(por Robert E. Howard)
“E o que tenho certeza é de que
não há nenhum ouro, nem qualquer outro metal, naquela região” (Coronado).
O estalar da
corda de um arco, e o relinchar agudo de um cavalo atingido mortalmente,
quebraram o silêncio. O cavalo espanhol se empinou, a extremidade emplumada da
seta tremendo atrás de sua pata dianteira, e desabou. O cavaleiro saltou
enquanto o cavalo caía, e aterrissou com um tinir seco de aço. Ele cambaleou,
as mãos vazias bem abertas, lutando para recuperar o equilíbrio. Seu arcabuz
lhe caíra a vários metros de distância, e o rastilho havia se apagado. Ele
puxou sua espada larga e olhou ao seu redor, tentando localizar os negros olhos
de contas que ele sabia cintilarem para ele, de algum lugar dos cerrados
arbustos que margeavam a beirada da terra seca à sua esquerda. Enquanto procurava
o matador de seu corcel, o homem apareceu, erguendo-se de pé e saltando sobre
um arbusto quase no mesmo movimento. Um grito vingativo de triunfo vibrou no
silêncio do final da tarde. Por um instante, encararam um ao outro, numa distância
de 15 metros de areia fulva entre os dois – o Novo e o Velho Mundo personificados
neles.
Ao redor
deles, de horizonte a horizonte, as planícies nuas se estendiam à distância,
para se misturarem à vaga névoa de aparência oceânica que pairava ao longo da
borda azul-turquesa. Nenhum pássaro cantava, nenhuma fera se movia. O cavalo
morto jazia imóvel. Em toda aquela vasta extensão, aqueles dois eram os únicos
seres vivos e sencientes – o homem alto e de barba grisalha, em aço manchado; e
o musculoso bravo cor-de-cobre, vestindo apenas uma tanga com contas, com seus
olhos negros ardendo vermelhos sob a franja de corte reto da sua cabeleira
negra.
Aqueles olhos
negros palpitaram ao verem o arcabuz, caído fora de alcance e sem uso, e o
brilho vermelho deles ficou ainda mais sinistro. Aquele apache havia aprendido
o quão mortais eram as armas dos brancos. Mas agora ele percebia estar em
vantagem. Sua mão esquerda agarrava um curto arco robusto de laranjeira-de-osage,
reforçado com tendões; na sua direita, havia uma flecha de corniso com ponta de
sílex. Ele não tentou pegar a machadinha de lâmina de pedra, em seu cinto. Não tinha
a intenção de ficar ao alcance daquela longa espada, que brilhava sob os raios
do sol a oeste. Por um instante, aquele quadro vivo ficou imóvel, enquanto ele
percorria seu olhar feroz sobre o inimigo. Ele sabia que suas flechas de sílex
iriam se quebrar na armadura do homem branco; mas nenhum visor cobria o rosto
barbado. Mas estava pouco disposto a desperdiçar uma única ponta de flecha, a
qual representava horas de trabalho tedioso. Como um gato, ele deslizou até sua
presa, não em linha reta, mas saltando de um lado para outro, para confundir o
outro, para tentar fazê-lo mudar de posição e assim pegá-lo no final de um movimento,
no qual não poderia se esquivar da morte emplumada que saltava em sua direção.
O apache não temia um súbito giro de espada. O homem vestido em aço jamais
conseguiria igualar a rapidez de seus pés descalços. Ele tinha o branco à sua
mercê e poderia matá-lo ao seu modo, sem risco. Com um curto grito feroz, ele
parou bruscamente, ergueu o arco e puxou a flecha para trás – no exato momento
em que o homem branco puxou uma pistola do cinto e atirou à queima-roupa.
A flecha
assobiou erraticamente para o céu. O arco escorregou das mãos do guerreiro,
quando o apache caiu de joelhos, asfixiado, o sangue jorrando por entre os
dedos que agarravam o peito musculoso. Ele desabou sobre a areia, seus olhos
injetados de sangue e vitrificados fixos num último espasmo de ódio desesperado
ao seu matador. O homem branco sempre tinha algo de reserva, algo inimaginável.
O guerreiro viu o homem de armadura avultando sobre ele como um deus sombrio,
implacável e inconquistável, com olhos frios e impiedosos. Naquela figura
brilhante, ele lia o destino final de toda a sua raça. Fracamente, como o
sibilar de uma serpente moribunda, ele ergueu a cabeça, cuspiu em seu matador e
desabou morto para trás.
Hernando de
Guzman embainhou a espada, recarregou a tosca pistola de chave de roda e a
substituiu ao lado do arcabuz, refletindo brevemente ser bom para ele que este
apache em particular não estivesse familiarizado com armas mais curtas. Ele
suspirou e olhou para seu cavalo morto. Como muitos de sua raça, tinha uma
afeição por bons cavalos e demonstrava a eles uma bondade que ele raramente
mostrava por seres humanos. Não fez qualquer movimento para segurar os
bem-ornamentados sela e freio. Nas milhas que ele percorreria a pé, encontraria
exaustão suficiente, sem carregar mais peso. Ele segurou o arcabuz e, com ele
sobre o ombro, ficou imóvel por um momento, procurando se orientar.
Uma sensação
de que já estava perdido o arrastava – já o havia arrastado durante a última
hora, antes mesmo de seu cavalo ser morto. Apesar de ser um veterano
resistente, ele havia perambulado mais para longe do que deveria, na vã
perseguição a um antílope, cujas reluzentes corridas brancas, brilhando à luz
do sol, o haviam guiado como um fanático sobre as montanhas de areia e
campinas. Ele havia tentado guardar na mente a localização do acampamento, mas
temia ter falhado. Não havia pontos de referência nestas planícies, que se
estendiam ininterruptamente de sol a sol. Uma expedição, guiando seu próprio
sustento sobre cascos de cavalos, era, como um navio tateando às cegas através
de um oceano desconhecido, sua única chance de sobrevivência. Um cavaleiro
solitário era como um homem à deriva num bote aberto, sem comida, água ou bússola,
a menos que conseguisse alcançar rapidamente seus companheiros.
De Guzman
explorou brevemente a ravina rasa, na esperança de achar um cavalo. Não havia
nenhum. Os apaches ainda não haviam adquirido o hábito de montar cavalos.
Corcéis desgarrados ou roubados eram usados como comida, embora ele já tivesse
ouvido histórias de uma terrível tribo ao norte, cujos guerreiros já eram
cavaleiros.
O espanhol
escolheu a direção que ele acreditava ser a correta, e iniciou sua marcha. Ele
ergueu seu morion e correu os dedos por suas mechas úmidas e meio grisalhas,
mas o calor do sol o fez recolocá-lo. Anos usando armadura o acostumaram ao
peso e calor do aço que o envolvia. Mais tarde, ela iria aumentar seu cansaço,
mas lhe seria vantajosa se ele encontrasse outros guerreiros vagando na
planície. A presença do guerreiro solitário ao qual matara provava que havia um
clã inteiro, em algum lugar das redondezas.
O sol
mergulhou no horizonte ocidental; diante de seu olho vermelho, ele se movia
como um minúsculo pigmeu em meio à planície ilimitada que zombava dele em sua
vastidão e silêncio sombrio.
O sol parecia
estar suspenso sobre a orla do deserto, antes de desaparecer da vista. Uma fina
flâmula vermelha corria de norte a sul, ao redor da linha do céu. O céu parecia
se expandir e aprofundar com a chegada do pôr-do-sol. No leste, o quente céu
azul vulcânico se empalidecia à cor do aço das espadas de Toledo.
De Guzman
parou e deixou a coronha de seu arcabuz cair ao solo. Ela retiniu no chão duro
e não deixou marca. Ele olhou para o caminho pelo qual viera, incapaz de traçar
sua própria rota sobre a curta e seca grama elástica. Havia passado sem deixar
pegadas. Poderia ser muito bem um fantasma, vagando inutilmente através de uma
terra adormecida e indiferente. As planícies eram impermeáveis a esforços
humanos. Um homem não deixava marcas sobre elas; ele marchava, lutava,
engalfinhava-se e morria amaldiçoando os deuses que o traíram, mas as planícies
continuavam sonhando, com não mais traços da passagem dele do que ele deixara
na superfície do mar.
- Ouro! –
murmurou de Guzman, e riu sarcasticamente.
Havia
percorrido um longo caminho, desde que seu cavalo morrera. Se estivesse indo na
direção correta, teria chegado perto o bastante do acampamento para ouvir os
tiros que os homens dariam para guiá-lo de volta. Estava perdido. Não sabia
qual direção tomar. As planícies o haviam reivindicado para si mesmas. Seus
ossos, gerados do trigo, óleo e vinho da Antiga Espanha, iriam embranquecer
naquela vastidão árida, junto com os ossos dos apaches, dos coiotes e
cascavéis. Mas o pensamento não lhe causava nenhum horror religioso, nem
sentimental. A Espanha estava bem distante, um sonho e uma lembrança, uma Terra
de Cocanha (1) que outrora havia sido real, no brilho dourado da
juventude e do desejo, mas que agora não era mais real que um
continente-fantasma perdido num mar de névoas.
O sangue
espanhol não era mais sagrado que o de outras raças; sangue era apenas sangue,
e ele já tinha visto oceanos dele serem derramados: sangue espanhol, inglês,
huguenote, inca, asteca – o sangue real de Montezuma pingando dos parapeitos de
Tenochtitlan –, sangue correndo à altura dos tornozelos, na Praça de Cajamarca,
ao redor dos pés frenéticos do condenado Atahualpa (2).
Mas a vontade
de viver lhe ardia ferozmente no peito; o instinto cego e negro para a vida, o
qual não tem relação com intelecto, razão ou qualquer outra coisa. Tal como ele
a reconhecia e obedecia. Ele não tinha mais ilusões a respeito da existência.
Ele sabia, como todos os homens sabem quem havia desnudado seu núcleo, que não
valia a pena. Os homens racionalizam o instinto cego de auto-preservação e
constroem volúveis castelos no ar, explicando por que é melhor viver do que
morrer, quando seu ostentado – mas ignorado – intelecto é, em cada fase, uma
negação da vida. Mas os homens civilizados odeiam e temem seus instintos, assim
como odeiam e temem qualquer herança do buraco cego e gritante dos começos
primordiais que os geraram. Cães, macacos, elefantes, estas criaturas obedecem
a seus instintos e vivem apenas porque os instintos as mandam viver. O anseio
do homem pela vida não é menos cego e sem razão, mas, execrando seu parentesco
com aquelas criaturas que tiveram o infortúnio de não terem sido feitas à
imagem da Divindade – não tendo profetas para declararem-no –, apega-se à sua
ilusão favorita de que ele é
totalmente guiado pela razão, mesmo quando a razão o diz que é melhor morrer do
que viver. Não é o intelecto, por ele ostentado, que o manda viver; mas os
cegos, negros e irracionais instintos animais.
Isto de Guzman
sabia e admitia. Ele não tentava se enganar, acreditando que havia alguma razão
intelectual pela qual ele não deveria abandonar aquela luta agonizante, colocar
a boca da pistola na cabeça e encerrar uma existência, cuja graça havia há
muito se tornado menor que sua dor. Se, por algum milagre, ele achasse o
caminho de volta ao acampamento de Coronado, e finalmente para o México ou a
fabulosa Quivira, não haveria razão para acreditar que a vida seria menos
sórdida ou mais desejável do que fora, antes dele marchar para o norte, em
busca das Sete Cidades de Ouro. Mas aquele instinto cego o mandava lutar pela
vida até seu último e sufocado suspiro; viver, apesar do inferno ou das ações
de seus companheiros. Ela agora queimava tão fortemente quanto naquele dia
longínquo, na sua juventude, quando ele lutou ombro a ombro com Cortez e viu as
hordas emplumadas de Montezuma rolarem como uma onda, para engolfar o desesperado
punhado que os desafiara.
Viver! Não por
amor, nem lucro, nem ambição, nem por uma causa – todas estas coisas eram
fragmentos de névoa, fantasmas evocados por homens para explicar o inexplicável.
Viver, porque, em seu ser, estava implantado bem profundamente um cego e negro
anseio pela vida, que era ao mesmo tempo pergunta e resposta, desejo e meta,
começo e fim, e a resposta para todos os enigmas do universo.
E assim, o
conquistador espanhol riu sardonicamente, pôs seu tosco arcabuz sobre os ombros
e se preparou para retomar sua marcha vã em direção ao esquecimento e silêncio
definitivos.
Então, ele
ouviu o tambor.
Inalterável,
pausada e sem pressa, sua voz rolava através da planície, tão doce quanto o
bramir de ondas de vinho numa costa dourada. Ele parou por um momento, como uma
imagem feita de aço, aguçando os ouvidos. Vinha do oeste, ele julgou, e não era
um tambor apache. Era estranho e exótico, como um tambor que ele ouvira naquela
noite, quando ele estava sozinho sobre um teto plano em Cajamarca e via o
grande número de fogueiras do exército inca cintilando pela noite, enquanto,
muito próxima, a voz calma do Bastardo Pizarro fiava teias negras de traição e
infâmia.
Ele fechou os
olhos, esfregou a mão neles, abriu-os e ficou escutando com sua cabeça
inclinada para um lado, perguntando-se se o calor e o silêncio já estavam lhe
amolecendo os miolos e dando origem a fantasias. Não! Não era uma miragem em
forma de som. Tão firmemente quanto o pulsar de suas próprias têmporas, ele
palpitava e palpitava, tocando cordas obscuras de seu cérebro até todo o seu
ser tamborilar com o chamado de mistério. Por um momento, cinzas mortas
palpitaram em fogo, como se sua juventude morta tivesse sido revivida por um
momento. Naquele som doce, havia magia e sedução. Ele sentiu novamente, por um
momento, como havia se sentido há muito tempo, quando havia agarrado o
parapeito de um navio com mãos quentes e ansiosas, vira a costa dourada e
fabulosa do México avultar da bruma matutina e sentira a atração pela aventura
e saque, que era como o soprar de uma trombeta dourada através do vento.
Passou, mas um
pulsar em sua têmpora latejou alto e rápido, de modo que ele riu de si mesmo.
E, sem parar para questionar o assunto consigo mesmo, ele girou e caminhou para
leste.
O sol havia se
posto; o breve crepúsculo das planícies brilhou e terminou. As estrelas
brilhavam – estrelas grandes e frias, indiferentes à pequena figura que
caminhava lenta e penosamente através da vastidão sem sombras. Os arbustos
esparsos se agachavam como feras sem nome, esperando que o andarilho tropeçasse
e caísse. O tambor pulsava constantemente e sem parar, bramindo suas pequenas
ondas de som por toda a terra deserta. Ele despertava lembranças há muito
desbotadas, estranhas e exóticas, de jardins flamejantes com flores grandes, de
selvas gotejantes, fontes tilintantes e sempre um som fraco de gotas douradas
tilintando num calçamento de ouro.
Ouro! Mais uma
vez, ele seguia uma busca por ouro – a mesma busca velha e batida que o guiara
ao redor do mundo pelos mares, através de selvas e da fumaça de cidades
massacradas. Como em Coronado, adormecido em algum lugar nestas planícies e
envolto em sonhos fantásticos, ele estava seguindo um chamado de ouro, tão
tangível quanto aquele que enlouquecera os sonhos de Francisco. Coronado,
procurando em vão pelas cidades de Cibolo, com suas casas majestosas e tesouros
dourados, onde até os escravos comiam em pratos de ouro! De Guzman sorriu
amargamente, com seus lábios ressequidos e torcidos pela sede, refletindo que,
em anos futuros, Coronado se tornaria um símbolo para a perseguição ao
sobrenatural. Futuros historiadores, com a sabedoria espalhafatosa da
compreensão tardia – do que deveria ter sido feito –, zombariam dele como um
visionário e um tolo. Seu nome se tornaria um sarcasmo para caçadores de
tesouros. Mas com que razão? Por que um espanhol não poderia procurar ouro nas
regiões ao norte do Rio Grande? Por que se recusar a acreditar nas histórias de
Cibolo? Elas não foram menos incríveis que as do Peru e México haviam sido, há
menos de uma geração. Havia tanta razão para acreditar que Cibolo existiu,
quanto houvera para crer que o Peru existiu, antes que o guardador de porcos
Pizarro navegasse para o sul. Mas o mundo julga pelas falhas ou pelo sucesso.
Coronado era da mesma raça obstinada e prepotente de Pizarro e Cortez. Mas eles
encontraram ouro, e entrariam para a história como ladrões e saqueadores;
Coronado não achou ouro, e entraria para a história como um visionário que
acreditava ingenuamente em mitos, um perseguidor de arco-íris inexistentes. De
Guzman riu, e sua risada não era agradável, incorporando sua opinião pessoal
sobre a raça humana, a qual não era lisonjeira.
Assim, através
da noite, ele acompanhou o bramir doce do tambor, o qual ficava delicadamente
mais alto à medida que ele avançava. Nas curtas horas da manhã, quando seus pés
pareciam sobrecarregados, não com aço, mas com chumbo, e o sono lhe preenchia
os olhos como poeira, de modo que continuava piscando freqüentemente, ele percebeu
um vago volume avultando entre as estrelas no horizonte leste e o piscar de
luzes que poderiam ser estrelas, mas que ele acreditava serem fogueiras. E o
tambor não estava distante agora; ele percebia tons e meio-tons que não ouvira
antes, estranhos sussurros e murmúrios, como o zunir das saias das mulheres
astecas, ou os suaves gorgolejos baixos de suas risadas, que tilintavam entre
as fontes prateadas nos jardins de Tenochtitlan, antes que as espadas
espanholas avermelhassem aqueles jardins com sangue. Por que um tambor falaria
com tais vozes nesta terra desolada ao norte, trazendo as seduções e mistérios
do sul distante?
Em ambos os
lados, ele distinguiu os contornos indistintos de uma longa serra. Percebeu que
havia feito uma descida lenta e gradual. Sabia que havia entrado num vale largo
e raso, o qual provavelmente marcava o curso de um rio submerso. As montanhas
ficavam mais próximas e altas, enquanto ele avançava.
Pouco antes do
amanhecer, ele se deparou com um pequeno curso d’água, o qual corria para o
sudeste, como todos naquela terra pareciam fazer. Salgueiros, choupos e
arbustos esparsos cresciam espessos ao longo do curso. Ele bebeu intensamente e
ficou deitado ali, próximo à margem d’água, esperando o amanhecer. O tambor
pulsou mais uma vez, e parou. Somente uma única fogueira piscava no volume
escuro diante do homem. O silêncio caía sobre aquela terra antiga.
Com o primeiro
traço de luz leitosa ao leste, ele viu diante de si as torres e os tetos planos
de uma cidade murada.
Havia
perambulado muito e tido muitas visões incríveis, para ser grandemente surpreendido
diante de qualquer coisa que visse, mas ali estava ele, maravilhado com a
visão. A cidade era feita de adobe (3), como os pueblos (4) que havia encontrado bem a oeste, mas a
semelhança acabava ali. Os muros eram revestidos por um brilho semelhante ao
esmalte e decorados com desenhos intricados em azul, púrpura e vermelho. Não
era larga, mas as casas, com três a quatro andares de altura, não se pareciam
com as cabanas em forma de colméia dos pueblos.
Toda a cidade era dominada por uma estrutura elevada, que brilhava à luz do
amanhecer e se parecia com um teucalí,
exceto por ser coberta por um domo no alto. Ele piscava os olhos diante
daquilo. Nunca tinha visto nada como aquilo, no Peru, Iucatán ou México. A
arquitetura da cidade era confusa, obviamente aparentada com a dos astecas,
embora curiosamente diferente, como se os astecas houvessem construído aquilo
que uma mente estranha havia imaginado.
A cidade
ficava num amplo vale em forma de leque, o qual se estreitava e afundava a
leste; ou mais exatamente, os penhascos ficassem mais altos, pois o chão do
vale continuava plano e horizontal. Outrora aqui, há milhares, talvez milhões
de anos atrás, um grande rio havia aberto seu canal na planície e mergulhado
para longe do alcance visual, deixando um vale em forma de “V”, cercado em três
lados por penhascos que ficavam altos e íngremes nos cumes. A cidade ficava de
frente para o leste, em direção à larga entrada do vale, onde as serras
diminuíam até desaparecerem. Qualquer inimigo poderia se aproximar desde o
oeste, mas não havia barreira que protegesse a cidade naquela direção, onde as
serras que diminuíam ficavam a mais de uma milha de distância. O curso d’água
adentrava a ampla abertura e serpenteava para trás das muralhas a poucas
centenas de metros de distância, até mergulhar numa caverna nos penhascos. Além
da cidade, a sudeste, o curso fluía através de um verdadeiro tabuleiro de
campos irrigados, nos quais ele reconheceu milho, uvas, frutas vermelhas, nozes
e melões. O solo dessas planícies áridas era fértil; tudo o que faltava era
água para produzir comida em abundância. Aqui a água era estocada. Enquanto ele
observava, um pequeno portão no muro sudeste se abriu, e pessoas entraram nos
campos para trabalhar – pessoas pequenas, marrons e bem-feitas; os homens
usando tangas e as mulheres usando túnicas curtas e sem mangas, as quais
deixavam o seio esquerdo nu e mal chegavam abaixo da metade das coxas.
Enquanto
ficava lá observando, ele ouviu um estrondo a oeste; um som que conhecia. Girou
a cabeça e, espiando através dos salgueiros entrelaçados, viu uma nuvem de
poeira se erguer na entrada do vale. Através da poeira, apareceu uma longa
linha negra, a qual crescia rapidamente enquanto avançava. A linha se tornou
uma massa que rolava rapidamente, a qual era formada por animais peludos e
escuros com enormes cabeças de chifres. Era um estouro de búfalos, o gado das
planícies. O povo nos campos correu até o portão, o qual se abriu para
recebê-los. As bestas avançavam cegamente, talvez mil delas. Cabeças apareceram
ao longo das paredes da cidade, e uma trombeta clangorou barbaramente. De
Guzman já tinha visto estouros de búfalos antes, mas não entendeu por que
avançariam tão cegamente até a cidade. Eles avançaram numa onda negra que
bramia, até parecer que iam se chocar contra as bases dos muros. Mas a pouco
mais de 270 metros das muralhas, dividiram-se como se houvesse uma barreira
invisível, e correram para norte e sul, alguns se espatifando através dos
salgueiros e chapinhando loucamente através do riacho. Logo, de Guzman viu a
razão para seu estouro.
A divisão da
manada revelou 300 apaches, pintados para a guerra e com arcos em suas mãos. Haviam
impelido os búfalos diante deles e, correndo atrás e entre eles, velozes e
incansáveis como lobos, haviam usado a manada que corria como proteção para
chegarem à distância de um tiro de flecha da cidade.
Agora, com
gritos selvagens, eles corriam até o portão, mostrando uma temeridade que de
Guzman não associou aos apaches. Ele acreditou que estivessem drogados com tizwin. Nenhuma flecha foi disparada
desde a muralha, mas uma estranha nuvem turva rolou sobre os muros e flutuou em
direção aos apaches. Ela os envolveu, e seus gritos pararam. Nenhum dos bravos
correu para fora da nuvem. Reinava um silêncio total. Então, a nuvem se
dispersou e ele os viu novamente – deitados onde haviam caído, seus desnudos
corpos marrons brilhando ao sol nascente e seus rostos agitados pelo vento
fraco.
A pele de De
Guzman se arrepiou. Isto era necromancia! Agora homens saíam do portão – homens
altos e fortes, usando elmos com plumas e tangas enfeitadas com contas. E de
Guzman sentiu a velha agitação em seu sangue de conquistador, pois aqueles
elmos brilhavam ao sol como apenas ouro puro pode brilhar.
Os guerreiros
amarraram cordas aos tornozelos dos bravos caídos e os arrastaram para dentro
dos portões. Estes foram fechados e, mais uma vez, os trabalhadores entraram
nos campos. De Guzman ficou deitado, indeciso, entre os salgueiros.
Ele havia
satisfeito sua sede, mas estava vorazmente faminto. Entretanto, hesitava em se
mostrar a este povo, o qual havia se mostrado possuidor daquilo que era sem dúvida
um presente do Diabo. De Guzman duvidava da existência de um Senhor do Mal,
mas, apesar disso, ele reconhecia diabolatria.
Ficou deitado
ali e, apesar de si mesmo, dormiu. Acordou sobressaltado. Uma jovem havia afastado
os salgueiros e arregalava os olhos para ele. Estava vestida com a túnica sumária
de algodão dos trabalhadores do campo, mas não parecia o tipo de mulher que
usaria tal roupa. Seda e jóias pareceriam mais apropriadas. Ela tinha uma aparência
asteca, mas com uma sutil diferença. Era alta, esbelta mas voluptuosamente formada,
e o abandono descuidado, com o qual usava sua roupa escassa, deixava pouco de
seus generosos contornos totalmente escondidos. De Guzman sentiu o pulso
acelerar, da mesma forma que quando vira o ouro da estranha cidade. Sua barba
grisalha não era indicadora do fogo que ainda ardia nas veias do conquistador
espanhol. Ela se parecia com as mulheres estranhas e exóticas, que o inebriaram
em sua juventude, quando ele seguiu, pela primeira vez, os capitães de ferro em
terras quentes e desconhecidas.
Ela falou,
gaguejando de surpresa:
- Quem é você?
Havia falado
na língua asteca, mal familiarizada com suas pronúncias estranhas.
Ele se ergueu
de um pulo, com armadura e tudo, e lhe agarrou o pulso quando ela recuou. Ela
não se debateu, sentindo o ferro em seu aperto. Ergueu o olhar para ele, o
pasmo mais espelhado que o medo em seus grandes olhos escuros. Um tênue perfume
preencheu as narinas dele, e sua cabeça oscilou por um momento.
- O que uma
mulher como você faz, trabalhando nestes campos? – ele murmurou.
Ela ignorou
sua pergunta:
- Eu sei que
tipo de homem você é! Você é um espanhol! Um daqueles que matou Montezuma e
destruiu seu reino! Vocês montam em animais chamados cavalos, e fazem o trovão
e o fogo vermelho da morte relampejarem para fora de um porrete de metal!
Impacientemente,
ela correu os dedos sobre a entalhada placa peitoral. O toque, dos dedos suaves
e quentes dela contra a barba dele, enviou formigamentos de prazer através de sua
estrutura de ferro. Ele sorriu sarcasticamente para si mesmo. O que poderia
haver de novidade para ele aprender sobre mulheres? Ele, que não conseguia
sequer se lembrar de quantas havia segurado em seus braços, durante sua
carreira selvagem? Mas seus instintos o arrastavam até ela, e ele não resistiu
a eles, nem os questionou.
- A notícia
chegou até o Norte – ela disse. – Notícias da carnificina feita no México... eu
era apenas um bebê na época. Os homens duvidaram... mas nenhum tributo veio
mais de Montezuma...
- Tributo? – A
palavra o surpreendeu. – Tributo? De Montezuma, o imperador de todo o México?
- Sim. Ele e
seus ancestrais pagaram tributo a Nekht Semerkeht durante mil anos... escravos,
ouro, peles.
- Nekht
Semerkeht! – Era uma vibração estranha. Não era asteca, isso era certo. Onde
ele a havia escutado? Seu eco reverberou fracamente nos recessos obscuros do
fundo de sua mente. Parecia, de alguma forma, associado a um ruído
ensurdecedor, ao ranço de pólvora e de sangue derramado.
- Já vi homens
como você! – ela disse. – Uma vez, quando eu tinha 10 anos, perambulei para
fora da cidade, e os apaches me pegaram e venderam aos lipans, que por sua vez
me venderam aos karankawas, que vivem na costa, bem longe ao sul, e são
canibais. Um dia, uma grande canoa de guerra com asas saiu navegando pela
costa, e os guerreiros karankawas saíram em suas pirogas (5) e
atiraram suas flechas contra ela. Havia homens vestidos em aço, como você, no
convés. Giraram porretes de metal em direção às canoas e os expulsaram da água.
Fugi durante a confusão, e cheguei até um acampamento dos tonkewas, que me
trouxeram de volta para casa, pois os tonkewas são nossos servos. Qual o seu
nome?
Ele disse a
ela; ela o girou pela língua, balbuciando em suas tentativas de pronunciá-lo.
- E quem é
você? – ele indagou. Em nenhum momento, ele havia lhe soltado o pulso, e agora
seu braço vestido de aço escapulia ao redor da cintura flexível dela. Ela se
sobressaltou ao contato e tentou se afastar.
- Sou uma
princesa – ela respondeu orgulhosamente.
- Então, o que
está fazendo com roupas de escrava? – ele indagou, agarrando-lhe a roupa e a
erguendo; possivelmente para chamar a atenção dela para isso.
Seus belos
olhos escuros se encheram subitamente de lágrimas, e ela abaixou a cabeça numa
espécie de humildade furiosa.
- Esqueci. Sou
uma escrava. Uma labutadora dos campos, carregando os vergões do chicote do
capataz!
Carranqueando
furiosamente para si mesma, ela girou graciosamente e os exibiu para ele.
- Eu, a filha
de reis, chicoteada como um escravo comum!
Ela falou
rapidamente:
- Ouça: sou
Nezahualca, descendente de uma linhagem de reis. Nekht Semerkeht reina em
Tlasceltec, mas, sob ele, há um governador, o tlacatecatl, Senhor dos Guerreiros. Atzcaputzalco era o governador;
meu amante Acamapichtli, era um oficial sob seu comando. Eu desejava que meu
amante se tornasse governador. Fizemos intriga... eu tenho... tinha... poder na cidade. Mas Nekht não
desejava isso. Meu amado foi dado como comida aos comedores do céu. Fui degradada à categoria de uma escrava pública...
uma das totonacas (6), a quem meus ancestrais trouxeram consigo,
séculos atrás, quando vieram para o norte.
- Quando foi
isso? – ele perguntou.
- Há muito
tempo, quando Nekht Semerkeht chegou pela primeira vez a Tenochtitlan. Ele reinou
lá por um tempo, e depois reuniu várias pessoas e veio para o norte, para
fundar esta cidade. Ele só levou homens e mulheres jovens, recém-casados.
De Guzman
repentinamente se lembrou onde ele havia ouvido aquele nome Nekht Semerkeht –
um grito saído dos lábios ensangüentados de um sacerdote asteca, caindo na
escuridão da terrível batalha na noche
triste, quando homens, em suas últimas aflições, invocavam um demônio ao
invés de um deus.
Ele também se
lembrou de vagas histórias sobre uma cidade, bem ao norte – da qual, ele
acreditava, se desenvolveram as histórias de Cibolo. Pensou que fosse uma
lenda; mas aqui, era realidade.
- Quem é Nekht
Semerkeht? – ele perguntou. O nome não era asteca.
Ela gesticulou
vagamente para leste:
- Ele veio do
outro lado do oceano azul, há muito tempo. É um mago poderoso, mais poderoso
que os sacerdotes dos toltecas. Veio sozinho e se tornou governante do México.
Mas ele se cansou e veio para o norte... escute-me, homem de ferro!
“Nekht
Semerkeht não conhece sua raça. Mesmo a magia dele não é capaz de triunfar
contra o trovão de seu porrete de guerra. Ajude-me a matá-lo! Há guerreiros que
me seguirão, apesar de tudo. Vou reuni-los numa câmara do templo dele. O
capataz que vigia os escravos à noite é um jovem que se apaixonou por mim. Ele
fará qualquer coisa que eu pedir. Você vai me ajudar?
Ele balançou
afirmativamente a cabeça:
- Mas me traga
comida.
- Trarei
comida e a deixarei entre os arbustos. Mas devo retornar logo aos jardins,
antes que dêem por minha falta.
Assim, ele
ficou o dia todo deitado, escondido entre os salgueiros, e à noite ele se
levantou e moveu-se como um fantasma vestido de ferro, obscuro à luz das
estrelas, através dos jardins silenciosos, até chegar à porta que ela
mencionara. Estava aberta, e ela apareceu, delineada no brilho fraco de um
pequeno lampião, em sua roupa sumária. Com ela, estava um homem jovem usando as
roupas de um capataz.
Ela pegou, com
os dedos esguios, sua mão com luva de aço:
- Venha! Os
guerreiros aguardam!
Ela o guiou
através de ruas estreitas e pátios escuros, até uma pequena porta num grande
templo. Percorreram um corredor escuro, até adentrarem uma câmara onde dez
homens aguardavam. Nezahualca girou bruscamente. Os dez homens se sentavam,
cada um em sua cadeira de ébano, em atitudes rígidas e tensas.
A luz se
apagou. Nezahualca gritou na escuridão. O jovem feitor ofegou. O arcabuz de De
Guzman foi arrancado de suas mãos. Ela puxou sua espada, e ficou tenso e em
atitude de escuta no silêncio que se seguiu. Então, uma mão macia tocou a dele.
Ele quase golpeou com sua espada, antes de reconhecer o tato da mão esguia de
uma mulher. Os dedos se fecharam flexivelmente ao redor dos dele, e puxaram
suavemente. Ele seguiu, deslizando tão silenciosamente quanto podia com sua
armadura. Foi guiado através de uma porta e ao longo de um corredor escurecido,
sem parar. Súbito, em algum lugar, uma mulher gritou, na voz de Nezahualca.
Tomado por um
pensamento medonho, ele correu os dedos ao longo da mão que segurava a sua.
Eles encontraram alguns centímetros de pulso suave e macio, e depois um braço
peludo, magro e duro! Um repique de gargalhada demoníaca irrompeu na escuridão.
Sufocado de horror, ele ergueu a espada e golpeou cegamente, e a horrível gargalhada
se transformou num gorgolejo agonizado.
Algo se agitou e desabou na escuridão
aos seus pés, e ele recuou, com a pele se arrepiando. A monstruosidade sem
nome, com as mãos macias de uma mulher, não o estava guiando a lugar algum para
onde ele deveria ir. Virou para um lado, achou uma porta e, em seguida, andando
ao acaso por outro corredor, viu um brilho fraco de luz, bem longe à sua
frente.
Ele olhava
para dentro de uma câmara, do alto de uma espécie de sacada. Conseguia ver um
trono de ébano negro, com um recosto e dossel que ocultavam o ocupante, mas ele
sabia que alguém ou algo se sentava
ali. Viu o jovem capataz e Nezahualca. Totalmente nu, ele estava suspenso ao
teto por uma corrente dourada em seus tornozelos, sobre um braseiro que lançava
para o alto nuvens de fumaça púrpura, as quais, de tempos em tempos, o
ocultavam completamente até a cintura. Ele não emitia nenhum som, mas se
contorcia fracamente.
Nezahualca,
tão nua quanto o jovem, estava deitada sobre um altar de ouro, incrustado de
jóias, diretamente sob uma abertura circular no domo, a qual mostrava um disco
de céu noturno preto-azulado e aglomerado de estrelas. Seus olhos lindos
estavam arregalados de medo, e seus pulsos e tornozelos presos por finas
correntes de ouro. Ela olhava descontroladamente para o alto, através do teto.
Uma voz falava
desde o trono – calma, sem paixão nem piedade:
- Você foi uma
tola em depositar sua confiança num bárbaro com porrete trovejante. A
necromancia daquilo é menor que a minha. Ele perdeu seu porrete trovejante, e
um filho da escuridão o guiou para sua desgraça entre as cascavéis. E tua carne
irá saciar os comedores do céu.
Um grito
desesperado irrompeu da garganta da jovem.
De Guzman se
virou e tateou seu caminho pela escada, com uma pistola em cada mão. Quando
alcançou um patamar mais baixo, ele ouviu a garota gritar novamente, com maior
pungência, e, com o grito, o farfalhar seco de grandes asas. Atravessou a porta
e viu uma forma de pesadelo pousando sobre o altar – uma coisa em forma de
dragão, vinda dos espaços mais altos do ar, cujas incursões sobre os níveis
menores, eras atrás, originaram as lendas das harpias e dos vampiros.
De Guzman
passou pela porta e atirou à queima-roupa com a pistola da sua mão direita, e o
monstro rolou até o chão com a cabeça esfacelada. Ele girou. Um homem havia se
levantado do trono e, embora houvesse esperado ver uma monstruosidade, a pele
do espanhol se arrepiou – não porque o homem fosse horroroso, pois ele era
bonito com uma terrível beleza obscura; mas por causa da maldade eterna em seus
luminosos olhos escuros.
- Idiota! –
ele disse calmamente. – Sou Nekht Semerkeht, do Egito!
Enquanto ele
vislumbrava o movimento, de Guzman atirou à queima-roupa com a pistola da sua
mão esquerda, e Nekht Semerkeht cambaleou com um grito sufocado. Cambaleou para
trás e desapareceu através da parede. De Guzman desamarrou a jovem. Ela gritou
para que ele a seguisse. Ele seguiu, através de estranhos corredores, até chegar
a uma vasta câmara, na qual, ao redor das paredes, estavam enfileirados corpos
de homens eretos e transformados em pedra: toltecas, astecas, totonacas,
tonkewas, lipans, apaches e guerreiros de tribos não-familiares ao espanhol.
Nekht
Semerkeht sentou-se a uma mesa de pedra polida, com um leve sorriso de aparente
auto-zombaria nos lábios escuros e sua mão ensangüentada apertando o próprio
peito.
- Você venceu
– ele disse. – Estou morrendo. – De Guzman pôs a lamparina sobre a mesa. – Sou
Nekht Semerkeht, do Egito. Os Ptolomeus me expulsaram do Egito há muito tempo
atrás. Minha galé naufragou perto da costa do México. Minhas artes eram fortes
na época. Elas estão mais fortes agora. Eu me fiz senhor do México, mas me cansei
de governá-lo e vim para o norte. Eu ouvi sobre como sua raça matou Montezuma.
Mas aqui, nesta cidade, existem tesouros maiores de ouro do que os que Cortez
levou de Tenochtitlan.
Enquanto
conversavam, de Guzman percebeu uma teia mágica cercando-o. Ele a quebrou,
ergueu-se de um pulo e Nekht Semerkeht o atacou com uma espada curva.
- Idiota! –
rugiu o egípcio. – Você achou que uma bolinha de chumbo conseguiria matar Nekht
Semerkeht?
Sua lâmina era
uma chama branca ao redor da cabeça descoberta do espanhol e, enquanto de
Guzman aparava e golpeava, ele viu que a lamparina estava se apagando. Ele
investiu, golpeando desesperadamente para matar aquele demônio escuro, antes
que a escuridão os engolfasse. Fagulhas retiniram, e Nekht Semerkeht gritou ao
cair pesadamente para trás, dentro da escuridão que se abria aos seus pés.
Esguichando sangue, ele tombou e desapareceu. A porta da armadilha se fechou, e
de Guzman ficou sozinho no salão dos guerreiros.
Ele deu a
volta e correu para fora daquele palácio amaldiçoado. As grandes portas estavam
se fechando rapidamente. Ele saltou para fora, e elas bateram atrás dele.
Procurou
Nezahualca e reivindicou sua parte do governo monárquico. Ela resistiu, mas ele
a subjugou. Então, enquanto ele dormia, Nekht Semerkeht veio até ele e assumiu
a aparência de um estranho guerreiro indígena, e disse ao espanhol que traria
os comanches até a cidade através de um sonho, e que sua raça nunca seria capaz
de conquistá-los. Os comanches os atacaram e Nekht Semerkeht, morrendo,
arrastou-se até a torre do palácio e bateu num gongo até uma parte da parede
cair. Os comanches entraram em grandes números e assassinaram todo mundo na
cidade. De Guzman morreu lutando ferozmente.
1) Cocanha: Paraíso mitológico da Idade Média (Nota do Tradutor);
2) Atahualpa: Último imperador inca, traído e executado por
Francisco Pizarro (N. do T.);
3) Adobe: Tijolo cru, seco ao sol (idem);
4) Pueblo: Aldeia indígena do Arizona e Novo México, feita de
pedra ou adobe (ibidem);
5) Pirogas: Canoas feitas de um só lenho escavado (ibid);
6)
Totonacas: Povo indígena do México,
que vive no estado de Veracruz (Nota do Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Fonte: The
Black Stranger and Other American Tales.