(por Robert E. Howard)
1)
O estrondo dos
tambores e das grandes trompas de presas de elefante era ensurdecedor, mas,
para os ouvidos de Lívia, o clamor não parecia mais do que um murmúrio confuso,
ensurdecido e distante. Enquanto estava deitada no angareb na grande cabana, seu estado variava entre o delírio e a
semi-inconsciência. Sons e movimentos externos mal lhe alcançavam os sentidos.
Toda a sua visão mental, apesar de aturdida e caótica, ainda estava centrada
com horrenda certeza na figura nua e contorcida de seu irmão, cujo sangue lhe
escorria pelos quadris trêmulos. Contra um vago fundo de pesadelo, de escuras
formas e sombras entrelaçadas, aquela figura branca estava destacada em impiedosa
e medonha claridade. O ar parecia ainda pulsar com um grito de agonia, misturado
e entrelaçado obscenamente com um farfalhar de gargalhada diabólica.
Ela não estava
consciente da sensação, como um indivíduo separado e distinto do restante do
cosmos. Estava afogada num grande golfo de dor – ela própria não era mais do
que a dor, cristalizada e manifestada em carne. Assim, ela jazia sem pensamento
nem movimento consciente, enquanto lá fora os tambores bramiam, as trompas berravam
e vozes bárbaras entoavam cantos horrendos, acompanhando o bater de pés descalços
na terra dura e o suave bater de palmas.
Mas, através
de sua mente congelada, a individualidade finalmente começava a se infiltrar
aos poucos. Uma surpresa amortecida, de que ela ainda estava fisicamente intacta,
manifestou-se pela primeira vez. Ela aceitou o milagre sem agradecer. A questão
parecia insignificante. Agindo mecanicamente, ela se sentou no angareb e olhou apaticamente ao redor.
Suas extremidades começaram a se mexer debilmente, como se respondendo ao
despertar cego de centros nervosos. Seus pés descalços tocaram nervosamente o
chão de terra batida. Seus dedos se torceram convulsivamente na saia de sua
camisola curta, a qual era sua única roupa. De forma impessoal, ela se lembrou
que uma vez, que parecia ter sido há muito tempo, mãos rudes haviam rasgado as
outras roupas de seu corpo, e ela havia chorado de medo e vergonha. Agora
parecia estranho que uma coisa tão pequena lhe tivesse causado tanta aflição. A
magnitude do ultraje e da indignidade era apenas relativa, afinal, como tudo o
mais.
A porta da
cabana foi aberta, e uma mulher negra entrou – uma criatura graciosa e felina,
cujo corpo flexível brilhava como ébano polido, adornado apenas por uma tira de
seda amarrada ao redor dos quadris pomposos. O branco de seus olhos refletia a
luz das fogueiras lá fora, enquanto ela os mexia com significado malvado.
Ela trazia um
prato de bambu com comida – carne fumegante, batatas-doces assadas, espigas de
milho, grandes pedaços de pão nativo –, e um vaso de ouro batido, cheio de cerveja
de yarati. Ela os colocou sobre o angareb, mas Lívia não deu atenção; ela
ficou encarando mecanicamente a parede oposta, de onde pendiam esteiras de
brotos de bambu. A jovem negra riu maldosamente, com um brilho de olhos escuros
e dentes brancos; e, com um assobio de obscenidade malévola e um afago
zombeteiro, que eram mais grossos que sua linguagem, ela virou e saiu
arrogantemente da cabana, expressando mais insolência insultuosa com o
movimento dos quadris do que qualquer mulher civilizada conseguiria com
insultos verbais.
Nem as
palavras da moça, nem suas ações, agitaram a superfície da consciência de
Lívia. Todas as suas sensações ainda estavam voltadas para dentro. A vividez de
suas imagens mentais ainda fazia o mundo visível parecer um panorama irreal de
fantasmas e sombras. Mecanicamente, ela ingeriu a comida e bebeu o líquido sem
sentir sabor algum.
Ainda
mecanicamente, ela finalmente se levantou e caminhou vacilante para o outro
lado da cabana, até espiar através de uma fenda entre os bambus. Houve uma
mudança abrupta no timbre dos tambores e trompas, a qual reagiu com alguma
parte obscura de sua mente e a fez procurar a causa, sem vontade consciente.
A princípio,
ela não conseguiu distinguir nada do que via: era tudo caótico e sombrio,
formas se movendo e misturando, contraindo-se e contorcendo-se, negros blocos
sem forma entalhados asperamente contra um fundo vermelho-sangue que embotava e
brilhava. Então, as ações e objetos assumiram suas devidas proporções, e ela
percebeu homens e mulheres se movendo ao redor das fogueiras. A luz vermelha
brilhava em ornamentos de prata e marfim; plumas brancas balançavam contra a
luz; desnudas figuras negras andavam empertigadas e posavam, silhuetas
entalhadas da escuridão e delineadas em vermelho.
Num tamborete
de marfim, flanqueada por gigantes em cocares emplumados e cintos de pele de
leopardo, sentava-se uma figura gorda, atarracada, abismal e repulsiva, um
pedaço de trevas semelhante a um sapo, exalando o cheiro da selva podre e úmida
e dos pântanos anoitecidos. As mãos gordas da criatura descansavam no arco liso
de sua barriga; sua nuca era um rolo de gordura fuliginosa que parecia lançar
sua cabeça pontiaguda para a frente. Seus olhos brilhavam à luz das fogueiras,
como brasas vivas num pedaço de árvore morta e negra. Sua assustadora
vitalidade desmentia a sugestão inerte de seu corpo obeso.
Quando o olhar
da jovem descansou naquela figura repelente, seu corpo ficou rígido e tenso de
fúria. A vida rolou novamente sobre ela. De um autômato sem mente, ela mudou
subitamente para um molde senciente de carne viva, vibrante, pungente e ardente.
A dor foi afogada num ódio tão intenso, que este, por sua vez, se transformou
em dor; ela se sentiu dura e quebradiça, como se seu corpo estivesse se
transformando em aço. Sentiu seu ódio fluir de forma quase tangível para fora
de sua linha de visão. Parecia-lhe que o objeto de sua emoção cairia morto de
seu tamborete entalhado, por causa da força da mesma.
Mas se Bajujh,
rei de Bakalah, sentiu algum desconforto psíquico por causa da concentração de
sua prisioneira, ele não demonstrou. Continuou abarrotando a boca de sapo até o
limite, com punhados de milho, tirados com as mãos em forma de concha, de um
recipiente servido a ele por uma mulher ajoelhada, e continuou a olhar para um
largo corredor que estava sendo formado pelas ações de seus súditos que abriam
passagem em ambos os lados.
Do fundo
daquele corredor, emparedado por humanidade suada e negra, Lívia percebeu
vagamente que algum personagem importante sairia, a julgar pelo clamor estridente
dos tambores e trompas. Enquanto observava, ele chegou.
Uma coluna de
guerreiros, marchando em três filas, avançou em direção ao tamborete de marfim
– uma linha densa de plumas ondulantes e lanças reluzentes serpenteando através
da multidão heterogênea. À frente dos lanceiros cor-de-ébano, caminhava uma
figura cuja visão fez Lívia se sobressaltar violentamente; seu coração pareceu
parar, e depois voltar a bater de forma sufocante.
Contra aquele
fundo escuro, este homem se destacava com vívida nitidez. Estava vestido, assim
como seus seguidores, com uma tanga de pele de leopardo e um cocar emplumado,
mas era um homem branco.
Não foi de
modo suplicante nem submisso que ele caminhou a passos largos até o tamborete
de marfim; e o silêncio caiu subitamente sobre a multidão, quando ele parou
diante da figura atarracada. Lívia sentia a tensão, embora ela só soubesse
vagamente o que aquilo pressagiava. Por um momento, Bajujh permaneceu sentado,
esticando o pescoço curto para cima, feito um enorme sapo. Logo, como se puxado
contra a vontade pelo olhar firme do outro, ele se ergueu desajeitadamente do
tamborete e ficou balançando grotescamente a cabeça raspada.
Instantaneamente,
a tensão foi quebrada. Um tremendo grito se ergueu dos aldeões reunidos e, a um
gesto do estrangeiro, seus guerreiros ergueram suas lanças e bramiram uma
saudação majestosa ao Rei Bajujh. Quem quer que ele fosse, Lívia sabia que
aquele homem deveria ser realmente poderoso naquela terra selvagem, se Bajujh
de Bakalah erguia-se para saudá-lo. E poder significava prestígio militar – a
violência era a única coisa respeitada por aquelas raças ferozes.
Depois disso,
Lívia ficou com os olhos grudados na fenda da parede da cabana, observando o
forasteiro branco. Seus guerreiros se misturaram aos bakalahs, dançando,
banqueteando-se e bebendo cerveja a longos tragos. Ele próprio, com alguns de
seus chefes, sentou-se com Bajujh e os chefes de Bakalah, de pernas cruzadas
sobre as esteiras, comendo e bebendo vorazmente. Ela viu as mãos dele
mergulhando fundo nas panelas de comida, junto com as outras; viu o focinho
dele mergulhar no mesmo vaso de cerveja onde Bajujh havia bebido. Mas ela
percebia, no entanto, que ele gozava do mesmo respeito dado a um rei. Já que
ele não tinha tamborete, Bajujh renunciou também ao seu e sentou-se nas
esteiras com seu convidado. Quando um novo pote de cerveja era trazido, o rei
de Bakalah mal o sorvia antes de passá-lo para o homem branco. Poder! Toda esta
cortesia cerimonial apontava para poder... força... prestígio! Lívia tremeu de
excitação, quando um plano desesperado começou a se formar em sua mente.
Por isso,
continuou observando o homem branco com intensidade dolorosa, examinando cada
detalhe de sua aparência. Era alto; nem em altura, nem em imponência, ele era
excedido por muitos dos gigantes negros. Movia-se com a ágil flexibilidade de
uma grande pantera. Quando a luz da fogueira lhe atingiu os olhos, eles arderam
como fogo azul. Sandálias de tiras altas lhe calçavam os pés e, de seu cinto
largo, pendia uma espada numa bainha de couro. Sua aparência era estranha e
incomum. Lívia jamais vira alguém como ele. Mas ela não se esforçou para
classificar sua posição entre as raças da humanidade. Sua pele era branca, e
isso bastava.
As horas
passaram, e gradualmente o ruído ensurdecedor da festança diminuiu, à medida
que homens e mulheres caíram num sono embriagado. Finalmente Bajujh se levantou
cambaleando, e ergueu as mãos, não para finalizar a festa, mas como sinal de rendição
naquela disputa de comilança e bebedeira; e, cambaleando, foi seguro pelos seus
guerreiros, que o levaram até sua cabana. O homem branco se levantou, aparentemente
imperturbado pela incrível quantidade de cerveja que bebera, e foi escoltado à
choupana de hóspedes pelos poucos chefes bakalahs que ainda conseguiam
caminhar. Ele desapareceu na choupana, e Lívia percebeu que uma dúzia dos
próprios lanceiros dele tomaram seus postos ao redor da estrutura, lanças prontas.
Evidentemente, o estrangeiro não confiava na amizade de Bajujh.
Lívia observou
a aldeia, a qual lembrava vagamente uma escura Noite de Juízo Final, com
aquelas ruas irregulares alastradas de figuras bêbadas. Ela sabia que homens em
plena posse de suas faculdades guardavam o exterior da paliçada, mas os únicos
homens acordados que vira dentro da aldeia eram os lanceiros ao redor da cabana
do homem branco – e alguns deles estavam começando a se inclinar e apoiar-se em
suas lanças.
Com o coração
martelando, ela deslizou até a parte de trás de sua cabana-prisão e saiu pela
porta, passando pelo guarda que Bajujh destacara para vigiá-la, e que roncava
em sono profundo. Como uma sombra de marfim, atravessou o espaço entre sua
cabana e a ocupada pelo forasteiro. Apoiada nas mãos e joelhos, ela se arrastou
até os fundos daquela choupana. Um gigante negro se agachava lá, com a cabeça
emplumada afundada nos joelhos. Ela o contornou e chegou à parede da cabana. Ela já havia sido aprisionada naquela
choupana, e uma abertura estreita na parede, escondida por dentro por uma
esteira pendurada, havia sido usada por ela numa frágil e patética tentativa de
fuga. Encontrou a abertura, virou-se de lado e retorceu seu corpo esbelto pela
passagem, afastando a estreita interna para o lado.
A luz das
fogueiras lá fora iluminava fracamente o interior da cabana. Quando empurrou a
esteira para trás, ela ouviu uma praga sussurrada, sentiu um forte aperto nos
cabelos e foi arrastada totalmente pela abertura, sendo forçada a ficar de pé.
Atordoada com
a rapidez daquilo, ela organizou seus pensamentos confusos e tirou as tranças
desarrumadas da frente dos olhos, para encarar o rosto do homem branco que se
erguia mais alto que ela, a surpresa escrita em seu moreno rosto cicatrizado. A
espada estava desembainhada em sua mão, e seus olhos brilhavam como uma fogueira
– se de raiva, suspeita ou surpresa, ela não saberia julgar. Ele falava numa
linguagem que ela não conseguia entender; uma língua que não era gutural como a
dos negros, mas que também não tinha um som civilizado.
- Oh, por
favor! – ela implorou. – Não fale tão alto. Eles
vão ouvir...
- Quem é você?
– ele indagou, falando Ophiriano com um sotaque bárbaro. – Por Crom, nunca
pensei em encontrar uma garota branca nesta terra infernal!
- Meu nome é
Lívia – ela respondeu. – Sou prisioneira de Bajujh. Oh, escute, por favor,
escute-me! Não posso ficar muito tempo aqui. Tenho que voltar antes que sintam
minha falta na choupana.
“Meu irmão...”,
um soluço lhe sufocou a voz, e depois ela continuou: “Meu irmão era Theteles, e
éramos da casa de Chelkus, cientistas e nobres de Ophir. Por permissão especial
do rei da Stygia, meu irmão teve licença para ir até Keshatta, a cidade dos magos,
para estudar suas artes, e eu o acompanhei. Era apenas um garoto – mais jovem
que eu...”. A voz dela vacilou e silenciou-se. O estrangeiro não disse nada,
mas ficou observando-a com olhos ardentes, seu rosto crispado e impenetrável.
Havia nele algo selvagem e indomável, que a assustava e a deixava nervosa e
insegura.
- Os kushitas
negros atacaram Keshatta – ela continuou apressadamente. – Estávamos nos
aproximando da cidade, numa caravana de camelos. Nossos guardas fugiram e os
incursores nos levaram com eles. Mas não nos fizeram mal, e nos disseram que
iam negociar com os stígios e aceitariam um resgate pelo nosso retorno. Mas um
de seus chefes queria ficar com todo o resgate, e ele e seus seguidores nos raptaram
do acampamento numa noite, e fugiram conosco para bem longe ao sudeste, até as
próprias fronteiras de Kush. Lá, eles foram atacados e mortos por um bando de
guerreiros bakalahs. Theteles e eu fomos arrastados para este covil de
feras...”, ela soluçava convulsivamente. “Hoje de manhã, meu irmão foi mutilado
e assassinado na minha frente...”. Ela engasgou e ficou momentaneamente cega
com a lembrança. “Jogaram o corpo dele para os chacais. Não sei quanto tempo
fiquei desmaiada...”.
Com as
palavras lhe faltando, ela ergueu os olhos para o rosto franzido do estrangeiro.
Uma fúria louca tomou conta dela; ela ergueu os punhos e bateu futilmente no
peito forte dele, o que ele sentia como se não fosse mais que o zumbido de uma
mosca.
- Como pode
ficar aí parado, feito um bruto silencioso? – ela guinchou num sussurro
apavorado. – Ah, Mitra, já cheguei a pensar que havia honra entre os homens.
Agora sei que cada um tem seu preço. Você... o que você sabe de honra... ou de
compaixão ou decência? Você é um bárbaro como os outros... somente sua pele é
branca; sua alma é negra como a deles.
“Você não se
importa que um homem de sua própria cor tenha sido horrivelmente morto por
esses cães negros... que uma mulher branca seja escrava deles! Muito bem!”, ela
se afastou dele, ofegante e arfando de fúria. “Vou lhe pagar o preço”, ela
rugiu, arrancando a túnica de seus seios cor de marfim. “Não sou bonita? Não
sou mais desejável que essas raparigas cor de fuligem? Não valho como
recompensa por derramar sangue? Não vale a pena matar por uma virgem de pele
branca? Mate aquele cão negro do Bajujh! Deixe-me ver a maldita cabeça dele
rolar no pó ensangüentado! Mate-o! Mate-o!”.
Ela batia ambos os punhos cerrados, na agonia de sua intensidade. “Depois,
leve-me e faça o que quiser comigo. Serei sua escrava!”.
Ele nada disse
por um instante, mas ficou parado, como uma figura gigantesca e pensativa de
morte e destruição, enquanto dedilhava o cabo da espada.
- Você fala
como se fosse livre para se entregar ao seu bel-prazer – ele disse –; como se o
presente do seu corpo tivesse o poder de abalar reinos. Por que eu deveria
matar Bajujh para ter você? Mulheres são baratas como bananas nesta terra, e a
vontade delas pouco importa. Você se valoriza demais. Se eu lhe quisesse, não
precisaria lutar contra Bajujh para lhe levar. Ele prefere me dar você de
presente, do que lutar comigo.
Lívia arfou.
Toda a sua chama foi embora e a cabana girou vertiginosamente diante de seus
olhos. Ela cambaleou e desabou como um fardo sobre um angareb. Uma amargura entorpecida esmagou sua alma ao entender que
seu estado de absoluta vulnerabilidade foi jogado brutalmente contra ela. A
mente humana se apega inconscientemente a valores e idéias conhecidos, mesmo em
lugares e condições estranhos e não-relacionados aos locais nos quais tais
valores e idéias estão adaptados. Apesar de tudo o que havia passado, Lívia
ainda supunha instintivamente que o consentimento de uma mulher era o ponto
fundamental do jogo que ela pretendia jogar. Ela estava assombrada ao perceber
que absolutamente nada girava em torno dela. Ela não podia movimentar homens
como peões num jogo; ela própria era um peão indefeso.
- Eu vejo o
absurdo em supor que qualquer homem, neste canto do mundo, agiria de acordo com
as regras e costumes existentes em outros lugares do planeta – ela murmurou
fracamente, pouco convicta do que dizia; na verdade, era apenas a expressão
oral do pensamento que a subjugava. Atordoada por aquela nova reviravolta do
destino, ela ficou imóvel até os dedos férreos do bárbaro branco se fecharem em
seu ombro e a colocarem novamente de pé.
- Você disse
que eu era um bárbaro – ele disse asperamente –, e é verdade, graças a Crom. Se
você tivesse homens das fronteiras lhe guardando, ao invés de civilizados
fracotes de vísceras fracas, você não seria escrava de um porco negro esta
noite. Sou Conan, um cimério, e vivo pelo fio da espada. Mas não sou um
cachorro, para deixar uma mulher branca nas garras de um negro; e, embora sua
raça me chame de ladrão, eu nunca forcei uma mulher contra a vontade dela. Os
costumes são diferentes em várias regiões, mas se um homem for suficientemente
forte, pode impor alguns de seus costumes nativos em qualquer lugar. E homem
nenhum jamais me chamou de fraco!
“Mesmo que
você fosse velha e feia como o abutre de estimação do diabo, eu lhe levaria
para longe de Bajujh, simplesmente por causa da cor de sua pele. Mas você é
jovem e bonita, e já estou enojado de ver vagabundas negras. Vou fazer o seu
jogo, da sua maneira, simplesmente porque alguns dos seus instintos
correspondem com alguns dos meus. Volte para sua cabana. Bajujh está bêbado
demais para lhe procurar esta noite, e cuidarei para que ele esteja ocupado
amanhã. E amanhã à noite, você estará esquentando a cama de Conan, não a de
Bajujh”.
- Como isso
será feito? – Ela tremia, por causa das emoções misturadas. – Você só tem estes
guerreiros?
- Eles são
suficientes – grunhiu. – Os Bamulas, cada um deles, é amamentado nas tetas da
batalha. Vim aqui a pedido de Bajujh. Ele quer que eu me junte a ele num ataque
a Jihiji. Esta noite, nós festejamos. Amanhã, haverá um conselho. Quando eu
terminar com ele, ele estará fazendo conselho no Inferno.
- Você vai
romper a trégua?
- Tréguas,
nesta terra, são feitas para serem quebradas – ele respondeu sombriamente. –
Ele ia romper sua trégua com Jihiji. E, depois que saqueássemos juntos a
cidade, ele acabaria comigo na primeira oportunidade em que me pegasse de
guarda baixa. O que seria a mais negra traição em outra terra, aqui é
sabedoria. Não abri caminho sozinho até a posição de chefe-de-guerra dos
bamulas, sem aprender todas as lições que a terra negra ensina. Agora volte à
sua cabana e durma, sabendo que não é para Bajujh, mas para Conan, que você guarda
sua beleza!
2)
Através da
fenda na parede de bambu, Lívia observava, com os nervos tensos e trêmulos. O
dia todo, desde que acordaram tarde – apáticos e com a vista turva, por causa
dos excessos da noite anterior –, os negros preparavam a festa para a noite. O
dia todo, Conan, o cimério, havia ficado na choupana de Bajujh e, o que se
passara entre eles, Lívia não tinha como saber. Ela havia lutado para esconder
seu entusiasmo da única pessoa que entrara em sua cabana – a vingativa jovem
negra que lhe trazia comida e bebida. Mas aquela moça grosseira estava
embriagada demais de suas bebedeiras da noite anterior, para perceber a mudança
na conduta de sua prisioneira.
Agora a noite
havia caído novamente, fogueiras iluminavam a aldeia e, mais uma vez, os chefes
saíram da choupana do rei e se agacharam no espaço aberto entre as cabanas,
para festejar e realizar um conselho cerimonial final. Desta vez, não se bebeu
tanta cerveja. Lívia notou que os bamulas convergiam casualmente em direção ao
círculo onde os chefes se sentavam. Viu Bajujh e, sentado à sua frente,
separado pelas panelas de comida, Conan, rindo e conversando com o gigante Aja,
chefe-de-guerra de Bajujh.
O cimério
mastigava a carne de um grande osso, e ela o observava quando o viu lançar um
olhar por cima do ombro. Como se fosse um sinal pelo qual estavam esperando,
todos os bamulas olharam para seu chefe. Conan se levantou, ainda sorrindo,
como se para apanhar um caldeirão próximo... e então, rápido como um gato, ele
deu em Aja um terrível golpe com o pesado osso. O chefe-de-guerra bakalah
desabou, com o crânio esmagado, e instantaneamente um brado assustador rasgou
os céus quando os bamulas entraram em ação, como panteras loucas por sangue.
Caldeirões
foram entornados, escaldando as mulheres agachadas; paredes de bambu vergaram
ao impacto de corpos arremessados, gritos de agonia rasgaram a noite e, acima
de tudo, se erguia o exultante brado “Yee,
yee, yee!”, dos enlouquecidos bamulas, e o brilho das lanças que se
avermelhavam naquela incandescência medonha.
Bakalah era
uma casa de loucos que se avermelhou num matadouro. A ação dos invasores
paralisou os aldeões desafortunados, por ter sido súbita e inesperada. Nenhum
pensamento de ataque, por parte de seus convidados, havia entrado em suas
cabeças de cabelos lanosos. A maioria das lanças estava guardada nas cabanas, e
muitos dos guerreiros já estavam semi-embriagados. A queda de Aja foi um sinal
que mergulhou as lâminas brilhantes dos bamulas em cem corpos distraídos;
depois disso, foi um massacre.
Espiando de
sua fenda, Lívia estava imóvel, branca como uma estátua, suas mechas douradas
puxadas para trás e presas num coque, com ambas as mãos nas têmporas. Seus
olhos estavam arregalados e todo o seu corpo estava rígido. Os gritos de dor e
fúria lhe golpeavam os nervos torturados, como um impacto físico; as figuras
que se contorciam esfaqueadas se embaçaram diante dela e depois ganhavam
novamente uma aterradora nitidez. Ela via lanças mergulharem em contorcidos
corpos negros, derramando sangue. Via porretes balançando e descendo com força
brutal sobre cabeças de cabelos encarapinhados. Tições eram chutados das
fogueiras, espalhando brasas; os tetos de sapé se esfumaçavam e incendiavam. Uma
nova estridência de angústia se juntou aos gritos, quando vítimas ainda vivas
foram atiradas de ponta-cabeça nas cabanas em chamas. O cheiro de carne
queimada começou a empestear o ar, já fétido com o suor que exalava e o sangue
fresco.
Os nervos
sobrecarregados de Lívia cederam. Ela gritou várias vezes – guinchos estridentes
de tormento, perdidos no ruído ensurdecedor das chamas e matança. Ela batia nas
têmporas com os punhos fechados. Sua razão vacilou, transformando seus gritos
em repiques medonhos de risada histérica. Em vão, ela procurou pensar que eram
seus inimigos que morriam tão horrivelmente; que isto era o que ela havia
esperado e planejado loucamente; que este horrível sacrifício não era mais do
que uma justa compensação pelos males praticados contra ela e os seus. O terror
desvairado a segurava em seu aperto insensato.
Ela sabia que
não sentia pena das vítimas que morriam em grandes quantidades sob as lanças
gotejantes. Sua única emoção era um medo cego, total, louco e irracional. Viu
Conan, sua forma branca contrastando com os negros. Viu sua espada se mover
como um relâmpago, e homens caírem ao seu redor. Agora um grupo de lutadores se
aglomerava ao redor de uma fogueira, e ela vislumbrou uma forma gorda e
atarracada se contorcendo no meio deles. Conan enfiou-se no meio e ficou oculto
da visão pelas agitadas figuras negras. Daquela aglomeração, ergueu-se um agudo
grito insuportável. O grupo se desfez por um instante, e ela teve um vislumbre
medonho de uma cambaleante e desesperada figura atarracada, derramando sangue.
Então, a multidão se fechou novamente no mesmo lugar, e o aço brilhou entre a
turba como um raio na escuridão.
Um urro
animalesco se ergueu, aterrorizante em seu júbilo primitivo. A forma alta de
Conan abriu caminho através da turba. Caminhava a passos largos em direção à cabana
onde a jovem se agachava e, em sua mão, ele trazia uma medonha relíquia... a
luz das fogueiras brilhava vermelha na cabeça decepada do Rei Bajujh. Os olhos
negros, agora vidrados e sem vida, estavam virados para cima, mostrando apenas
sua parte branca; o queixo caído dava ao rosto uma expressão idiota; gotas
vermelhas caíam abundantemente no chão, ao longo do caminho.
Lívia recuou
com um gemido. Conan havia pagado o preço e estava vindo reivindicá-la,
carregando a terrível prova de seu pagamento. Ele ia agarrá-la com os dedos ardentes
e ensangüentados e apertar seus lábios com a boca ainda ofegante da matança.
Esse pensamento a levou ao desespero.
Com um grito,
Lívia correu pela choupana e se lançou contra a porta dos fundos. Esta se abriu
e ela disparou pelo espaço aberto, um esvoaçante fantasma branco num reino de
sombras negras e chamas vermelhas.
Algum instinto
obscuro levou-a ao curral, onde os cavalos estavam guardados. Um guerreiro
estava arrancando as tábuas que separavam o curral do cercado principal, e
gritou de surpresa ao vê-la passar correndo por ele. Sua mão escura tentou
agarrá-la pela gola da túnica. Com um puxão frenético, ela se livrou, deixando
a roupa na mão dele. Os cavalos fungaram e trotaram perto dela, rolando o
guerreiro na areia – corcéis esguios e musculosos de raça kushita, já
enlouquecidos pelo fogo e pelo cheiro de sangue.
Cegamente, ela
agarrou uma crina esvoaçante, foi arrancada do chão, bateu novamente no chão
com os dedos dos pés, saltou e montou no lombo do cavalo em disparada.
Enlouquecida de medo, a manada correu pelo meio das chamas, seus pequenos cascos
chutando brasas numa chuva cegante. As assustadas pessoas negras viram de relance
a garota, cavalgando nua e agarrada à crina de um animal que corria como o
vento que soprava os soltos cabelos loiros da amazona. O corcel disparou em
direção ao cercado, saltou assustadoramente no ar e desapareceu na noite.
3)
Lívia não
conseguia fazer qualquer tentativa de guiar sua montaria, nem sentia qualquer
necessidade de fazê-lo. Os gritos e o brilho das fogueiras desapareciam atrás
dela; o vento agitava seus cabelos e acariciava seus membros nus. Ela só sentia
uma necessidade entorpecida de segurar a crina esvoaçante e cavalgar, cavalgar,
cavalgar, até saltar sobre a borda do mundo e fugir de toda aquela agonia, dor
e horror. E, durante horas, o vigoroso corcel galopou, até que, chegando a um
cume iluminado pelas estrelas, ele tropeçou e lançou sua amazona para longe.
Ela caiu sobre
um gramado macio e ficou estendida por um instante, meio atordoada, ouvindo
vagamente sua montaria se afastar trotando. Quando se ergueu cambaleante, a
primeira coisa que a impressionou foi o silêncio. Era uma coisa quase tangível,
suave e escuramente aveludada, após o incessante clangor de trompas e tambores
bárbaros que a enlouqueceram durante dias. Olhou para cima, e viu as grandes
estrelas brancas densamente aglomeradas no céu azul-escuro. Não havia lua, mas
a luz das estrelas iluminava a terra, ainda que de forma ilusória, com
agrupamentos inesperados de sombras. Ela estava sobre uma elevação gramada, da
qual partiam inclinações gentilmente moldadas, macias como veludo, sob a luz
das estrelas. Ao longe, ela discerniu uma densa linha escura de árvores, a qual
marcava a floresta distante. Ali só havia noite, uma calma hipnótica e uma
brisa suave soprando através das estrelas.
A terra
parecia vasta e adormecida. A carícia morna da brisa trouxe a consciência de
sua nudez, e ela se retorceu inquieta, espalhando as mãos sobre o corpo. Então,
ela sentiu a solidão da noite, e o caráter inquebrável de seu isolamento.
Estava só; estava nua sobre o cume daquela terra, e não havia ninguém para ver;
nada, exceto a noite e o vento sussurrante.
Ficou
subitamente feliz com a noite e a solidão. Não havia ninguém para ameaçá-la, ou
agarrá-la com mãos rudes e violentas. Olhou à sua frente e viu a inclinação
descer para um grande vale; ali, folhagens ondulavam densamente, e a luz das
estrelas se refletia brancamente em muitos objetos pequenos, espalhados pelo
vale. Ela achou que fossem grandes flores brancas, e o pensamento lhe trouxe
uma vaga lembrança, de um vale do qual os negros falavam com medo; um vale para
o qual haviam fugido jovens mulheres de uma estranha raça de pele marrom, a
qual habitara aquela terra antes da chegada dos bakalahs. Ali, diziam, elas
haviam sido transformadas em flores brancas pelos antigos deuses, para
escaparem de seus perseguidores. Nenhum homem branco ousava ir até lá.
Mas Lívia
ousava entrar naquele vale. Ela desceria aquelas encostas gramadas, que
pareciam veludo sob seus pés delicados; viveria lá, entre as balouçantes flores
brancas, e nenhum homem viria colocar suas mãos quentes e rudes nela. Conan
havia dito que pactos eram feitos para serem quebrados; ela quebraria seu pacto
com ele. Entraria no vale das mulheres perdidas... iria se perder na solidão e
na quietude... Enquanto estes pensamentos oníricos e desarticulados lhe
flutuavam pela consciência, ela descia a encosta suave, e as paredes do vale
ficavam cada vez mais altas de ambos os lados.
Tão suaves eram
as encostas que, quando ela chegou ao fundo do vale, não teve a sensação de
estar aprisionada por paredes acidentadas. Tudo ao seu redor flutuava como
mares de sombras, e grandes flores brancas balançavam e sussurravam para ela.
Caminhou a esmo, abrindo caminho entre as folhagens com as mãos pequenas,
ouvindo o sussurrar do vento pelas folhas e encontrando um prazer infantil no
murmurar de um riacho que não via. Ela se movia como num sonho, prisioneira de
uma estranha irrealidade. Um pensamento a reiterava continuamente: ali estaria
a salvo da brutalidade dos homens. Ela chorou, mas as lágrimas eram de alegria.
Deitou-se sobre a relva e agarrou a grama macia, como se pudesse apertar seu
refúgio recém-encontrado contra o peito e segurá-lo ali para sempre.
Arrancou as
pétalas de grandes flores brancas e fez com elas um enfeite para o cabelo
dourado. O perfume delas combinava com tudo naquele vale: onírico, sutil e
encantador.
Assim, ela
finalmente chegou a uma clareira no meio do vale e viu nela uma grande pedra,
entalhada como se por mãos humanas, e adornada por samambaias e flores de
diversos tipos. Ficou olhando para ela, e logo havia vida e movimento ao seu
redor. Virando-se, ela viu figuras saírem furtivamente das sombras mais densas
– esguias mulheres marrons, flexíveis e nuas, com flores em seus cabelos negros
como a noite. Como criaturas de um sonho, elas a cercaram sem dizer nada. Mas o
terror subitamente tomou conta dela ao olhar nos olhos daquelas mulheres.
Aqueles olhos eram luminosos e radiantes ao brilho das estrelas; mas não eram
olhos humanos. As formas eram humanas, mas uma estranha mudança havia
acontecido em suas almas; uma mudança refletida em seus olhos incandescentes. O
medo desceu sobre Lívia como uma onda. A serpente mostrava sua cabeça medonha
no Paraíso recém-encontrado.
Mas ela não
conseguia fugir. As ágeis mulheres marrons estavam todas ao seu redor. Uma
delas, mais linda que as outras, aproximou-se silenciosamente da jovem trêmula
e a envolveu com flexíveis braços morenos. Seu hálito tinha o mesmo perfume que
saía das grandes flores brancas que balançavam à luz das estrelas. Seus lábios
pressionaram os de Lívia num beijo longo e terrível. A ophiriana sentiu algo gelado
lhe percorrer as veias; seus membros fraquejaram; como uma branca estátua de
mármore, ela estava nas mãos de suas captoras, incapaz de falar ou se mover.
Mãos rápidas e
delicadas a levantaram e deitaram no altar de pedra, cercado por um leito de
flores. As mulheres marrons deram-se as mãos e se moveram docilmente ao redor
do altar, dançando num ritmo estranho e obscuro. Nunca o sol ou a lua haviam
presenciado tal dança, e as grandes estrelas brancas ficaram mais brancas e
brilharam de forma ainda mais luminosa, como se aquela magia negra provocasse
reações em coisas cósmicas e elementais.
E um canto
baixo se ergueu, menos humano que o gorgolejar do riacho distante; um sussurro
de vozes semelhante ao murmúrio das grandes flores brancas que ondulavam sob as
estrelas. Lívia estava deitada, consciente, mas sem conseguir se mover. Não lhe
ocorreu duvidar da sua sanidade. Não procurou raciocinar nem analisar; ela estava ali, e aquelas estranhas
criaturas dançando à sua volta também estavam;
uma percepção entorpecida da existência e da realidade daquele pesadelo tomou
conta dela, enquanto estava ali, deitada e indefesa, olhando para o céu
estrelado, de onde, ela sabia com conhecimento mais que mortal, algo aconteceria com ela, como
acontecera tempos atrás para transformar essas desnudas mulheres marrons nos
seres sem alma que eram agora.
Primeiro, bem
acima dela, viu um ponto negro entre as estrelas, o qual cresceu e se expandiu;
ele se aproximou dela e ficou semelhante a um morcego; e continuou aumentando,
mas sua forma não se alterou muito. Pairou acima dela nas estrelas e mergulhou
como uma pedra em direção à terra, suas grandes asas estendidas sobre ela, que
se deitava sob sua sombra tenebrosa. E ao seu redor, o canto ficou mais alto,
até se tornar uma louvação de alegria sem alma, uma prece de boas-vindas ao
deus que vinha reivindicar um novo sacrifício, fresco e róseo como uma flor no
orvalho da manhã.
Agora, a
figura pairava diretamente sobre ela, e sua alma se contraiu, fria e pequena
diante daquela visão. Suas asas eram de morcego; mas seu corpo e o rosto indistinto
que olhava para ela não se pareciam com nada que existe no mar, na terra ou no
ar; ela sabia que estava olhando para um horror supremo, para uma negra infâmia
cósmica nascida nos golfos negros além do alcance dos sonhos mais desvairados
de um louco.
Rompendo as
amarras invisíveis que a mantinham muda, ela gritou horrivelmente. Seu grito
foi respondido por um brado profundo e ameaçador. Ela ouviu o som de pés
correndo; tudo ao seu redor era um redemoinho de águas rápidas; as flores
brancas se agitaram violentamente e as mulheres marrons desapareceram. Sobre
ela, pairava a grande sombra negra, e ela viu uma figura alta e branca, com
plumas lhe balançando na cabeça, correndo em sua direção.
- Conan! – O grito lhe escapou
involuntariamente dos lábios.
Com um grito
feroz e inarticulado, o bárbaro saltou no ar, brandindo para o alto sua espada
que reluzia à luz das estrelas.
As grandes
asas negras subiam e desciam. Lívia, paralisada de horror, viu o cimério
envolvido na sombra negra que pairava sobre ele. A respiração do homem ficou
ofegante; seus pés batiam forte no solo batido, esmagando as flores brancas na
terra. O impacto dilacerador de seus golpes ecoava pela noite. Ele era lançado
de um lado para outro, como um rato nas mandíbulas de um cão; o sangue escorria
sobre a relva, misturando-se com as pétalas brancas caídas ao chão como um
tapete.
E então, a
garota, observando aquela batalha diabólica como num pesadelo, viu a coisa de
asas negras hesitar e vacilar em pleno ar; houve um bater de asas quebradas, e
o monstro escapou e voou alto para se misturar às estrelas e desaparecer entre
elas. Seu vencedor cambaleava atordoado, a espada erguida, pernas bem
afastadas, olhando estupidamente para cima, surpreso com a vitória, mas pronto
para retomar a horrível batalha.
No instante
seguinte, Conan se aproximou do altar, ofegando e pingando sangue a cada passo.
Seu peito maciço arfava, brilhando de suor. O sangue lhe descia pelos braços em
filetes que partiam do pescoço e ombros. Quando ele a tocou, o feitiço sobre a
jovem foi quebrado, e ela se ergueu e desceu do altar, afastando-se da mão
dele. Ele se apoiou na pedra e a olhou, agachada aos seus pés.
- Os homens
viram você fugir da aldeia a cavalo – ele disse. – Eu lhe segui assim que pude
e encontrei seu rastro, embora não tenha sido uma tarefa fácil segui-lo à luz
de tochas. Eu lhe segui até o local onde
seu cavalo lhe derrubou, mas as tochas já estavam apagadas naquela hora, e não
consegui encontrar as marcas de seus pés descalços na relva. Mas tive certeza
de que você havia descido para o vale. Meus homens não quiseram me seguir, de
modo que vim sozinho e a pé. Que vale dos infernos é este? O que era aquela
coisa?
- Um deus –
ela sussurrou. – O povo negro falou dele... um deus que vem de muito longe e de
um passado distante!
- Um demônio
da Escuridão Exterior! – ele grunhiu. – Ah, eles não são nada incomuns.
Espreitam feito um bando de pulgas, do lado de fora do cinturão de luz que envolve
este mundo. Já ouvi os sábios de Zamora falarem dele. Alguns conseguem penetrar
na Terra, mas, quando o fazem, precisam assumir uma forma terrestre de carne e
osso, ou coisa assim. Um homem como eu, com uma espada na mão, é páreo para qualquer
quantidade de presas e garras, sejam do Inferno ou da terra. Venha; meus homens
me esperam além dos limites do vale.
Ela continuou
agachada e imóvel, incapaz de encontrar palavras, enquanto ele a olhava de
testa franzida. Então, ela disse:
- Eu fugi de
você. Planejava lhe enganar. Não ia manter minha promessa. Eu era sua, pelo que
combinamos, mas fugiria de você, se pudesse. Castigue-me como quiser.
Ele sacudiu o
suor e sangue dos cabelos, e embainhou a espada.
- Levante-se!
– ele grunhiu. – Foi um acordo sórdido o que fiz. Não me arrependo de ter
acabado com aquele cão negro do Bajujh, mas você não é moça para se comprar ou
vender. Os costumes dos homens variam em diferentes terras, mas um homem não
precisa ser um suíno, onde quer que esteja. Depois de pensar um pouco, vi que
lhe prender ao seu acordo seria o mesmo que lhe forçar. Além disso, você não é
resistente o bastante para viver nesta terra. É filha das cidades, dos livros e
dos costumes civilizados... o que não é culpa sua, mas você morreria cedo se
levasse a vida na qual sou bem-sucedido. Uma mulher morta não me serviria para
nada. Vou levá-la até as fronteiras da Stygia. Os stígios lhe mandarão para sua
casa, em Ophir.
Ela arregalou
os olhos para ele, como se não tivesse ouvido direito.
- Casa? – ela
repetiu mecanicamente. – Casa? Ophir? Minha gente? Cidades, torres, paz? Meu lar?
Súbito,
lágrimas brotaram em seus olhos e, ajoelhando-se, ela abraçou os joelhos dele.
- Por Crom,
garota – Conan grunhiu desconcertado –; não faça isso. Não pense que estou lhe
fazendo um favor ao expulsá-la desta região. Já não expliquei que você não é a
mulher adequada para o chefe-de-guerra dos bamulas?
FIM
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.