O Crepúsculo do Leão

Introdução:


No pasticho a seguir, o howardmaníaco escocês Alexander Harron (uma das maiores autoridades mundiais em ficção howardiana) narra, de forma fidelíssima a Howard, os últimos momentos de vida de Conan, o Cimério, o mais famoso personagem criado por Robert E. Howard. Confesso que, ao traduzir, tomei a liberdade de alterar alguns detalhes (substituindo "atiradores de balestra" por "arqueiros montados" e "salões" por "tendas de pele de cavalo"), para que o conto ficasse ainda mais fiel à ficção do criador de Conan.

De qualquer forma, espero que vocês curtam este magnífico conto, ao qual tive enorme prazer em traduzir!





O Crepúsculo do Leão
(por Al Harron)


Os prantos e gritos do reino em tristeza sacudiam as torres e pináculos até suas bases. Guerreiros, cavaleiros e barões contorciam suas mãos e guinchavam para os céus em angústia; tanto mulheres do harém quanto servos choravam nos ombros uns dos outros, enquanto se abraçavam; crianças choramingavam com suas famílias, toda a terra unida em mágoa. O rei e sua família haviam retornado ao palácio, os corações da nação despedaçados como um só.

O rei era um monarca popular, amado tanto por camponeses quanto nobres, graças à sua generosidade, coragem e dedicação. Seus tributos eram os mais leves do mundo inteiro, seu patrocínio das artes e comércio tornaram o reino rico e culto até um grau nunca visto antes. Mas, quando a guerra chegou à porta, o Rei dos Poetas e da Música se transformaria no Demônio da Guerra e Morte, enquanto sua lâmina cantava uma nênia pavorosa através de corpos e almas daqueles que ousavam ameaçar seu povo. Esta era uma época de impérios, e o rei estava sempre pronto para garantir que sua terra não seria vassala de ninguém.

A história de como o rei veio a governar havia sido contada e recontada tão freqüentemente, que muitas crianças do reino conseguiam recitá-la de cor. Resmas de pergaminhos, cartografando os primeiros anos do rei como ladrão, aventureiro, mercenário, pirata, bandido e general, abrangiam uma ala inteira da Biblioteca Real; menestréis cantavam sagas de suas guerras e aventuras em esquinas nas ruas, algumas cantadas pelo próprio rei; afrescos e baixos-relevos de suas aventuras, em regiões longínquas e ruínas há muito perdidas, adornavam muros de cidades; suas maiores proezas de força e heroísmo representadas em estátuas de mármore e bronze, representações de sua lenda encenadas em teatro de rua. Mais do que qualquer rei que a terra já tinha visto, o rei atual, chamado O Leão por muitos, era uma lenda viva.

Em seu palácio na capital, o Leão estava morrendo.

Nas montanhas da Cordilheira da Fronteira, há um planalto, através do qual corre uma antiga estrada; uma das vitais rotas de comércio entre os muitos reinos. Ela é tão valorizada e estrategicamente preciosa, que o sangue derramado sobre ela é capaz de encher lagos e oceanos: bandidos atacavam caravanas que carregavam jade do leste distante; bandos errantes de bárbaros saqueavam as distantes torres de guarda; exércitos se entrechocavam pelo controle da passagem, o território trocando de donos ao longo dos séculos.

A batalha final do Leão foi lutada sobre este planalto.

Os vizinhos a leste do reino sempre estiveram cuidadosos de suas invasões malsucedidas, ao longo dos últimos séculos, e os olhos avarentos da nobreza sempre estiveram dirigidos para leste. O rei havia unido todas as nações contra um império vindo das praias de um mar oriental – mas, sem um inimigo comum contra o qual lutar, aqueles mesmos reinos retornaram às suas rixas insignificantes e ambições imperiais. Foi assim que dois dos reinos mais orgulhosos do mundo lutaram pelo domínio das terras centrais.

Esta batalha foi como muitas que as duas nações haviam lutado antes: os reis sempre lutando ao lado da infantaria, seus corações inchando de orgulho. Os arqueiros montados do reino oriental eram formidáveis, mas os vassalos atiradores de arcos longos do reino ocidental tinham alcance e armaduras melhores, impedindo os arqueiros a cavalo de entrarem num alcance mortífero. No entanto, eles continuavam a lançar suas setas sobre a infantaria, a maioria das flechas resvalando inofensivamente nos largos escudos e gorros resistentes dos piqueiros. Rajada após rajada chegaria, e os arqueiros montados continuariam a atirar até que a batalha terminasse.

Uma flecha achou seu alvo.

Ninguém sabia qual dos arqueiros havia disparado a flecha que derrubou o rei mais poderoso daquela era: o assunto seria causa de debate e especulação infindáveis e fúteis. Tudo o que se sabe é que, quando a infantaria do leste começou a marchar, a do oeste começou a perseguir e desfazer a formação. O rei correu a toda velocidade até a ala da cavalaria, e montou em seu grande garanhão negro, liderando a cavalaria para um ataque. Mesmo com o pânico crescente ao ver a infantaria fugindo, os arqueiros a cavalo continuaram disparando para dentro da massa inimiga, esperando desesperadamente que uma seta pudesse achar uma brecha nas armaduras quase impenetráveis, enquanto os cavaleiros e guerreiros começavam a entrar no alcance mortífero. Quando os cavaleiros trovejaram pelo campo de batalha, muitos dos arqueiros começaram a fugir: alguns permaneceram, resolutos e resignados ao seu destino. A saraivada final viu apenas um punhado de setas voando em direção ao céu. Foi o bastante. O rei subitamente freou seu garanhão, perdendo velocidade. Ele caiu bruscamente para trás. O comandante da guarda pessoal mais tarde se lembrou de ter visto a seta atingir entre a gola e o elmo. A flecha estava alojada no pescoço do rei.

A batalha foi vencida: apesar de toda a bravura dos arqueiros montados remanescentes, ela de nada adiantou quando foram desmantelados pala cavalaria furiosa. Qualquer esperança de identificar o homem que derrubara o Leão foi esmagada pelos cascos dos cavalos ocidentais de guerra.

* * *

O Leão nunca se sentia realmente confortável com as armadilhas suaves da civilização. Nascido e criado numa terra desolada, onde a sobrevivência era comprada pela espada e força, os luxos sedosos e conforto voluptuoso proporcionados pelo seu posto pareciam artificiais e falsos. Mas agora, cercado por sua rainha, seus filhos e filhas, seu harém, seus amigos, seus mais confiáveis nobres e conselheiros, seus escudeiros e pajens, seu rosto moreno e cicatrizado estava mais jovem do que estivera durante décadas. Seu corpo doía de esforço e o sangue lhe escorria de um ferimento medonho no pescoço, mas ele se sentia mais vivo do que havia estado em meses – anos até. Ele sabia que não iria saborear a sensação por muito tempo, mas ele ainda não havia abandonado o mundo.

Ele contemplava a congregação. O capitão da guarda encarava a porta, sempre cuidadoso com o seu dever, embora um súbito reconhecimento, ao qual apenas o rei reconhecia, lhe traísse o verdadeiro foco. Seu confidente mais próximo, ainda jovem e esbelto após todos esses anos, sorria largamente apesar da dor evidente em seus olhos. Seu senescal, filho de um velho amigo e exatamente tão taciturno e melancólico quanto seu pai, não devolvia o olhar do Leão. O conselheiro, um recém-chegado – a tensão da sua posição havia visto muitas idas e vindas durante os anos –, torcia as mãos em nervosismo característico. Um sacerdote de rosto cor-de-oliva estava silencioso, inclinando levemente a cabeça. E, no vão sombreado, havia uma mulher idosa, seus calcanhares firmemente plantados no contorno negro de uma sombra simiesca. Ela era idosa há muito tempo.

Mais próxima do leito real, estava sua família. Várias crianças engatinhavam entre os cobertores, curiosamente caladas e ágeis para suas idades; uma menina de oito anos, toda resistente e flexível como molas de aço e osso de baleia, se curvava sobre uma espada de treino; um garoto de 12 anos agarrava a mão da mãe. Poucos deles eram herdeiros do trono aos olhos das leis de sucessão do reino. Mas, para o rei, o sangue é mais forte que a tinta, e todos aos quais ele gerara foram criados como se ele ainda fosse um bárbaro do norte, vestido em pele de pantera. Foram todos criados como ele havia sido – pelo menos, tão bem quanto alguém pode ser educado para ser independente e com vontade forte numa terra civilizada –, indiferente ao que um costume antiquado disse. Pensar que este bando de lobos semi-selvagens era a dinastia governante da mais orgulhosa civilização do mundo! Isto agradava imensamente o rei, tanto pela ironia da situação quanto pelo orgulho dele.

Dois rostos entre os congregados prendiam mais firmemente a atenção do rei. Sua esposa, mais próxima dele, era mais forte do que qualquer um que ele já conhecera. Ele nunca suportou a escravidão; nunca agüentou indignidade sobre indignidade, enquanto ela fora forçada a isto por boa parte da vida; ele nunca realmente soube o que era ser tão desprovida de poder quanto ela fora. Mas uma escrava, que outrora havia sido uma garota sem nome de harém, entrou na vida de rainha como se fosse um direito de nascença. Tão grande e genuíno era seu amor pelo rei, que ela nunca procurou lhe explorar ou manipular. Qualquer falta de astúcia sofista, ou deficiência diplomática, da qual o rei sofresse, sua rainha compensava com pouco esforço.

O outro rosto era o da filha mais velha do rei, e herdeira do trono. A princesa e o rei raramente se viam olho a olho, e as paredes do palácio freqüentemente estremeciam com o trovejar de suas discordâncias. A rainha passava por momentos difíceis, agindo como mediadora entre o tigre enfurecido e a loba estridente. Mas as contendas freqüentes entre pai e filha contradiziam a verdade: que eles eram os mais parecidos entre si de toda a família. O espírito independente dela, sua sede de conhecimento, e até mesmo seu desdém e incompetência em assuntos de etiqueta civilizada e cortesia, faziam o rei se lembrar de si mesmo. Tanto mais frustrante para ele se sentir compelido a temperar aquele fogo com o respeito pelo reino, o qual ele próprio às vezes se pergunta se merece tal honra.

Havia outros, reunidos ao redor – embaixadores, sacerdotes, nobres, barões, condes e várias pessoas –, quase exibindo suas mágoas. Se algum dos amigos mais próximos do rei percebesse o quanto as canções de dor, que eles soavam agora, eram de uma cadência um tanto diferente das melodias rancorosas e peçonhentas que haviam censurado há pouquíssimos dias, eles não se dignariam a admitir o acontecimento. O rei percebeu, e ordenou que saíssem. Ele não tinha tempo para as asneiras deles na vida, e não pretendia desperdiçar nenhum dos seus últimos momentos.

A escuridão vinha mais freqüentemente agora, reivindicando a consciência do rei por minutos mais longos. E, no momento de cada despertar, o mundo lhe parecia mais estranho: o outrora vibrante ouro e azul lápis-lazúli da sala do trono se desvaneciam em cor de latão e ardósia; as ricas cortinas de veludo e tapeçarias desapareciam como teias de aranha na névoa; os rostos daqueles a quem ele amava pareciam obscurecidos pelo véu, que sempre escurecia, entre mundos. Quando os rostos de sua esposa, filhos e companheiros de armas ficaram indistintos, outros rostos ganharam forma e vida. Guerreiros de barbas loiras em malha e elmos com chifres, rugindo e gargalhando em tendas de pele de cavalo; um jovem de cabelos desgrenhados e mestiço robusto, acompanhado por santos e por um sábio de barba longa; uma deusa de marfim, com um cabelo negro como a noite e ardentes olhos negros, lado a lado com deuses decadentes de barbas negras.

Escuridão novamente. Quando o rei despertou desta vez, ele encarou um novo fantasma. O mundo inteiro parecia cinza e sombrio, oculto em perpétuas névoas e noite. Mas, povoando aquele reino, havia um exército aparentemente infinito de figuras morenas de cabelos negros, perambulando melancolicamente na bruma. À frente de todas elas, havia dois homens e uma mulher. O rei os reconheceu, pelo menos como eles eram em vida. Em vida, a mulher deu à luz um garoto em meio a uma batalha. O homem mais velho contou a um garoto sobre as maravilhas das terras ao sul de seu lar, banqueteando-o com histórias de aventuras e mistérios que lhe inflamaram a mente jovem. O homem mais jovem havia sido um ferreiro sem uma gota de sangue nobre, cujo filho se tornou um rei.

Quais visões aguardavam o rei, quando a escuridão final o reivindicasse para sempre? Os desvairados sonhos delirantes de um moribundo? O rei não sabia, nem se importava. O que quer que o aguardasse no mundo além do mundo, ele ainda não havia abandonado a vida.

* * *

O rei ouviu muitas lendas sobre seu reino, ao longo do curso de sua vida. Como é quase sempre o caso com lendas, qualquer semelhança com a verdade é enorme coincidência. Ele ouvia bardos, menestréis e poetas recitarem grandes histórias, freqüentemente contraditórias. Ouvia a saga de uma criança bárbara de olhos de corça, abandonada e sem dono, vendida como escravo, que empreendeu uma busca perpétua para vingar o assassinato de sua família e o massacre de seu povo; outra – alterada para o beneficio daqueles com temperamento delicado – entontecia o rei com futilidades, como fênixes-frangos falantes, “metal estelar” e um sacerdote-lagarto; outra estória falava da destruição de sua aldeia por um senhor da guerra, o qual procurava uma máscara para ressuscitar um antigo reino. O rei ria imensa e intensamente destas estórias, pois quem conseguiria possivelmente confundi-las com as do verdadeiro rei?

Ele não se importava com a precisão das lendas, uma vez que as verdadeiras crônicas foram deixadas à disposição de todos, e colocadas separadamente dos contos exagerados. Os poetas e menestréis que se divirtam, desde que não afirmem ser historiadores.  Mas o rei percebia que não seria apenas ele que seria afetado pela diluição e confusão de história com lenda: e quanto ao reino, à sua família e seus amigos? E quanto àqueles pelos quais ele derramara o próprio sangue tão abundantemente quanto o dos seus inimigos?

Os olhos do rei repousaram em sua filha mais velha. O rei falou, um fio de sangue fresco lhe brotando do ferimento em seu pescoço, uma rouquidão evidente em sua fala. Todos na sala ficaram em silêncio. Ele não afogou a filha com cumprimentos ou elogios, nem lhe concedeu quaisquer requintadas heranças ou tesouros. Tudo o que ele pediu foi que ela escutasse suas ordens finais como rei. Ele recitou uma ladainha de exigências: política externa, assuntos domésticos, leis, reformas e decretos. Ela ouviu atentamente, perguntando a si mesma por que seu pai estava tão determinado a garantir que essas preocupações triviais fossem seguidas após sua morte.

Por fim, o rei suspirou profundamente. Ele agarrou a esposa e a beijou ferozmente. Ele juntou as crianças e filhos para perto de si. O rei suspirou novamente e jazeu imóvel. Não respirou novamente. Por um momento, parecia que todo o calor e cor do mundo haviam se esgotado, como se o sol tivesse fechado seu olho sobre a terra. O rosto da rainha se contorceu de dor. Após uma eternidade, a filha do rei caminhou até a sacada. Um silêncio caiu sobre a multidão aglomerada do lado de fora.

Ninguém, nos aposentos do rei, olhou para o rosto do monarca mais recente, dominados pela dor como estavam. A rainha afundava o rosto no ombro de seu marido, e as crianças mais novas se aglomeravam ao redor do rei, como filhotes de lobo repousando para a noite. Ouviam a princesa se dirigir à multidão que estava de luto, mas não conseguiam entender as palavras através dos lençóis e tristeza. Não ouviram a Princesa desobedecer aos últimos desejos de seu pai: ela decididamente ignorou ou inverteu cada um deles, conforme lhe convinha. O rei ouviu cada palavra.

Enquanto a princesa continuava falando, quebrando mais e mais das leis de seu pai, o Leão finalmente morreu – com sua expressão cansada agora abrandada, revelando um rosto iluminado pelo mais orgulhoso dos sorrisos.


FIM


Tradução: Fernando Neeser de Aragão.


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