(por Robert E. Howard)
1)
Embora os
canhões tivessem parado de soar, o trovejar deles ainda parecia ecoar assombrosamente
por entre as colinas que se sobressaíam da água azul. A uma légua da costa, o
perdedor daquela sombria batalha naval nadava nas ondas escarlates; fora do
alcance de um tiro de canhão, o vencedor se afastava enfraquecido. Era uma cena
bastante comum no Mar Negro, no ano de Nosso Senhor de 1595.
O navio, que
girava como um bêbado no deserto azul, era uma galera de esporão alto, como as
que eram usadas pelos temíveis corsários berberes. A morte havia feito uma
sombria colheita ali. Homens mortos se alastravam na popa alta; pendiam
flácidos sobre o parapeito marcado; jaziam entre as ruínas do castelo da popa;
despencaram sobre a pista que transpunha o poço, onde os remadores
estraçalhados jaziam entre seus bancos despedaçados. Mesmo na morte, estes
últimos não tinham a aparência de homens nascido para a escravidão – eram
homens altos, com feições morenas e aquilinas. Em cercados ao redor da base do
mastro, cavalos enlouquecidos de medo lutavam e relinchavam insuportavelmente.
Amontoados na
popa estilhada, estavam os sobreviventes – 20 homens, muitos deles pingando
sangue dos ferimentos. O ranço da pólvora queimada e sangue fresco pairava
sobre o navio, como uma mortalha. Aqueles homens eram um estranho bando
pitoresco – muitos deles altos e magros, como homens que passavam suas vidas na
sela de um cavalo. De fato, eles não pareciam estar totalmente em casa na água.
Eram bronzeados pelo sol, não tinham barba e seus bigodes pendiam abaixo de
seus queixos; suas cabeças estavam raspadas, exceto por um rabo-de-cavalo no
topo do crânio. Estavam vestidos com botas e calças folgadas de couro, nanquim
ou seda; alguns usavam kalpaks,
gorros de pele de cordeiro; outros usavam gorros de aço, enquanto muitos não
usavam nada na cabeça. Alguns vestiam camisas de cota-de-malha, outros estavam
nus até suas cinturas envoltas por faixas, seus ombros largos e musculosos
quase enegrecidos pelo sol. Tinham lâminas desembainhadas em suas mãos –
cimitarras turcas e longos sabres húngaros. Seus olhos escuros eram inquietos;
havia algo de águia em todos eles – algo selvagem e indomável, dos elementos
fundamentais da Vida.
Eles estavam
ao redor de um homem que jazia moribundo na popa. O bigode caído deste homem
era acinzentado. Seu rosto era cheio de velhas cicatrizes. Seu manto estava
puxado para trás, sua camisa manchada pelo sangue que fluía de um corte de
espada no lado.
- Onde está
Ivan... Ivan Sablianka? – ele murmurou.
- Aqui está
ele, asavul. – respondeu o coro,
enquanto um guerreiro alto se aproximava a passos largos.
- Sim, aqui
estou, tio. – o homem grande torceu incerto seu bigode. Era o homem mais alto
ali, e de constituição pesada. Vestido como os outros, ele diferia estranhamente
dos demais. Seus olhos grandes eram azuis como as águas de um mar profundo, seu
rabo-de-cavalo e bigode gracioso de cor de ouro tecido. Ele havia perdido o
elmo e, em seu enorme punho, segurava a grande arma que lhe dava nome: sablianka – pequena espada.
Ele se
inclinou para ouvir as palavras do moribundo asavul.
- Ele fugiu de
nós, caros irmãos. – este sussurrou – Algum dos capitães ainda vive?
- Não, pequeno
tio. – respondeu um guerreiro magro e moreno, o qual amarrava uma rude bandagem
ao redor do antebraço talhado – Tashko levou um tiro, e...
- Não; eu vi
os outros morrerem. – murmurou o homem mais velho – Sou o único oficial entre
vocês, e estou morrendo. Ivan... irmãos... sua tarefa ainda não acabou. Não
posso ir com vocês, mas vocês não devem vacilar. Quando ficamos ao redor do
corpo mutilado de Skol Ostap, nosso atamã, nas margens do Pai Dnieper, todos
nós juramos por nossa honra cossaca que não descansaríamos até trazermos de
volta ao Sjetch a cabeça do demônio
que matou a ele e a nossos camaradas. Agora, após o termos seguido pelo Mar
Negro na galera que tomamos dele, ele nos derrotou e se afasta cambaleante;
não, ele não pode cavalgar muito longe num cavalo que desunhamos com balas de canhões.
Ele correrá para dentro da costa. Vocês têm cavalos... sigam! Para Istambul ou
para o inferno! Ivan, você agora é o sargento. Vá! Morra ou traga a cabeça de
Osman Pasha... que... matou... Skol... Ostap...
A cabeça
raspada caiu sobre o peito cicatrizado. Os cossacos se levantaram e murmuraram
sob seus bigodes. Olharam em expectativa para Ivan Sablianka. Ele mastigava
reflexivamente o bigode, olhava rapidamente para a vela triangular que pendia
no ar sem vento, e encarava o litoral. Além da de seu inimigo, nenhuma outra vela
estava visível no mar; nenhum porto ou cidade naquela selvagem costa solitária.
Pequenas colinas cobertas por árvores se erguiam da linha d’água, erguendo-se
rapidamente até montanhas azuis à distância, nas quais os picos de cumes
nevados eram avermelhados pelo sol poente. Havia uma razão pela qual Ivan
deveria saber mais sobre mares e navios que seus camaradas, mas ele não tinha
idéia exata sobre onde estavam. Eles haviam cruzado o Mar Negro; portanto,
estavam agora em território muçulmano; essas colinas estavam, sem dúvida,
cheias de turcos – em sua mente, ele englobava todas as raças maometanas num
único e desdenhoso termo.
Com os olhos
protegidos por sua mão larga, ele mirou a embarcação que recuava lentamente –
uma duplicata daquela onde estavam. Sua tripulação estava feliz o suficiente
por ter escapado do aperto da morte. Ivan sabia que ela estava inutilizada além
de qualquer reparo, embora em melhor forma do que o navio incapacitado que
afundava sob seus pés. O corsário se dirigia a um arroio que serpenteava das
colinas, entre penhascos altos. A embarcação se movia devagar, adernando para
pôr o leme a bombordo, mas Ivan acreditava que ela conseguiria. Na popa, ele
ainda conseguia distinguir uma figura que fazia sua garganta ribombar – uma
figura alta, em cuja malha e elmo o sol poente cintilava. Ivan se lembrava do
rosto sob aquele elmo, vislumbrado no frenesi caótico da batalha – de nariz
aquilino, olhos cinzas e barba negra –, atiçando, no cossaco, uma sensação
ilusória de semi-recordação. Aquele era Osman Pasha, até recentemente o flagelo
do Levante e o mais renomado de todos os corsários argelinos.
Ivan examinou
a costa. Ele não poderia ir até a desembocadura do arroio, mas acreditava que
poderia desembarcar a galera num promontório inclinado, mais próximo deles. Ele
foi até uma das direções de varredura.
- Togrukh e
Yermak, peguem a outra. – ele mandou – Demetri e Konstantine, acalmem os
cavalos. O resto de vocês, cães-irmãos, enfaixem seus cortes, e depois entrem
no poço e remem o melhor que puderem. Se algum daqueles porcos argelinos ainda
estiver vivo, acerte-o na cabeça.
Devagar e
laboriosamente, eles desembarcaram o navio. O sol estava se pondo, as longas
sombras dos penhascos mudando do azul-escuro para a púrpura aveludada. Uma
névoa suavemente azul pairava sobre a água escura, à qual o pôr-do-sol tornava
ametista parda. Algumas estrelas piscavam no céu. A galera pirata havia entrado
vacilante na desembocadura do arroio, desaparecendo entre os penhascos
sobressalentes.
Ivan e seus
companheiros trabalhavam imperturbavelmente. O parapeito do estibordo estava
quase inundado, e os cossacos abandonaram os remos e subiram à popa. Os cavalos
relinchavam novamente, enlouquecidos de medo pela água que subia. Os cossacos
olharam para a margem e se aglomeraram, pois todos sabiam que havia tribos hostis,
mas nada disseram. Eles seguiam as ordens de Ivan tão implicitamente quanto se
ele tivesse sido eleito atamã por um conclave normal no Sjetsch, aquela fortaleza de homens livres no baixo Dnieper.
Foi a única
democracia verdadeira que já existiu na terra; uma democracia onde não havia
distinção de classe, exceto aquela de bravura e coragem pessoais. Para a
fortaleza Saporoska, chegavam homens de todas as terras e raças, os quais
deixavam seus passados para trás para se incorporarem à nova raça que se
formava. Mudavam de nomes e entravam em novas vidas. Ninguém perguntava seus
nomes verdadeiros, nem de onde vinham. Eram de vários sangues. Togrukh, por
exemplo, era o filho de um renegado coronel húngaro com uma escrava tártara.
De onde Ivan
viera, ninguém sabia nem se importava. Ele havia perambulado para dentro do Sjetsch cinco anos antes, falando
entrecortadamente a fala dos russos. Havia despertado um pouco de suspeita, no
início. Ele afirmava crer em Deus – que era uma das poucas perguntas feitas a
um aspirante do forte –, mas relutava em fazer o sinal da cruz. Após um debate,
ele se comprometeu a fazer uma cruz no ar com sua espada. Foi muito vigiado por
algum tempo, mas logo provou sua honestidade em batalhas contra os turcos e
contra os tártaros da Criméia. Qualquer que fosse sua vida e língua anteriores,
ele agora era totalmente cossaco. Ele devia ter nascido e sido criado nas
estepes do sul.
Sua espada
tinha um formato diferente, entre homens onde espadas curvas eram a regra quase
universal. Era uma espada reta, de 137 centímetros da ponta ao pomo; larga, de
dois gumes, com uma lâmina tanto para enfiar quanto cortar. Não era muito
inferior em peso às espadas de pouco mais de 1,20m, usadas pelos guerreiros valacos
e germanos, e era para ser brandida com uma única mão. Da larga travessa à
pesada bola de prata que era o pomo, havia um curvo e largo guarda-mão em
linhas flamejantes de ferro lavrado a ouro. Menos de meia-dúzia de homens na
fronteira conseguiam manejar aquela espada com uma mão só. Ela agora estava nos
dedos de Ivan, agora que ele se curvava sobre um remo inutilizado e olhava
fixamente para o promontório, o qual ficava cada vez mais próximo a cada subida
e balanço da galera vacilante.
2)
No vale fértil
de Ekrem, algo estava acontecendo. O rio, que serpenteava através de pequenas
campinas e plantações, estava sendo tingido de vermelho; e as montanhas, que se
erguiam a ambos os lados, testemunhavam uma cena apenas um pouco menos antiga
que elas. O horror caía sobre os pacíficos moradores do vale, na forma de
magros cavaleiros cruéis de terras estrangeiras. Eles não voltavam os olhos
para o castelo que pairava, como se estivesse suspenso na encosta perpendicular
no alto das montanhas – havia opressores escondidos lá também.
O clã de
Ilbars Khan, o turcomano, expulso da Pérsia para o oeste devido a uma rixa
tribal, estava cobrando pedágio entre os aldeões armênios no Vale de Ekrem. Era
apenas mais uma incursão dentre outras, por gado, escravos e pilhagem, a fim de
impor sua soberania sobre os cães caphares. Ele era ambicioso; seus sonhos
abrangiam mais do que a liderança de uma tribo nômade. Chefes já haviam
construído reinos nestas colinas antes.
Mas naquele
momento, assim como seus guerreiros, ele estava embriagado pela matança. As
cabanas dos armênios jaziam em ruínas fumegantes. Os estábulos foram poupados,
pois continham forragem para cavalos, bem como as medas de palha. Os cavaleiros
magros corriam vale abaixo e acima, apunhalando e soltando suas flechas. Homens
gritavam quando o aço acertava o alvo; mulheres guinchavam ao serem puxadas
nuas até as selas dos saqueadores.
Os cavaleiros,
em suas peles de carneiro e altos kalpaks
de pele, estavam se aglomerando nas ruas irregulares da aldeia maior – um
esquálido agrupamento de cabanas de barro e pedra. Arrancados de seus
deploráveis esconderijos, os aldeões se ajoelhavam, implorando em vão por
misericórdia, ou corriam em vão, para serem derrubados enquanto fugiam.
Quem mais se
destacava nesse divertimento era Ilbars Khan, e desse modo perdeu a chance de
um reino. Ele cavalgava a toda brida entre as cabanas e pela campina, perseguindo
um infeliz esfarrapado cujos calcanhares pareciam ter asas por medo da morte. A
ponta da lança de Ilbars Khan o acertou entre as espáduas. A haste da lança se
quebrou e os cascos trovejantes empurraram o corpo que se contorcia, enquanto o
chefe passava.
- Allah il allah! – Barbas se
embranqueciam com espuma, diante do grito louco por sangue.
Os iatagãs
zuniam, terminando no barulho de carne e ossos partidos. Com um grito
desvairado, um fugitivo girou, enquanto Ilbars Khan se lançava sobre ele, seu
largo caftan se dilatando ao vento como as asas de um falcão. Naquele instante,
os olhos arregalados do armênio viram, como num sonho, o magro rosto barbado,
com seu fino nariz aquilino; o colete ornamentado a ouro sob o manto
esvoaçante, cruzado pelo largo cinto de seda, do qual se projetavam os cabos de
marfim de meia-dúzia de adagas, e a manga larga que caía do esguio braço musculoso
e erguido, o qual terminava num largo brilho curvo de aço. Naquele instante,
também, o turcomano viu a esguia figura curvada e tensa sob os farrapos, os
olhos grandes mirando ao longo do cano de um mosquete. Um grito selvagem vibrou
dos lábios do homem caçado, afogado no rugir explosivo da espingarda de
pederneira. Uma rodopiante nuvem de fumaça envolveu as figuras, na qual um raio
brilhante de aço cortou a escuridão como o palpitar de um relâmpago. Daquela nuvem
saiu correndo um corcel sem cavaleiro, as rédeas esvoaçando soltas. Um sopro de
vento dissipou a fumaça.
Uma das
figuras no chão ainda se contorcia; lentamente, ela se ergueu sobre um cotovelo.
Era o armênio, com a vida jorrando rapidamente de um corte medonho do pescoço
ao ombro. Arfando e lutando duramente por sua vida, ele mirou, com os olhos
selvgemente arregalados, a outra forma. O kalpak
do turcomano jazia a metros de distância, arremessado pelo tiro a queima-roupa;
quase todos os seus miolos estavam nele. A barba de Ilbars Khan apontava para
cima, como se numa medonha surpresa cômica. O braço do armênio cedeu, e seu
rosto se espatifou no chão sujo, lhe enchendo a boca de poeira. Ele a cuspiu,
manchada de vermelho. Uma risada medonha lhe escorreu dos lábios espumantes. A
risada se ergueu até um grito que assustou os abutres que giravam. Ele caiu
para trás, amassando a areia com as mãos e gritando com alegria delirante.
Quando os horrorizados turcomanos chegaram lá, o armênio estava morto, com um
horrível sorriso congelado nos lábios. Ele reconhecera sua vítima.
Os turcomanos
se acocoraram ao redor, como abutres de olhos malignos ao redor de um carneiro
morto, e conversaram sobre o corpo do khan deles. Sua fala era maligna, como
seus rostos, e, quando se levantaram daquele conclave de urubus, estava selado
o destino de cada armênio do vale de Ekrem.
Celeiros,
medas de palha e estábulos poupados por Ilbars Khan foram incendiados. Todos os
prisioneiros foram mortos – crianças de colo lançadas vivas nas chamas, jovens
garotas estripadas e arremessadas para dentro das ruas manchadas de sangue. Ao
lado do cadáver do khan, crescia uma pilha de cabeças decepadas; os montadores
galopavam, balançando as horríveis relíquias pelos cabelos e lançando-as na
pirâmide medonha. Cada lugar que pudesse presumivelmente esconder um coitado
trêmulo era rasgado e aberto.
Foi empenhado
nisto, que um dos homens tribais, espetando uma pilha de feno, percebeu um
movimento na palha. Com um grito lupino, ele saltou sobre o feno e arrastou sua
vítima para a luz, ganindo em exultação lasciva ao ver seu prisioneiro. Era uma
jovem, e não uma atarracada armênia. Arrancando o manto que ela tentava enrolar
em sua forma esguia, ele deleitou os olhos de abutre em sua beleza, mal coberta
pela roupa de uma dançarina persa. Sobre seu tênue yasmaq – seu leve véu –, os olhos dela, sombreados por longos
cílios pintados de khol, estavam
eloqüentes de medo.
Ela nada
disse, se debatendo ferozmente e seus membros esguios se torcendo no cruel
aperto da mão dele. Ele a arrastou até o cavalo dele... logo, rápida e
mortalmente como uma naja atacando, ela puxou uma adaga curva do cinto dele e a
afundou, até o cabo, no coração do homem. Com um gemido, ele caiu, suas peles
de carneiro tingidas de vermelho, e ela saltou como uma pantera até o cavalo
dele, parecendo voar até a sela de crista alta, de tão rápidos que era seus
movimentos. O cavalo alto relinchava e empinava, e ela o fez girar com um puxão
forte e correu vale acima. Atrás dela, a alcatéia gania, correndo em
perseguição ardente. Flechas assobiavam ao redor de sua cabeça, e ela se
encolhia enquanto elas zuniam venenosamente por perto, mas ela instigava o corcel
a esforços mais frenéticos.
Ela o conduzia
diretamente à parede montanhosa do sul, onde uma garganta estreita se abria
dentro do vale. Aqui a passagem era perigosa, e os turcomanos cavalgavam num
passo menos impetuoso entre as pedras soltas e matacões quebrados. Mas a jovem
cavalgava como uma folha soprada por uma tempestade, e foi assim que ela seguiu
à frente deles por várias centenas de metros, quando chegou a um amontoado de
matacões, nos quais cresciam tamarixes,
que se erguia como uma ilha acima do nível do chão do desfiladeiro. Havia uma
fonte entre aqueles matacões, e homens ali.
Ela os viu
entre as rochas, e eles gritaram para que ela parasse. De início, ela pensou
que fossem turcomanos; logo, percebeu seu erro. Eram altos e fortes, com
cotas-de-malha brilhando sob seus mantos. Seus turbantes estavam enrolados em
gorros de aço que se erguiam até uma ponta em forma de espiral. Seus rostos
escuros eram fortes e indiferentes. Se os turcomanos eram chacais, esses homens
eram falcões. Tudo isto ela viu naquele momento, sua rápida percepção
anormalmente aguçada pelo desespero. Ela também viu as bocas dos arcabuzes
entre as rochas, e a luz trêmula de fusíveis ardentes. E ela tomou uma decisão
instantaneamente. Saltando do cavalo, ela correu até as rochas e caiu de
joelhos.
- Ajude-me, em
nome de Alá, o Piedoso, o Compassivo!
Um homem saiu
de um aglomerado de moitas e desceu os olhos para ela. E, ao olhar, ela gritou
novamente, incrédula.
- Osman Pasha!
– Logo, lembrando-se de sua necessidade urgente, ela lhe abraçou os joelhos,
gritando: – Yah kawand, me proteja!
Salve-me desses lobos que me seguem!
- Por que eu
deveria arriscar minha vida por você? – ele perguntou indiferente.
- Eu lhe
conheci há muito tempo, na corte do padixá! – ela gritou desesperadamente,
arrancando o véu – Dancei para você. Sou Ayesha...
- Muitas
mulheres já dançaram para mim. – ele respondeu – Não tenho nenhuma rixa com esses
cães do deserto.
- Então, vou
lhe dar um talsmin. – ela disse, em
desespero final – Ouça!
E, quando ela
lhe sussurrou um nome no ouvido, ele estremeceu como se houvesse sido picado.
Rapidamente, ele ergueu a cabeça, fitando-a como se para sondar as profundezas
de seus pensamentos mais íntimos. Por um instante, ele ficou imóvel, seus olhos
cinzentos se voltaram para dentro e logo, subindo num grande matacão, ele encarou,
com a mão erguida, os cavaleiros que se aproximavam:
- Sigam seus
caminhos em paz, em nome de Alá!
A resposta
deles foi um assobio de flecha ao redor de seus ouvidos. Ele saltou para baixo,
agitando a mão. Instantaneamente, os arcabuzes começaram a estrondear de entre
as rochas, a fumaça se encapelando ao redor da pequena e arredondada colina
coberta por matagal. Doze cavaleiros selvagens rolaram de suas selas e jazeram
se contorcendo. O resto recuou, gritando de terror. Giraram e voltaram
rapidamente a meio-galope pelo desfiladeiro, em direção ao vale principal.
Osman Pasha se
voltou para Ayesha, que havia, com recato, recolocado o véu. Ele era um homem
alto, com olhos cinzas como gelo e aço. Havia, em suas maneiras, certa
franqueza impiedosa que era rara num oriental. Seu manto era de seda escarlate,
e seu corselete de malha metálica era costurado a ouro. Seu turbante verde era
preso por um broche com jóias, e seu elmo espiralado era lavrado em prata.
Coronhas ebúrneas de pistolas com encaixes dourados se sobressaíam de seu cinto
de couro cru, o qual resplandecia com uma grande fivela dourada, e suas botas
eram do mais fino couro espanhol. Água salgada, fumaça de pólvora e sangue lhe
manchavam o vestuário, mas a riqueza de suas roupas e armas era notável, mesmo
naquela era de vestes exuberantes.
Seus homens
estavam aglomerados ao seu redor – 40 piratas argelinos, impiedosos e corajosos
como uma raça que sempre caminhava num convés, eriçados de armas de fogo e
cimitarras. Numa depressão atrás da baixa colina arredondada, havia cavalos de
uma raça inferior.
- Minha filha
– disse Osman Pasha, de uma maneira benévola, a qual era desmentida por seus
olhos cruéis –, já fiz inimigos nesta terra estranha, e lutei uma escaramuça em
sua defesa, por causa de um nome sussurrado em meu ouvido. Acreditei em você...
- Se eu
mentir, quero que minha pele seja arrancada de mim – ela jurou.
- Ela será. –
ele prometeu gentilmente – Eu cuidarei disso pessoalmente. Você falou o nome do
Príncipe Orkhan. O que sabe sobre ele?
- Por três
anos, compartilhei seu exílio.
- Onde ele
está agora?
Ela apontou
para cima, em direção às montanhas que se sobressaíam no vale distante, onde os
torreões do castelo estavam mal visíveis entre os penhascos.
- Do outro
lado do vale, lá no castelo de El Afdhal Shirkuh, o Curdo.
- Será difícil
tomá-lo. – ele refletiu.
- Mande o
restante de seus falcões para lá! – ela gritou – Conheço um caminho para lhe
levar ao próprio coração daquele castelo!
Ele sacudiu a
cabeça:
- Estes que tu
vês são todo o meu bando.
Então,
vendo-lhe o olhar incrédulo, ele disse:
- Não estou
surpreso por você se espantar com minha mudança de sorte. Vou lhe contar...
E, com sua
desconcertante franqueza, a qual seus companheiros muçulmanos achavam tão
inexplicável, Osman Pasha contou rapidamente sua queda. Ele não contou a ela
seus triunfos; eles eram conhecidos demais para serem repetidos. Cinco anos
antes, ele havia aparecido subitamente no palco do Mediterrâneo, como um
capitão do famoso corsário Seyf ed-din Ghazi. Ele logo superou seu mestre e
obteve sua própria frota, a qual não possuía lealdade a governante algum, nem
mesmo aos beis (*) berberes. Inicialmente um aliado do Grão-Turco e
um convidado bem-vindo da Porta Otomana, ele mais tarde enfurecera o Sultão,
por causa de seus ataques-surpresa sobre embarcações turcas.
Uma rixa
mortal surgira entre eles e, finalmente, o destino se declarou em favor de
Murad. Saqueando ao longo do Dardanelos, o corsário fora pego numa cilada por
uma frota otomana, e todos os seus navios foram destruídos, exceto dois. Mas o
Sultão lhe poupara a vida, dando a ele uma tarefa que praticamente equivalia a
uma sentença de morte. Ele recebeu ordens de navegar pelo Mar Negro, até a
desembocadura do Dnieper, e lá destruir outro inimigo do Turco: Skol Ostap, o
Atamã dos Cossacos Zaporozhianos, cujas incursões dentro dos domínios turcos
haviam deixado o sultão quase louco.
Os cossacos,
de tempos em tempos, mudavam seu Sjetsch
– seu acampamento armado – de ilha em ilha, secretamente, para evitarem
ataques-surpresa, mas a sorte estava até certo ponto com Osman. Um traidor
grego o havia guiado até a ilha do Dnieper, então ocupada pelos guerreiros
livres, e num momento em que muitos deles estavam distantes numa incursão
contra os tártaros do outro lado do rio. O rápido ataque havia falhado em
capturar Skol Ostap, o qual jazia indefeso devido a um velho ferimento, devido
à feroz resistência dos cossacos que estavam com ele. No meio da batalha, os
incursores haviam retornado do ataque aos tártaros, e Osman fugiu, deixando um
de seus navios nas mãos deles. Ele sabia a punição para quem falha e, ao invés
de fugir em direção à frota turca que esperava na costa, ele atravessou o Mar
Negro, logo perseguido pelos cossacos em seu navio capturado, usando sua
tripulação como remadores. Ele não entendia a ferocidade da perseguição deles,
pois não sabia que uma bala explosiva de seu canhão havia matado o ferido Skol
Ostap e enlouquecido desse modo seus kunaks.
Quando a costa
leste ficara visível, os cossacos pararam à distância de um tiro de canhão e,
na batalha que se seguiu, somente a revolta dos remadores salvara o dia do
corsário.
- Assim,
desembarcamos a galé no arroio. Poderíamos tê-la consertado, mas para onde
iríamos? As frotas do Sultão detêm a saída pelo Mar Negro, e ele tem uma corda
de estrangulamento pronta para mim, quando souber que falhei. Encontramos uma aldeia
ao longo do arroio... um tipo de mulçumanos, que labutavam entre vinhedos e redes
de pesca. Conseguimos cavalos ali e atravessamos as montanhas, procurando não
sabemos o quê... um caminho para fora dos domínios otomanos, ou um novo reino
para governar. Quem sabe?
Eles haviam
prosseguido através das montanhas durante dias, preferindo a selvagem desolação
de uma terra inabitada ao risco de caírem em conflito com postos avançados
turcos. Osman Pasha tinha a idéia de que mensageiros velozes já haviam levado a
notícia por todo o império, de que ele estava condenado. Quem quer que os
sultões turcos fossem ou não, eles eram meticulosos em sua vingança. Ele vagara
sem planos, confiando na sorte. O fatalismo dos turcos não fazia parte de sua
natureza.
Ayesha escutou
e, sem comentar, começou a contar sua história. Como Osman bem sabia, era
costume dos sultões, ao subirem ao trono, assassinarem seus irmãos e os filhos
de seus irmãos. Bayazid I deu início a esse costume e, independente dos seus aspectos
morais, não se podia negar que isto salvava o império de muitas desastrosas guerras
civis, com cada príncipe otomano considerando o trono sua regalia. Às vezes,
uma prisão tomava o lugar da corda de estrangulamento, como no caso do Príncipe
Jem, irmão de Bayazid II, que foi por muitos anos o convidado indesejado,
primeiramente dos Cavaleiros de São João, em Rhodes, aos quais o Sultão pagava
45.000 ducados por ano como propina de carcereiro; e, mais tarde, de dois papas
sucessivos, o último dos quais, Alexandre Borgia, envenenara o príncipe por uma
volumosa soma de ouro do Sultão.
Este
precedente foi seguido mais tarde, com o Píncipe Orkhan, filho de Selim o Bêbado
e irmão de Murad III. Um curioso paralelo pode ser notado aqui. Exatamente como
no caso de Jem e Bayazid, quando o irmão mais fraco venceu o mais forte por
força das circunstâncias, aconteceu no caso seguinte. Quando Selim o Bêbado
morreu, saindo de sua vida apatetada, Orkhan estava no Egito. Murad estava em
Skutari. Na conseqüente corrida até a capital, o resultado é obvio. Há muito
era costume entre os turcos dar a coroa a qualquer herdeiro que chegasse
primeiro a Constantinopla após a morte do Sultão. Os vizires e beis, temendo a
guerra civil, geralmente apoiavam o primeiro a chegar, o qual, por sua vez,
comprava os janízaros (**) com ricos presentes e, com a ajuda deles,
punha-se a eliminar seus irmãos. Mesmo com esta vantagem, o fraco Murad jamais
conseguiria resistir ao seu mais agressivo irmão, se não fosse por sua
concubina favorita Safia, uma veneziana da família Baffo. Ela era a verdadeira
governante da Turquia e, com seus ardis, através dos quais os venezianos foram
trazidos para ajudarem o Sultão, a arremetida de Orkhan pelo trono foi
derrotada, e ele foi exilado.
Inicialmente,
ele buscou refúgio na corte persa, e o xá havia prometido ajudá-lo a ganhar a
coroa. Mas algumas escaramuças com os temíveis janízaros esfriaram o entusiasmo
persa, e Orkhan descobriu que o xá estava se correspondendo com Safia no intuito
de o envenenarem. Ele fugiu, mas, ao tentar alcançar a Índia, foi capturado
pelos nômades bashkires, que o reconheceram e venderam às mãos dos otomanos.
Orkhan achou que seu destino estivesse selado, mas Murad não ousava matá-lo,
pois ele ainda era muito popular entre o povo – especialmente os vassalos, mas
sempre turbulentos, mamelucos do Egito, e os sipahis, ou independentes donos de terras da Anatólia. Ele foi
confinado num castelo próximo a Erzurum, e suprido com todas as luxúrias e
formas de dispersão calculadas para suavizar sua índole.
Isto foi
gradualmente efetuado, disse Ayesha. Ela era uma das dançarinas mandadas para
entretê-lo. Ela se apaixonara violentamente pelo belo príncipe, e trabalhou duramente
para lhe devolver a coragem. Ela havia tido um sucesso tão grande – embora não se
suspeitasse disso como o motivo principal –, que o príncipe fora rápida e
secretamente tirado de Erzurum e levado até as montanhas acima de Ekrem, para
lá ficar aos cuidados de El Afdal Shirkuh, um feroz chefe semi-bandido, cuja
família havia reinado como lordes sobre o vale por mais ou menos uma geração,
saqueando os habitantes, mas sem protegê-los.
- Ficamos lá
por mais de um ano – concluiu Ayesha. – O Príncipe Orkhan afundou na apatia.
Ninguém o reconheceria como a jovem águia que liderou os cavaleiros egípcios
contra os próprios janízaros. Aprisionamento, bhang e vinho lhe drogaram os sentidos. Ele fica sentado em suas
almofadas, entorpecido por fumaça de kaif,
só despertando quando canto ou danço para ele. Mas ele tem sangue de
conquistadores. Seu avô, Suleyman O Magnífico, renasceu nele. Ele é um leão que
está apenas adormecido...
“Quando os
turcomanos cavalgaram para dentro do vale, eu fugi do castelo e fui procurar
pelo chefe deles, Ilbars Khan, pois eu tinha ouvido falar de sua bravura e ambições.
Eu desejava poder encontrar um homem destemido o bastante para libertar Orkhan.
Que as asas da jovem águia sintam o vento outra vez, e ele se erguerá e
sacudirá o pó de seu cérebro. Será novamente Orkhan, o Esplêndido. Procurei
Ilbars Khan, mas eu o vi morto antes que pudesse alcançá-lo; e então, os
turcomanos ficaram loucos feito cães. Fiquei com medo e me escondi, mas me
arrastaram para fora.
“Oh, meu
senhor, ajude-nos! Que importa se você não tem navio e só possui um punhado de
homens lhe seguindo? Reinos já foram construídos com menos! Quando souberem que
o príncipe está livre – e que tu estás com ele! –, muitos homens se unirão a
nós! Os lordes feudais e os timariotes já o apoiaram antes, e não se afastarão
dele agora. Não, se eles soubessem o lugar onde ele está confinado, já teriam
destruído aquela fortaleza pedra por pedra! O Sultão é apatetado. O povo odeia
Safia e seu filho mestiço Muhammad.
“O posto turco
mais próximo fica a três dias de cavalgada daqui. O vale de Ekrem é isolado –
desconhecido por muitos, exceto os nômades curdos e os infelizes armênios.
Aqui, um império pode ser planejado sem incômodos. Você também é um proscrito.
Vamos nos unir. Libertaremos Orkhan e o colocaremos em seu trono de direito! Se
Orkhan for padixá, toda riqueza, poder e honra serão seus; Murad, por sua vez,
só lhe oferece uma corda no pescoço!”.
Ela se
ajoelhava diante dele, seus dedos brancos lhe agarrando convulsivamente o
manto, seu véu arrancado novamente e seus olhos escuros ardendo com o
entusiasmo de seu pedido. Osman Pasha estava em silêncio, mas luzes frias
lampejavam em seus olhos de aço. Ele sabia que o que a jovem disse, sobre a
popularidade de Orkhan, era verdade; nem ele subestimava o próprio poder. Um
fazedor de rei! Era um papel com o qual ele sonhara. E esta aventura
desesperada, com morte ou um trono como preço, lhe atiçava a alma ao extremo.
Súbito, ele riu, e fossem quais fossem os crimes que manchassem a alma do
homem, sua risada foi vibrante e prazerosa como uma rajada de vento marinho, se
erguendo de forma estranha para os lábios de um muçulmano.
- Precisaremos
dos turcomanos nesta aventura. – ele disse, e a garota bateu palmas, com um
breve e entusiasmado grito de alegria, sabendo que seu pedido fora atendido.
3)
- Alto, kunaks! – Ivan Sablianka freou seu
cavalo e olhou ao redor, esticando o pescoço para a frente. Atrás dele, seus
camaradas se moviam em suas selas. Estavam num desfiladeiro estreito,
flanqueado a ambos os lados por inclinações íngremes e cobertas por moitas e
raquíticos abetos. Diante delas, uma pequena fonte girava para cima em meio a
árvores irregulares, e escorria por um canal verde devido ao musgo.
- Água,
finalmente. – grunhiu Ivan – Os cavalos estão cansados. Desmontem.
Sem dizer uma
palavra, os cossacos desmontaram, retiraram as selas e permitiram aos cavalos
cansados beberem, antes de satisfazerem sua própria sede. Durante dias, eles
haviam seguido a trilha dos argelinos errantes. Desde que deixaram a costa e a
aldeia ao longo do arroio, eles só tinham visto um sinal de vida – um amontoado
de cabanas de barro, empoleirado no alto entre os penhascos, abrigando
indefiníveis criaturas vestidas de pele, as quais fugiram uivando entre as
ravinas diante da aproximação deles. Haviam sido completamente saqueadas pelos
argelinos, de modo que os cossacos tiveram dificuldade em economizar comida
para os cavalos. Para os homens, não havia comida. Mas os cossacos já haviam
passado fome antes.
As provisões,
com as quais eles haviam enchido suas selas antes de deixar a aldeia no arroio,
haviam se esgotado. Os argelinos haviam cobrado um pesado pedágio de seus
armazéns e celeiros; e os cossacos, chegando depois, os haviam despojado.
Havia, nessas montanhas, pouco capim para pasto. Agora os cossacos estavam sem
comida, e haviam perdido a trilha dos corsários.
O anoitecer
anterior os havia encontrado alcançando rapidamente sua presa, como mostrado
pela clareza das pegadas, e eles haviam temerariamente avançado, pensando em
atacar de surpresa o acampamento argelino à noite. Mas, com o pôr da lua nova,
eles perderam a trilha num labirinto de ravinas e penhascos, e perambularam
cegamente e ao acaso. Agora, ao amanhecer, eles haviam encontrado água, mas
seus cavalos estavam exaustos, e eles próprios completamente perdidos. Isto
jamais aconteceria, se eles estivessem sendo guiados por um verdadeiro sotnik ou chefe. Mas eles não tinham
palavra para condenarem Ivan, cuja descuidada indiferença os havia levado à sua
presente situação.
- Durmam um
pouco. – resmungou Ivan – Togrukh; você, Stefan e Vladimir assumem o primeiro
turno de guarda. Quando o sol estiver sobre aquele abeto, acordem outros três
para fazerem a vigia. Vou fazer um reconhecimento deste desfiladeiro.
Ele se afastou
a passos largos garganta adentro, logo se perdendo entre a vegetação irregular.
Logo, o caminho se inclinou para o alto, e as inclinações em ambos os lados se
transformaram em penhascos elevados, que se erguiam perpendicularmente do chão
alastrado de rochas. E, com uma subtaneidade de parar o coração, uma selvagem
figura peluda saltou de dentro de um emaranhado de moitas e matacões quebrados,
e encarou o cossaco. Ivan sibilou entre dentes, enquanto sua espada cintilava
no ar; logo, ele deteve o golpe, ao ver que a aparição estava sem armas. Era um
homem magro, com aparência de gnomo e vestido em peles de carneiro. Seus olhos,
a mirarem feroz e selvagemente de um emaranhado de cabelos escorridos,
absorviam cada detalhe do gigante cossaco, desde seu rabo-de-cavalo até suas
botas de saltos prateados. Examinavam a manchada cota-de-malha, enfiada em suas
largas calças de nanquim; as coronhas das pistolas se sobressaindo de seu largo
cinto de seda, e a espada em sua mão enorme.
- Deus dos
meus ancestrais! – disse o vagabundo, na fala dos cossacos – O que faz alguém
da irmandade livre, nesta terra assombrada por turcos?
- Quem é você?
– Ivan grunhiu desconfiado.
- Um homem que
acabou de ver seu povo massacrado. – respondeu o outro, com uma risada selvagem
de louco desespero – Eu era o filho de um kral
dos armênios... chame-me de Kral. Um nome é tão bom quanto outro para um
proscrito. O que faz aqui?
- O que há
além deste desfiladeiro? – Ivan perguntou, ao invés de responder.
- Sobre aquela
aresta lá longe, a qual encerra a última extremidade, há um emaranhado de
ravinas e penhascos. Se você trilhar seu caminho entre eles, avistará do alto o
amplo vale de Ekrem, que até ontem era o lar de minha tribo, e que agora contém
seus ossos carbonizados.
- Há comida
lá?
- Sim... e
morte. Uma horda de turcomanos ocupa o vale.
Enquanto Ivan
refletia sobre isto, um rápido passo o fez girar para ver Togrukh se
aproximando.
-Hai! – Ivan franziu a sobrancelha –
Você recebeu ordens de vigiar enquanto os kunaks
dormiam!
- Os kunaks estão famintos demais para
dormirem. – replicou o sombrio cossaco, olhando desconfiado para o armênio.
- O diabo te
morda, Togrukh. – respondeu o enorme guerreiro – Não posso conjurar carne de
carneiro do ar, para eles. Eles devem roer os polegares, até acharmos uma aldeia
para saquear...
- Posso lhes
guiar até comida suficiente para alimentar um regimento. – interrompeu Kral.
- Não zombe de
mim, ermênio – Ivan carranqueou –;
você acabou de dizer que os turcomanos...
- Não. –
gritou Kral – Há um lugar, não muito longe daqui, desconhecido pelos muçulmanos,
onde meu povo depositava comida secretamente. Eu estava indo para lá, quando
lhe vi entrando no desfiladeiro e lhe reconheci como um cossaco.
Togrukh olhou
para Ivan, que puxou uma pistola e a engatilhou.
- Então, vá à
frente, Kral – disse o zaporozhiano –; mas, ao primeiro movimento em falso... bang!... você ganha uma bala na cabeça.
O armênio riu
– uma risada selvagem e desdenhosa – e gesticulou para que eles o seguissem.
Ele se dirigiu ao penhasco mais próximo e, tateando entre um agrupamento de
moitas quebradiças, revelou o que parecia ser uma fenda rasa na parede.
Acenando para eles que estavam atrás, ele se curvou e rastejou para dentro.
- Dentro desse
covil de lobo? – Togrukh olhou com suspeita, mas Ivan seguiu o armênio e o
outro veio atrás dele. Eles se viram dentro, não de uma caverna, mas de uma
fenda estreita, em ofegante escuridão crepuscular. Ivan praguejou e grunhiu, ao
alavancar seu enorme tamanho entre as paredes salientes, mas, em poucos passos,
ela se alargou até que o gigante pudesse caminhar com facilidade. Quarenta passos
depois, eles chegaram a um largo espaço circular, cercado por paredes elevadas
que lembravam monstruosos favos de mel.
- Estas eram
as tumbas de um povo antigo e desconhecido, que ocupava esta terra antes da
chegada de meus ancestrais. – disse Kral – Seus ossos viraram pó há muito
tempo. As cavernas estavam vazias, e nelas meu povo depositava comida, para
quando houvesse fome e pilhagens. Pegue o quanto quiser; não há mais armênios
que precisem dela.
Ivan olhou
curioso ao redor de si. Era como estar no fundo de um poço gigante. O chão era
de rocha sólida, desgastado até ficar liso e plano, como se pelos pés de 10 mil
gerações. As paredes em forma de favo, com fileiras regulares de tumbas por 15
metros em todos os lados, se erguia de forma estupenda, terminando num pequeno
círculo de céu azul. Um abutre pairava naquele disco azul, como um pequeno
ponto negro.
- Seu povo
deveria ter morado nestas cavernas. – disse Togrukh – Assim, quando os turcos
viessem... para cortar e retalhar... um homem poderia manter esta fenda externa
contra uma horda.
O armênio
encolheu os ombros:
- Aqui não tem
água. Quando os turcomanos caíram sobre nós, não houve tempo para fugir e se
esconder. Meu povo não era guerreiro. Só desejava cultivar o solo.
Togrukh
sacudiu a cabeça, incapaz de entender tais naturezas. Kral estava tirando, das
grutas mais baixas, comida para homens e animais – sacos de couro com capim,
arroz, queijo mofado, carne seca e odres de vinho azedo.
- Vá trazer
alguns dos rapazes para ajudarem a carregar o material, kunak. – ordenou Ivan, curvando as enormes costas em direção aos
calcanhares, para olhar em direção às cavernas mais altas – Ficarei aqui com
Kral.
Togrukh se
afastou a passos arrogantes, suas solas prateadas batendo na pedra, e Kral deu
um puxão no braço encouraçado de Ivan.
- Agora
acredita que sou um homem leal, efêndi?
- Sim, por
Deus. – Ivan respondeu, mastigando um punhado de figos secos – Qualquer homem
que me guia até comida é um amigo meu. Mas onde ficavam as aldeias destes
antigos? Eles não conseguiriam plantar capim naquele desfiladeiro rochoso lá
fora.
- Eles moravam
no vale de Ekrem. Há muito, muito tempo, meus ancestrais vieram do norte e os
encontraram cultivando o solo. Mataram todos eles e tomaram sua terra.
- Bem – Ivan
grunhiu –; é assim que as coisas acontecem. Agora os turcos estão massacrando
vocês, camaradas. Mas não se preocupe; um dia, nós, cossacos, cavalgaremos
sobre as montanhas e cortaremos as gargantas deles. Cortes, tiros... é assim
que as coisas serão. Mas, se o povo antigo morava no vale, por que não
sepultavam seus mortos perto dali? Deve ser um longo e íngreme caminho, daqui
até o Ekrem.
Os olhos de
Kral lampejaram como os de um lobo faminto:
- Esse é o
segredo trancado no coração destas montanhas, conhecido apenas pelo meu povo.
Mas vou lhe mostrar isto... e mais, se você confiar em mim.
- Bem, Kral –
disse Ivan, mastigando com gosto –; nós, zaporozhianos, não precisamos mentir
nem esconder, como um judeu. Estamos seguindo aquele demônio negro Osman Pasha,
o corsário, que está em algum lugar nestas montanhas...
- Osman Pasha
está a não mais que três horas de cavalgada daqui.
- Há! – Ivan derrubou a comida que
estava mastigando e agarrou a espada, seus olhos azuis resplandecentes.
- Kubadar, tome cuidado! – gritou Kral – Há
40 corsários, armados com mosquetes e entrincheirados entre os matacões do
desfiladeiro de Diva. E eles se juntaram a Arap Ali e seus 150 turcomanos.
Quantos guerreiros você tem, efêndi?
Ivan torceu o
bigode gracioso sem responder, franzindo fortemente a testa. Ele coçou a
cabeça, perguntando-se o que um atamã faria nessas circunstâncias. Pensar intensamente
sempre o deixava sonolento, e ele detestava o esforço. Sua cabeça andava à roda
e seus braços pesados doíam, com o desejo de puxar sua grande espada e esquecer
a fadiga de refletir, na aplicação de gigantescos golpes. Era importante que,
embora fosse o maior espadachim do Sjetsch,
ele nunca antes havia assumido a liderança de seus camaradas. Ele agora
praguejava, por causa da necessidade. Era mais sábio que seus kunaks, mas ele admitia francamente que
não tinha grande evidência de prudência. Como eles, era totalmente temerário e
improvidente. Bem liderados, eles eram invencíveis. Sem uma liderança sábia,
desperdiçariam suas vidas por um capricho. Ele havia errado ao prosseguir após
o escurecer, na noite passada, mas aquele fato provavelmente não ocorrera a
nenhum deles. Kral o observava agudamente, lendo os grandes esforços mentais do
cossaco em seu largo rosto rude, porém cordial.
- Osman Pasha
é seu inimigo?
- Inimigo! –
Ivan repetiu ofendido – Vou forrar minha sela com a pele dele...
- Pekki! Então venha comigo, kazak, e lhe mostrarei o que nenhum
homem, exceto na Armênia, já viu em mil anos.
- Do que se
trata? – Ivan exigiu, desconfiado.
- Um caminho
secreto... e uma estrada mortal para nossos inimigos!
Ivan deu um
passo à frente, e então parou.
- Espere. Lá
vêm meus irmãos. Ouça-os praguejarem, aqueles cães.
- Mande-os de
volta para dentro do desfiladeiro, com a comida. – sussurrou Kral, enquanto meia-dúzia
de guerreiros com rabos-de-cavalo saíam a passos arrogantes da fenda e ficavam
curiosamente boquiabertos com o que havia ao redor. Ivan os encarou
portentosamente, com as pernas calçadas bem abertas, a barriga de fora e os
polegares enfiados no seu cinto.
- Peguem isto
e arrastem de volta à fonte, kunaks.
– ele disse, gesticulando de forma magnífica – Eu disse que acharia comida para
vocês e os cavalos.
- E quanto a
você? – perguntou Togrukh, o qual foi mordido pelo demônio da curiosidade,
enquanto mastigava uma tira de pasderma,
ou carne de carneiro seca ao sol.
- Não se
preocupe comigo. – rugiu Ivan – Não sou o essaul?
Já conversei com Kral. Voltem ao acampamento e comam feijão, diabos!
Depois que o
ruído das solas de suas botas desapareceu pela fenda, Kral foi à frente em
direção à parede oposta e mostrou a Ivan uma série de degraus entalhados na
rocha. Ele os subiu como um gato, enquanto o zaporozhiano seguia mais devagar,
desconfiando dos apoios para as mãos. Bem acima da última camada de tumbas, a
indistinta escada de mão terminava na entrada de uma caverna, a qual Ivan havia
notado lá embaixo. Era muito maior que as outras; nela, Ivan conseguia ficar
ereto. Ele viu que, ao invés de ser um mero corte no penhasco, esta caverna
recuava e desaparecia na escuridão.
- Os antigos
vinham até este poço, carregando seus mortos. – disse Kral – Ele leva até o
vale de Ekrem. Outrora, outro poço guiava, de camada em camada, até o chão deste
palácio, mas ele foi há muito obstruído pela queda das paredes. Se você seguir
este túnel, sairá atrás do castelo do curdo El Afdal Shirkuh, que dá vista para
o Ekrem.
- Que proveito
nos trará? – grunhiu Ivan.
- Ouça, e eu
lhe contarei uma história! – exclamou Kral, acocorando-se na semi-escuridão,
suas costas contra a parede da caverna – Ontem, quando começou a chacina, lutei
por algum tempo contra os cães turcos; então, quando meus camaradas foram mortos,
eu fugi e, deixando o vale, desci correndo o desfiladeiro de Diva. No meio
deste desfiladeiro, há um grande amontoado de matacões, coberto por matagal.
Procurei refúgio lá, apenas para encontrá-lo ocupado por um estranho bando de
guerreiros. Eu já estava entre eles antes de percebê-los, eles me surraram com
os canos de suas pistolas e me amarraram, fazendo-me perguntas sobre quem
continuava dentro do vale... pois, enquanto cavalgavam pelo desfiladeiro, eles
tinham ouvido os tiros e gritos, e parado e se entrincheirado na pequena colina
arredondada, e estavam prestes a mandar batedores à frente. Eram piratas
argelinos, e chamavam seu emir Osman
Pasha.
“Enquanto me
interrogavam, uma garota veio cavalgando feito uma louca, com os turcomanos em
seu encalço. Quando ela saltou de seu cavalo e implorou por ajuda a Osman
Pasha, eu a reconheci como a dançarina persa que mora no castelo. Ele e seus
homens dispersaram os turcomanos com uma rajada de seus arcabuzes, e então ele
conversou com a jovem, de nome Ayesha. Eles haviam me esquecido e fiquei
deitado próximo, amarrado, e ouvi tudo que diziam.
“Por mais de
um ano, Shirkuh havia mantido um prisioneiro em seu castelo. Eu sei, porque já
levei sementes e carneiros até o castelo, para ser pago à maneira curda... com
maldições e golpes. Kazak, o
prisioneiro é Orkhan, irmão do padixá Marad!”.
O cossaco
grunhiu de surpresa.
- Essa Ayesha
se mostrou a Osman, e ele jurou ajudá-la na libertação do príncipe. Enquanto
eles conversavam, os turcomanos retornavam com força total e cavalgavam à
distância, desejosos de atacar, mas temendo os mosquetes. Osman os saudou e
eles conversaram, ele e o chefe deles Arap Ali, que comanda desde que o khan deles foi morto; e, finalmente, os
turcomanos adentraram as rochas, se agacharam à fogueira de Osman e partilharam
pão e sal. E os três planejaram resgatar o Príncipe Orkhan, e colocá-lo no
trono otomano.
“Ayesha havia
descoberto uma saída secreta do castelo. Neste dia, logo antes do pôr-do-sol,
os turcomanos irão atacar o castelo abertamente e, enquanto atraem desta forma
a atenção dos curdos, Osman e seus argelinos irão até o castelo pelo caminho
secreto. Ayesha terá retornado para Orkhan, e abrirá a porta secreta para eles.
Eles levarão o príncipe e cavalgarão para dentro das colinas, recrutando
guerreiros. Enquanto conversavam, a noite caiu, eu roí minhas cordas e fugi.
“Você deseja
vingança – eis uma chance, tanto para vingança quanto lucro, yah kahwand! Vou lhe mostrar como
emboscar Osman. Mate-o... mate a garota... e seus seguidores... leve Orkhan e
arrebate um bom resgate de Safia. Ele lhe pagará ricamente para deixá-lo fora
do caminho, ou para matá-lo”.
- Mostre-me. –
grunhiu o cossaco, incrédulo. Kral assentiu. Tateando dentro de uma pilha de
mercadorias, ele acendeu uma tocha com pederneira e aço. Então, acenando para
Ivan, ele começou a adentrar a caverna. O zaporozhiano puxou sua espada de lâmina
larga e o seguiu.
- Nada de
truques, Kral – ele avisou –; ou sua cabeça abandonará seus ombros.
A risada do
armênio ressoou selvagemente amarga na escuridão:
- Eu trairia
cristãos para aqueles que assassinaram meu povo? Você e seus fanfarrões podem
apodrecer no inferno, por mim. Mas, através de você, terei vingança. Portanto,
siga-me.
Ivan não
respondeu, e Kral seguiu à frente, através de uma estrada estreita e para
dentro de um túnel além. Aqui, o teto abobadado era mais alto do que um homem
podia alcançar, e três cavalos podiam ser montados lado a lado. O chão liso de
rocha se inclinava levemente para baixo e, de tempos em tempos, eles chegavam a
curtos lances de escadas esculpidos na pedra, os quais davam para níveis mais
baixos. Ivan torceu o bigode reflexivamente e olhava ao redor de si. A trêmula
luz da tocha brilhava em formas entalhadas ao longo das paredes, em
baixo-relevo. Eram quase todas figuras de homens baixos e atarracados, com
cabeças redondas e narizes largos. Guerreavam uns com os outros, caçavam leões;
traziam presentes para uma fantástica figura antropomórfica, a qual devia ter
sido um deus e, em alguns dos entalhes, lutavam homens de uma raça inconfundivelmente
diferente – homens mais altos e mais simetricamente formados, com barbas longas
e narizes em forma de gancho. Ivan detectou uma leve semelhança entre estas
figuras e Kral.
Enquanto
avançavam, o cossaco parecia ouvir um murmúrio de água, de tempos em tempos.
Ele mencionou isto.
- Já deixamos
o túnel que os antigos fizeram. – respondeu Kral – Agora estamos num antigo
curso d’água. Outrora um rio corria aqui, cortando a rocha sólida. Por alguma
razão, ele mudou seu curso, só Deus sabe há quantos milênios. É isso o que você
ouve, fluindo pela escuridão a pouca distância daqui, mas através de outro
canal. Logo, você o verá. Sua nascente é lá entre as montanhas, mas é sobretudo
subterrâneo.
Dali a pouco,
Ivan ouviu o inconfundível sussurro de água cadente, e à sua frente, o túnel
terminava de forma abrupta, no que parecia ser uma sólida parede de rocha. Mas
ela era lisa e simétrica demais para ser trabalho da Natureza; era um enorme
bloco de pedra, modelado pela mão de homem, e, ao redor das beiradas, deslizava
furtivamente uma fina luz cinza. Apagando a tocha, Kral tateou na escuridão, e
Ivan o ouviu se esforçar e grunhir. Então, o bloco, que estava sobre um eixo de
pedra, girou para o lado e uma camada prateada tremeluziu diante dos olhos do
cossaco.
Estavam na
entrada estreita do túnel, a qual era oculta por uma camada de água que se
precipitava sobre o penhasco lá no alto. Ao pé da cascata, um poço circular
espumava e remoinhava, e dele corria um estreito curso d’água desfiladeiro
abaixo. Kral apontou uma saliência que saía da abertura da caverna, margeando a
beira do poço, e Ivan o seguiu, primeiramente envolvendo com cuidado seu frasco
de pólvora e pistolas em sua faixa de seda. Na beirada, a água cadente formava
uma camada tão fina que nenhum homem ficava totalmente encharcado ao alcançar o
mundo externo. Ivan viu que estava numa garganta estreita, a qual parecia um
corte de faca nas colinas. Em nenhum lugar, tinha mais do que 40 ou 50 passos
de largura e, em cada lado, penhascos íngremes se erguiam por centenas de
metros, mais altos à esquerda que à direita. Não crescia vegetação em lugar
algum, exceto por uma franja ao redor da beira do poço, e ao longo do curso do
estreito córrego. Este córrego cruzava o chão do desfiladeiro, serpenteando até
mergulhar numa fenda estreita no penhasco oposto – até finalmente encontrar seu
caminho dentro do rio que atravessava Ekrem, disse Kral. Ivan olhou para trás,
em direção ao caminho pelo qual tinha vindo; a cascata escondia completamente a
entrada do túnel. Mesmo com o bloco da porta puxado para o lado, ele seria
capaz de jurar que as cascatas desciam por uma parede de pedra sem abertura.
Ele seguiu
Kral pelo desfiladeiro que não corria reto, mas dava voltas e se retorcia como
uma cobra torturada. Dentro de 300 passos, eles perderam a queda d’água de vista,
e apenas um murmúrio confuso lhes chegava aos ouvidos. Neste ponto, também, o
chão da garganta começava a se inclinar para o alto, numa declividade íngreme.
Mais algumas centenas de passos, e o armênio, indo à frente com cautela
redobrada, recuou, agarrando o braço de seu companheiro. Havia uma árvore raquítica
num ângulo agudo da parede de pedra e, atrás dela, Kral se acocorou, apontando.
Olhando por
cima de seu ombro, o zaporozhiano grunhiu. Além do ângulo, o desfiladeiro
corria por talvez 80 passos e depois terminava num obstáculo sem abertura. Mas,
do lado direito, o penhasco parecia curiosamente alterado, e ele olhou
fixamente por um instante, antes de perceber que estava olhando para uma parede
feita pela mão do homem. Estavam quase atrás de um castelo construído num
desfiladeiro entre os penhascos. Sua parede se erguia perpendicular desde a
beirada de uma fenda profunda; nenhuma ponte se estendia sobre esta brecha, e
aparentemente a única entrada na parede era uma pesada porta reforçada com
ferro.
- Foi por este
caminho que a garota Ayesha escapou. – disse Kral – Esta garganta corre quase
paralela ao Ekrem; ela se estreita a oeste, e finalmente adentra o vale além de
onde ficavam as aldeias. Os curdos bloquearam a entrada lá com pedras, de modo
que não pode ser descoberta do vale externo, a menos que alguém saiba dela.
Eles raramente usam esta estrada. E nem mesmo eles sabem do túnel além da queda
d’água, ou das Cavernas dos Mortos. Mas aquela porta lá longe é a que Ayesha
abrirá para Osman Pasha.
Ivan roeu o
bigode. Ele ansiava saquear o castelo, mas não viu meios de chegar até ele. A
brecha era larga demais para um homem pular, e de qualquer modo, não havia
saliência à qual se agarrar no outro lado.
- Por Alá,
Kral – ele disse –, eu gostaria de olhar para esse famoso vale.
O armênio
olhou para o tamanho dele e sacudiu a cabeça:
- Há um
caminho que chamamos A Estrada da Águia, mas não é para alguém como você.
- Por Deus! –
rugiu o gigante cossaco, irritando-se instantaneamente – Um pagão vestido em
peles é um homem melhor que um zaporozhiano? Vou para qualquer lugar que você
ousar!
Kral encolheu
os ombros e guiou o caminho de volta, garganta abaixo, até chegarem novamente à
queda d’água. Lá, eles pararam diante do que parecia, à primeira vista, um rego
raso, desgastado pela corrosão na parede mais alta do penhasco. Olhando atentamente,
Ivan viu uma série de rasos apoios para as mãos, entalhados na rocha sólida. Perplexo,
ele torceu o bigode.
- Cachorros
lhe mordam, Kral – ele resmungou –; um macaco mal conseguia escalar estas
bexigas.
- Subi esta
escada de mão, antes de ter visto 15 invernos. – Kral sorriu sem alegria –
Abaixe seu cinto, e eu lhe ajudarei enquanto subimos.
O orgulho de
Ivan lutou contra sua curiosidade, de forma clara em seu rosto largo, por um
instante; então, com um encolher de ombros, ele chutou fora suas botas com
solas prateadas e desenrolou seu cinto – um grande comprimento, de metro de
seda. Uma extremidade ele amarrou ao cinto da espada, e a outra ao cinto do
armênio. Assim equipados, eles começaram a jornada vertiginosa. Subiam devagar,
mas Ivan teve uma sensação desconfortável de que Kral conseguiria subir a
“escada de mão” feito um gato, se estivesse galgando sozinho. O cossaco se
agarrava aos buracos rasos com os dedos dos pés e as unhas dos dedos das mãos,
e repetidas vezes os cabelos de seu rabo-de-cavalo se arrepiavam e seu sangue
gelava, quando ele escorregava no penhasco. Meia-dúzia de vezes, somente o
suporte de Kral o salvava. Mas eles finalmente alcançaram o topo, e Ivan se
sentou, seus pés balouçando sobre a beirada, e tentou recuperar seu fôlego. Ele
desceu o olhar para o poço estreito do qual haviam subido, e praguejou. O desfiladeiro
se retorcia como uma trilha de cobra sob ele; e, de sua posição, ele olhava,
sobre a muralha sul, para o vale de Ekrem, com seu rio dando voltas sinuosas
através dele.
A fumaça ainda
flutuava preguiçosamente das massas enegrecidas que outrora foram aldeia. Vale
abaixo, na margem direita do rio, havia várias tendas de pele. Ivan distinguiu
homens se aglomerando ao redor daquelas tendas, parecendo formigas à distância.
Pareciam estar selando os cavalos. Ali estavam os turcomanos, disse Kral, e apontou
a entrada de um estreito desfiladeiro vale acima, e para o lado sul, no qual,
ele disse, os argelinos estavam acampados. Contudo, era o castelo que atraía o
interesse de Ivan.
Este castelo
estava assentado num promontório de rocha quase sólida, que se sobressaía dos
penhascos e se inclinava até o vale. O castelo tinha frente para o vale, inteiramente
cercado por um muro maciço, de 6 metros de altura, e guarnecido por torres no
lado que recuava contra o penhasco atrás. Um enorme portão, flanqueado em ambos
os lados por uma torre perfurada com fendas estreitas para flechas, dominava a
inclinação externa.
Deste portão,
o penhasco descia até o chão do vale, não tão íngreme que não pudesse ser
galgado com facilidade. Mas a subida não oferecia proteção. Homens atacando por
baixo estariam vulneráveis a uma varredura de tiros desde as torres. Ivan encolheu
seus ombros gigantescos.
- O próprio
diabo não conseguiria tomar esse castelo de assalto, nem mesmo com canhões.
Ninguém conseguiria arrastá-los inclinação acima, com aqueles cães na muralha
atirando. Se os canhões estivessem no desfiladeiro... mas ao diabo com isso;
não temos canhões. Como chegaremos ao irmão do sultão naquela pilha de rocha? Leve-nos
até Osman Pasha. Quero levar a cabeça dele ao Sjetsch.
- Seja
cauteloso se deseja conservar a sua própria cabeça, kazak. – Kral respondeu sombriamente – Olhe para bem dentro do
desfiladeiro. O que vê?
- Uma vastidão
de pedra nua e uma margem verde ao longo do curso d’água. – grunhiu Ivan,
esticando o pescoço grosso.
Kral
arreganhou os dentes como um lobo:
- Taib! E você percebe que a margem é mais
densa do lado direito, o qual também é mais alto que o outro? Escute!
Escondidos atrás da queda d’água, podemos vigiar até os argelinos alcançarem o
desfiladeiro. Então, nos esconderemos entre as moitas ao longo do rio e os
atacaremos de surpresa, enquanto eles retornam com o príncipe. Nós mataremos a
todos, exceto Orkhan, a quem capturaremos. Então, voltaremos ao longo do túnel
através das Cavernas dos Mortos, até os cavalos, e retornaremos à sua terra.
- Isso é
fácil. – respondeu Ivan, torcendo seu longo bigode – Tomaremos um navio dos
turcos; ficaremos deitados à espera, na costa, até vermos um deles ancorar.
Então, sairemos a nado na noite, com nossos sabres nos dentes, e escalaremos as
correntes dos navios. Retalharemos e apunhalaremos até a morte aquelas almas de
cães! É a maneira como será. Deceparemos as cabeças dos begs e acorrentaremos o restante aos remos, para nos levar de volta
através do mar. Mas o que é isto?
Kral se
enrijeceu quando o cossaco apontou. Homens saíam a galope do distante acampamento
turcomano, fustigando seus cavalos através do rio raso. A luz do sol brilhava
nas pontas das lanças. Nos muros dos castelos, elmos começavam a cintilar.
- O ataque! –
gritou Kral, olhando ferozmente – Jannan!
Eles mudaram seus planos! Eles não iam atacar até o cair da noite! Rápido!
Temos que descer o desfiladeiro, antes que os argelinos o alcancem e nos peguem
como ratos numa armadilha!
Ele desceu o
olhar para o desfiladeiro, o qual desaparecia a oeste como um corte de sabre
entre os penhascos, forçando os olhos em busca do brilho de um escudo ou elmo,
que pudesse avisar sobre guerreiros que se aproximavam. Até onde conseguia ver,
a garganta estava vazia de vida. Ele apressou Ivan sobre o penhasco, e o enorme
guerreiro alavancou cuidadosamente seu volume dentro do raso sulco, praguejando
amargamente enquanto batia seus cotovelos. A descida parecia ainda mais
perigosa que a subida, mas eles finalmente chegaram à garganta, e Kral correu
em direção à cascata – uma furtiva figura apressada, grotesca em suas peles de
carneiro. Ele suspirou quando alcançaram o poço, atravessaram a saliência e a
cascata. Mas, mesmo enquanto chegavam à fantasmagórica penumbra além, ele
parou, agarrando o braço coberto de aço de Ivan. Acima do grande movimento da
água, seus ouvidos agudos haviam detectado o tilintar de aço na rocha. Eles
olharam para fora, através da prateada camada tremeluzente que fazia tudo
parecer espectral e irreal, e se esconderam eficazmente dos olhos de qualquer um
lá fora. Um estremecimento sacudiu Kral. Por pouco, não haviam ganhado seu
refúgio.
Um bando de
homens vinha chegando ao longo de desfiladeiro – homens altos e fortes, em
cotas-de-malha e elmos amarrados por turbantes. À frente deles, caminhava a
passos largos um homem mais alto que os demais, cujo rosto, barbado e aquilino
como o deles, ainda diferia sutilmente do de seus seguidores. Seus estreitos
olhos cinzentos pareceram mirar diretamente para os ardentes olhos azuis do
gigante cossaco, quando o corsário olhou de relance para a queda d’água. Um
suspiro profundo se ergueu das profundezas da ampla barriga de Ivan, e sua mão
de ferro se fechou convulsivamente no cabo de sua arma. Impulsivamente, ele deu
um passo rápido à frente, mas Kral lançou os braços nodosos ao redor dele e se
agarrou desesperadamente.
- Em nome de
Deus, kazak! – ele exclamou num
sussurro desesperado – Não jogue fora nossas vidas! Nós os temos numa
armadilha. Se você sair correndo agora, eles vão te balear como a um rato... e
então, quem levará a cabeça de Osman para o Sjetsch?
Kral conhecia
o espírito temerário dos cossacos, pois havia perambulado entre eles como
comerciante, como muitos de sua raça.
- Eu podia
balear a cabeça dele, daqui mesmo. – murmurou Ivan.
- Não, isso
denunciaria nosso esconderijo, e mesmo que você o matasse, não conseguiria
pegar a cabeça dele. Paciência... oh, paciência! Eu lhe digo: nós pegaremos
todos eles. Nenhum daqueles cães escapará. Ódio? Olhe para aquele abutre magro
em peles de carneiro e kalpak, ao
lado de Osman. Aquele é Arap Ali, o chefe turcomano que matou minha jovem irmã
e o marido dela. Você odeia Osman? Pelo Deus dos meus ancestrais, meu próprio
cérebro fica tonto de loucura, ao pensar em pular sobre Arap Ali e rasgar a
garganta dele com meus dentes! Mas paciência! Paciência!
Os argelinos
cruzavam o rio estreito, seus khalats
enrolados no alto, e segurando seus mosquetes acima das cabeças para manterem
as cargas de pólvora secas. Pararam na outra margem, numa atitude de escuta.
Dali a pouco, acima do som das águas, os homens na entrada da caverna ouviram
um fraco ribombar, o qual vinha do alto do desfiladeiro.
- Os curdos
estão atirando desde as torres! – sussurrou Kral. Como se fosse um sinal pelo
qual estivessem esperando, os argelinos prepararam suas armas e começaram a
subir rapidamente a garganta. Kral tocou o braço do cossaco:
- Aguardai
aqui e fique vigiando. Correrei de volta e trarei os senhores irmãos. Será
arriscado se eu conseguir trazê-los para cá antes que os piratas retornem.
- Apresse-se,
então. – grunhiu o gigante, e Kral escapuliu como uma sombra.
4)
Numa vasta
câmara, exuberante com tapeçarias trabalhadas a ouro, divãs de seda e bordados
travesseiros de veludo, deitava-se o Príncipe Orkhan. Parecia uma figura de
voluptuosa indolência, enquanto se reclinava lá em verde camiseta de cetim, khalat prateado e chinelos de veludo,
com um jarro de cristal com vinho ao alcance. Seus olhos escuros, pensativos e
introspectivos eram os de um sonhador, cujos sonhos são tingidos com haxixe e
ópio. Mas havia linhas firmes em seu rosto penetrante, ainda não apagadas pela
preguiça e dissipação; e, sob o rico robe, seus membros eram bem-proporcionados
e firmes. Seu olhar repousava em Ayesha, que agarrava tensamente as barras de
uma janela, fitando ansiosamente o lado de fora, mas havia uma aparência
distraída nos olhos dele. Ele parecia não perceber os tiros, gritos e clamor
que rugiam lá fora. Distraidamente, ele murmurava as linhas escritas por um
exilado mais famoso de sua casa:
- Jam-i-Jem nush eyle, ey Jem, bu Firankistan dir...
Ayesha se
movia inquieta, lançando-lhe um rápido olhar sobre o ombro magro. Em algum
lugar desta filha do Irã, ardia o sangue de antigos conquistadores arianos, que
não conheciam o Destino. Mil gerações
de fatalismo oriental não haviam desgastado isso. Exteriormente, Ayesha era uma
muçulmana devota. No fundo, ela era uma indomável pagã. Havia lutado como uma
tigresa, para evitar que Orkhan caísse no abismo da degeneração e resignação
que seus captores haviam preparado para ele. “É a vontade de Alá” – aquela
frase, que segue toda uma filosofia turaniana, é ao mesmo tempo desculpa e
consolo para o fracasso. Mas, nas veias de Ayesha, corria forte o sangue feroz
dos reis loiros que haviam pisado sobre Nínive e Babilônia em sua estrada ao
império, e que não reconheciam outro poder senão seus próprios desejos. Ela era
o flagelo que mantinha Orkhan picado com vida e ambição.
- É o momento.
– ela murmurou, dando as costas ao parapeito – O sol está a pino. Os turcomanos
cavalgam inclinação acima, fustigando seus cavalos e soltando suas flechas em
vão contra as muralhas. Os curdos atiram neles de cima... ouça o rugir de seus
mosquetes! Os corpos dos homens tribais se alastram pelas inclinações, e os
sobreviventes recuam... agora, eles vêm novamente, como loucos. Estão morrendo
por ti, yah khawand! Devo me
apressar... tu ainda sentarás no trono, no Chifre Dourado, meu amado!
Prostrando seu
corpo esguio diante dele, ela lhe beijou os pés calçados com chinelos num
completo êxtase de paixão, e logo se levantou, correu para fora da câmara –
através de outra, onde dez gigantes negros mudos montavam guarda noite e dia –
e, atravessando um corredor, encontrou-se no pátio externo que ficava entre o
castelo e o muro dos fundos. Ninguém tentou pará-la. Ela era livre para ir e
vir pelas muralhas o quanto quisesse, embora Orkhan fosse sempre vigiado pelos
mudos e não tivesse permissão para sair da câmara, exceto quando acompanhado
pelo próprio Shirkuh. Poucas perguntas lhe foram feitas quando ela retornara ao
castelo, fingindo sentir grande medo dos turcomanos. Ela havia cuidadosamente
escondido sua paixão pelo príncipe, dos olhos de águia do chefe curdo, o qual
pensava que ela não fosse mais do que a ferramenta de Safia.
Ela atravessou
o pátio e se aproximou da porta que dava entrada para o desfiladeiro. Um
guerreiro se apoiava ali, mal-humorado por não poder participar da luta que
estava acontecendo. Shirkuh era um homem cauteloso. Os fundos do seu castelo
pareciam invulneráveis, mas ele nunca se arriscava desnecessariamente. Ele não
tinha culpa de ignorar a presença de uma traidora em seus domínios. Homens mais
prudentes que El Afdal Shirkuh já haviam sido enganados e ludibriados por
mulheres como Ayesha.
O homem que
montava guarda era um usbeque, um daqueles nômades guerreiros turbulentos que
serviam a todos os governantes da Ásia como mercenários. Ele era de
constituição mais larga que os curdos, seu parentesco com os mongóis
evidenciado em seu rosto largo, olhos levemente oblíquos e cabelo escuramente
avermelhado. Seu pequeno turbante estava com o nó sobre sua orelha esquerda, e
seu cinto largo carregado de facas e pistolas. Ele se curvava, carrancudo,
sobre um mosquete, quando Ayesha se aproximou dele, seus olhos escuros
eloqüentes sobre o véu tênue.
Ele cuspiu e
carranqueou:
- O que faz
aqui, mulher?
Ela puxou o
leve manto para mais perto, ao redor de seus ombros esguios, trêmula.
- Estou com
medo. Os gritos e tiros me assustam, bravo guerreiro. O príncipe está drogado
com ópio, e não há ninguém para acalmar meus medos.
Ela seria
capaz de incendiar o coração congelado de um homem morto, como estava ali, em
sua atitude de medo e súplica trêmulos. O usbeque puxou a barba.
- Não tenha
medo, pequena gazela. – ele finalmente disse – Vou te acalmar, por Alá. – Ele
pôs uma mão de unhas negras sobre o ombro dela, e a puxou para perto de si –
Ninguém encostará um dedo numa mecha do teu cabelo – ele murmurou –; nem turcomano,
nem curdo, nem... ahhh!
Aninhando-se
nos braços dele, ela havia lhe tirado rapidamente uma adaga da faixa e a
enfiado no pescoço taurino do homem. A mão dele abandonou o ombro dela, para
agarrar os cabos no cinto, enquanto a outra agarrava a própria barba, o sangue
lhe esguichando entre os dedos. Ele cambaleou e caiu pesadamente. Ayesha se
apoderou de um molho de chaves do cinto dele e, sem olhar novamente para sua
vítima, correu até a porta. Ela estava com o coração na boca, quando a abriu;
então, ela soltou uma exclamação baixa de alegria. Na beirada oposta do abismo,
encontrava-se Osman Pasha com seus piratas.
Dentro do
portão, havia uma prancha pesada, usada como ponte, mas era pesada demais para
que ela a manuseasse. O acaso a havia capacitado a usá-la em sua fuga anterior,
quando uma rara falta de cuidado a deixara de um lado a outro do abismo, sem
ser vigiada, por poucos minutos. Osman lançou até ela a extremidade de uma
corda, e a garota a amarrou às dobradiças de uma porta. A outra extremidade foi
agarrada por meia-dúzia de homens fortes, e três argelinos cruzaram a fenda,
pendurando-se na corda pelas mãos tão agilmente quanto macacos. Então, eles
ergueram a prancha e a estenderam sobre o abismo para que os demais
atravessassem. Não havia nenhum defensor à vista. O tiroteio na frente do
castelo continuava, sem pausa.
- Vinte homens
ficam aqui, vigiando a ponte. – Osman disse bruscamente – Os demais me sigam.
Abandonando
seus mosquetes, 20 desesperados lobos-do-mar desembainharam seus aços e
seguiram seu chefe. Osman sorria de pura alegria, enquanto os guiava rapidamente,
atrás da jovem de pés ligeiros. Tal aventura desesperada e arriscada, dentro do
covil do leão, lhe agitava o sangue como vinho. Quando entraram no castelo, um
criado se ergueu de um pulo e ficou boquiaberto e paralisado ao vê-los. Antes
que ele pudesse gritar, o iatagã afiado de Arap Ali lhe cortou o pescoço, e o
bando continuou avançando rápida e temerariamente, para dentro da câmara onde
os dez mudos se ergueram bruscamente, agarrando as cimitarras. Houve uma
agitação de luta feroz e silenciosa – muda, exceto pelo assobiar e raspar de aço,
e o ofegar moribundo dos feridos. Três argelinos morreram e, sobre os corpos
retalhados dos defensores negros, Osman Pasha entrou, a passos largos, na
câmara interna.
Orkhan se
levantou e seus olhos calmos brilharam com um fogo antigo, quando Osman, com um
instinto para representações teatrais, ajoelhou-se diante dele e ergueu o cabo
de sua cimitarra ensangüentada.
- Estes são os
guerreiros que lhe colocarão em seu trono! – gritou Ayesha, fechando as mãos
brancas em alegria apaixonada – Yah
Allah! Oh, meu senhor, que grande momento este!
- Mas vamos
partir rapidamente, antes que aqueles cães curdos saibam de nossa presença. –
disse Osman, gesticulando para que os guerreiros parassem ao redor de Orkhan,
numa sólida massa de aço. Atravessaram as câmaras rapidamente, cruzaram o pátio
e se aproximaram do portão. Mas o estrondo do aço havia sido escutado. Quando
os incursores estavam cruzando a ponte, uma mistura de gritos selvagens se
ergueu atrás deles. Do outro lado do pátio, vinha correndo uma figura alta em
seda e aço, e seguida por 50 espadachins usando elmos.
- Shirkuh! –
gritou Ayesha, empalidecendo – La
Allah...
- Abaixem a prancha!
– rugiu Osman, pulando até a cabeça da ponte.
Em ambos os
lados do abismo, mosquetes relampejaram e rugiram. Meia-dúzia de curdos se
contorceu, mas os quatros argelinos, que haviam se abaixado para erguer a
prancha e lançá-la no precipício, caíram numa pilha contorcida diante de uma
rajada de tiros; e Shirkuh correu pela ponte, seu rosto aquilino convulsionado
e sua cimitarra lampejando ao redor da cabeça coberta de aço. Osman Pasha o
enfrentou corpo-a-corpo e, num redemoinho brilhante de aço, a cimitarra do
corsário raspou a lâmina de Shirkuh, e o fio aguçado cortou a cota-de-malha e
os músculos grossos da base do pescoço do curdo. Shirkuh cambaleou e, com um
grito selvagem, caiu para trás e de ponta-cabeça, abismo abaixo.
Num instante,
os argelinos haviam derrubado a ponte logo após ele, e os curdos pararam,
gritando com fúria frustrada, no lado distante da fenda. O que havia sido a
força deles, agora se tornou sua fraqueza. Eles não conseguiam alcançar seus
inimigos. Mas, protegidos pelo muro, abriram fogo vingativamente, e mais três
argelinos foram derrubados antes que o bando pudesse ficar fora de alcance,
dobrando o ângulo do penhasco. Osman praguejou. Dez homens eram mais do que ele
esperava perder naquele veloz ataque-surpresa.
- Todos, menos
seis de vocês, vão adiante e vejam se o caminho está livre. – ele ordenou –
Seguirei mais devagar com o príncipe. Mirza,
eu não posso trazer um cavalo até o desfiladeiro, mas meus cães lhe carregarão
numa liteira de mantos suspensos entre lanças...
- Alá me
proíba de montar nos ombros de meus libertadores! – gritou o jovem turco, numa
voz ressonante – Não esquecerei este dia! Sou um homem novamente! Sou Orkhan,
filho de Selim! Também não esquecerei isso, Inshallah!
- Mashallah... Deus seja louvado! –
sussurrou a jovem persa – Oh, meu senhor, estou cega e atordoada de alegria, em
lhe ouvir falar desta forma! Em verdade, você é novamente um homem, e será
padixá de todo o Império Otomano!
Eles estavam
próximos da queda d’água. O primeiro destacamento havia quase alcançado o rio,
quando súbita e inesperadamente como o ataque de uma naja escondida, uma
pistola disparou das moitas no outro lado, e um guerreiro caiu com os miolos escorrendo
de um buraco em seu crânio. Instantaneamente, como se o tiro fosse um sinal,
foi disparada uma saraivada desde as moitas. Os corsários da frente caíram como
milho maduro, e o restante recuou, gritando de raiva e terror. Não conseguiam
ver sinal de seus atacantes, exceto a fumaça se encapelando pelo rio e os
homens mortos aos seus pés.
- Cão! – rugiu
Osman Pasha, desembainhando sua cimitarra e se voltando para Arap Ali – Isto é
obra sua!
- Acaso tenho
fuzis? – guinchou o turcomano, com seu rosto escuro empalidecido – Ya Ali, alahu! Isto é obra de demônios...
Osman correu
garganta abaixo, em direção aos seus homens desmoralizados, e praguejando
loucamente. Ele sabia que os curdos poderiam colocar algum tipo de ponte sobre
o precipício e persegui-lo, o que o deixaria pego entre dois fogos. Quem eram
seus agressores, ele não tinha idéia. Garganta acima, na direção do castelo,
ele ainda ouvia o estrondo dos mosquetes, e súbito uma grande explosão de
disparos pareceu vir do vale externo, mas enclausurado naquele desfiladeiro
estreito que abafava e distorcia todos os sons, ele não conseguia ter certeza.
A fumaça havia
se dissipado do rio, mas os muçulmanos não conseguiam ver nada, exceto um
agitar sinistro das moitas na margem oposta. Eles recuaram, procurando por um
abrigo; não havia nenhum, exceto voltando pelo desfiladeiro, em direção às
presas dos enlouquecidos curdos. Estavam numa armadilha. Começaram a disparar
seus mosquetes às cegas em direção às moitas, arrancando apenas gargalhadas
zombeteiras dos atacantes escondidos. Osman se sobressaltou violentamente ao
ouvir aquela risada, e abaixou os canos dos mosquetes.
- Idiotas!
Querem desperdiçar pólvora, atirando nas sombras? Desembainhem seus aços e me
sigam!
E, com a fúria
do desespero, os argelinos atacaram impetuosamente na direção da cilada, seus
mantos ondulando, seus olhos ardendo em chamas e o aço nu lhes brilhando nas
mãos. Uma varredura de balas lhes reduziu a fileira, mas eles prosseguiram,
saltaram temerariamente na água e começaram a atravessá-la com dificuldade. E
agora, dentre os arbustos densos na outra margem, saíam figuras selvagens, em
cota-de-malha ou seminuas, com espadas curvas em suas mãos.
- Ataquem-nos,
caros irmãos! – bramiu uma voz poderosa – Cortem, retalhem, ho... lutem,
cossacos!
Um brado de
incrédulo assombro se ergueu dos muçulmanos, ao verem aquelas esguias figuras
ansiosas, em cujos capacetes e sabres o sol brilhava como fogo. Então, com um
trovejante rugido do fundo da garganta, eles se aproximaram, e o raspar e o
estrondear do aço se ergueu e ecoou dos penhascos. Os primeiros argelinos a
pularem sobre a margem mais alta, caíram de volta ao rio, com suas cabeças
partidas, e então os cossacos, loucos com a fúria da batalha, pularam a margem
e enfrentaram seus inimigos corpo-a-corpo, dentro da água que rapidamente ficou
escarlate. Não foi dada nem pedida rendição; cossacos e argelinos retalharam e
mataram em cego frenesi, a espuma lhes embranquecendo os bigodes e o suor lhes
correndo para dentro dos olhos.
Arap Ali
correu para dentro da luta, louco de medo e fúria, seus olhos fulgurando como
os de um cão raivoso. Sua lâmina curva partiu a cabeça raspada de um cossaco
até os dentes; então, Kral o encarou, de mãos nuas e guinchando.
O turcomano
parou por um instante, atemorizado pela selvagem ferocidade animal no rosto
contorcido do armênio; então, com um grito assustador, Kral deu um salto e seus
dedos se fecharam como aço no pescoço do chefe tribal. Ignorando a adaga que
Arap lhe enfiava várias vezes no lado, Kral se agarrava, o sangue saindo sob
suas unhas para se misturar com o escarlate que jorrava da garganta rasgada do
turcomano, até que, perdendo o equilíbrio, ambos caíram dentro do rio. Ainda
rasgando e dilacerando, eles foram arrastados pela correnteza; ora uma face
rosnante aparecia sobre a superfície avermelhada, ora outra, até que finalmente
ambas desapareceram para sempre.
Os argelinos
foram rechaçados margem direita acima, onde fizeram uma breve e sangrenta
resistência; então, recuaram, aturdidos e ferozes, para onde o Príncipe Orkhan
encarava como se também aturdido, na sombra do penhasco, com o pequeno grupo de
guerreiros que Osman havia destacado para guardá-lo. Ayesha se ajoelhava,
agarrando os joelhos dele. Os olhos do príncipe estavam assombrados; por três
vezes, ele se moveu, como que para pegar uma espada e se lançar ao conflito,
mas os braços de Ayesha eram como esguias faixas de aço ao redor dos joelhos
dele. Osman Pasha, escapando da batalha, correu até ele. A cimitarra do
corsário estava vermelha até o cabo, sua malha retalhada e o sangue pingando
sob seu elmo. Todos ao redor rugiam e remoinhavam em duelos e grupos de luta, à
medida que o combate se dispersava sobre o desfiladeiro. Este havia se tornado
um matadouro salpicado de sangue. Não haviam restado muitos em ambos os lados
da luta, mas havia mais cossacos de pé do que maometanos.
Ivan Sablianka
avançava através do embate do conflito, brandindo sua grande espada com seu
punho em forma de malho. Qualquer um que se opusesse a ele era derrubado com
golpes que despedaçavam escudos cobertos de couro, desmoronavam em gorros de
aço e partiam igualmente cotas-de-malha, carne e ossos.
- Ei, seus
patifes! – ele rugiu, em seu Turco bárbaro – Quero sua cabeça, Osman, e o
sujeito ao seu lado... Urkhan. Não tenha medo, príncipe; não vou lhe machucar.
Você dará um belo resgate para nós, cossacos!
Os olhos
agudos de Osman palpitaram ao redor, procurando uma via para escapar. Ele viu o
sulco indistinto, que guiava para o alto do penhasco, e seu cérebro agudo instantaneamente
adivinhou sua utilidade.
- Rápido, meu
senhor! – ele sussurrou – Vamos subir o penhasco! Manterei este bárbaro à
distância, enquanto você sobe!
- Sim! –
Ayesha insistiu com impaciência – Oh, depressa! Posso escalar como um gato!
Irei atrás de você e lhe ajudarei! É perigoso, mas é uma chance, e isto é melhor
do que cair de volta ao acorrentamento e cativeiro!
Ela estava
tensa, e tremia de ânsia para se esforçar e lutar como uma louca pelo homem que
amava. Mas a máscara do fatalismo havia descido novamente no Príncipe Orkhan.
Não lhe faltava coragem, mesmo para tal subida. Mas a filosofia paralisante da
futilidade se apossara dele. Ele olhou ao redor, onde os vitoriosos cossacos
matavam seus novos aliados que ainda viviam. E ele curvou a bela cabeça.
- Não, isso é Kismet. Alá não quer que eu me sente no
trono de meus ancestrais. Não, qual homem consegue escapar de seu destino?
Ayesha recuou,
seus olhos luzindo numa espécie de horror, suas mãos agarrando os próprios
cachos. Osman, percebendo o estado do príncipe, girou, saltou para o poço e
subiu como só um marinheiro conseguiria escalar. Com um rugido, Ivan correu
atrás dele, esquecendo tudo sobre o príncipe. Os cossacos se aproximavam,
sacudindo pingos vermelhos de seus sabres. Orkhan abriu suas mãos
resignadamente, e Ayesha o observava, com os lábios entreabertos em muda
agonia.
- Che arz kunan? – ele disse com
simplicidade, encarando seus novos captores – Levem-me se quiserem; sou Orkhan.
Ayesha oscilou
e suas mãos apertaram seus olhos fechados, como se estivesse a ponto de
desmaiar. Então, saltando como um clarão, ela enfiou sua adaga direto no coração
do príncipe, e ele morreu aos seus pés, tão rapidamente que mal sentiu a dor do
golpe. E, quando ele caiu, ela virou a ponta e a enfiou no próprio peito, e
caiu ao lado de seu amante. Gemendo suavemente, ela deitou a cabeça principesca
dele nos braços que enfraqueciam, enquanto os cossacos os cercavam, pasmos e
sem entenderem nada.
Um som,
desfiladeiro acima, fez com que erguessem as cabeças e encarassem uns aos
outros. Só restara um punhado deles, cansados e aturdidos, suas roupas
encharcadas de água e sangue, e seus sabres coagulados e com cortes. Ivan não
estava lá, e eles não sabiam o que fazer.
- Voltem para
dentro do túnel, irmãos. – grunhiu Togrukh – Eu ouço homens descendo a
garganta. Voltem pelo túnel, até o local onde deixamos os cavalos. Selem e
fiquem prontos para cavalgar. Seguirei Ivan.
Eles
obedeceram, e ele subiu o penhasco, praguejando diante dos rasos buracos para
as mãos. Os cossacos mal haviam desaparecido atrás da cortina prateada, e ele
ainda não havia alcançado o topo do penhasco, quando vários homens apareceram,
marchando apressadamente. O desfiladeiro estava apinhado de guerreiros.
Togrukh, olhando para baixo com a curiosidade de um cossaco, viu os turbantes e
khalats dos curdos do castelo, e, com
eles, os pontudos gorros brancos dos janízaros turcos. Um deles usava
meia-dúzia de plumas de ave-do-paraíso em seu gorro, e Togrukh ficou
boquiaberto ao reconhecer o agha dos janízaros, o terceiro homem mais poderoso
do Império Otomano. Ele e seus seguidores estavam empoeirados, como se de uma
longa e dura cavalgada. Olhando em direção ao vale, o magro cossaco viu o
estandarte do agha, de três caudas de cavalo branco, esvoaçando do portão do
castelo, e, ao longo do rio, os turcomanos em suas peles de carneiros
cavalgavam como loucos para as colinas, perseguidos por cavaleiros em malha
cintilante – os spahis turcos. Togrukh sacudiu a cabeça em assombro. O que
trouxe o agha dos janízaros, em tal formação de tropas, até o solitário Vale de
Ekrem?
Desfiladeiro
abaixo, se ergueu um coro de vozes horrorizadas, quando os recém-chegados
pararam assombrados entre os cadáveres. O agha se ajoelhou ao lado do homem morto
e da jovem moribunda.
- Por Alá! É o
Príncipe Orkhan!
- Está além de
seu poder. – murmurou Ayesha – Você não pode mais feri-lo. Eu teria feito dele
um rei. Mas vocês o despojaram de sua virilidade... por isso eu o matei...
melhor uma morte honrada, do que...
- Mas eu trago
para ele a coroa da Turquia! – gritou o agha desesperadamente – Murad está
morto, e o povo se revoltou contra o filho mestiço de Safia...
- Tarde
demais! – sussurrou Ayesha – Tarde... demais!
A cabeça
morena dela afundou em seu braço branco e arredondado, como uma criança ao
pegar no sono.
5)
Quando Ivan
Sablianka subiu a escada de mão, Kral não estava lá para ajudá-lo, pois este
último jazia morto ao lado do também morto Arap Ali, debaixo do rio manchado de
sangue. Mas, neste momento, o ódio o incitava a prosseguir, e ele subia a
trilha precária de forma tão indiferente quanto se escalasse o enfrechate de um
navio. Pedaços pequenos de pedra desagregada cediam sob seu aperto e caíam do
penhasco em minúsculas avalanches; mas, de alguma forma, ele enganava a morte o
tempo todo e subia inexoravelmente. Não estava muito distante de Osman Pasha,
quando o corsário chegou ao topo e correu através dos abetos raquíticos. Ivan
foi atrás dele, suas longas pernas carregando sua estrutura gigante através do
chão numa velocidade surpreendente, e logo Osman, girando e vendo que só tinha
um inimigo com o qual lidar, o enfrentou praguejando.
Um sorriso
feroz eriçou a barba negra do corsário. Ali havia uma forma enorme, na qual
poderia trinchar sua selvagem repugnância pela frustração de seus planos. Há apenas
alguns meses, ele havia sido o mais temido senhor do mar no mundo, com o amplo
e azul Mediterrâneo aos pés. Agora ele estava tosquiado de todos os sequazes e
poder, exceto aquele que agarrava em sua forte mão direita e que estava
trancado em seu crânio. Ele era aventureiro demais, para desperdiçar tempo
lamentando sua queda, mas a chance de abater este pestífero cossaco lhe dava
uma sombria satisfação.
Pensar era
mais fácil que fazer. Apesar de todo o seu raciocínio lento e do volume, Ivan
era rápido como um felino. Aço retiniu com aço, e a longa lâmina reta do zaporozhiano
se chocou contra a cimitarra argelina. O corsário era quase tão alto quanto o
cossaco, embora não tão compacto. Sua cimitarra era mais reta e pesada que a
maioria das lâminas muçulmanas, e ele mostrava uma aptidão extraordinária tanto
na ponta quanto no gume. Por três vezes, somente a malha esfarrapada de Ivan o
salvou das estocadas perversas do corsário. Estas, ele alternava com cortes
sibilantes, os quais arrancavam pedaços de metal da couraça de Ivan, e logo o
faziam sangrar de meia-dúzia de ferimentos. O propósito de Osman era manter o
gigante na defensiva, onde sua força superior não o ajudaria como no ataque.
Sua cabeça raspada e queimada de sol se movia rapidamente diante dos olhos do
corsário, o claro rabo-de-cavalo flutuando ao vento, e Osman talhava em direção
a ela, até o suor correr para dentro de seus olhos e sua respiração ficar
insuficiente. Mas, de alguma forma, Ivan sempre conseguia deter ou evitar seus
golpes mais perigosos. A cimitarra de Osman resvalava na lâmina reta, ou se
chocava no chamejante guarda-mão.
Não havia som,
exceto o clangor do aço, o ofegar da difícil respiração, e o bater e mudança de
posição dos pés dos lutadores. A pura força do cossaco começou a produzir
efeito. De um turbilhão de ofensiva, Osman se viu gradualmente forçado a
assumir a defensiva, usando toda a sua força e habilidade para deter os
terríveis golpes impetuosos do cossaco. Com um grito arquejante, ele arriscou
tudo num desesperado ataque e saltou como um tigre, a cimitarra cintilando
acima de sua cabeça. Ele percebeu uma agonia no coração e, agarrando
convulsivamente com sua mão nua a lâmina que o havia empalado, ele golpeou com
sua última pitada de força em direção à cabeça de seu matador. Ivan recebeu o
golpe em seu erguido braço esquerdo; a lâmina afiada cortou os anéis de malha e
a carne até o osso. A cimitarra caiu da mão flácida de Osman, e ele escorregou
da lâmina empaladora até a terra encharcada de sangue. E, de seus lábios
pálidos, irromperam palavras numa língua estranha:
- Deus tenha
piedade de mim... Nunca mais verei Devon!
Ivan se
sobressaltou violentamente, vacilando, e então, com um grito, caiu de joelhos
ao lado dele, esquecido do próprio ferimento que jorrava sangue. Agarrando seu
inimigo, ele o sacudiu ferozmente, gritando na mesma língua:
- O que
disseste? O que disseste?
Os olhos
vitrificados rolaram para cima diante dele, e Ivan arrancou o elmo da cabeça
ferida do homem. E ele gritou, como se Osman o tivesse esfaqueado.
- Misericórdia
de Deus! Roger! Black Roger Bellamy!
Não me conheces, rapaz? É John Hawksby... o velho John Hawksby, que lutou
contigo e por ti, quando estivemos juntos em Devon! Ah, Deus nos perdoe por
termos nos reencontrado assim! E numa terra desolada, desconhecida. E como
entraste em tal máscara pagã, Roger?
- Uma longa
história e pouco tempo para contá-la. – murmurou o renegado – Não, John –
enquanto isso, o enorme homem começou a rasgar faixas da própria roupa, para
estancar o sangue que acabara de deixar escorrer tão voluntariamente –, não, eu
estou terminado. Deixe-me aguardar. Eu estava com Drake, quando nos dirigimos a
Lisboa e perdemos tantos navios bons e bravos jovens. Fui um a quem os
espanhóis levaram. Eles me prenderam a um remo de galé. Algo se quebrou dentro
de mim, enquanto eu labutava penosamente lá, sob o chicote. Esqueci a
Inglaterra, sim, e Deus também.
“Um navio
pirata berbere tomou a galé, e o Capitão Pasha – seu nome era Seyf-ed-din –
ofereceu aos escravos vida, se eles se tornassem muçulmanos. As galés fazem um
homem esquecer muito – mesmo que ele tenha sido um cristão. Talvez não haja
grande diferença entre bucaneiro e corsário. Inicialmente, eu só queria atacar
a Espanha. Depois, quando subi ao poder, esqueci cada vez mais o sangue em mim.
Assolei tanto os mares cristãos quanto muçulmanos. Sim, agora o sabor de fama
pagã e glória sangrenta é pó na minha boca. Como você se tornou um cossaco?”.
- Bebida e as
mulheres, rapaz. – respondeu Ivan Sablianka, o qual havia sido John Hawksby, de
Devon – Eu não consegui ficar em Devon, por causa de feudos e lutas com várias
pessoas. Aventurei-me no leste, até perder a lembrança e sensação da Inglaterra.
Afundem meus ossos, fui um grande pagão, tanto quanto você, Roger. Mas você se
lembra dos grandes e velhos dias, quando espancamos os nobres espanhóis no Mar
Espanhol?
- Lembrar-me?
– os olhos do homem moribundo resplandeceram, e ele se ergueu cambaleante sobre
o cotovelo, o sangue lhe jorrando da boca – Deus, navegar outra vez com Drake e
Grenville! Rir com eles, como rimos ao destruirmos a Armada de Philip!... deixe
as chaves do tempo!... é a nau almirante de Sidônia!... homem, as bombas, os valentões;
não vou golpeá-los enquanto houver uma prancha sob meus pés!... dê-lhes uma
bordada de canhões... as armas do estibordo... alças e pistolas, lá...
Ele caiu de
novo, o balbucio do delírio lhe morrendo nos lábios. Ivan, ajoelhado ao lado do
homem morto, estava perdido em lembranças, até que um tinir de aço na pedra o
fez dar a volta instintivamente, de espada pronta. Togrukh estava próximo a
ele, no crepúsculo que caía.
- Eu vi você
abater o cão. Os rapazes voltaram para dentro do túnel. Só há nove deles vivos,
além de nós. O desfiladeiro está cheio de turcos. Teremos de seguir através dos
penhascos, até o local onde deixamos os cavalos. O que vai fazer?
Ivan havia
estirado o manto do corsário sobre o pirata morto.
- Vou colocar
pedras sobre ele, para que os abutres não roam seus ossos. – ele respondeu
imperturbavelmente.
- Mas a cabeça
dele! – advertiu o outro – A cabeça dele, para mostrar aos nossos caros irmãos!
O gigante
olhou ao redor do escurecer, tão sombriamente que Togrukh recuou involuntariamente.
- Ele está
morto, não está?
- Sim, com
certeza.
- E você será
testemunha, para nossos caros irmãos, de que eu o matei, não?
- Sim, mas...
- Então,
deixe-o descansar aqui. – grunhiu Ivan, curvando suas costas poderosas,
enquanto começava a erguer pedras e empilhá-las no local.
FIM
(*) – Bei: Título adotado, tanto pelos monarcas da Tunísia
quanto pelos governantes do Império Seljúcida e Império Otomano (Nota do
Tradutor).
(**) – Janízaros: A elite do exército dos sultões otomanos (N. do T.).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão e Fernando Neeser de
Aragão.
Fonte: Sword Woman and Other Historical
Adventures.
Agradecimentos especiais: À grande amiga Manuela Queiroz (hoje Manuela Vinnie Wigardt) – sobrinha
de minha amada esposa e minha sobrinha do coração.