrou-se no pátio externo que ficava entre o castelo e o muro dos fundos. Ninguém tentou pará-la. Ela era livre para ir e vir pelas muralhas o quanto quisesse, embora Orkhan fosse sempre vigiado pelos mudos e não tivesse permissão para sair da câmara, exceto quando acompanhado pelo próprio Shirkuh. Poucas perguntas lhe foram feitas quando ela retornara ao castelo, fingindo sentir grande medo dos turcomanos. Ela havia cuidadosamente escondido sua paixão pelo príncipe, dos olhos de águia do chefe curdo, o qual pensava que ela não fosse mais do que a ferramenta de Safia.

Ela atravessou o pátio e se aproximou da porta que dava entrada para o desfiladeiro. Um guerreiro se apoiava ali, mal-humorado por não poder participar da luta que estava acontecendo. Shirkuh era um homem cauteloso. Os fundos do seu castelo pareciam invulneráveis, mas ele nunca se arriscava desnecessariamente. Ele não tinha culpa de ignorar a presença de uma traidora em seus domínios. Homens mais prudentes que El Afdal Shirkuh já haviam sido enganados e ludibriados por mulheres como Ayesha.

O homem que montava guarda era um usbeque, um daqueles nômades guerreiros turbulentos que serviam a todos os governantes da Ásia como mercenários. Ele era de constituição mais larga que os curdos, seu parentesco com os mongóis evidenciado em seu rosto largo, olhos levemente oblíquos e cabelo escuramente avermelhado. Seu pequeno turbante estava com o nó sobre sua orelha esquerda, e seu cinto largo carregado de facas e pistolas. Ele se curvava, carrancudo, sobre um mosquete, quando Ayesha se aproximou dele, seus olhos escuros eloqüentes sobre o véu tênue.

Ele cuspiu e carranqueou:

- O que faz aqui, mulher?

Ela puxou o leve manto para mais perto, ao redor de seus ombros esguios, trêmula.

- Estou com medo. Os gritos e tiros me assustam, bravo guerreiro. O príncipe está drogado com ópio, e não há ninguém para acalmar meus medos.

Ela seria capaz de incendiar o coração congelado de um homem morto, como estava ali, em sua atitude de medo e súplica trêmulos. O usbeque puxou a barba.

- Não tenha medo, pequena gazela. – ele finalmente disse – Vou te acalmar, por Alá. – Ele pôs uma mão de unhas negras sobre o ombro dela, e a puxou para perto de si – Ninguém encostará um dedo numa mecha do teu cabelo – ele murmurou –; nem turcomano, nem curdo, nem... ahhh!

Aninhando-se nos braços dele, ela havia lhe tirado rapidamente uma adaga da faixa e a enfiado no pescoço taurino do homem. A mão dele abandonou o ombro dela, para agarrar os cabos no cinto, enquanto a outra agarrava a própria barba, o sangue lhe esguichando entre os dedos. Ele cambaleou e caiu pesadamente. Ayesha se apoderou de um molho de chaves do cinto dele e, sem olhar novamente para sua vítima, correu até a porta. Ela estava com o coração na boca, quando a abriu; então, ela soltou uma exclamação baixa de alegria. Na beirada oposta do abismo, encontrava-se Osman Pasha com seus piratas.

Dentro do portão, havia uma prancha pesada, usada como ponte, mas era pesada demais para que ela a manuseasse. O acaso a havia capacitado a usá-la em sua fuga anterior, quando uma rara falta de cuidado a deixara de um lado a outro do abismo, sem ser vigiada, por poucos minutos. Osman lançou até ela a extremidade de uma corda, e a garota a amarrou às dobradiças de uma porta. A outra extremidade foi agarrada por meia-dúzia de homens fortes, e três argelinos cruzaram a fenda, pendurando-se na corda pelas mãos tão agilmente quanto macacos. Então, eles ergueram a prancha e a estenderam sobre o abismo para que os demais atravessassem. Não havia nenhum defensor à vista. O tiroteio na frente do castelo continuava, sem pausa.

- Vinte homens ficam aqui, vigiando a ponte. – Osman disse bruscamente – Os demais me sigam.

Abandonando seus mosquetes, 20 desesperados lobos-do-mar desembainharam seus aços e seguiram seu chefe. Osman sorria de pura alegria, enquanto os guiava rapidamente, atrás da jovem de pés ligeiros. Tal aventura desesperada e arriscada, dentro do covil do leão, lhe agitava o sangue como vinho. Quando entraram no castelo, um criado se ergueu de um pulo e ficou boquiaberto e paralisado ao vê-los. Antes que ele pudesse gritar, o iatagã afiado de Arap Ali lhe cortou o pescoço, e o bando continuou avançando rápida e temerariamente, para dentro da câmara onde os dez mudos se ergueram bruscamente, agarrando as cimitarras. Houve uma agitação de luta feroz e silenciosa – muda, exceto pelo assobiar e raspar de aço, e o ofegar moribundo dos feridos. Três argelinos morreram e, sobre os corpos retalhados dos defensores negros, Osman Pasha entrou, a passos largos, na câmara interna.

Orkhan se levantou e seus olhos calmos brilharam com um fogo antigo, quando Osman, com um instinto para representações teatrais, ajoelhou-se diante dele e ergueu o cabo de sua cimitarra ensangüentada.

- Estes são os guerreiros que lhe colocarão em seu trono! – gritou Ayesha, fechando as mãos brancas em alegria apaixonada – Yah Allah! Oh, meu senhor, que grande momento este!

- Mas vamos partir rapidamente, antes que aqueles cães curdos saibam de nossa presença. – disse Osman, gesticulando para que os guerreiros parassem ao redor de Orkhan, numa sólida massa de aço. Atravessaram as câmaras rapidamente, cruzaram o pátio e se aproximaram do portão. Mas o estrondo do aço havia sido escutado. Quando os incursores estavam cruzando a ponte, uma mistura de gritos selvagens se ergueu atrás deles. Do outro lado do pátio, vinha correndo uma figura alta em seda e aço, e seguida por 50 espadachins usando elmos.

- Shirkuh! – gritou Ayesha, empalidecendo – La Allah...

- Abaixem a prancha! – rugiu Osman, pulando até a cabeça da ponte.

Em ambos os lados do abismo, mosquetes relampejaram e rugiram. Meia-dúzia de curdos se contorceu, mas os quatros argelinos, que haviam se abaixado para erguer a prancha e lançá-la no precipício, caíram numa pilha contorcida diante de uma rajada de tiros; e Shirkuh correu pela ponte, seu rosto aquilino convulsionado e sua cimitarra lampejando ao redor da cabeça coberta de aço. Osman Pasha o enfrentou corpo-a-corpo e, num redemoinho brilhante de aço, a cimitarra do corsário raspou a lâmina de Shirkuh, e o fio aguçado cortou a cota-de-malha e os músculos grossos da base do pescoço do curdo. Shirkuh cambaleou e, com um grito selvagem, caiu para trás e de ponta-cabeça, abismo abaixo.

Num instante, os argelinos haviam derrubado a ponte logo após ele, e os curdos pararam, gritando com fúria frustrada, no lado distante da fenda. O que havia sido a força deles, agora se tornou sua fraqueza. Eles não conseguiam alcançar seus inimigos. Mas, protegidos pelo muro, abriram fogo vingativamente, e mais três argelinos foram derrubados antes que o bando pudesse ficar fora de alcance, dobrando o ângulo do penhasco. Osman praguejou. Dez homens eram mais do que ele esperava perder naquele veloz ataque-surpresa.

- Todos, menos seis de vocês, vão adiante e vejam se o caminho está livre. – ele ordenou – Seguirei mais devagar com o príncipe. Mirza, eu não posso trazer um cavalo até o desfiladeiro, mas meus cães lhe carregarão numa liteira de mantos suspensos entre lanças...

- Alá me proíba de montar nos ombros de meus libertadores! – gritou o jovem turco, numa voz ressonante – Não esquecerei este dia! Sou um homem novamente! Sou Orkhan, filho de Selim! Também não esquecerei isso, Inshallah!

- Mashallah... Deus seja louvado! – sussurrou a jovem persa – Oh, meu senhor, estou cega e atordoada de alegria, em lhe ouvir falar desta forma! Em verdade, você é novamente um homem, e será padixá de todo o Império Otomano!

Eles estavam próximos da queda d’água. O primeiro destacamento havia quase alcançado o rio, quando súbita e inesperadamente como o ataque de uma naja escondida, uma pistola disparou das moitas no outro lado, e um guerreiro caiu com os miolos escorrendo de um buraco em seu crânio. Instantaneamente, como se o tiro fosse um sinal, foi disparada uma saraivada desde as moitas. Os corsários da frente caíram como milho maduro, e o restante recuou, gritando de raiva e terror. Não conseguiam ver sinal de seus atacantes, exceto a fumaça se encapelando pelo rio e os homens mortos aos seus pés.

- Cão! – rugiu Osman Pasha, desembainhando sua cimitarra e se voltando para Arap Ali – Isto é obra sua!

- Acaso tenho fuzis? – guinchou o turcomano, com seu rosto escuro empalidecido – Ya Ali, alahu! Isto é obra de demônios...

Osman correu garganta abaixo, em direção aos seus homens desmoralizados, e praguejando loucamente. Ele sabia que os curdos poderiam colocar algum tipo de ponte sobre o precipício e persegui-lo, o que o deixaria pego entre dois fogos. Quem eram seus agressores, ele não tinha idéia. Garganta acima, na direção do castelo, ele ainda ouvia o estrondo dos mosquetes, e súbito uma grande explosão de disparos pareceu vir do vale externo, mas enclausurado naquele desfiladeiro estreito que abafava e distorcia todos os sons, ele não conseguia ter certeza.

A fumaça havia se dissipado do rio, mas os muçulmanos não conseguiam ver nada, exceto um agitar sinistro das moitas na margem oposta. Eles recuaram, procurando por um abrigo; não havia nenhum, exceto voltando pelo desfiladeiro, em direção às presas dos enlouquecidos curdos. Estavam numa armadilha. Começaram a disparar seus mosquetes às cegas em direção às moitas, arrancando apenas gargalhadas zombeteiras dos atacantes escondidos. Osman se sobressaltou violentamente ao ouvir aquela risada, e abaixou os canos dos mosquetes.

- Idiotas! Querem desperdiçar pólvora, atirando nas sombras? Desembainhem seus aços e me sigam!

E, com a fúria do desespero, os argelinos atacaram impetuosamente na direção da cilada, seus mantos ondulando, seus olhos ardendo em chamas e o aço nu lhes brilhando nas mãos. Uma varredura de balas lhes reduziu a fileira, mas eles prosseguiram, saltaram temerariamente na água e começaram a atravessá-la com dificuldade. E agora, dentre os arbustos densos na outra margem, saíam figuras selvagens, em cota-de-malha ou seminuas, com espadas curvas em suas mãos.

- Ataquem-nos, caros irmãos! – bramiu uma voz poderosa – Cortem, retalhem, ho... lutem, cossacos!

Um brado de incrédulo assombro se ergueu dos muçulmanos, ao verem aquelas esguias figuras ansiosas, em cujos capacetes e sabres o sol brilhava como fogo. Então, com um trovejante rugido do fundo da garganta, eles se aproximaram, e o raspar e o estrondear do aço se ergueu e ecoou dos penhascos. Os primeiros argelinos a pularem sobre a margem mais alta, caíram de volta ao rio, com suas cabeças partidas, e então os cossacos, loucos com a fúria da batalha, pularam a margem e enfrentaram seus inimigos corpo-a-corpo, dentro da água que rapidamente ficou escarlate. Não foi dada nem pedida rendição; cossacos e argelinos retalharam e mataram em cego frenesi, a espuma lhes embranquecendo os bigodes e o suor lhes correndo para dentro dos olhos.

Arap Ali correu para dentro da luta, louco de medo e fúria, seus olhos fulgurando como os de um cão raivoso. Sua lâmina curva partiu a cabeça raspada de um cossaco até os dentes; então, Kral o encarou, de mãos nuas e guinchando.

O turcomano parou por um instante, atemorizado pela selvagem ferocidade animal no rosto contorcido do armênio; então, com um grito assustador, Kral deu um salto e seus dedos se fecharam como aço no pescoço do chefe tribal. Ignorando a adaga que Arap lhe enfiava várias vezes no lado, Kral se agarrava, o sangue saindo sob suas unhas para se misturar com o escarlate que jorrava da garganta rasgada do turcomano, até que, perdendo o equilíbrio, ambos caíram dentro do rio. Ainda rasgando e dilacerando, eles foram arrastados pela correnteza; ora uma face rosnante aparecia sobre a superfície avermelhada, ora outra, até que finalmente ambas desapareceram para sempre.

Os argelinos foram rechaçados margem direita acima, onde fizeram uma breve e sangrenta resistência; então, recuaram, aturdidos e ferozes, para onde o Príncipe Orkhan encarava como se também aturdido, na sombra do penhasco, com o pequeno grupo de guerreiros que Osman havia destacado para guardá-lo. Ayesha se ajoelhava, agarrando os joelhos dele. Os olhos do príncipe estavam assombrados; por três vezes, ele se moveu, como que para pegar uma espada e se lançar ao conflito, mas os braços de Ayesha eram como esguias faixas de aço ao redor dos joelhos dele. Osman Pasha, escapando da batalha, correu até ele. A cimitarra do corsário estava vermelha até o cabo, sua malha retalhada e o sangue pingando sob seu elmo. Todos ao redor rugiam e remoinhavam em duelos e grupos de luta, à medida que o combate se dispersava sobre o desfiladeiro. Este havia se tornado um matadouro salpicado de sangue. Não haviam restado muitos em ambos os lados da luta, mas havia mais cossacos de pé do que maometanos.

Ivan Sablianka avançava através do embate do conflito, brandindo sua grande espada com seu punho em forma de malho. Qualquer um que se opusesse a ele era derrubado com golpes que despedaçavam escudos cobertos de couro, desmoronavam em gorros de aço e partiam igualmente cotas-de-malha, carne e ossos.

- Ei, seus patifes! – ele rugiu, em seu Turco bárbaro – Quero sua cabeça, Osman, e o sujeito ao seu lado... Urkhan. Não tenha medo, príncipe; não vou lhe machucar. Você dará um belo resgate para nós, cossacos!

Os olhos agudos de Osman palpitaram ao redor, procurando uma via para escapar. Ele viu o sulco indistinto, que guiava para o alto do penhasco, e seu cérebro agudo instantaneamente adivinhou sua utilidade.

- Rápido, meu senhor! – ele sussurrou – Vamos subir o penhasco! Manterei este bárbaro à distância, enquanto você sobe!

- Sim! – Ayesha insistiu com impaciência – Oh, depressa! Posso escalar como um gato! Irei atrás de você e lhe ajudarei! É perigoso, mas é uma chance, e isto é melhor do que cair de volta ao acorrentamento e cativeiro!

Ela estava tensa, e tremia de ânsia para se esforçar e lutar como uma louca pelo homem que amava. Mas a máscara do fatalismo havia descido novamente no Príncipe Orkhan. Não lhe faltava coragem, mesmo para tal subida. Mas a filosofia paralisante da futilidade se apossara dele. Ele olhou ao redor, onde os vitoriosos cossacos matavam seus novos aliados que ainda viviam. E ele curvou a bela cabeça.

- Não, isso é Kismet. Alá não quer que eu me sente no trono de meus ancestrais. Não, qual homem consegue escapar de seu destino?

Ayesha recuou, seus olhos luzindo numa espécie de horror, suas mãos agarrando os próprios cachos. Osman, percebendo o estado do príncipe, girou, saltou para o poço e subiu como só um marinheiro conseguiria escalar. Com um rugido, Ivan correu atrás dele, esquecendo tudo sobre o príncipe. Os cossacos se aproximavam, sacudindo pingos vermelhos de seus sabres. Orkhan abriu suas mãos resignadamente, e Ayesha o observava, com os lábios entreabertos em muda agonia.

- Che arz kunan? – ele disse com simplicidade, encarando seus novos captores – Levem-me se quiserem; sou Orkhan.

Ayesha oscilou e suas mãos apertaram seus olhos fechados, como se estivesse a ponto de desmaiar. Então, saltando como um clarão, ela enfiou sua adaga direto no coração do príncipe, e ele morreu aos seus pés, tão rapidamente que mal sentiu a dor do golpe. E, quando ele caiu, ela virou a ponta e a enfiou no próprio peito, e caiu ao lado de seu amante. Gemendo suavemente, ela deitou a cabeça principesca dele nos braços que enfraqueciam, enquanto os cossacos os cercavam, pasmos e sem entenderem nada.

Um som, desfiladeiro acima, fez com que erguessem as cabeças e encarassem uns aos outros. Só restara um punhado deles, cansados e aturdidos, suas roupas encharcadas de água e sangue, e seus sabres coagulados e com cortes. Ivan não estava lá, e eles não sabiam o que fazer.

- Voltem para dentro do túnel, irmãos. – grunhiu Togrukh – Eu ouço homens descendo a garganta. Voltem pelo túnel, até o local onde deixamos os cavalos. Selem e fiquem prontos para cavalgar. Seguirei Ivan.

Eles obedeceram, e ele subiu o penhasco, praguejando diante dos rasos buracos para as mãos. Os cossacos mal haviam desaparecido atrás da cortina prateada, e ele ainda não havia alcançado o topo do penhasco, quando vários homens apareceram, marchando apressadamente. O desfiladeiro estava apinhado de guerreiros. Togrukh, olhando para baixo com a curiosidade de um cossaco, viu os turbantes e khalats dos curdos do castelo, e, com eles, os pontudos gorros brancos dos janízaros turcos. Um deles usava meia-dúzia de plumas de ave-do-paraíso em seu gorro, e Togrukh ficou boquiaberto ao reconhecer o agha dos janízaros, o terceiro homem mais poderoso do Império Otomano. Ele e seus seguidores estavam empoeirados, como se de uma longa e dura cavalgada. Olhando em direção ao vale, o magro cossaco viu o estandarte do agha, de três caudas de cavalo branco, esvoaçando do portão do castelo, e, ao longo do rio, os turcomanos em suas peles de carneiros cavalgavam como loucos para as colinas, perseguidos por cavaleiros em malha cintilante – os spahis turcos. Togrukh sacudiu a cabeça em assombro. O que trouxe o agha dos janízaros, em tal formação de tropas, até o solitário Vale de Ekrem?

Desfiladeiro abaixo, se ergueu um coro de vozes horrorizadas, quando os recém-chegados pararam assombrados entre os cadáveres. O agha se ajoelhou ao lado do homem morto e da jovem moribunda.

- Por Alá! É o Príncipe Orkhan!

- Está além de seu poder. – murmurou Ayesha – Você não pode mais feri-lo. Eu teria feito dele um rei. Mas vocês o despojaram de sua virilidade... por isso eu o matei... melhor uma morte honrada, do que...

- Mas eu trago para ele a coroa da Turquia! – gritou o agha desesperadamente – Murad está morto, e o povo se revoltou contra o filho mestiço de Safia...

- Tarde demais! – sussurrou Ayesha – Tarde... demais!

A cabeça morena dela afundou em seu braço branco e arredondado, como uma criança ao pegar no sono.


5)

Quando Ivan Sablianka subiu a escada de mão, Kral não estava lá para ajudá-lo, pois este último jazia morto ao lado do também morto Arap Ali, debaixo do rio manchado de sangue. Mas, neste momento, o ódio o incitava a prosseguir, e ele subia a trilha precária de forma tão indiferente quanto se escalasse o enfrechate de um navio. Pedaços pequenos de pedra desagregada cediam sob seu aperto e caíam do penhasco em minúsculas avalanches; mas, de alguma forma, ele enganava a morte o tempo todo e subia inexoravelmente. Não estava muito distante de Osman Pasha, quando o corsário chegou ao topo e correu através dos abetos raquíticos. Ivan foi atrás dele, suas longas pernas carregando sua estrutura gigante através do chão numa velocidade surpreendente, e logo Osman, girando e vendo que só tinha um inimigo com o qual lidar, o enfrentou praguejando.

Um sorriso feroz eriçou a barba negra do corsário. Ali havia uma forma enorme, na qual poderia trinchar sua selvagem repugnância pela frustração de seus planos. Há apenas alguns meses, ele havia sido o mais temido senhor do mar no mundo, com o amplo e azul Mediterrâneo aos pés. Agora ele estava tosquiado de todos os sequazes e poder, exceto aquele que agarrava em sua forte mão direita e que estava trancado em seu crânio. Ele era aventureiro demais, para desperdiçar tempo lamentando sua queda, mas a chance de abater este pestífero cossaco lhe dava uma sombria satisfação.

Pensar era mais fácil que fazer. Apesar de todo o seu raciocínio lento e do volume, Ivan era rápido como um felino. Aço retiniu com aço, e a longa lâmina reta do zaporozhiano se chocou contra a cimitarra argelina. O corsário era quase tão alto quanto o cossaco, embora não tão compacto. Sua cimitarra era mais reta e pesada que a maioria das lâminas muçulmanas, e ele mostrava uma aptidão extraordinária tanto na ponta quanto no gume. Por três vezes, somente a malha esfarrapada de Ivan o salvou das estocadas perversas do corsário. Estas, ele alternava com cortes sibilantes, os quais arrancavam pedaços de metal da couraça de Ivan, e logo o faziam sangrar de meia-dúzia de ferimentos. O propósito de Osman era manter o gigante na defensiva, onde sua força superior não o ajudaria como no ataque. Sua cabeça raspada e queimada de sol se movia rapidamente diante dos olhos do corsário, o claro rabo-de-cavalo flutuando ao vento, e Osman talhava em direção a ela, até o suor correr para dentro de seus olhos e sua respiração ficar insuficiente. Mas, de alguma forma, Ivan sempre conseguia deter ou evitar seus golpes mais perigosos. A cimitarra de Osman resvalava na lâmina reta, ou se chocava no chamejante guarda-mão.

Não havia som, exceto o clangor do aço, o ofegar da difícil respiração, e o bater e mudança de posição dos pés dos lutadores. A pura força do cossaco começou a produzir efeito. De um turbilhão de ofensiva, Osman se viu gradualmente forçado a assumir a defensiva, usando toda a sua força e habilidade para deter os terríveis golpes impetuosos do cossaco. Com um grito arquejante, ele arriscou tudo num desesperado ataque e saltou como um tigre, a cimitarra cintilando acima de sua cabeça. Ele percebeu uma agonia no coração e, agarrando convulsivamente com sua mão nua a lâmina que o havia empalado, ele golpeou com sua última pitada de força em direção à cabeça de seu matador. Ivan recebeu o golpe em seu erguido braço esquerdo; a lâmina afiada cortou os anéis de malha e a carne até o osso. A cimitarra caiu da mão flácida de Osman, e ele escorregou da lâmina empaladora até a terra encharcada de sangue. E, de seus lábios pálidos, irromperam palavras numa língua estranha:

- Deus tenha piedade de mim... Nunca mais verei Devon!

Ivan se sobressaltou violentamente, vacilando, e então, com um grito, caiu de joelhos ao lado dele, esquecido do próprio ferimento que jorrava sangue. Agarrando seu inimigo, ele o sacudiu ferozmente, gritando na mesma língua:

- O que disseste? O que disseste?

Os olhos vitrificados rolaram para cima diante dele, e Ivan arrancou o elmo da cabeça ferida do homem. E ele gritou, como se Osman o tivesse esfaqueado.

- Misericórdia de Deus! Roger! Black Roger Bellamy! Não me conheces, rapaz? É John Hawksby... o velho John Hawksby, que lutou contigo e por ti, quando estivemos juntos em Devon! Ah, Deus nos perdoe por termos nos reencontrado assim! E numa terra desolada, desconhecida. E como entraste em tal máscara pagã, Roger?

- Uma longa história e pouco tempo para contá-la. – murmurou o renegado – Não, John – enquanto isso, o enorme homem começou a rasgar faixas da própria roupa, para estancar o sangue que acabara de deixar escorrer tão voluntariamente –, não, eu estou terminado. Deixe-me aguardar. Eu estava com Drake, quando nos dirigimos a Lisboa e perdemos tantos navios bons e bravos jovens. Fui um a quem os espanhóis levaram. Eles me prenderam a um remo de galé. Algo se quebrou dentro de mim, enquanto eu labutava penosamente lá, sob o chicote. Esqueci a Inglaterra, sim, e Deus também.

“Um navio pirata berbere tomou a galé, e o Capitão Pasha – seu nome era Seyf-ed-din – ofereceu aos escravos vida, se eles se tornassem muçulmanos. As galés fazem um homem esquecer muito – mesmo que ele tenha sido um cristão. Talvez não haja grande diferença entre bucaneiro e corsário. Inicialmente, eu só queria atacar a Espanha. Depois, quando subi ao poder, esqueci cada vez mais o sangue em mim. Assolei tanto os mares cristãos quanto muçulmanos. Sim, agora o sabor de fama pagã e glória sangrenta é pó na minha boca. Como você se tornou um cossaco?”.

- Bebida e as mulheres, rapaz. – respondeu Ivan Sablianka, o qual havia sido John Hawksby, de Devon – Eu não consegui ficar em Devon, por causa de feudos e lutas com várias pessoas. Aventurei-me no leste, até perder a lembrança e sensação da Inglaterra. Afundem meus ossos, fui um grande pagão, tanto quanto você, Roger. Mas você se lembra dos grandes e velhos dias, quando espancamos os nobres espanhóis no Mar Espanhol?

- Lembrar-me? – os olhos do homem moribundo resplandeceram, e ele se ergueu cambaleante sobre o cotovelo, o sangue lhe jorrando da boca – Deus, navegar outra vez com Drake e Grenville! Rir com eles, como rimos ao destruirmos a Armada de Philip!... deixe as chaves do tempo!... é a nau almirante de Sidônia!... homem, as bombas, os valentões; não vou golpeá-los enquanto houver uma prancha sob meus pés!... dê-lhes uma bordada de canhões... as armas do estibordo... alças e pistolas, lá...

Ele caiu de novo, o balbucio do delírio lhe morrendo nos lábios. Ivan, ajoelhado ao lado do homem morto, estava perdido em lembranças, até que um tinir de aço na pedra o fez dar a volta instintivamente, de espada pronta. Togrukh estava próximo a ele, no crepúsculo que caía.

- Eu vi você abater o cão. Os rapazes voltaram para dentro do túnel. Só há nove deles vivos, além de nós. O desfiladeiro está cheio de turcos. Teremos de seguir através dos penhascos, até o local onde deixamos os cavalos. O que vai fazer?

Ivan havia estirado o manto do corsário sobre o pirata morto.

- Vou colocar pedras sobre ele, para que os abutres não roam seus ossos. – ele respondeu imperturbavelmente.

- Mas a cabeça dele! – advertiu o outro – A cabeça dele, para mostrar aos nossos caros irmãos!

O gigante olhou ao redor do escurecer, tão sombriamente que Togrukh recuou involuntariamente.

- Ele está morto, não está?

- Sim, com certeza.

- E você será testemunha, para nossos caros irmãos, de que eu o matei, não?

- Sim, mas...

- Então, deixe-o descansar aqui. – grunhiu Ivan, curvando suas costas poderosas, enquanto começava a erguer pedras e empilhá-las no local.


FIM


(*) – Bei: Título adotado, tanto pelos monarcas da Tunísia quanto pelos governantes do Império Seljúcida e Império Otomano (Nota do Tradutor).

(**) – Janízaros: A elite do exército dos sultões otomanos (N. do T.).




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão e Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: Sword Woman and Other Historical Adventures.

Agradecimentos especiais: À grande amiga Manuela Queiroz (hoje Manuela Vinnie Wigardt) – sobrinha de minha amada esposa e minha sobrinha do coração.


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