(por Robert E. Howard)
1) A Caveira Sobre o Penhasco
A mulher a
cavalo puxou as rédeas de seu corcel cansado. Este ficou com as pernas bem
abertas e a cabeça pendente, como se até o peso dos freios de couro vermelho bordados
a ouro fosse demais para ele. A mulher pôs um dos pés calçados em botas para
fora do estribo de prata e desceu da sela trabalhada a ouro. Ela amarrou as
rédeas numa bifurcação de uma árvore nova, e deu a volta, com as mãos nos
quadris, para examinar os arredores.
Não eram
atraentes. Árvores gigantes cercavam a pequena poça onde seu cavalo havia
acabado de beber. Moitas rasteiras limitavam a visão que procurava sob a
penumbra sombria das arcadas elevadas, formadas por galhos entrelaçados. A
mulher estremeceu com um contrair de seus ombros magníficos, e então praguejou.
Ela era alta,
de busto volumoso e membros grandes, com ombros firmes. Toda a sua forma
refletia uma força incomum, sem diminuir a feminilidade de sua aparência. Era
totalmente mulher, apesar dos modos e trajes. Estes últimos eram incongruentes,
em vista do ambiente onde ela agora se encontrava. Ao invés de uma saia, ela
vestia calções curtos e largos de seda, os quais lhe chegavam a uma mão de
altura acima dos joelhos, e eram seguros por uma larga faixa de seda usada como
cinto. Botas de topo lustroso, feitas de couro macio, lhe chegavam quase aos
joelhos, e uma camisa de seda de gola larga e baixa, e mangas largas, lhe
completavam as roupas. Num dos quadris bem-torneados, ela trazia um espada reta
de dois gumes; e no outro, um longo punhal. Seus rebeldes cabelos loiros,
aparados em corte reto à altura dos ombros, eram presos por uma faixa de cetim
vermelho.
Contra o fundo
de floresta sombria e primitiva, ela posava de forma inconscientemente
pitoresca, bizarra e fora de lugar. Ela deveria estar posando contra um fundo
de nuvens marinhas, mastros pintados e gaivotas em revoada. Havia a cor do mar
em seus olhos grandes. E era assim que deveria ser, pois ela era Valéria da
Irmandade Vermelha, cujas façanhas eram celebradas em canções e baladas, onde
quer que os navegantes se reúnam.
Ela se
esforçava para olhar além do sombrio teto de galhos curvados, e ver o céu que
provavelmente estava acima dele, mas logo desistiu, sussurrando uma praga.
Deixando o
cavalo preso, ela andou a passos largos para leste, olhando para trás em
direção à poça de vez em quando, para guardar na memória o caminho da volta. O
silêncio da floresta a deprimia. Nenhum pássaro cantava nos galhos elevados,
nem qualquer sussurro nas moitas indicava a presença de pequenos animais.
Durante léguas, ela viajara numa região de silêncio meditativo, quebrado apenas
por sua própria fuga.
Ela havia
abrandado sua sede na poça, mas agora sentia as mordidas da fome e começou a
procurar por alguma fruta que a sustentasse, uma vez que a comida havia acabado
nas mochilas de sua sela.
À sua frente,
ela logo viu um conjunto de rochas escuras, semelhantes ao sílex, que se
inclinavam para o alto, em direção ao que parecia ser um penhasco áspero,
erguendo-se entre árvores. Seu cume se perdia de vista, entre uma nuvem de
folhas que o circulava. Talvez seu pico se erguesse acima do alto das árvores,
e de lá, ela pudesse ver o que havia além – se, de fato, havia algo mais, além
desta floresta aparentemente ilimitada, através da qual ela havia cavalgado por
tantos dias.
Uma aresta
estreita formava uma rampa que subia até o lado íngreme do penhasco. Após ter
subido uns 15 metros, ela chegou ao cinturão de folhas que cercava o rochedo.
Os troncos das árvores eram espaçados próximos ao penhasco, mas as extremidades
de seus galhos se estendiam ao redor dele, cobrindo-o com sua folhagem. Ela se
segurou na escuridão de folhas, incapaz de ver acima ou abaixo; mas logo ela
vislumbrou o céu azul e, um momento depois, saiu na luz clara e quente, e viu o
teto da floresta se estendendo sob seus pés.
Ela se
encontrava numa ampla plataforma, a qual estava acima até mesmo dos topos das
árvores, e dela se erguia uma saliência em forma de espiral, a qual era o pico
mais alto do penhasco que escalara. Mas algo mais lhe prendeu a atenção naquele
momento. Seu pé havia batido em algo no tapete de folhas secas que cobria a
plataforma. Ela as afastou para o lado com o pé e desceu o olhar para o
esqueleto de um homem. Correu um olhar experiente sobre a forma branqueada, mas
não viu ossos quebrados nem qualquer sinal de violência. O homem devia ter tido
uma morte natural, embora ela não conseguisse imaginar por que ele teria subido
um penhasco alto para morrer.
Ela galgou até
o topo da saliência e olhou para os horizontes. O teto da floresta – que
parecia um chão, de sua posição privilegiada – era tão impenetrável quanto por
baixo. Ela não conseguia ver sequer o poço no qual deixara seu cavalo. Olhou
para o norte, na direção da qual viera. Só viu o ondulante oceano verde, se
estendendo infinitamente, com apenas uma vaga linha azul à distância, sugerindo
a cordilheira de colinas que ela cruzara dias antes, para mergulhar nessa
vastidão de folhas.
A oeste e
leste, a vista era a mesma, embora não houvesse linha de colinas azuis nessas
direções. Mas, quando ela virou os olhos para o sul, ficou paralisada e prendeu
o fôlego. A pouco mais de um quilômetro e meio naquela direção, a floresta se
reduzia e terminava abruptamente, dando lugar a uma planície pontilhada de
cactos. E, no meio daquela planície, se erguiam os muros e torres de uma
cidade. Valéria praguejou pasma. Isto era inacreditável. Ela não ficaria
surpresa se visse outros tipos de moradias humanas – as cabanas em forma de
colméia dos negros, ou as grutas da misteriosa raça marrom que, segundo as
lendas, habitavam algum lugar dessa região inexplorada. Mas era uma experiência
surpreendente se deparar com uma cidade murada ali, a tantas longas semanas de
marcha dos mais próximos postos avançados de qualquer tipo de civilização.
Com as mãos
cansadas de se agarrarem ao pináculo em forma de espiral, ela se deixou cair na
plataforma, franzindo a testa em indecisão. Viera de longe: do acampamento dos
mercenários, próximo à cidade fronteiriça de Sukhmet, entre os capins rasos,
onde aventureiros desesperados de várias raças guardavam a fronteira stígia
contra as incursões que vinham, como uma onda vermelha, de Darfar. Sua fuga havia
sido às cegas, para dentro de uma região à qual ignorava totalmente. E agora,
ela hesitava entre o impulso de cavalgar diretamente para aquela cidade na
planície, e o instinto de cautela que a induzia a contorná-la o mais longe
possível e continuar sua fuga solitária.
Seus
pensamentos foram dissipados pelo sussurrar das folhas sob ela. Girou como um
gato, agarrou a espada... e então parou, arregalando os olhos para o homem
diante dela.
Era um homem
alto e poderosamente constituído – quase um gigante em estatura –, os músculos
ondulando suavemente sob sua pele bronzeada. Sua roupa era similar à dela,
exceto por um largo cinto de couro ao invés de uma faixa. Uma espada larga e um
punhal lhe pendiam do cinto.
- Conan, o
cimério! – exclamou a mulher – O que está fazendo no meu caminho?
Ele abriu um
sorriso largo e duro, e seus ferozes olhos azuis arderam com uma luz que
qualquer mulher conseguiria entender, enquanto os mesmos percorriam sua figura
magnífica, demorando-se no volume dos seios esplêndidos sob a camisa leve, e na
pele clara que aparecia entre os calções e as botas.
- Não sabe? –
ele riu – Não deixei clara a minha admiração por você, desde a primeira vez em
que a vi?
- Um garanhão
não poderia ter sido mais claro. – ela respondeu com desprezo – Mas nunca
esperei lhe encontrar tão longe dos barris de cerveja e panelas de carne de Sukhmet.
Você realmente me seguiu desde o acampamento de Zarallo, ou foi enxotado como um
bastardo?
Ele riu da
insolência dela e flexionou o poderoso bíceps.
- Você sabe
que Zarallo não tinha velhacos suficientes para me expulsar do acampamento. –
ele sorriu largamente – Claro que lhe segui, moça! Quando você esfaqueou aquele
oficial stígio, perdeu o favor e a proteção de Zarallo, e se tornou uma
fora-da-lei para todos os stígios.
- Eu sei
disso. – ela respondeu sombriamente – Mas o que mais eu poderia fazer? Você
sabe como fui provocada.
- Certo. – ele
concordou – Se eu estivesse lá, eu mesmo o teria apunhalado. Mas, se uma mulher
vai viver nos acampamentos de guerra dos homens, tem de estar pronta para tais
coisas.
Valéria bateu
o pé no chão e praguejou:
- Por que os
homens não me deixam viver uma vida de homem?
- Isso é óbvio!
– Seus olhos a devoraram novamente – Mas você foi sábia em fugir. Os stígios
teriam lhe esfolado. O irmão daquele oficial lhe seguiu; e mais rápido do que
você pensava, eu não duvido. Ele não estava muito atrás de você, quando eu o
alcancei. O cavalo dele era mais rápido que o seu. Ele teria lhe pego e cortado
a garganta, dentro de mais algumas milhas.
- E então? –
ela indagou.
- E então, o
quê? – ele parecia perplexo.
- E quanto ao
stígio?
- Ora, o que
você acha? – ele respondeu impacientemente – Eu o matei, é claro, e deixei sua
carcaça para os abutres. Mas aquilo me atrasou, e quase perdi seu rastro quando
você atravessou os contrafortes rochosos das colinas. De outro modo, eu já
teria lhe alcançado há muito tempo.
- E agora,
você acha que vai me arrastar de volta ao acampamento de Zarallo? – ela
escarneceu.
- Não seja
idiota. – ele grunhiu – Venha, garota; não seja tão irascível. Não sou como
aquele stígio que você apunhalou, e você sabe disso.
- Você é um
vagabundo sem dinheiro. – ela zombou.
Ele riu dela:
- E como você
se define? Você não tem dinheiro suficiente para comprar um fundilho novo para
seu calção. Seu desdém não me engana. Você sabe que já comandei navios maiores
e mais homens do que você. Quanto a ficar sem dinheiro... qual o pirata que não
fica o tempo todo? Já esbanjei, nos portos marítimos do mundo, ouro suficiente
para encher um galeão. Você também sabe disso.
- Onde estão
agora os belos navios e rapazes corajosos que você comandou? – ela escarneceu.
- Quase todos
no fundo do mar e no inferno. – ele respondeu calmamente – A esquadra real
zíngara afundou meu último navio diante da costa de Toragis, em Shem... queimei
a cidade de Valadelad, mas eles me pegaram antes que eu conseguisse alcançar as
Barachas. Fui o único homem a bordo que escapou com vida... é por isso que me
juntei aos Companheiros Livres de Zarallo. Mas vi que errei, quando marchamos
para a fronteira de Darfar. O pagamento era uma miséria, o vinho era azedo e eu
e não gosto de mulheres negras. E esse era o único tipo que aparecia no nosso
acampamento em Sukhmet... com argolas em seus narizes e dentes afiados... bah!
E você, por que se juntou a Zarallo? Sukhmet fica muito longe da água salgada.
- Ortho
Vermelho matou o capitão com o qual eu navegava, e se apoderou de nosso navio.
– ela respondeu sombriamente – O cão queria que eu fosse a amante dele. Lancei-me
ao mar numa noite e nadei à praia, quando estávamos ancorados próximos à costa
kushita. Isso foi diante de Zabhela. Lá havia um mercador shemita que me contou
que Zarallo havia trazido seus Companheiros Livres para o sul, para guardarem a
fronteira de Darfar. Não havia opção melhor. Eu me juntei a uma caravana que ia
para leste, e finalmente cheguei a Sukhmet.
- Foi loucura
mergulhar no sul, como você fez – comentou Conan –, mas foi também uma sábia
escolha, pois as patrulhas de Zarallo nunca pensariam em lhe procurar nesta
direção. Somente o irmão do homem que você matou encontrou por acaso sua
trilha.
- E agora, o
que pretende fazer? – ela exigiu.
- Virar para
oeste. – ele respondeu – Já estive nesta distância sul, mas não nesta distância
leste. Muitos dias de viagem para oeste nos levarão às savanas abertas, onde as
tribos negras pastoreiam seu gado. Tenho amigos entre eles. Chegaremos à costa
e encontraremos um navio. Estou cansado da selva.
- Então siga
seu caminho. – ela aconselhou – Tenho outros planos.
- Não seja
idiota! – ele se mostrou irritado pela primeira vez – Você não pode continuar
perambulando por esta floresta.
- Eu posso, se
eu quiser.
- Mas o que
você pretende fazer?
- Não é de sua
conta. – ela retrucou.
- É sim. – ele
respondeu calmamente – Acha que eu lhe segui por toda essa distância, só para
dar meia-volta e sair cavalgando de mãos vazias? Seja sensata, garota. Não vou
lhe machucar.
Ele deu um
passo em sua direção, e ela deu um pulo para trás, desembainhando a espada.
- Para trás,
seu cão bárbaro, senão eu lhe espeto como um porco!
Ele parou
relutante, e indagou:
- Quer que eu
arranque esse brinquedo de você e lhe dê uma surra com ele?
- Palavras!
Nada mais do que palavras! – ela zombou, os olhos temerários brilhando com
luzes que dançavam como o sol sobre águas azuis.
Ele sabia que
era verdade. Nenhum homem vivo conseguia desarmar Valéria da Irmandade com as
mãos nuas. Ele carranqueou, tomado por um emaranhado de emoções conflitantes.
Estava furioso, mas estava divertido e cheio de admiração pelo espírito dela.
Ardia de desejo de agarrar aquela forma esplêndida e apertá-la em seus braços
de ferro, embora desejasse grandemente não machucar a jovem. Estava dividido
entre um desejo de sacudi-la vigorosamente, e um desejo de acariciá-la. Ele
sabia que, se chegasse mais perto, a espada dela lhe atravessaria o coração. Já
vira Valéria matar muitos homens em pilhagens fronteiriças e brigas de taverna,
para ter qualquer ilusão sobre ela. Sabia que ela era rápida e feroz como um
tigre. Ele podia puxar sua espada larga e desarmá-la, lançando a lâmina para
longe da mão dela com um golpe; mas o pensamento de brandir uma espada contra
uma mulher, mesmo sem intenção de machucar, lhe era extremamente repugnante.
- Que sua alma
queime, vadia! – ele exclamou exasperado – Vou lhe tirar...
Avançou até
ela, sua paixão furiosa o tornando imprudente, e ela se preparou para dar uma
estocada mortal. Então, veio uma surpreendente interrupção daquela cena ao
mesmo tempo cômica e perigosa.
- O que é
isso?
Foi Valéria
quem exclamou, mas ambos estremeceram violentamente, e Conan girou como um
gato, sua grande espada lhe reluzindo na mão. Do fundo da floresta, havia saído
uma apavorante mistura de gritos – os relinchos de cavalos em terror e agonia.
Misturados aos seus relinchos, ouvia-se o barulho dos ossos quebrados.
- Os leões
estão matando os cavalos! – gritou Valéria.
- Leões coisa
nenhuma! – roncou Conan, com os olhos ardendo – Você ouviu algum leão rugir?
Nem eu! Ouça o quebrar dos ossos... nem mesmo um leão faria tanto barulho ao
matar um cavalo.
Ele desceu
correndo pela rampa natural, e ela o seguiu, sua rixa pessoal esquecida no
instinto aventureiro, para uni-los contra um perigo comum. Os gritos haviam
parado, quando desceram através do véu verde de folhas que envolvia a rocha.
- Encontrei
seu cavalo amarrado próximo ao poço lá atrás. – ele murmurou, caminhando tão
silenciosamente que ela não mais se perguntava como ele a havia surpreendido no
penhasco – Amarrei o meu ao lado dele, e segui as pegadas de suas botas. Fique
atenta!
Eles haviam
saído do cinturão de folhas, e olhavam para baixo em direção às extensões mais
baixas da floresta. Acima deles, o teto verde estendia sua abóbada escura.
Abaixo deles, a luz do sol se infiltrava apenas o bastante para criar um
crepúsculo matizado de jade. Os troncos gigantes das árvores, a uns 90 metros
de distância, pareciam obscuros e fantasmagóricos.
- Os cavalos
deveriam estar atrás daquele matagal ali. – sussurrou Conan, e sua voz poderia
ser a brisa se movendo através dos galhos – Escute!
Valéria já
havia escutado, e um calafrio lhe rastejou pelas veias, de modo que ela pôs
inconscientemente sua mão branca sobre o bronzeado braço musculoso de seu companheiro.
De trás da moita, vinha o ruidoso mastigar de ossos e o barulhento rasgar de
carne, junto com os sons trituradores e babantes de um horrível banquete.
- Leões não
fariam esse barulho. – sussurrou Conan – Algo está devorando nossos cavalos,
mas não é um leão... Crom!
O barulho
parou de repente, e Conan praguejou suavemente. Uma brisa subitamente erguida
soprou, de onde eles estavam, diretamente ao ponto onde o matador invisível estava
escondido.
- Lá vem ele!
– murmurou Conan, meio erguendo a espada.
O matagal foi
violentamente agitado, e Valéria apertou o braço de Conan. Ela desconhecia a
selva, mas sabia que nenhum animal conseguiria sacudir o matagal alto daquele
jeito.
- Deve ser do
tamanho de um elefante. – murmurou Conan, ecoando o pensamento dela – Que
diabos... – Sua voz se calou, num silêncio assombrado.
De dentro da
moita, saiu uma cabeça de pesadelo e loucura. Mandíbulas abertas exibiam
fileiras de presas amarelas e gotejantes; acima da boca escancarada, ondulava
um focinho de sáurio. Olhos enormes, semelhantes aos de um píton mas mil vezes
maiores, miravam sem piscar os humanos petrificados que se agarravam ao rochedo
acima. O sangue manchava os escamosos lábios flácidos e escorria da enorme
boca.
A cabeça,
maior que a de um crocodilo, estirava-se num longo pescoço escamoso, no qual se
erguiam fileiras de pontas serrilhadas, e, atrás deste, derrubando as sarças e
árvores novas, bamboleava o corpo de um titã – um gigantesco torso em forma de
barril, sobre pernas absurdamente curtas. A barriga esbranquiçada quase roçava
o chão, enquanto a serrilhada coluna vertebral se erguia mais alta que Conan,
mesmo que ele estivesse na ponta dos pés. Uma longa cauda, guarnecida de pontas
como a de um escorpião gigante, arrastava-se atrás.
- Suba de
volta o rochedo, rápido! – Conan disse bruscamente, empurrando a garota para
trás de si – Não acho que ele possa escalar, mas pode se erguer sobre as patas
traseiras e nos alcançar...
Com um quebrar
e rasgar de arbustos e árvores pequenas, o monstro veio arrebentando o matagal,
e eles fugiram subindo o rochedo como folhas levadas pelo vento. Enquanto
Valéria mergulhava na cortina de folhas, um olhar para trás lhe mostrava o titã
se erguendo assombrosamente sobre suas poderosas patas traseiras, exatamente
como Conan havia previsto. A visão a encheu de pânico. Ao se erguer, a besta
parecia mais gigantesca que nunca; sua cabeça com focinho se elevava entre as
árvores. Então, a mão de ferro de Conan se fechou no pulso dela, e ela foi
puxada impetuosamente para dentro da cegante agitação de folhas, e novamente
para o quente brilho do sol acima, no exato momento em que o monstro avançou
para a frente, com suas patas dianteiras sobre o penhasco, num impacto que fez
a rocha vibrar.
Atrás dos
fugitivos, a cabeça enorme se espatifava entre os pequenos galhos, e eles
desceram o olhar, por um instante aterrador, para o rosto de pesadelo
emoldurado entre as folhas verdes, os olhos flamejantes e as mandíbulas
escancaradas. Então, as presas gigantescas se fecharam em vão e, após isso, a
cabeça se recolheu, sumindo da visão deles, como se houvesse afundado num poço.
Espiando entre
os galhos quebrados que se espalhavam no rochedo, eles viram a criatura
agachada sobre os quadris, encarando-os sem piscar.
Valéria
estremeceu:
- Por quanto
tempo acha que ele vai ficar agachado aí?
Conan chutou a
caveira na plataforma alastrada de folhas:
- Este sujeito
deve ter escalado até aqui para fugir dele, ou de alguém como ele. Deve ter morrido
de fome. Não há ossos quebrados. Essa coisa deve ser um dragão, tal qual os que
povos negros falam em suas lendas. Se for, ele não sairá daqui até morrermos.
Valéria o
olhou de forma inexpressiva, seu ressentimento esquecido. Ela lutava contra uma
maré de pânico. Já havia provado sua coragem temerária mil vezes em selvagens batalhas
no mar e na terra, nas coberturas escorregadias de sangue de navios de guerra
em chamas; nos ataques a cidades muradas, e nas pisadas praias arenosas, onde
os homens furiosos da Irmandade Vermelha banhavam seus punhais com o sangue uns
dos outros em suas lutas pela liderança. Ela não havia hesitado em sua longa
fuga para o sul, desde o acampamento na fronteira de Darfar, sobre as pastagens
ondulantes e pelas florestas hostis. Mas a perspectiva que a confrontava agora
lhe congelava o sangue. Um golpe de sabre no calor da batalha não era nada; mas
se sentar inútil e indefesa numa rocha nua, até morrer de fome, cercada por um
sobrevivente monstruoso de outra era... o pensamento fazia o pânico lhe
palpitar no cérebro.
- Ele deve
sair para comer e beber. – ela disse desesperadamente.
- Ele não
precisará ir muito longe para isso. – Conan observou – Ele acabou de se fartar
de carne de cavalo e, como uma verdadeira serpente, pode passar um longo tempo
sem comer nem beber. Mas parece que ele não dorme após comer, como uma verdadeira
serpente. De qualquer modo, ele não pode escalar este penhasco.
Conan falava
imperturbavelmente. Era um bárbaro, e a terrível paciência da selva e seus
filhos fazia parte dele, assim como suas paixões e raivas. Conseguia suportar
uma situação como esta, com uma frieza impossível para um homem civilizado.
- Não podemos
entrar pelas árvores e fugir, balançando-nos como macacos pelos galhos? – ela
perguntou desesperadamente.
Ele sacudiu a
cabeça:
- Pensei
nisso. Os galhos que tocam a parte de baixo do penhasco são muito fracos.
Quebrariam com nosso peso. Além disso, acho que aquele demônio poderia derrubar
qualquer árvore aqui perto pelas raízes.
- Bom, nós
vamos ficar aqui, sentados sobre nossas nádegas, até morrer de fome? – ela
gritou furiosamente, fazendo a caveira rolar ruidosamente pela plataforma com
um chute – Não farei isso! Vou descer até lá, e cortar fora sua maldita
cabeça...
Conan havia se
sentado numa projeção rochosa ao pé do topo. Ele erguia o olhar com um brilho
de admiração aos olhos ardentes dela e à sua figura tensa e trêmula, mas,
percebendo que ela estava disposta a qualquer loucura, não deixou sua admiração
transparecer na voz.
- Sente-se. –
ele grunhiu, pegando-a pelo pulso e puxando-a até o joelho. Ela estava surpresa
demais para resistir, quando ele lhe tomou a espada da mão e a empurrou de
volta à bainha – Mantenha a calma e fique tranqüila. Você só faria quebrar seu
aço nas escamas dele. Ele lhe engoliria de uma só vez, ou lhe esmagaria como um
ovo, com aquela cauda cheia de pontas. De alguma forma, sairemos deste aperto,
mas não sendo mastigados e engolidos.
Ela nada
respondeu, nem tentou repelir a braço dele da sua cintura. Estava assustada, e
era uma sensação nova para Valéria da Irmandade Vermelha. Assim, ela continuou
sentada nos joelhos de seu companheiro – ou captor –, com uma docilidade que
espantaria o Conde Zarallo, que a amaldiçoara como uma demônia saída do
serralho do Inferno.
Conan brincava
despreocupadamente com as encaracoladas mechas loiras dela, absorto apenas em
sua conquista. Nem o esqueleto aos seus pés, nem o monstro agachado lá embaixo
lhe perturbava o pensamento, ou tirava o brilho do seu interesse.
Os olhos
inquietos da jovem, perambulando pelas folhas abaixo, descobriram borrifos de
cores em meio ao verde. Eram frutas – grandes globos vermelho-escuros, pendurados
nos galhos de uma árvore, cujas folhas largas tinham um verde particularmente
rico e vívido. Percebeu que estava com sede e fome, embora a sede não a tivesse
atacado até perceber que não poderia descer do penhasco, para procurar comida e
água.
- Não
precisamos passar fome – ela disse – Há fruta ao nosso alcance.
Conan olhou
para onde ela havia apontado.
- Se as
comermos, não precisaremos nos preocupar com o dragão. – ele grunhiu – Aquilo é
o que o povo negro de Kush chama de as Maçãs de Derketa. Derketa é a Rainha dos
Mortos. Beba um pouco do suco, ou o derrame em sua pele, e você estará morta
antes que possa rolar até os pés deste rochedo.
- Oh!
Ela caiu em
aterrorizado silêncio. Parecia não haver meios de sair daquela situação
perigosa. Não via como fugir, e Conan parecia interessado somente na cintura
esbelta e cabelos encaracolados dela. Se ele tentava formular um plano de fuga,
não demonstrava.
- Se tirar as
mãos de mim o tempo suficiente para subir aquele pico – ela disse em seguida –,
verá algo que irá lhe surpreender.
Ele lançou um
olhar questionador sobre ela, e então obedeceu com um encolher dos ombros
poderosos. Agarrando-se ao pináculo em forma de espiral, ele olhou além do teto
da floresta.
Ficou um longo
momento em silêncio, imóvel como uma estátua de bronze na rocha.
- É uma cidade
murada, certo. – ele logo murmurou – Era para lá que você estava indo, quando
quis me deixar ir sozinho até a costa?
- Eu a vi antes
que você chegasse. Não sabia nada dela, quando abandonei Sukhmet.
- Quem teria
pensado em encontrar uma cidade aqui? Não acredito que os stígios tenham
chegado tão longe. Os negros conseguiriam construir uma cidade como essa? Não
vejo rebanhos na planície, nem sinais de agricultura, nem pessoas se movendo ao
redor.
- Como pode
esperar ver tudo isso, desta distância? – ela indagou.
Ele encolheu
os ombros e desceu de volta à plataforma.
- Bem, o povo
da cidade não pode nos ajudar agora. E talvez não queiram, mesmo que possam. O
povo das Terras Negras geralmente é hostil com estrangeiros. Provavelmente nos
espetariam com lanças...
Ele parou de
repente e ficou em silêncio, como se houvesse esquecido o que estava dizendo, e
olhou seriamente para as esferas carmesins que brilhavam entre as folhas.
- Lanças! –
ele murmurou – Que maldito imbecil eu sou, de não ter pensado nisso antes! Isso
mostra o que uma linda mulher faz com a cabeça de um homem.
- Do que está
falando? – ela indagou.
Sem responder
sua pergunta, ele desceu até o cinturão de folhas e olhou através delas. O
brutamontes se acocorava lá embaixo, olhando o penhasco com a paciência assustadora
dos répteis. Possivelmente era com aquele mesmo olhar que um daquela raça havia
observado os antepassados trogloditas do homem, acuados num rochedo alto, no
obscuro começo dos tempos. Conan o amaldiçoou friamente, e começou a cortar
galhos, estendendo os braços e decepando os ramos até onde podia alcançar. A
agitação das folhas sobressaltou o monstro. Ele se ergueu pelas patas traseiras
e chicoteou as árvores rasteiras com sua cauda medonha, como se elas fossem
palitos. Conan o observava cautelosamente com o canto do olho e, quando Valéria
acreditou que o dragão estava prestes a se lançar novamente sobre o rochedo, o
cimério recuou e subiu a saliência com os galhos que cortara. Havia três deles
– hastes finas, com pouco mais de dois metros, porém mais finas que seu
polegar. Ele também havia cortado fios de videira resistente.
- Estes galhos
são leves demais para serem hastes de lanças, e as trepadeiras não são mais
grossas que cordões. – ele comentou, apontando para a folhagem ao redor do penhasco
– Não agüentam nosso peso... mas há força na união. É o que costumavam dizer os
renegados aquilonianos para nós, cimérios, quando adentravam as colinas para formar
um exército a fim de invadirem seu próprio país. Mas nós sempre lutamos em clãs
e tribos.
- Que diabos
isso tem a ver com essas varas? – ela indagou.
- Espere e
verá.
Juntando as
hastes num feixe compacto, ele encaixou o cabo de seu punhal entre elas, numa
das extremidades. Logo, com as trepadeiras, ele as amarrou umas às outras e, ao
completar seu trabalho, nele tinha uma lança resistente, com um cabo de mais de
2,10m de comprimento.
- De que isso
adiantará? – ela quis saber – Você disse que uma lâmina não conseguiria
penetrar as escamas dele...
- Ele não tem
escamas por todo o corpo. – Conan respondeu – Há mais de uma maneira de se
esfolar uma pantera.
Descendo até a
proximidade das folhas, ele esticou a lança para o alto e, cuidadosamente,
enfiou a lâmina numa das Maçãs de Derketa, lançando-se para um lado, a fim de
evitar as escuras gotas púrpuras que caíam da fruta perfurada. Dentro em pouco,
ele retirou a lâmina e mostrou a ela o aço azul manchado de sombrio vermelho
arroxeado.
- Não sei se
funcionará ou não. – ele disse – Há veneno suficiente nela para matar um
elefante... Bom, veremos.
Valéria estava
logo atrás dele, quando ele desceu por entre as folhas. Mantendo cautelosamente
a ponta envenenada afastada de si, ele enfiou a cabeça entre os galhos e se
dirigiu ao monstro:
- O que está
esperando aí embaixo, seu filho mal-gerado de pais incertos? – foi uma de suas
perguntas – Ponha sua cabeça feia para fora outra vez, seu brutamontes de pescoço
longo... ou você quer que eu desça até aí e arranque essa sua espinha ilegítima
com um chute?
Houve mais
disso – algumas palavras numa eloqüência que fez Valéria arregalar os olhos,
apesar de sua educação profana entre os navegantes. E surtiu efeito no monstro.
Assim como o latido incessante de um cão incomoda e aborrece animais de
naturezas mais silenciosas, a voz clamorosa de um homem desperta medo no
coração de algumas bestas e fúria insana em outras. Subitamente e com uma
rapidez assustadora, a fera mastodôntica se ergueu sobre as maciças pernas
traseiras, e esticou o pescoço e corpo num esforço furioso para alcançar aquele
pigmeu que vociferava, cujo clamor estava perturbando o silêncio primitivo de
seus antigos domínios.
Mas Conan
havia calculado a distância com precisão. A um metro e meio abaixo dele, a
enorme cabeça se espatifava terrível, mas inutilmente, entre as folhas. E,
quando a boca monstruosa se escancarou como a de uma enorme serpente, Conan
enfiou sua lança no canto vermelho da articulação da mandíbula. Ele atacou com
toda a força de ambos os braços, enfiando a longa lâmina do punhal, até o cabo,
em carne, tendões e ossos.
Instantaneamente,
as mandíbulas se fecharam de forma convulsiva, cortando a lança tripla e quase
derrubando Conan de seu abrigo. Ele teria caído, se não fosse a jovem atrás
dele, a qual lhe agarrou desesperadamente o cinto da espada. Ele se agarrou a
uma projeção rochosa e a agradeceu com um sorriso largo.
Lá embaixo, o
monstro se estremecia como um cão com pimenta nos olhos. Ele sacudia a cabeça
de um lado a outro, passava a pata nela e escancarava repetidamente e ao máximo
a boca. Dentro em pouco, ele pôs uma enorme pata dianteira no toco da lança, e
conseguiu arrancar a lâmina. Então, ergueu bruscamente a cabeça, as mandíbulas
bem abertas e esguichando sangue, e levantou o olhar para o penhasco, com fúria
tão concentrada e inteligente que Valéria tremeu e puxou sua espada. As
escamas, ao longo de suas costas e flancos, mudaram do marrom enferrujado para
um sombrio vermelho sinistro. E o mais terrível: o monstro quebrou o silêncio.
Os sons que saíram de suas mandíbulas escorrendo sangue não soaram como nada
que pudesse ser emitido por uma criação terrena.
Com rugidos
ásperos e rangentes, o dragão se lançou contra o penhasco, que era a fortaleza
de seus inimigos. Várias vezes, sua cabeça enorme se esticava para cima, através
dos galhos, chocando-se apenas contra o ar. Ele lançou todo o seu peso contra o
rochedo, até este vibrar da base ao topo. E, se erguendo, ele o agarrou com as
patas dianteiras, como um homem, e tentou arrancá-lo pela base, como se fosse
uma árvore.
Esta exibição
de fúria primordial gelou o sangue nas veias de Valéria, mas Conan estava
próximo demais do primitivo para sentir outra coisa, senão um intenso
interesse. Para o bárbaro, não havia tal abismo entre ele próprio, outros
homens e os animais, como existia na concepção de Valéria. O monstro sob eles,
para Conan, era meramente uma forma de vida diferente dele principalmente na
forma física. Ele atribuía ao animal características similares às dele mesmo, e
viu em sua fúria uma duplicata da própria fúria; e, em seus urros e rugidos,
meros equivalentes reptilianos às pragas que ele havia lançado sobre a
criatura. Sentindo um parentesco com todas as coisas selvagens, até mesmo
dragões, era impossível para ele experimentar o horror nauseado que atacava Valéria
diante da visão da ferocidade do brutamontes.
Ele ficou
sentado, olhando tranqüilamente as várias mudanças que aconteciam na voz e
ações da coisa.
- O veneno
está surtindo efeito. – ele disse convictamente.
- Não acredito
nisso. – Para Valéria parecia absurdo supor que qualquer coisa, por mais letal
que fosse, pudesse ter qualquer efeito sobre aquela montanha de músculos e
fúria.
- Há dor na
voz dele. – declarou Conan – Primeiro, ele estava apenas furioso pelo ferimento
em sua mandíbula. Agora ele sente a mordida do veneno. Veja! Está cambaleando.
Ficará cego dentro de alguns minutos. Está vendo?
De fato, o
dragão cambaleava, girava e desmoronava sobre os arbustos com um estrondo.
- Ele está
fugindo? – Valéria perguntou ansiosa.
- Está se
dirigindo ao charco! – Conan se ergueu de um pulo, pronto para agir – O veneno
o deixa com sede. Vamos! Ele ficará cego em poucos momentos, mas pode farejar o
caminho dele de volta ao pé do penhasco e, se nosso cheiro ainda estiver lá,
ele ficará sentado até morrermos. E outros da espécie dele podem vir, atraídos
por seus gritos. Vamos!
- Vamos
descer? – Valéria estava horrorizada.
- Claro! Vamos
para a cidade! Eles podem cortar nossas cabeças lá, mas é nossa única chance.
Talvez tenhamos que correr entre mais mil dragões no caminho, mas ficar aqui é
morte certa. Se esperarmos até ele morrer, podemos ter que lidar com mais uma
dúzia. Siga-me, depressa!
Ele desceu a
rampa tão rapidamente quanto um macaco, parando apenas para ajudar sua
companheira menos ágil, a qual, até ver o cimério escalar, acreditava ser igual
a qualquer homem no aparelhar de um navio, ou na escalada de um penhasco
perpendicular.
Desceram para
dentro da escuridão sob os galhos e deslizaram silenciosamente para o chão,
embora Valéria achasse que o bater de seu coração pudesse certamente ser ouvido
de longe. Um ruidoso gorgolejar e lamber, além do denso matagal, indicava que o
dragão estava bebendo no charco.
- Assim que
encher a barriga, ele voltará. – murmurou Conan – Pode levar horas para que o
veneno o mate... se matá-lo.
Em algum lugar
da floresta, o sol se punha no horizonte. A floresta era um crepúsculo nebuloso
de sombras negras e vistas obscuras. Conan agarrou o pulso de Valéria e
deslizou para longe do pé do penhasco. Ele fazia menos barulho que uma brisa
soprando entre os troncos das árvores, mas Valéria tinha a impressão de que
suas botas macias denunciavam sua fuga por toda a floresta.
- Não creio
que ele possa seguir rastros. – murmurou Conan – Mas, se um vento soprar nosso
cheiro até ele, ele pode nos farejar.
- Mitra queira
que o vento não sopre! – Valéria cochichou.
O rosto dela
era um pálido oval na escuridão. Ela agarrou a espada com a mão livre, mas o
contato com o cabo revestido de couro cru só lhe inspirava a sensação de estar
indefesa.
Ainda estavam
a alguma distância do limite da floresta, quando ouviram um estalar e quebrar
atrás deles. Valéria mordeu o lábio para não gritar.
- Ele está em
nosso rastro! – ela sussurrou ferozmente.
Conan sacudiu
a cabeça:
- Ele não nos
farejou no rochedo; está girando às cegas pela floresta, para tentar nos
farejar. Vamos! Nossa única esperança agora é a cidade! Ele pode derrubar qualquer
árvore onde subirmos. Só espero que o vento não sopre...
Continuaram
avançando furtivamente, até as árvores começarem a rarear adiante deles. Atrás,
a floresta era um oceano impenetrável de sombras. O sinistro crepitar ainda
soava atrás deles, enquanto o dragão girava em seu curso errático.
- Lá está a
planície. – murmurou Valéria – Mais um pouco, e nós...
- Crom! –
praguejou Conan.
- Mitra! –
sussurrou Valéria.
Um vento
começava a soprar do sul.
Soprava sobre
eles, diretamente para dentro da floresta atrás. Instantaneamente, um horrível
urro sacudiu a floresta. O cego estalar e quebrar do matagal se transformou num
contínuo despedaçar, enquanto o dragão chegava como um furacão diretamente ao
ponto do qual o cheiro de seus inimigos foi soprado.
- Corra! –
rosnou Conan, com os olhos resplandecendo como os de um lobo numa armadilha – É
tudo o que podemos fazer!
Botas de
marinheiro não são feitas para correr, e a vida de um pirata não treina ninguém
para corrida. Depois de uns noventa metros, Valéria estava ofegando e cambaleando;
e, atrás deles, o despedaçar dava lugar a um trovejar ondulante, quando o
monstro irrompeu do matagal e adentrou o terreno mais aberto.
O braço
férreo, ao redor da cintura da mulher, meio a levantou; os pés dela mal tocavam
o solo, e ela foi carregada com uma velocidade que jamais alcançaria. Se ele pudesse
ficar longe do animal um pouco, talvez aquele vento traidor mudasse de direção
– mas o vento prosseguia, e uma rápida olhada sobre o ombro mostrou a Conan que
o monstro estava quase sobre eles, vindo como uma galé de guerra à frente de um
furacão. Ele empurrou Valéria para longe, com tal força que a deixou
cambaleando por mais de três metros, até cair contorcida ao pé da árvore mais
próxima, e o cimério se voltou na direção do titã trovejante.
Convencido de
que a própria morte estava sobre ele, Conan agiu de acordo com seu instinto, e
se lançou com tudo em direção ao rosto medonho; ele saltou, talhando como um
gato selvagem, e sentiu sua espada afundar nas escamas que cobriam o enorme focinho
– e então, um terrível impacto o fez rolar por 15 metros, a toda velocidade e
semi-inconsciente.
Como o cimério
voltou a ficar de pé, nem mesmo ele sabia. Mas o único pensamento que lhe
ocupava a mente era o da mulher caída, aturdida e indefesa, quase no caminho
daquele demônio, e antes que o fôlego lhe voltasse à garganta, já estava ao
lado dela, de espada na mão.
Ela ficou onde
ele a havia lançado, mas se esforçava para sentar-se. Nem as presas
dilacerantes, nem as patas esmagadoras a haviam tocado. Fora um ombro ou uma
pata dianteira que havia derrubado Conan, e o monstro cego continuou avançando,
esquecido das vítimas cujo cheiro ele seguira, na súbita agonia de seus
estertores. Ele trovejou precipitadamente em seu curso, até sua cabeça baixa se
espatifar numa árvore gigantesca em seu caminho. O impacto arrancou a árvore
pela raiz e deve ter salpicado os miolos de seu crânio disforme. Árvore e
monstro caíram juntos, e os humanos pasmos viram os galhos e folhas serem
sacudidos pelas convulsões da criatura à qual cobriam – e então, o silêncio.
Conan pôs
Valéria de pé e correram juntos. Poucos momentos depois, eles saíam no
crepúsculo quieto da planície sem árvores.
Conan parou
por um momento e olhou para trás, em direção à faixa de ébano atrás deles. Nenhuma
folha se agitava, e nenhum pássaro chilrava. Estava em silêncio, como devia
estar antes que o Homem fosse criado.
- Vamos. –
murmurou Conan, pegando a mão da companheira – Agora é arriscado. Se mais
dragões saírem da floresta atrás de nós...
Ele não
precisou terminar a frase.
A cidade
parecia mais distante na planície, do que parecia no penhasco. O coração de
Valéria martelava até ela ter a sensação de que ele iria sufocá-la. A cada
passo, ela tinha a impressão de que ouviria o quebrar de arbustos e veria outro
pesadelo colossal atacá-los. Mas nada perturbava o silêncio dos matagais.
Após a
primeira milha entre eles e a floresta, Valéria respirou mais aliviada. Sua alegre
auto-confiança começava a reaparecer. O sol havia se posto, e a escuridão caía
sobre a planície, levemente iluminada pelas estrelas, as quais faziam os cactos
parecerem fantasmas raquíticos.
- Nenhum gado,
nenhum campo arado. – murmurou Conan – Como é que esse povo vive?
- Talvez o
gado fique no curral à noite – sugeriu Valéria –, e os campos e pastos estejam
do outro lado da cidade.
- Talvez. –
ele grunhiu – Mas não vi nenhum, do alto do penhasco.
A lua apareceu
atrás da cidade, enegrecendo-a com seu brilho amarelo. Valéria se arrepiou.
Negra contra a lua, a estranha cidade tinha um aspecto sombrio e sinistro.
Talvez Conan
tenha tido uma sensação semelhante, pois ele parou, olhou ao redor de si e
grunhiu:
- Vamos parar
aqui. É inútil chegar aos portões deles à noite. Provavelmente não nos
deixariam entrar. Além disso, precisamos descansar, e não sabemos como eles vão
nos receber. Algumas horas de sono vão nos deixar em forma, para lutar ou
fugir.
Ele foi à
frente, até um canteiro de cactos que crescia num círculo – um fenômeno comum
no deserto meridional. Com sua espada, ele abriu um caminho e gesticulou para
que Valéria entrasse.
- De qualquer
forma, aqui estaremos livres de cobras.
Ela olhou
temerosamente para trás, em direção à linha negra que indicava a floresta, a
menos de dez quilômetros.
- E se um
dragão sair da mata?
- Ficaremos de
vigia. – ele respondeu, embora não sugerisse o que deveriam fazer numa situação
dessas. Ele olhava fixamente para a cidade, a poucas milhas de distância.
Nenhuma luz brilhava nos pináculos ou nas torres. Uma grande massa negra de
mistério, ela se erguia enigmaticamente contra o céu iluminado pela lua.
- Deite e
durma. Farei o primeiro turno de vigia.
Ela hesitou,
olhando-o indecisa, mas ele se sentou de pernas cruzadas na pequena clareira,
com o rosto voltado para a planície, a espada sobre os joelhos e as costas voltadas
para ela. Sem mais comentários, ela se deitou dentro do círculo espinhoso.
- Acorde-me
quando a lua estiver no zênite. – ela disse.
Ele não
respondeu, nem olhou para ela. A última impressão dela, antes de cair no sono,
foi a de sua figura musculosa, imóvel como uma estátua esculpida em bronze,
delineada contra as estrelas.
2) Pelo Brilho das Jóias de Fogo
Valéria
acordou com um sobressalto, ao perceber que uma aurora cinza deslizava sobre a
planície.
Ela se sentou,
esfregando os olhos. Conan se acocorava próximo aos cactos, tirando-lhes os
frutos grandes e arrancando habilmente os espinhos.
- Você não me
acordou. – ela o acusou – Deixou-me dormir a noite inteira!
- Você estava
cansada. – ele respondeu – Seu traseiro devia estar dolorido também, após
aquela longa cavalgada. Vocês, piratas, não estão acostumados a cavalgar.
- E quanto a
você? – ela replicou.
- Fui um kozak antes de ser pirata. – ele
respondeu – Eles vivem a cavalo. Meu sono é leve, como o de uma pantera que
segue a trilha de um cervo. Meus ouvidos se mantêm alerta enquanto meus olhos
dormem.
E, de fato, o
gigantesco bárbaro parecia tão revigorado quanto se tivesse dormido a noite
inteira numa cama de ouro. Tendo retirado os espinhos, e tirado a casca dura,
ele entregou à jovem um pedaço grande e suculento de cacto.
- Limpe os
dentes neste fruto. É comida e bebida para um homem do deserto. Já fui um chefe
dos zuagires: homens do deserto, que vivem do saque a caravanas.
- Há alguma
coisa que você nunca foi? – indagou a garota, meio zombeteira e meio fascinada.
- Nunca fui
rei de um reino hiboriano. – ele sorriu largamente, mastigando um enorme pedaço
de cacto – Mas já sonhei até mesmo com isso. Talvez algum dia eu também seja.
Por que não?
Ela sacudiu a
cabeça em espanto à calma audácia dele, e se pôs a devorar seu cacto. Não lhe
era desagradável ao paladar, e seu suco era refrescante e saciava a sede. Terminando
sua refeição, Conan limpou as mãos na areia, penteou a espessa cabeleira negra
com os dedos, ajustou o cinto da espada e disse:
- Bem, podemos
ir. Se o povo daquela cidade pretende cortar nossas gargantas, que o façam
agora, antes que o dia fique quente.
Seu humor
sombrio era inconsciente, mas Valéria achava que poderia ser profético. Ela
também ajustou o cinto da espada, enquanto se levantava. Seus terrores da noite
haviam passado. Os dragões urrantes da distante floresta pareciam um sonho
longínquo. Havia um ar arrogante em seu caminhar, enquanto ela se movia ao lado
do cimério. Quaisquer que fossem os perigos adiante, seus inimigos seriam
homens. E Valéria da Irmandade Vermelha nunca tinha visto o rosto de um homem
ao qual temesse.
Conan desceu o
olhar para ela, enquanto ela caminhava a passos largos ao lado dele, com um
passo gingante que se igualava ao dele.
- Você anda
mais como um montanhês do que como um marinheiro. – ele disse – Você deve ser
aquiloniana. Os sóis de Darfar nunca bronzearam sua pele branca. Muitas
princesas teriam inveja de você.
- Sou da
Aquilônia. – ela respondeu. Seus elogios não a irritavam mais. Sua evidente
admiração a agradava. Pois outro homem que ficasse de vigia enquanto ela
dormia, a teria enfurecido; ela sempre teve ressentimentos ferozes por qualquer
homem que tentasse protegê-la por causa de seu sexo. Mas ela sentiu um prazer
secreto no fato daquele homem ter feito isso. E ele não tirou vantagem do medo
dela, nem da fraqueza resultante disso. Enfim, ela refletiu, seu companheiro
não era um homem comum.
O sol se
erguia atrás da cidade, pintando as torres de um vermelho sinistro.
- Negra na
noite passada, contra a lua. – grunhiu Conan, seus olhos se nublando com a
superstição abismal dos bárbaros – Vermelha como sangue contra o sol, nesta
alvorada. Não gosto desta cidade.
Mas eles prosseguiram
e, enquanto avançavam, Conan chamou a atenção para o fato de que nenhuma
estrada corria do norte até a cidade.
- Nenhum gado
andou pela planície deste lado da cidade. – ele disse – Nenhum arado toca na
terra há anos; talvez séculos. Mas veja: esta planície já foi cultivada.
Valéria viu os
antigos fossos de irrigação que ele indicou, cobertos de ervas daninhas e
cactos. Ela franziu a testa, perplexa, enquanto seus olhos varriam a planície
que se estendia por todos os lados da cidade, até o limite da floresta, a qual
formava um enorme círculo obscuro. A visão não ia além daquele círculo.
Ela olhou
inquieta para a cidade. Não reluziam elmos nem pontas de lanças nas ameias, não
soavam trombetas, nenhuma sentinela pedia senha desde as torres. Um silêncio
tão absoluto quanto o da floresta pairava sobre os muros e minaretes.
O sol estava
alto no horizonte leste, quando eles pararam diante do grande portão no muro
norte, na sombra da trincheira alta. A ferrugem pintava os suportes de ferro do
enorme portal de bronze. Teias de aranha brilhavam espessas nas dobradiças,
portadas e trancas.
- Está fechada
há anos! – exclamou Valéria.
- Uma cidade
morta. – grunhiu Conan – Por isso que os fossos estavam quebrados, e a planície
intocada.
- Mas quem a
construiu? Quem morou aqui? Para onde foram? Por que a abandonaram?
- Quem sabe?
Talvez um clã exilado de stígios a tenha construído. Talvez não. A arquitetura
não parece stígia. Talvez o povo tenha sido expulso por inimigos, ou exterminado
por alguma praga.
- Nesse caso,
seus tesouros podem ainda estar lá dentro, acumulando poeira e teias de aranha.
– sugeriu Valéria, os instintos predatórios de sua profissão acordando nela e
incitados, também, por curiosidade feminina – Conseguiremos abrir o portão?
Vamos entrar e explorar um pouco.
Conan olhou
incerto para o portão maciço, mas pôs seu poderoso ombro contra ele e empurrou
com toda a força de suas panturrilhas e coxas. Com um guincho dissonante de
dobradiças enferrujadas, o portão se moveu pesadamente para dentro, e Conan se
endireitou e puxou a espada. Valéria olhou por cima do ombro dele, e lançou uma
exclamação de surpresa.
Eles não
olhavam para uma rua aberta ou um pátio interno, como era de se esperar. O
portão aberto, ou porta, dava diretamente para dentro de um longo e largo
salão, o qual se perdia de vista. Era de proporções grandiosas, e o chão era
feito de uma estranha pedra vermelha, cortada em ladrilhos quadrados, que
pareciam brilhar como se refletissem chamas. As paredes eram de um material
verde e reluzente.
- É jade, ou
eu sou um shemita! – praguejou Conan.
- Não em
tamanha quantidade! – protestou Valéria.
- Já saqueei
bastantes caravanas de Khitai para saber do que estou falando. – ele sustentou
– É jade!
O teto
abobadado era de lápis-lazúli, adornado por cachos de grandes pedras verdes,
que brilhavam com um resplendor venenoso.
- Pedras de
fogo verde. – resmungou Conan – É assim que o povo de Punt as chama. Dizem que
elas são os olhos petrificados daquelas cobras, às quais os antigos chamam de
Serpentes Douradas. Brilham como os olhos de um gato no escuro. À noite, este salão
é iluminado por elas, mas deve ser uma iluminação infernalmente estranha. Vamos
dar uma olhada. Talvez encontremos algum depósito escondido de jóias.
- Feche a
porta. – aconselhou Valéria – Eu detestaria ter que correr de um dragão por
este salão.
Conan abriu um
sorriso largo e respondeu:
- Não creio
que os dragões deixem a floresta.
Mas ele
aquiesceu e fechou a tranca quebrada por dentro.
- Acho que
ouvi alguma coisa estalar quando arrombei a porta. Esta tranca se quebrou há
pouco tempo. Está quase toda corroída pela ferrugem. Se o povo fugiu, por que
aqui foi trancado por dentro?
- Eles, sem
dúvida, saíram por outra porta. – sugeriu Valéria.
Ele se
perguntava quantos séculos teriam se passado desde que a luz do dia havia
penetrado naquele grande salão, através da porta aberta. De alguma forma, a luz
do sol entrava no salão, e eles logo viram a fonte. Lá em cima, no teto abobadado,
havia clarabóias em aberturas semelhantes a fendas – placas translúcidas de
alguma substância cristalina. Nas manchas escuras de sombras entre elas, as
jóias verdes brilhavam como os olhos de um gato zangado. Sob seus pés, o chão
liso ardia com tons cambiantes e cores flamejantes. Era como pisar no chão do
Inferno, com estrelas malignas piscando no alto.
Três galerias
balaustradas corriam de ambos os lados, uma sobre a outra.
- Uma
construção de quatro andares – grunhiu Conan –, e este salão se estende até o
teto. É tão longo quanto uma rua. Pareço ver uma porta na outra extremidade.
Valéria
encolheu os ombros brancos:
- Seus olhos
são melhores que os meus, então, embora os piratas considerem os meus afiados.
Entraram ao
acaso numa porta aberta, e atravessaram uma série de câmaras vazias,
pavimentadas como o salão e com paredes com o mesmo verde-jade, ou de mármore
ou marfim ou calcedônia, adornadas com frisos de bronze, ouro ou prata. Nos
tetos, as gemas de fogo verde estavam incrustadas, e sua luz era tão
fantasmagórica e ilusória quanto Conan havia previsto. Sob o brilho
enfeitiçado, os intrusos se moviam como fantasmas.
Algumas das
câmaras não tinham esta iluminação, e suas portadas se mostravam negras como a
boca do Poço. Conan e Valéria as evitavam, mantendo-se sempre nas câmaras
iluminadas.
Teias de
aranha pendiam nos cantos, mas no chão não havia acumulação perceptível de
poeira, ou nas mesas e assentos de mármore, jade ou cornalina que ocupavam as câmaras.
Aqui e ali, havia carpetes de seda khitaiana, a qual é praticamente indestrutível.
Em nenhum lugar eles encontraram janelas, ou portas se abrindo para ruas ou
pátios. Cada porta se abria simplesmente para outra câmara ou salão.
- Por que
nunca chegamos até uma rua? – murmurou Valéria – Este palácio, ou o que quer
que seja, deve ser tão grande quanto o serralho do rei de Turan.
- Talvez não
tenham morrido vítimas de praga. – disse Conan, meditando sobre o mistério da
cidade vazia – Do contrário, acharíamos esqueletos. Talvez tenha ficado
mal-assombrada, e todo mundo tenha ido embora. Talvez...
- Talvez, o
inferno! – Valéria interrompeu rudemente – Nunca saberemos. Olhe para estes
frisos. Eles retratam homens. A qual raça pertencem?
Conan os
examinou e sacudiu a cabeça.
- Nunca vi
pessoas exatamente iguais a estas. Mas há toques orientais nelas... Vendhya,
talvez, ou Kosala.
- Você já foi
rei em Kosala? – ela perguntou, disfarçando sua aguda curiosidade com escárnio.
- Não. Mas já
fui um chefe-de-guerra dos afghulis,
que vivem nos Montes Himelianos. Este povo parece com os kosalanos. Mas por que
kosalanos construiriam uma cidade tão distante a oeste?
As figuras
retratadas eram de homens e mulheres esguios, de pele cor-de-oliva, com feições
exóticas e finamente esculpidas. Usavam robes tênues, e muitos ornamentos
delicados e com jóias, e eram retratados quase sempre em atitudes festivas, de
dança ou de amor.
- Orientais,
sem dúvida – grunhiu Conan –, mas de onde, eu não sei. Devem ter vivido uma
vida asquerosamente pacífica, pois do contrário, eles retratariam cenas de guerras
e lutas. Vamos subir essa escada.
Era uma
espiral de marfim, que serpenteava para o alto desde a câmara onde eles se
encontravam. Subiram três lances e chegaram até uma enorme câmara no quarto
andar, a qual parecia ser a mais alta da construção. Clarabóias no teto
iluminavam a sala, na qual a luz das gemas de fogo piscava palidamente. Olhando
pelas portas, eles viram, exceto por um lado, uma série de câmaras iluminadas
semelhantes. Esta outra porta se abria para uma galeria balaustrada, a qual
pendia sobre um salão bem menor do que aquele que haviam explorado há pouco no
andar de baixo.
- Inferno! –
Valéria se sentou enojada num banco de jade – O povo que abandonou esta cidade
deve ter levado todos os seus tesouros consigo. Estou cansada de perambular ao
acaso por estas salas vazias.
- Todas estas
câmaras superiores parecem estar iluminadas. – disse Conan – Gostaria de
podermos achar uma janela que desse vista para a cidade. Vamos dar uma olhada
além daquela porta ali.
- Vá você. –
recomendou Valéria – Vou ficar sentada e descansar meus pés.
Conan
desapareceu pela porta oposta àquela que se abria para a galeria, e Valéria se
curvou para trás, com as mãos entrelaçadas na nuca, e esticou as pernas
calçadas para a frente. Essas salas e salões silenciosos, com seus brilhantes
cachos verdes de ornamentos e ardentes chãos vermelhos, estavam começando a
deprimi-la. Ela desejava que encontrassem um caminho para fora daquele
labirinto, dentro do qual haviam perambulado, e sair numa rua. Ela se
perguntava quais pés furtivos e sombrios haviam deslizado por aqueles assoalhos
flamejantes em séculos passados, e quantos atos de crueldade e mistério aquelas
gemas do teto haviam iluminado.
Foi um pequeno
ruído que a tirou de suas reflexões. Ela já estava de pé, segurando a espada,
antes de perceber o que a havia alertado. Conan não retornara, e ela sabia que
não era ele a quem ouvira.
O ruído vinha
de algum lugar atrás da porta que se abria para a galeria. Silenciosamente em
suas suaves botas de couro, ela deslizou para dentro dela, moveu-se cautelosamente
pela balaustrada e espiou para baixo entre os maciços balaústres.
Um homem deslizava furtivamente ao longo do
salão.
A visão de um
ser humano, nesta cidade supostamente abandonada, era um choque surpreendente.
Agachando-se atrás dos balaústres de pedra, com todos os nervos formigando,
Valéria fitava a figura furtiva.
O homem em
nada lembrava as figuras retratadas nos frisos. Ele era de altura pouco mais
que mediana e bem escuro, apesar de não ser negróide. Vestia apenas uma pequena
tanga de seda, que só lhe cobria parcialmente os quadris musculosos, e um cinto
de couro da largura de uma mão ao redor da cintura esguia. Seus longos cabelos
negros pendiam em fios lisos e escorridos ao redor dos ombros, dando a ele uma
aparência selvagem. Era magro, mas nós e feixes musculares se sobressaíam em
seus braços e pernas, sem aquela camada de gordura que dá uma simetria
agradável de contorno. Ele era constituído com uma economia quase repugnante.
Entretanto,
mais que seu aspecto físico, era sua atitude que impressionava a mulher a
observá-lo. Ele avançava furtivamente, curvado em atitude meio servil, sua
cabeça virando de um lado para outro. Agarrava uma lâmina de ponta larga na mão
direita, e ela viu a mesma tremer com a intensidade da emoção que se apossava
dele. Ele estava com medo, tremendo por causa de algum terror extremo. Quando
ele virou a cabeça, ela percebeu o brilho de olhos selvagens entre as mechas
escorridas dos cabelos negros.
Ele não a viu.
Deslizou nas pontas dos pés pelo salão e desapareceu numa porta aberta. Um
momento depois, ela ouviu um grito abafado e então o silêncio novamente.
Consumida pela
curiosidade, Valéria deslizou ao longo da balaustrada até chegar a uma porta
acima daquela pela qual o homem havia passado. Ela se abria para outra galeria,
que dava a volta em torno de uma câmara ampla.
Esta câmara
estava no terceiro andar, e seu teto não era tão alto quanto o salão. Era
iluminada somente pelas pedras de fogo, e seu sobrenatural brilho verde deixava
nas sombras os espaços sob as balaustradas.
Os olhos de
Valéria se arregalaram. O homem que ela vira estava imóvel na câmara.
Ele estava de
bruços sobre um carpete vermelho-escuro no meio da sala. Seu corpo estava
flácido e seus braços bem abertos. Sua espada curva jazia ao seu lado.
Ela se
perguntou por que ele estava tão imóvel. Então, seus olhos se estreitaram ao
encarar o carpete no qual ele estava deitado. Sob ele e acima dele, o tecido
apresentava uma cor ligeiramente diferente – um vermelho mais intenso e
brilhante.
Tremendo
levemente, ela se escondeu atrás da balaustrada, com a intenção de examinar as
sombras sob a galeria. Elas não revelavam segredo algum.
Súbito, outra
figura adentrou aquele drama sombrio. Era um homem semelhante ao primeiro, e
entrou por uma porta oposta à que dava no salão.
Os olhos dele
resplandeceram ao verem o homem no chão, e ele falou algo que soou como
“Chicmec!”. O outro não se mexeu.
O homem
caminhou rapidamente pelo chão, curvou-se, agarrou o ombro do homem caído e o
virou para cima. Um grito abafado lhe escapou quando a cabeça do outro pendeu
mole para trás, mostrando uma garganta que tinha sido cortada de orelha a
orelha.
O homem deixou
o cadáver cair para trás sobre o carpete ensangüentado, e se ergueu de um pulo,
tremendo como uma folha soprada pelo vento. Seu rosto era uma máscara lívida de
medo. Mas, quando estava com um dos joelhos dobrado para fugir, ele parou
subitamente, e ficou tão imóvel quanto uma imagem, mirando a câmara com olhos
dilatados.
Nas sombras
sob a balaustrada, uma luz fantasmagórica começou a brilhar e crescer; uma luz
que não fazia parte do brilho das jóias de fogo verde. Valéria sentiu os
cabelos se arrepiarem ao vê-la; pois, obscuramente visível no brilho
palpitante, pairava uma caveira humana, e era desta caveira – humana, mas
assustadoramente disforme – que a luz espectral parecia ser irradiada. Ela
pairava ali como uma cabeça sem corpo, invocada na noite e nas sombras, ficando
cada vez mais distinta – humana, e ao mesmo tempo não-humana, como ela entendia
a humanidade.
O homem ficou
imóvel, uma encarnação de horror paralisado, olhando fixamente para a aparição.
A coisa se afastou da parede, e uma sombra grotesca se moveu com ela.
Lentamente, a sombra ficou visível como uma figura humana, cujo tronco e
membros nus brilhavam brancamente com a cor de ossos alvejados. A caveira lisa
sobre seus ombros sorria cegamente, em meio à sua auréola profana, e o homem à
frente desta parecia incapaz de tirar seus olhos dela. Permanecia imóvel, sua
espada pendendo dos dedos sem energia, e em seu rosto a expressão de um homem
preso pela habilidade de um hipnotizador.
Valéria
percebeu que não era somente o medo que o paralisava. Alguma qualidade infernal
daquele brilho palpitante lhe havia roubado o poder de pensar e agir. Ela mesma,
em segurança acima do cenário, sentiu o súbito impacto de uma emanação sem nome
que era um perigo à sanidade.
O horror
avançou em direção à sua vítima e esta finalmente se moveu, mas apenas para
deixar sua espada cair e se ajoelhar, cobrindo os olhos com as mãos. Silenciosamente,
ele aguardou o golpe da lâmina que agora brilhava na mão da aparição, enquanto
esta se erguia acima dele como a Morte triunfando sobre a humanidade.
Valéria agiu
de acordo com o primeiro impulso de sua natureza indócil. Movendo-se como um
tigre, ela saltou a balaustrada e aterrissou no chão atrás da figura terrível.
Esta girou ao ouvir o baque surdo das botas macias no chão, mas enquanto ela
virava, a lâmina afiada foi brandida e uma feroz exultação tomou conta de
Valéria, quando ela sentiu o gume de sua lâmina cortar carne sólida e ossos
mortais.
A aparição
gritou gorgolejando e caiu, com ombro, externo e coluna cortados, e ao cair, a
caveira flamejante rolou, revelando uma massa de cabelos lisos e escorridos, e
um rosto escuro, retorcido pelas convulsões de morte. Sob a horrível máscara,
havia um ser humano, similar ao que estava ajoelhado indolentemente no chão.
Este último
ergueu o olhar ao ouvir o som do golpe e do grito, e agora ele fitava, com
pasmo nos olhos selvagens, a mulher de pele branca que se erguia acima do cadáver,
com uma espada gotejante na mão.
Ele se ergueu
cambaleante, gaguejando alto, como se aquela visão lhe houvesse quase
desmontado a sanidade. Ela ficou surpresa ao perceber que o entendia. Ele
estava tagarelando na língua Stígia, embora num dialeto que não lhe era
familiar.
- Quem é você?
De onde veio? O que faz em Xuchotl? – Então, continuando apressadamente, sem
esperar pela resposta dela: – Mas você é uma amiga... deusa ou demônio, não faz
diferença! Você matou a Caveira Flamejante! Era apenas um homem que havia sob
ela, afinal! Nós achávamos que fosse um demônio que eles haviam conjurado das catacumbas! Ouça!
Ele parou de
repente com seus desvarios e se enrijeceu, aguçando os ouvidos com intensidade
dolorosa. A garota nada ouviu.
- Temos que
nos apressar! – ele sussurrou – Eles
estão a oeste do Grande Salão! Podem estar nos cercando! Eles podem estar, agora mesmo, prestes a nos atacar!
Ele agarrou o
pulso dela, num aperto convulsivo, do qual ela achou difícil se livrar.
- O que quer
dizer com “eles”? – ela indagou.
Ele a encarou
sem entender por um instante, como se achasse difícil entender a ignorância
dela.
- Eles? – ele
gaguejou imprecisamente – Ora... o povo de Xotalanc! O clã do homem que você
matou. Aqueles que moram próximos à porta leste.
- Está
querendo dizer que esta cidade é habitada? – ela exclamou.
- Sim! Sim! –
Ele se retorcia na impaciência da apreensão – Vamos embora! Vamos logo! Devemos
voltar a Tecuhltli!
- Onde fica
isso? – ela indagou.
- O bairro da
porta ocidental! – Ele tomou novamente o pulso dela e a estava novamente
puxando em direção à porta pela qual entrara. Grandes gotas de suor lhe pingavam
da testa escura, e seus olhos ardiam de terror.
- Espere um
minuto! – ela rosnou, soltando-se da mão dele – Tire suas mãos de mim, ou eu
parto seu crânio. Que história é essa? Quem é você? Para onde quer me levar?
Ele se
controlou firmemente, olhando para todos os lados, e começou a explicar tão rapidamente
que suas palavras tropeçavam umas nas outras.
- Meu nome é Techotl.
Sou de Tecuhltli. Eu e este homem, que jaz com a garganta cortada, viemos até
os Salões do Silêncio, tentar emboscar alguns dos xotalancas. Mas fomos
separados, e eu retornei aqui para encontrá-lo com a goela cortada. A Caveira
Flamejante fez isso, eu sei; e teria me matado se você não acabasse com ela.
Mas talvez não estivesse só. Outros podem estar saindo furtivamente de
Xotalanc! Os próprios deuses se assustam com o destino daqueles a quem eles
levam vivos!
Ao pensar
nisso, ele estremeceu e seu rosto escuro empalideceu. Ela sentiu inteligência
por trás desse discurso sem nexo, mas continuava sem entender.
Ela se voltou
para a caveira, a qual ainda pulsava no chão, e tentou tocá-la com a ponta da
bota, quando o homem que se chamava Techotl saltou para a frente com um grito:
- Não toque
nela! Nem sequer a olhe! Loucura e morte se escondem nela. Os feiticeiros de
Xotalanc entendem o segredo dela... eles a acharam nas catacumbas, onde jazem
os ossos dos terríveis reis que governaram Xuchotl nos séculos obscuros do passado.
Olhar para ela congela o sangue e retorce o cérebro de um homem que não entende
seus mistérios. Tocá-la causa loucura e morte.
Incerta, ela
franziu a testa para ele. Ele não era uma figura tranqüilizante, com sua
estrutura magra, cheia de feixes musculares e cachos em forma de cobras. Em
seus olhos, por trás do brilho de terror, escondia-se uma luz estranha que ela
nunca tinha visto nos olhos de um homem totalmente são. Mas ele parecia sincero
em seus protestos.
- Venha! – ele
implorou, tentando alcançar a mão dela, mas recuando ao se lembrar de seu aviso
– Você é estrangeira. Como chegou aqui, eu não sei, mas, se você fosse uma
deusa ou um demônio, vinda para ajudar Tecuhltli, saberia todas as coisas que
me perguntou. Você deve ter vindo de além da grande floresta, de onde nossos
ancestrais vieram. Mas é nossa amiga, ou não teria matado nosso inimigo. Venha
logo, antes que os xotalancas nos encontrem e matem!
Afastando o
olhar do rosto repelente e inflamado dele, ela olhou para a caveira sinistra, a
qual ardia e queimava no chão próximo ao homem morto. Era como um crânio visto
num sonho, inegavelmente humano, mas com distorções e mal-formações perturbadoras
no contorno. Em vida, o dono daquele crânio devia ter um aspecto estranho e
monstruoso. Vida? Ela parecia possuir algum tipo de vida própria. Suas
mandíbulas se escancararam para ela e se fecharam. Seu brilho ficou maior e
mais vivo, mas a impressão de pesadelo também aumentou; era um sonho; toda a
vida parecia um sonho – foi a voz urgente de Techotl que repentinamente tirou
Valéria dos golfos obscuros para os quais ela estava se deixando arrastar.
- Não olhe
para a caveira! Não olhe para a caveira! – Era um grito vindo de vácuos
incalculáveis.
Valéria se
sacudiu como um leão que balança a juba. Sua visão clareou. Techotl tagarelava:
- Em vida, ela
abrigou o cérebro medonho de um rei de magos! Ela ainda contém a vida e magia,
extraídas de espaços externos!
Com uma praga,
Valéria saltou tão agilmente quanto uma pantera, e a caveira se partiu em
pedaços flamejantes sob o giro de sua espada. Em algum lugar da sala, ou do
vazio, ou nos espaços obscuros de sua consciência, uma voz inumana gritou de
dor e fúria.
A mão de
Techotl puxava o braço dela, e ele tagarelava:
- Você a
quebrou! Você a destruiu! Nem todas as artes negras de Xotalanc podem
reconstruí-la! Vamos! Vamos depressa, agora!
- Mas não
posso ir. – ela protestou – Um amigo meu está em algum lugar por...
O brilho dos
olhos dele a fez se calar, quando ele a fitou atrás dela, com uma expressão
cada vez mais medonha. Ela girou no exato momento em que três homens entraram
correndo por portas diferentes, convergindo até o par no centro da câmara.
Pareciam com
os outros que ela já vira: os mesmos músculos nodosos se salientando em membros
magros, o mesmo escorrido cabelo preto-azulado e o mesmo brilho de loucura nos
olhos. Estavam armados e vestidos como Techotl, mas, no peito de cada um,
estava pintada uma caveira branca.
Não houve
desafios nem gritos de guerra. Como tigres loucos por sangue, os homens de
Xotalanc pularam em direção às gargantas de seus inimigos. Techotl os enfrentou
com a fúria do desespêro, esquivou-se do golpe vigoroso de uma lâmina de ponta
larga, engalfinhou-se com quem a brandiu e o levou ao chão, onde rolaram e se
atracaram num silêncio assassino.
Os outros três
convergiram até Valéria, com os olhos estranhos avermelhados como os de cães
loucos.
Ela matou o
primeiro que lhe chegou ao alcance, antes que ele pudesse dar um golpe, sua
longa lâmina partindo o crânio dele, no exato momento em que ele erguia a própria
espada para golpear. Ela deu uma estocada, ao mesmo tempo em que detinha um
giro. Seus olhos dançavam e seus lábios sorriam sem piedade. Mais uma vez, ela
era Valéria da Irmandade Vermelha, e o zunir do aço era como uma canção nupcial
em seus ouvidos.
Sua espada
dobrou uma lâmina que tentava deter a estocada, e sua ponta afundou 15
centímetros num diafragma coberto de couro. O homem arfou agonizante e caiu de
joelhos, mas seu companheiro alto investiu em silêncio feroz, despejando golpe
após golpe tão furiosamente que Valéria não teve oportunidade de rebater. Ela
recuou friamente, detendo os golpes e aguardando a chance de dar sua estocada.
Ele não conseguiria manter aquele turbilhão de golpes por muito tempo. Seu
braço ia se cansar, seu fôlego falharia; ele ia enfraquecer, hesitar, e então a
lâmina dela deslizaria facilmente para dentro do coração dele. Um olhar de
esguelha mostrou a ela Techotl pondo o joelho sobre o peito de seu antagonista,
e tentando soltar o próprio pulso para apunhalá-lo.
O suor molhava
a testa do homem que a enfrentava, e seus olhos pareciam tições em brasa.
Apesar de golpear, ele não conseguia lhe abrir a guarda, nem atingi-la. Sua
respiração ficou ofegante, seus golpes começaram a ficar erráticos. Ela recuou
para dar o golpe... e sentiu as coxas presas num aperto férreo. Havia esquecido
o homem ferido sobre o chão.
Ajoelhado e
curvado, ele a agarrava com ambos os braços firmados ao redor das pernas dela,
e seu companheiro grasnou de triunfo e começou a atacar novamente, avançando
pelo lado esquerdo dela. Valéria puxava e tentava se livrar selvagemente, mas
em vão. Ela poderia se livrar da ameaça agarrada a ela, com um golpe
descendente da espada, mas, se o fizesse, a lâmina curva do guerreiro alto lhe
partiria o crânio. O homem ferido começou a lhe morder a coxa nua, como uma
besta selvagem.
Ela esticou a
mão esquerda para baixo e lhe agarrou os cabelos longos, forçando-lhe a cabeça
para trás, de modo que seus dentes brancos e olhos agitados brilharam em direção
a ela. O xotalanca alto gritou ferozmente e investiu, golpeando com toda a
fúria de seu braço. Ela deteve o ataque desajeitadamente, e o lado de sua
própria espada lhe bateu na cabeça, de modo que ela viu fagulhas brilharem
diante dos olhos, e cambaleou. A espada se ergueu novamente, com um grito rouco
e bestial de triunfo... e então, uma forma gigante avultou atrás do xotalanca e
o aço brilhou como um relâmpago azul. O grito do guerreiro parou e ele caiu
como um boi no matadouro, seus miolos escorrendo de seu crânio que havia sido
partido até o pescoço.
- Conan! –
ofegou Valéria. Num assomo de fúria, ela se voltou para o xotalanca cujo cabelo
longo ela ainda agarrava na mão esquerda – Cão do inferno! – Sua lâmina zuniu
ao cortar o ar, num arco com uma mancha no meio, e o corpo sem cabeça
despencou, jorrando sangue. Ela lançou a cabeça decepada para o outro lado da
sala.
- O que diabos
está acontecendo aqui? – Conan pisoteou o corpo do homem ao qual matara, com a
espada larga na mão e olhando perplexo ao redor de si.
Techotl estava
se erguendo da figura contorcida do último xotalanca, sacudindo pingos
vermelhos de sua adaga. Ele sangrava de uma profunda facada na coxa. Encarou
Conan de olhos arregalados.
- O que
significa isto? – ele indagou novamente, ainda não-recuperado da surpresa
espantosa de encontrar Valéria envolvida numa batalha selvagem com aquelas
figuras fantásticas, numa cidade à qual julgou vazia e inabitada. Retornando de
uma exploração sem rumo pelas câmaras mais altas, para não encontrar Valéria na
sala onde a havia deixado, ele seguira os sons de luta que lhe explodiam nos
ouvidos assombrados.
- Cinco cães
mortos! – exclamou Techotl, com seus olhos flamejantes refletindo uma exultação
medonha – Cinco matanças! Cinco pregos vermelhos para o pilar negro! Sejamos
gratos aos deuses!
Ele ergueu as
mãos trêmulas para o alto, e então, com uma expressão demoníaca, cuspiu nos
cadáveres e pisou em seus rostos, dançando em sua alegria vampiresca. Seus
novos aliados o olhavam atônitos, e Conan perguntou, na língua Aquiloniana:
- Quem é este
louco?
Valéria
encolheu os ombros:
- Ele diz que
seu nome é Techotl. Pela sua tagarelice, consegui entender que seu povo vive
numa das extremidades desta cidade louca. Talvez seja melhor irmos com ele.
Parece amigável, e é fácil perceber que o outro clã não é.
Techotl havia
parado de dançar e estava escutando novamente, sua cabeça inclinada para o lado
como a de um cão, o triunfo lutando contra o medo em sua fisionomia repelente.
- Vamos embora
agora! – ele sussurrou – Já fizemos o bastante! Cinco cães mortos! Meu povo lhes
dará boas-vindas! Eles lhes honrarão! Mas vamos! Tecuhltli está longe. A
qualquer momento, os xotalancas podem avançar contra nós, em número grande demais
até mesmo para suas espadas.
- Vá à frente.
– grunhiu Conan.
Instantaneamente,
Techotl subiu uma escada que guiava até a galeria, fazendo sinal para que o
seguissem; e eles o fizeram, movendo-se rapidamente para se manterem próximos a
ele. Tendo alcançado a galeria, ele mergulhou numa porta que se abria para
oeste, e andou rapidamente de câmara a câmara, cada uma delas iluminada por
clarabóias de jóias de fogo verde.
- Que tipo de
lugar é este? – Valéria murmurou baixinho.
- Só Crom
sabe! – respondeu Conan – Mas já vi a raça dele antes. Vivem nas margens do
Lago Zuad, perto da fronteira de Kush. São uma espécie de stígios mestiços,
misturados com outra raça que perambulou para dentro da Stygia, vinda do leste
há alguns séculos, e foi absorvida por eles. São chamados de tlazitlanos. Mas
sou capaz de apostar que não foram eles que construíram esta cidade.
O medo de
Techotl não parecia diminuir, mesmo quando já haviam saído da câmara onde
jaziam os mortos. Ele continuou virando a cabeça sobre o ombro, para ver se
ouvia sons de perseguição, e arregalava os olhos com intensidade ardente para
cada portada que atravessavam.
Valéria estremecia
apesar de si mesma. Ela não temia homem algum. Mas o chão estranho sob seus
pés; as jóias misteriosas acima de sua cabeça, dividindo as sombras ocultas
entre elas, e a furtividade e terror de seu guia, imprimiam nela uma apreensão
sem nome, uma sensação de perigo inumano à espreita.
- Eles devem
estar entre nós e Tecuhltli! – ele sussurrou – Devemos ter cuidado para que não
estejam à nossa espera!
- Por que não
saímos deste palácio infernal, e andamos nas ruas? – indagou Valéria.
- Não há ruas
em Xuchotl. – ele respondeu – Nem praças, nem pátios. Toda a cidade foi
construída como um palácio gigante sob um único e enorme teto. O que mais se parece
com uma rua é o Grande Salão, que atravessa a cidade do portão norte ao portão
sul. As únicas portas que se abrem para o mundo externo são os portões da cidade,
pelos quais nenhum homem vivo passa há 50 anos.
- Há quanto
tempo você mora aqui? – Conan perguntou.
- Nasci no
castelo de Tecuhltli, há 35 anos. Nunca pus o pé para fora da cidade. Mas, pelo
amor dos deuses, vamos caminhar em silêncio! Estes salões podem estar cheios de
demônios à espreita. Olmec lhes contará tudo quando alcançarmos Tecuhltli.
Assim, eles
deslizaram silenciosamente, com as pedras de fogo verde piscando no alto e os
pisos flamejantes ardendo sob seus pés, e Valéria tinha a impressão de fugirem
através do Inferno, guiados por um duende de cabelos escorridos e rosto escuro.
Mas foi Conan
quem os parou, enquanto atravessavam uma câmara incomumente larga. Seus
ouvidos, criados na selva, eram ainda mais aguçados que os de Techotl, apesar
deste ter passado a vida inteira aguçando-os em guerras por esses corredores
silenciosos.
- Você acha
que alguns dos seus inimigos podem estar à nossa frente, preparando uma
armadilha?
- Eles rondam
por estas salas a qualquer hora – respondeu Techotl –, assim como nós. Os
salões e câmaras entre Tecuhltli e Xotalanc são uma região disputada e sem
dono. Nós a chamamos de os Salões do Silêncio. Por que pergunta?
- Porque há
homens nas câmaras à nossa frente. – respondeu Conan – Ouvi aço tilintar contra
pedra.
Novamente um
tremor tomou conta de Techotl, e ele apertou os dentes para não batê-los.
- Talvez sejam
seus amigos. – sugeriu Valéria.
- Não podemos
arriscar. – ele ofegou e se moveu freneticamente. Virou para o lado e deslizou
através de uma porta à esquerda, a qual guiava para dentro de uma câmara, na
qual uma escada de marfim serpenteava para baixo, escuridão adentro.
- Esta escada
leva para um corredor sem iluminação, debaixo de nós! – ele sibilou, com
grandes gotas de suor lhe saindo da testa – Eles podem estar à espreita lá
também. Pode ser tudo um truque para nos levar para dentro dela. Mas vamos
esperar que tenham armado a cilada nas salas de cima. Vamos logo!
Suavemente
como fantasmas, eles desceram pela escada e chegaram à entrada de um corredor
negro como a noite. Esconderam-se ali por um momento, escutando, e então
seguiram adiante. Enquanto isso, a pele de Valéria se arrepiou entre os ombros,
numa expectativa momentânea de uma estocada de espada na escuridão. Exceto
pelos dedos férreos de Conan lhe segurando o braço, ela não tinha qualquer
reconhecimento físico de seus companheiros. Nem faziam mais barulho que um
gato. A escuridão era absoluta. Uma das mãos estiradas tocava uma porta, e
ocasionalmente ela sentia uma porta nos dedos. O saguão parecia interminável.
Súbito, foram
alertados por um som atrás deles. A pele de Valéria se arrepiou novamente, pois
ela o reconheceu como o suave abrir de uma porta. Homens haviam entrado no
corredor atrás deles. Enquanto pensava nisso, ela se esbarrou sobre algo que
sentiu ser uma caveira humana. Esta rolou pelo chão com um barulho apavorante.
- Corra! –
ganiu Techotl, com um tom de histeria na voz, lançando-se no corredor como um
fantasma em fuga.
Novamente,
Valéria sentiu a mão de Conan a pegando e arrastando, enquanto corriam atrás de
seu guia. Conan não enxergava no escuro melhor que ela, mas possuía uma espécie
de instinto que não lhe permitia errar. Sem seu suporte e guia, ela teria caído
ou se esbarrado contra a parede. Dispararam pelo corredor, enquanto o suave
bater de pés ficava cada vez mais próximo; e subitamente Techotl arfou:
- Aqui está a
escada! Sigam-me, rápido! Oh, rápido!
A mão dele
saiu da escuridão e agarrou o pulso de Valéria, quando esta tropeçou nos
degraus. Ela se sentia meio arrastada e meio erguida escada acima, quando Conan
a soltou e se voltou para os degraus, com seus ouvidos e instintos lhe dizendo
que seus inimigos estavam bem próximos deles. E os sons não eram de pés humanos
.
Algo
serpenteava degraus acima; algo que deslizava, sussurrava e gelava o ar. Conan
golpeou para baixo com sua grande espada, e sentiu a lâmina cortar algo que parecia
ser carne e ossos, e cortar inclusive o degrau subjacente. Algo tocou seu pé, o
qual gelou como se tocado por gelo, e logo a escuridão sob ele foi perturbada
por um assustador baque e chicotear, e um homem gritou em agonia.
No momento
seguinte, Conan subia correndo a escada em espiral e atravessava uma porta que
estava aberta no alto dela.
Valéria e
Techotl já a haviam atravessado, e Techotl bateu a porta e passou uma tranca
através dela – a primeira que Conan vira desde que eles haviam deixado o portão
externo.
Então, ele deu
a volta e correu pela câmara bem-iluminada à qual haviam chegado e, ao
atravessarem a porta seguinte, Conan olhou para trás e viu a porta vergar e
tremer, sob uma enorme pressão aplicada do outro lado.
Embora Techotl
não houvesse diminuído sua velocidade, nem seu cuidado, ele agora parecia mais
confiante. Tinha o ar de ter chegado a um território familiar e com amigos.
Mas Conan lhe
renovou o terror ao perguntar:
- O que era
aquela coisa, contra a qual lutei nas escadas?
- Os homens de
Xotalanc. – respondeu Techotl, sem olhar para trás – Eu lhe disse que os salões
estavam cheios deles.
- Aquilo não
era um homem. – grunhiu Conan – Era algo que rastejava, e que era frio como
gelo ao toque. Acho que eu o cortei ao meio. Caiu sobre os homens que nos seguiam,
e deve ter matado um deles em seus estertores.
A cabeça de
Techotl se mexeu bruscamente para trás, seu rosto novamente pálido. Ele
apressou convulsivamente o passo.
- Era o
Rastejador! Um monstro que eles
tiraram das catacumbas para ajudá-los! O que ele é, não sabemos, mas
encontramos nosso povo horrendamente assassinado por ele. Em nome de Set,
depressa! Se eles o colocarem na
nossa trilha, ele nos seguirá até as próprias portas de Tecuhltli!
- Duvido. –
grunhiu Conan – Eu o cortei em cheio na escada.
- Rápido!
Rápido! – gemeu Techotl.
Correram
através de uma série de câmaras com iluminação, atravessaram um salão amplo e
pararam diante de uma gigantesca porta de bronze.
Techotl disse:
- Aqui é
Tecuhltli!
3) O Povo da Rixa
Techotl bateu
na porta de bronze com sua mão fechada, e então virou para o lado, a fim de
poder olhar para trás, ao longo do salão.
- Homens já
foram mortos diante desta porta, quando pensavam estar a salvo. – ele disse.
- Por que eles
não abrem a porta? – perguntou Conan.
- Eles estão
nos olhando através do Olho. – respondeu Techotl – Estão desorientados com a
presença de vocês. – Ele ergueu a voz e gritou: – Abra a porta, Excelan! Sou
eu, Techotl, com amigos do grande mundo além da floresta! Eles abrirão. – ele
assegurou aos aliados.
- É melhor que
façam isso depressa, então. – disse Conan sombriamente – Ouço algo rastejando pelo
chão além do salão.
Techotl
empalideceu novamente e atacou a porta com os punhos:
- Abram, seus
idiotas, abram! O Rastejador está atrás de nós!
Enquanto ele
batia e gritava, a grande porta de bronze girou silenciosamente para trás,
mostrando uma pesada corrente que impedia a entrada, e sobre a qual pontas de
lanças se eriçavam e rostos ferozes os observavam atenta e concentradamente por
um instante. Logo a corrente foi solta, e Techotl agarrou os braços dos amigos,
num frenesi nervoso, e os arrastou pela soleira. Um olhar para trás, no momento
em que a porta se fechava, mostrou a Conan o longo e obscuro corredor do salão
e, obscuramente destacada do outro lado, uma figura ofídia que se contorcia
lenta e dolorosamente, fluindo seu corpo de cores embotadas desde a porta da
câmara, sua medonha cabeça ensangüentada balançando como a de um bêbado. Então,
a porta que se fechava impediu a visão.
Dentro da
câmara quadrada na qual entraram, trancas pesadas foram atravessadas na porta,
e a corrente trancada no lugar. A porta era feita para resistir a um cerco.
Havia quatro homens de guarda, da mesma raça de cabelos lisos e pele escura de
Techotl, com lanças nas mãos e espadas nos quadris. Na parede próxima à porta,
havia um complicado mecanismo de espelhos, o qual Conan presumiu que fosse o
Olho mencionado por Techotl, arrumado de tal modo que permitia olhar para fora,
através de um pequeno painel de cristal, sem ser visto. Os quatro guardas
arregalaram pasmos os olhos para os forasteiros, mas não fizeram perguntas, nem
Techotl concedeu qualquer informação.
- Venham! –
ele urgiu aos seus novos amigos, mas Conan olhava em direção à porta.
- E quanto
àqueles sujeitos que nos seguiam? Não vão tentar arrombar a porta?
Techotl
sacudiu a cabeça:
- Eles sabem
que não podem derrubar a Porta da Águia. Fugirão de volta a Xotalanc, com o
demônio rastejante deles. Venham! Vou lhes levar aos governantes de Tecuhltli.
Um dos quatro
guardas abriu a porta oposta à qual eles haviam entrado, e atravessaram um
saguão que, como a maioria das salas daquele andar, estava iluminado tanto
pelas clarabóias quanto pelos cachos das tremeluzentes gemas de fogo. Mas,
diferente das outras salas que haviam atravessado, este salão mostrava sinais
de ocupação. Tapeçarias de veludo adornavam as lustrosas paredes de jade, havia
ricos carpetes felpudos no piso vermelho; e os assentos, bancos e divãs de
marfim eram alastrados por travesseiros de cetim.
O salão
terminava numa porta ornamentada, diante da qual não havia guardas. Sem
cerimônia, Techotl abriu a porta com um empurrão e conduziu seus amigos para
dentro de uma larga câmara, onde uns 30 homens e mulheres de pele escura, reclinados
em leitos cobertos de cetim, ergueram-se abruptamente, com expressões de
surpresa.
Todos os
homens, à exceção de um, eram do mesmo tipo de Techotl, e as mulheres eram
igualmente escuras e de olhos estranhos, embora, de alguma forma estranha e obscura,
não fossem feias. Usavam sandálias, placas peitorais de ouro e saias sumárias
de seda, sustentadas por cintos incrustados de jóias; e suas cabeleiras negras,
aparadas em corte reto à altura dos ombros nus, eram presas com aros de prata.
Num largo
assento de marfim, sobre um estrado de jade, sentavam-se um homem e uma mulher
que se diferenciavam sutilmente dos demais. Ele era um gigante, com peito largo
e ombros taurinos. Ao contrário dos outros, ele tinha barba – uma barba espessa
e preto-azulada, que quase lhe chegava à cintura larga. Usava uma túnica de
seda púrpura, a qual refletia brilhos diferentes de cor a cada movimento; e uma
manga larga, arregaçada até o cotovelo, mostrava um braço maciço e musculoso. A
faixa que lhe prendia os cabelos preto-azulados era incrustada por jóias
brilhantes.
A mulher ao
lado dele se ergueu de um pulo, com uma exclamação sobressaltada, quando os
forasteiros entraram; e seus olhos, passando por Conan, se fixaram com intensidade
ardente em Valéria. Era alta e flexível, de longe a mulher mais bonita da sala.
Estava vestida de forma ainda mais sucinta que as outras; pois, ao invés de saia,
ela usava uma larga faixa de pano púrpura trabalhado a ouro, amarrada no meio
do cinto e lhe chegando abaixo dos joelhos. Outra faixa, atrás do seu cinto,
completava essa parte da roupa, a qual ela usava com uma cínica indiferença.
Suas placas peitorais e o aro ao redor das têmporas eram adornados por jóias.
Em seus olhos, ao contrário de todos daquele povo de pele escura, não se
ocultava nenhum brilho meditativo de loucura. Não disse uma só palavra após sua
primeira exclamação; ficou tensamente de pé, os punhos fechados, encarando
Valéria.
O homem no
assento de marfim não se levantou.
- Príncipe
Olmec. – disse Techotl, curvando-se para baixo, com os braços estirados e as
palmas das mãos voltadas para o alto – Trago aliados do mundo além da floresta.
Na Sala de Tezcoti, a Caveira Flamejante matou Chicmec, meu companheiro...
- A Caveira
Flamejante! – Foi um estremecido murmúrio de medo do povo de Tecuhltli.
- Sim! Depois
eu vim e encontrei Chicmec caído, com a garganta cortada. Antes que eu pudesse
fugir, a Caveira Flamejante me atacou e, quando eu a olhei, meu sangue virou
gelo e o tutano se dissolveu em meus ossos. Não consegui lutar nem fugir;
somente aguardar o golpe. Então, veio esta mulher de pele branca e o matou com
sua espada. E vejam! Era apenas um cão de Xotalanc, com pintura branca na pele
e a caveira viva de um feiticeiro antigo sobre a cabeça! Agora aquela caveira
jaz decepada, e o cão que a usava está morto!
Uma exultação
indescritivelmente feroz emoldurou a última frase, e foi ecoada pelas roucas e
selvagens exclamações dos ouvintes aglomerados.
- Mas esperem!
– exclamou Techotl – Tem mais! Enquanto eu conversava com a mulher, quatro
xotalancas nos atacaram! Matei um... aqui está a facada em minha coxa, para
provar como a luta foi desesperada. A mulher matou dois. Mas estávamos duramente
acuados, quando este homem entrou no conflito e partiu o crânio do quarto! Sim!
Cinco pregos vermelhos serão fincados no pilar da vingança!
Ele apontou
para uma negra coluna de ébano, que ficava atrás do estrado. Centenas de pontos
vermelhos marcavam sua superfície polida – as brilhantes cabeças escarlates de
pesados pregos de cobre, enfiados na madeira negra.
- Cinco pregos
vermelhos para cinco vidas xotalancas! – exultou Techotl, e a terrível alegria
nos rostos dos ouvintes os tornava inumanos.
- Quem são
essas pessoas? – perguntou Olmec, e sua voz era como o ribombar rouco e
profundo de um touro distante. Ninguém do povo de Xuchotl falava alto. Era como
se tivessem absorvido, em suas almas, o silêncio dos salões vazios e câmaras
abandonadas.
- Sou Conan,
um cimério. – respondeu brevemente o bárbaro – Esta mulher é Valéria da
Irmandade Vermelha, uma pirata aquiloniana. Somos desertores de um exército da
fronteira de Darfar, bem longe ao norte, e estamos tentando alcançar a costa.
A mulher no
estrado falou alto, suas palavras tropeçando umas nas outras, devido à pressa:
- Nunca
conseguirão chegar à costa! Não há como escapar de Xuchotl! Vocês passarão o
resto de suas vidas nesta cidade!
- O que quer
dizer? – rosnou Conan, agarrando o cabo da espada e girando de modo a olhar
tanto o estrado quanto o resto da sala – Está dizendo que somos prisioneiros?
- Ela não quis
dizer isso. – interpôs-se Olmec – Somos seus amigos. Não vamos lhes conter aqui
contra a vontade de vocês. Mas receio que outras circunstâncias impossibilitarão
que vocês deixem Xuchotl.
Seus olhos
miraram Valéria rapidamente, e ele logo os desviou.
- Esta mulher
é Tascela. – ele disse – Ela é uma princesa de Tecuhltli. Mas tragam comida e
bebida aos nossos hóspedes. Sem dúvida, eles estão cansados e famintos de suas
longas viagens.
Ele apontou
para uma mesa de marfim e, após uma troca de olhares, os aventureiros se
sentaram. O cimério estava desconfiado. Seus ferozes olhos azuis examinavam a câmara
e ele mantinha a espada próxima à mão. Mas ele nunca recusava um convite para
comer e beber. Seus olhos continuaram perambulando por Tascela, mas ela só
tinha olhos para a companheira branca dele.
Techotl, que
havia amarrado uma faixa de seda na coxa ferida, colocou-se à mesa para atender
aos pedidos dos amigos, parecendo considerar um privilégio e honra servi-los.
Examinava a comida e bebida que os outros traziam em vasos e pratos de ouro, e
experimentava cada uma delas antes de colocá-las diante dos hóspedes. Enquanto
eles comiam, Olmec se sentava em silêncio no seu assento de marfim,
observando-os sob as espessas sobrancelhas negras. Tascela se sentou ao lado
dele, com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos descansando nos joelhos.
Seus olhos escuros e enigmáticos ardiam com uma luz misteriosa e nunca se
afastavam da forma flexível de Valéria. Atrás de seu assento, uma jovem bonita
abanava lentamente um leque de plumas de avestruz.
A comida
consistia em fruta de um tipo exótico e nada familiar aos aventureiros, mas era
saborosa; e a bebida era um leve vinho vermelho, que carregava um sabor pungente
e inebriante.
- Vocês vieram
de longe. – disse finalmente Olmec – Já li os livros de nossos antepassados. A
Aquilônia fica além das terras dos stígios e shemitas, além de Argos e Zingara;
e a Ciméria fica além da Aquilônia.
- Nós
costumamos vagar muito. – disse Conan despreocupadamente.
- Como vocês
conseguiram atravessar a floresta, é um mistério para mim. – disse Olmec – Em
tempos passados, mil guerreiros mal conseguiram abrir caminho através de seus
perigos.
- Encontramos
um monstro de pernas curtas e quase do tamanho de um mastodonte. – disse Conan
despreocupadamente, erguendo o copo de vinho ao qual Techotl enchia com prazer
evidente – Mas quando o matamos, não tivemos mais problemas.
O vaso de
vinho escorregou da mão de Techotl, para se despedaçar no chão. Sua pele escura
ficou pálida. Olmec se ergueu sobressaltado, uma imagem de total pasmo, e um
ofêgo baixo de pasmo ou terror foi lançado pelos outros. Alguns caíram de
joelhos, como se suas pernas não os agüentassem. Somente Tascela parecia não
ter ouvido aquilo. Conan olhou surpreso ao redor:
- O que houve?
Por que estão todos boquiabertos?
- Você... você
matou o deus-dragão?
- Deus? Eu
matei um dragão. Por que não? Ele queria nos devorar.
- Mas os
dragões são imortais! – exclamou Olmec – Eles matam uns aos outros, mas nenhum
homem nunca matou um dragão! Os mil guerreiros de nossos ancestrais, que
abriram caminho até Xuchotl, não conseguiram triunfar sobre eles! Suas espadas
se quebravam como gravetos em suas escamas!
- Se seus
ancestrais tivessem tido a idéia de mergulhar suas lanças no suco venenoso das
Maçãs de Derketa – disse Conan, de boca cheia –, e as enfiasse nos olhos, boca ou
em algum lugar semelhante, teriam visto que os dragões não são mais imortais do
que uma pessoa ou um boi. A carcaça jaz no limiar das árvores, um pouco dentro
da floresta. Se não acreditam em mim, saiam e vejam vocês mesmos.
Olmec sacudiu
a cabeça, não por descrença, mas por espanto.
- Foi por
causa dos dragões que nossos ancestrais se refugiaram em Xuchotl. – ele disse –
Eles não ousavam atravessar a planície, nem mergulhar na floresta além. Vintenas
deles foram pegos e devorados pelos monstros, antes que conseguissem alcançar a
cidade.
- Então seus
ancestrais não construíram Xuchotl? – perguntou Valéria.
- Já era
antiga, quando eles chegaram aqui. Há quanto tempo ela existia, nem mesmo seus
degenerados habitantes sabiam.
- Seu povo
veio do Lago Zuad? – perguntou Conan.
- Sim. Há mais
de meio século, uma tribo dos tlazitlanos se rebelou contra o rei stígio e,
sendo derrotada em batalha, fugiu para o sul. Por várias semanas, perambularam
por pradarias, desertos e colinas, e finalmente adentraram a grande floresta;
mil guerreiros, com suas mulheres e crianças.
“Foi na
floresta que os dragões os atacaram e despedaçaram muitos; então o povo fugiu
aterrorizado deles, e finalmente alcançaram a planície e viram a cidade de
Xuchotl no meio dela.
“Acamparam
diante da cidade, não ousando deixar a planície, pois a noite ficou horrenda
com o barulho dos monstros lutando através da floresta. Guerreavam incessantemente
uns contra os outros. Mas não ousavam ir à planície.
“O povo da
cidade fechou seus portões e atirou flechas para nossa gente desde as muralhas.
Os tlazitlanos estavam aprisionados na planície, como se o círculo da floresta
fosse uma grande muralha; pois aventurar-se na selva seria loucura.
“Naquela
noite, chegou secretamente ao acampamento deles um escravo da cidade, um do
mesmo sangue deles, que, com um bando de soldados exploradores, havia se
aventurado floresta adentro muito tempo antes, quando jovem. Os dragões haviam
devorado todos os seus companheiros, mas ele fora levado para dentro da cidade
como escravo. Seu nome era Tolkemec”.
Uma luz
iluminou os olhos escuros à menção daquele nome, e algumas das pessoas
murmuraram obscenamente e cuspiram.
- Ele prometeu
abrir os portões aos guerreiros. Ele só pediu que todos os prisioneiros fossem
entregues às suas mãos.
“Ao amanhecer,
ele abriu os portões. Os guerreiros entraram aos montes, e os salões de Xuchotl
ficaram vermelhos. Somente poucas centenas de pessoas moravam aqui – restos
decadentes de uma raça outrora poderosa. Tolkemec disse que eles vieram do
leste, muito tempo antes, da antiga Kosala, quando os ancestrais daqueles que
agora moram em Kosala vieram do sul e expulsaram os habitantes originais
daquela terra. Perambularam bem longe para oeste, e finalmente chegaram a esta
planície cingida pela floresta, então habitada por uma tribo de povos negros.
“Escravizaram
esta tribo e a colocaram para construir uma cidade. Das colinas do leste,
trouxeram jade, mármore, lápis-lazúli, ouro, prata e cobre. Manadas de
elefantes os abasteceram com marfim. Quando a cidade deles havia ficado
completa, mataram todos os escravos negros. E seus feiticeiros fizeram uma
terrível magia para guardar a cidade; pois, com suas artes necromantes, eles
recriaram os dragões que outrora viviam nesta terra perdida, e cujos ossos
monstruosos eles acharam na floresta. Aqueles ossos foram revestidos com carne
e vida, e as bestas vivas caminharam pela terra como haviam feito quando o
tempo era jovem. Mas os magos teceram um feitiço que os manteve na floresta, e
eles não chegavam à planície.
“Assim, por
muitos séculos, o povo de Xuchotl morou na cidade deles, cultivando a planície
fértil, até seus sábios aprenderem como cultivar os frutos dentro da cidade –
fruto que não é plantado no solo, mas obtém seu sustento do ar –, e então
deixaram as valas de irrigação secarem, e viveram cada vez mais em indolência
luxuriosa, até a decadência se apoderar deles. Eram uma raça moribunda, quando
nossos antepassados atravessaram a floresta e chegaram à planície. Seus
feitiços haviam morrido, e o povo havia esquecido sua antiga necromancia. Não
podiam lutar nem através da feitiçaria, nem da espada.
“Bem, nossos
ancestrais mataram o povo de Xuchotl; todos, exceto uma centena que foi
entregue viva a Tolkemec, que fora escravo deles. E, por muitos dias e noites,
os salões ecoaram com seus gritos de agonia e tortura.
“Assim, os
tlazitlanos fixaram residência aqui; em paz por um tempo, governados pelos
irmãos Tecuhltli e Xotalanc, e por Tolkemec. Tolkemec se casou com uma jovem da
tribo e, uma vez que tinha aberto os portões e conhecia muitas das artes dos
xuchotlanos, ele dividiu o governo da tribo com os dois irmãos que haviam
liderado a rebelião e fuga.
“Durante alguns
anos, viveram em paz dentro da cidade, fazendo pouco além de comer, beber, fazer
amor e criar filhos. Não havia necessidade de cultivar a planície, pois
Tolkemec os ensinara como cultivar as frutas que se alimentavam de ar. Além disso,
a matança dos xuchotlanos quebrou o feitiço que mantinha os dragões na
floresta, e eles vieram todas as noites urrar ao redor dos portões da cidade. A
planície ficou vermelha com o sangue de sua guerra eterna, e foi então que...”.
Ele parou no
meio da frase, e em seguida continuou, mas Valéria e Conan perceberam que ele
interrompeu um comentário que achou imprudente.
- Por cinco
anos, viveram em paz. Então... – os olhos de Olmec descansaram brevemente na
mulher silenciosa ao seu lado – Xotalanc se casou com uma mulher, uma mulher a
quem tanto Tecuhltli quanto o velho Tolkemec desejavam. Em sua loucura,
Teculhtli a roubou do marido. E ela foi de bastante livre vontade. Tolkemec,
para provocar Xotalanc, ajudou Tecuhltli. Xotalanc exigiu que ela lhe fosse
devolvida, e o conselho da tribo decidiu que o assunto deveria ser resolvido
pela mulher. Ela escolheu continuar com Tecuhltli. Furioso, Xotalanc procurou
tomá-la de volta à força, e os partidários dos irmãos lutaram no Grande Salão.
“Houve muito
rancor. Sangue foi derramado em ambos os lados. A briga se tornou um feudo, e o
feudo uma guerra aberta. Do tumulto, emergiram três facções: Tecuhltli,
Xotalanc e Tolkemec. Já nos tempos de paz, eles haviam dividido a cidade entre
eles. Tecuhltli foi morar no bairro oeste da cidade, Xotalanc no leste e
Tolkemec, com sua família, no portão sul.
“Raiva,
ressentimento e ciúmes floresceram em derramamento de sangue, estupro e
assassinato. Uma vez desembainhada a espada, não havia mais como recuar; pois
sangue pedia sangue, e a vingança seguia rapidamente os calcanhares da
atrocidade. Tecuhltli lutava contra Xotalanc, e Tolkemec ajudava primeiro um e
depois o outro, traindo cada facção de acordo com seus propósitos. Tecuhltli e
seu povo retirou-se para o bairro do portão oeste, onde ele fica agora. Xuchotl
é construída em forma oval. Tecuhltli, que tem seu nome por causa do príncipe,
ocupa a extremidade oeste do oval. O povo bloqueou todas as portas que
conectavam o bairro com o resto da cidade, exceto uma em cada andar, a qual
poderia ser facilmente defendida. Adentraram os fossos sob a cidade e
construíram um muro, isolando a extremidade oeste das catacumbas, onde jazem os
corpos dos antigos xuchotlanos e dos tlazitlanos mortos na rixa. Moraram como
num castelo sitiado, fazendo ataques armados e pilhagens contra seus inimigos.
“O povo de
Xotalanc também fortaleceu o portão leste da cidade, e Tolkemec fez o mesmo com
o bairro do portão sul. A parte central da cidade ficou deserta e inabitada.
Esses salões e câmaras vazios se tornaram um campo de batalha, e uma região
onde paira o terror.
“Tolkemec
lutava contra ambos os clãs. Ele era um demônio em forma humana, pior que
Xotalanc. Conhecia muitos segredos da cidade, os quais nunca contou aos outros.
Das criptas das catacumbas, arrancava dos mortos seus segredos pavorosos –
segredos de reis e feiticeiros antigos, há muito esquecidos pelos xuchotlanos
degenerados que nossos ancestrais mataram. Mas toda a sua magia não o ajudou na
noite em que Tecuhltli atacou-lhe o castelo e massacrou toda a sua gente.
Torturamos Tolkemec durante vários dias”.
Sua voz
afundou num ódio adocicado, e um olhar distante lhe cresceu nos olhos, como se
voltasse no tempo para uma cena que o causava intenso prazer.
- Sim, nós o
mantivemos vivo, até ele gritar pela morte como se ela fosse uma noiva. Por
fim, o tiramos vivo da câmara de tortura e o jogamos numa masmorra, para que os
ratos o roessem enquanto morria. De alguma forma, ele conseguiu fugir daquela
masmorra e se arrastou para dentro das catacumbas. Sem dúvida, ele morreu lá,
pois o único meio de sair das catacumbas sob Tecuhltli é através de Tecuhltli,
e ele nunca saiu por aquele caminho. Seus ossos nunca foram encontrados, e as
superstições entre nosso povo juram que seu fantasma assombra as criptas até
hoje, uivando entre os ossos dos mortos. Há 12 anos, massacramos o povo de
Tolkemec, mas a rixa rugiu entre Tecuhltli e Xotalanc, como rugirá até que o
último homem e a última mulher morram.
“Foi há 50
anos que Tecuhltli roubou a mulher de Xotalanc. A rixa já dura meio século.
Nasci naquela época. Todos nesta câmara nasceram nela, exceto Tascela. Esperamos
morrer nela.
“Somos uma
raça moribunda, assim como eram aqueles xuchotlanos que nossos ancestrais
mataram. Quando a rixa começou, havia centenas em cada facção. Agora, nós de
Tecuhltli somos apenas estes que vocês vêem à sua frente, e os homens que
guardam as quatro portas: 40, ao todo. Quantos xotalancas existem, não sabemos,
mas duvido que sejam muito mais numerosos que nós. Há 15 anos, não nasce uma
criança entre nós e não vemos nenhuma entre os xotalancas.
“Estamos
morrendo, mas, antes de morrermos, mataremos o máximo possível de homens de
Xotalanc que os deuses nos permitirem”.
E, com seus
olhos estranhos ardendo, Olmec falou longamente daquela horrenda rixa, lutada
silenciosamente nas câmaras silenciosas e salões obscuros, sob o brilho das jóias
de fogo verde, sobre pisos ardendo com as chamas do inferno e salpicados com um
vermelho mais intenso derramado de veias cortadas. Durante aquela longa
carnificina, uma geração inteira pereceu. Xotalanc morrera, há muito tempo,
assassinado numa batalha sombria sobre uma escada de mármore. Tecuhltli estava
morto, esfolado vivo pelos enlouquecidos xotalancas que o haviam capturado.
Sem emoção,
Olmec falou de horrendas batalhas, lutadas em corredores negros, e de
emboscadas em escadarias espiraladas. Com um brilho mais vermelho e abismal em
seus profundos olhos escuros, ele falava de homens e mulheres esfolados vivos,
mutilados e desmembrados; de prisioneiros uivando sob torturas tão horríveis,
que até mesmo o bárbaro cimério grunhiu. Não era de se admirar que Techotl
houvesse tremido por medo de ser capturado! Mas ele continuava matando,
instigado por um ódio que era mais forte que seu medo. Olmec falou, em seguida,
sobre assuntos obscuros e misteriosos, de magia negra e feitiçaria conjuradas
da noite negra das catacumbas, e de criaturas bizarras invocadas da escuridão
para serem horríveis aliadas. Nestas coisas, os xotalancas levavam vantagem,
pois ela ficava nas catacumbas a leste, onde jaziam os ossos dos maiores
feiticeiros dos antigos xuchotlanos, com seus segredos imemoriais.
Valéria ouvia
com fascinação mórbida. A rixa havia se tornado uma terrível força elementar,
dirigindo o povo de Xuchotl inexoravelmente à ruína e extinção. Ela preenchia a
vida de todos eles. Nasceram nela e esperavam morrer nela. Nunca haviam abandonado
seu castelo entrincheirado, exceto para se esgueirarem nos Salões do Silêncio
que ficavam entre as fortalezas opostas, para matar e serem mortos. Às vezes,
os incursores retornavam com prisioneiros aterrorizados, ou com testemunhos
sombrios da vitória na luta. Às vezes, não retornavam, ou só retornavam como
membros decepados, lançados no chão diante das portas trancadas de bronze. Esse
povo vivia uma existência de pesadelo medonho e irreal, isolado do resto do
mundo, capturados como ratos raivosos na mesma armadilha, chacinando uns aos
outros ao longo dos anos, se agachando e rastejando pelos corredores sem sol
para mutilar, torturar e assassinar.
Enquanto Olmec
falava, Valéria sentia os olhos ardentes de Tascela fixos nela. A princesa
parecia não ouvir o que Olmec dizia. A expressão dela, enquanto ele narrava
vitórias ou derrotas, não espelhava a fúria selvagem ou a exultação demoníaca
que se alternava nos rostos dos outros tecuhltlis. A rixa, que era uma obsessão
para os homens de seu clã, parecia sem significado para ela. Valéria achou sua
frieza indiferente mais repugnante que a ferocidade evidente de Olmec.
- E nunca
podemos deixar a cidade. – disse Olmec – Há cinqüenta anos, ninguém sai,
exceto... – Mais uma vez, ele se interrompeu.
“Mesmo que não
houvesse o perigo dos dragões”, ele continuou, “nós, que nascemos e fomos
criados na cidade, não ousaríamos deixá-la. Nunca pusemos o pé para fora das
muralhas. Não estamos acostumados ao céu aberto e o sol nu. Não; nós nascemos
em Xuchotl, e em Xuchotl morreremos”.
- Bem – disse
Conan –; com sua licença, vamos nos arriscar com os dragões. Essa rixa não é da
nossa conta. Se nos mostrar o portão oeste, seguiremos nosso caminho.
As mãos de
Tascela se fecharam, mas Olmec a interrompeu:
- Já é quase
noite. Se vocês se aventurarem pela planície à noite, certamente serão pegos
pelos dragões.
- Nós a
atravessamos na noite passada, e dormimos ao ar livre sem vermos nenhum deles.
– respondeu Conan.
Tascela sorriu
sem alegria:
- Vocês não
ousariam deixar Xuchotl!
Conan a fitou
com inimizade instintiva; ela não olhava para ele, mas para a mulher ao seu
lado.
- Acho que
ousariam. – declarou Olmec – Mas vejam, Conan e Valéria: os deuses devem ter
lhes trazido até nós, para colocarem a vitória no colo dos tecuhltlis! Vocês
são lutadores profissionais... por que não lutam por nós? Temos riquezas em
abundância... pedras preciosas são tão comuns em Xuchotl quanto pedras de
calçamento nas cidades do mundo. Algumas delas, o xuchotlanos trouxeram de
Kosala. Outras, como as pedras de fogo, eles encontraram nas montanhas do
leste. Ajudem-nos a exterminar os xotalancas, e lhes daremos todas as jóias que
puderem levar.
- E vocês nos
ajudarão a destruir os dragões? – perguntou Valéria – Com arcos e flechas
envenenadas, 30 homens podem matar todos os dragões da floresta.
- Sim! – Olmec
respondeu imediatamente – Esquecemos como usar arcos, durante anos de luta
corpo-a-corpo, mas podemos reaprender.
- O que acha?
– Valéria perguntou para Conan.
- Somos
vagabundos sem dinheiro. – ele riu – Eu mataria xotalancas como a qualquer
outro.
- Então, você
concorda? – exclamou Olmec, enquanto Techotl sorria satisfeito.
- Sim. E agora
presumo que nos mostrarão os quartos onde podemos dormir, para que amanhã
estejamos descansados para começarmos a matança.
Olmec
concordou e fez um gesto com a mão, e Techotl e uma mulher guiaram os
aventureiros para um corredor que se abria à esquerda do estrado de mármore. Um
olhar para trás mostrou a Valéria Olmec sentado em seu trono, o queixo sobre o
punho musculoso e olhando para eles. Seus olhos ardiam com uma chama estranha. Tascela
se curvou em seu assento, sussurrando para a criada de rosto taciturno, Yasala,
que se inclinava para ouvir o que a princesa dizia.
O vestíbulo
não era tão largo quanto a maioria dos que eles haviam atravessado, mas era
longo. Logo a mulher parou, abriu uma porta e ficou de lado para que Valéria entrasse.
- Espere um
minuto. – rosnou Conan – Onde vou dormir?
Techotl
apontou um quarto no mesmo vestíbulo, mas a uma boa distância. Conan hesitou, e
parecia disposto a fazer uma objeção, mas Valéria lhe sorriu vingativamente e
fechou a porta na cara dele. Ele murmurou algo nada elogioso sobre mulheres em
geral, e acompanhou Techotl pelo corredor.
No quarto
ornamentado que lhe fora reservado para dormir, ele ergueu o olhar para as
clarabóias estreitas. Algumas delas eram largas o bastante para permitirem
passar o corpo de um homem magro, desde que o vidro fosse quebrado.
- Por que os
xotalancas não sobem até os tetos e quebram estas clarabóias? – ele perguntou.
- São
inquebráveis. – respondeu Techotl – Além disso, os tetos são difíceis de serem
escalados. A maioria deles são espirais, cúpulas e cumeeiras íngremes.
Ele ofereceu
voluntariamente mais informações sobre o “castelo” de Tecuhltli. Como o
restante da cidade, ele possuía quatro pavimentos, ou prateleiras de câmaras,
com torres se erguendo do teto. Cada andar tinha um nome – de fato, o povo de
Xuchotl tinha um nome para cada câmara, salão e escada na cidade, assim como o
povo de cidades mais normais designam ruas e bairros. Em Tecuhltli, os
pavimentos eram chamados: o Andar da Águia, do Macaco, do Tigre e da Serpente,
nesta ordem. O da Águia era o quarto andar, o mais alto.
- Quem é
Tascela? – perguntou Conan – A esposa de Olmec?
Techotl
estremeceu e olhou ao redor, antes de responder:
- Não. Ela
é... Tascela! Era a esposa de Xotalanc... a mulher a quem Tecuhltli raptou,
dando início à rixa.
- Do que está
falando? – exigiu Conan – Aquela mulher é jovem e bonita. Está tentando me
dizer que ela era a esposa dele há cinqüenta anos?
- Sim! Eu
juro! Ela era uma mulher adulta, quando os tlazitlanos partiram do Lago Zuad.
Xotalanc e seu irmão se rebelaram e fugiram para o ermo, porque o Rei da Stygia
a queria como concubina.
- O que é
isso? – Conan perguntou.
Techotl
estremeceu novamente:
- Não me
pergunte! Não ouso falar. É horrível demais, mesmo para Xuchotl!
E, com o dedo
nos lábios, ele deslizou para fora do quarto.
4) Perfume de Lótus Negro
Valéria soltou
o cinto da espada e o colocou, com a arma embainhada, no leito onde pretendia
dormir. Ela percebeu que as portas tinham trancas, e perguntou para onde levavam.
- Elas levam
para câmaras adjacentes. – respondeu a mulher, apontando as portas à direita e
esquerda – Aquela – e apontou para uma porta revestida de cobre, que dava para
o corredor – leva para um corredor, o qual segue até uma escada que desce para
as catacumbas. Não tema; nada pode lhe fazer mal aqui.
- Quem falou
em temer? – respondeu bruscamente Valéria – Só gosto de saber em que tipo de
porto estou ancorando. Não, não quero que durma aos pés de minha cama. Não
estou acostumada a ser servida... não por mulheres, pelo menos. Tem minha permissão
para sair.
Sozinha no
quarto, a pirata trancou todas as portas, tirou as botas e se esticou voluptuosamente
na cama. Ela imaginou Conan em situação semelhante, do outro lado do corredor,
mas sua vaidade feminina a fez imaginá-lo irritado e humilhado em seu leito
solitário, e ela sorriu com alegre malícia enquanto se preparava para dormir.
Lá fora havia
anoitecido. Nos salões de Xuchotl, as pedras de fogo verde ardiam como os olhos
de gatos pré-históricos. Em algum lugar entre as torres escuras, um vento
noturno gemia como um espírito inquieto. Através das passagens obscuras, figuras
furtivas começavam a deslizar, como sombras desencarnadas.
Valéria
acordou subitamente em sua cama. No escuro brilho esmeralda das gemas de fogo,
ela viu uma figura sombreada se debruçando sobre ela. Por um instante confuso,
a aparição parecia fazer parte do sonho que ela estava tendo. Tivera a
impressão de estar deitada na cama como realmente estava, enquanto, sobre ela,
pulsava e latejava uma gigantesca flor negra, tão enorme que escondia o teto.
Seu perfume exótico invadia seu ser, induzindo a uma languidez deliciosa e
sensual, semelhante ao sono. Ela estava afundando em vagalhões perfumados de
alegria insensível, quando algo lhe tocou o rosto. Seus sentidos drogados
estavam tão sensíveis, que aquele leve toque foi como um impacto deslocador, acordando-a
completamente. Então, o que ela viu não foi uma flor gigantesca, mas uma mulher
de pele escura diante de si.
Com a
compreensão, veio a fúria e a ação instantânea. A mulher girou graciosamente,
mas antes que pudesse correr, Valéria estava de pé e lhe agarrou o braço. Ela
lutou como um gato selvagem por um instante, e então ficou quieta quando se
sentiu esmagada pela força superior de sua captora. A pirata forçou a mulher a
se virar para encará-la, agarrou-lhe o queixo com a mão livre e forçou sua cativa
a lhe olhar nos olhos. Era a sombria Yasala, criada de Tascela.
- O que diabos
estava fazendo curvada sobre mim? O que é isso em sua mão?
A mulher não
respondeu, mas tentou lançar o objeto para longe. Valéria lhe torceu o braço, e
a coisa caiu no chão: uma grande e negra flor exótica, num talo verde-jade, tão
grande quanto a cabeça de uma mulher, mas pequena se comparada à visão
exagerada que tivera.
- O lótus
negro! – disse Valéria entre dentes – A flor, cujo perfume causa sono profundo.
Você estava tentando me drogar! Se não tivesse tocado meu rosto, sem querer,
com as pétalas... por que fez isso? Qual a sua intenção?
Yasala se
manteve em silêncio mal-humorado e, com uma praga, Valéria a fez rodopiar,
forçou-a a se ajoelhar e lhe torceu o braço até as costas.
- Conte-me, ou
eu desloco o seu braço!
Yasala se
contorcia de angústia, e seu braço foi forçado dolorosamente para cima, entre
suas espáduas; mas um sacudir violento de sua cabeça era sua única resposta.
- Vadia! –
Valéria a lançou no chão. A pirata olhou, com olhos ardentes, para a figura
caída. O medo e a lembrança dos olhos ardentes de Tascela se agitaram nela,
despertando-lhe todos os instintos tigrinos de auto-preservação. Este povo era
decadente; qualquer tipo de perversidade era de se esperar deles. Mas Valéria
sentia que, neste caso, havia alguma coisa por trás, algum terror secreto e
mais repugnante que a degeneração comum. O medo e a repulsa por aquela cidade
estranha caíram sobre ela. Essa gente não era sã nem normal; ela começou a
duvidar que fossem sequer humanos. A loucura ardia às ocultas nos olhos de
todos eles – exceto nos olhos cruéis e misteriosos de Tascela, os quais
guardavam segredos e enigmas mais abismais que a loucura.
Ela ergueu a
cabeça e aguçou os ouvidos. Os salões de Xuchotl eram tão silenciosos quanto se
ela fosse, de fato, uma cidade morta. As jóias verdes banhavam o quarto num
brilho de pesadelo, no qual os olhos da mulher no chão cintilavam lugubremente
para os dela. Um tremor de pânico palpitou em Valéria, tirando o último
vestígio de piedade de seu espírito feroz.
- Por que
tentou me drogar? – ela murmurou, agarrando os cabelos negros da mulher, e
forçando-lhe a cabeça para trás, a fim de olhar dentro de seus olhos sombrios e
de cílios longos – Tascela lhe mandou para cá?
Nenhuma
resposta. Valéria praguejou venenosamente, e deu um tapa na face da mulher e
depois na outra. Os estalos ressoaram no quarto, mas Yasala não gritou.
- Por que não
grita? – Valéria exigiu selvagemente – Tem medo de que alguém lhe ouça? De quem
você tem medo? De Tascela? De Olmec? De Conan?
Yasala não
respondeu. Ela se encolhia, observando sua captora com olhos tão maléficos
quanto os de um basilisco (*). O silêncio obstinado sempre atiça a
fúria. Valéria virou-se e arrancou um punhado de cordões de uma cortina
próxima.
- Sua
vagabunda amuada! – ela disse entre dentes – Vou arrancar suas roupas, lhe
amarrar nesta cama e lhe chicotear, até você me dizer o que estava fazendo aqui
e quem lhe mandou!
Yasala não fez
qualquer protesto verbal, nem ofereceu resistência, quando Valéria levou a cabo
a primeira parte da ameaça, com uma fúria à qual a obstinação de sua cativa só
fazia aumentar. Logo, por algum tempo, não houve qualquer som no quarto, exceto
o assobio e estalar dos cordões bem-trançados de seda na pele nua. Yasala não
podia mexer as mãos e pés amarrados. Seu corpo se contorcia e tremia sob o
tormento, sua cabeça virava para um lado e outro ao ritmo das chibatadas. Seus
dentes afundaram no lábio inferior, e um fio de sangue brotou, enquanto o castigo
continuava. Mas ela não gritou.
Os cordões
macios não faziam muito barulho, ao atingirem o corpo trêmulo da cativa;
somente um agudo ruído crepitante; mas cada cordão deixava uma listra vermelha
na pele escura de Yasala. Valéria infligia o castigo com toda a força de seu
braço fortalecido pelo mar, com toda a impiedade adquirida numa vida onde dor e
tormento eram parte do dia-a-dia, e com toda a ingenuidade cínica que somente
uma mulher demonstra a outra. Yasala sofria mais, física e mentalmente, do que
sofreria sob um chicote manuseado por um homem, por mais forte que este fosse.
Foi a
aplicação deste cinismo feminino que finalmente domou Yasala.
Um choro baixo
lhe escapou dos lábios, Valéria parou com o braço erguido e lançou para trás
uma mecha molhada.
- Bem, você
vai falar? – ela exigiu – Posso continuar fazendo isso a noite toda, se
necessário.
- Piedade! –
sussurrou a mulher – Eu conto.
Valéria lhe
cortou as cordas dos pulsos e tornozelos, e a pôs de pé. Yasala afundou na
cama, meio reclinada num dos quadris nus, apoiando-se no braço e se contorcendo
ao contato de sua pele dolorida com o leito. Todos os membros lhe tremiam.
- Vinho! – ela
implorou, apontando com a mão trêmula para um vaso de ouro numa mesa de marfim
– Deixe-me beber. Estou fraca de dor. Depois lhe contarei tudo.
Valéria pegou
o vaso, e Yasala se ergueu vacilante para recebê-lo. Ela o tomou e ergueu até
os lábios... e então, lançou o conteúdo no rosto da aquiloniana. Valéria cambaleou
para trás, tremendo e tentando tirar o líquido ardente dos olhos. Através de
uma névoa dolorida, ela viu Yasala disparar para o outro lado do quarto, lançar
uma tranca para trás, abrir a porta revestida de cobre e correr para o salão. A
pirata estava logo atrás dela, de espada na mão e intenção assassina no
coração.
Mas Yasala
levava vantagem, e corria com a agilidade nervosa de uma mulher que acabava de
ser açoitada até chegar às raias da histeria. Ela dobrou uma esquina no corredor,
metros adiante de Valéria, e, quando a pirata a seguiu, só encontrou um salão
vazio e, na outra extremidade, uma porta que se abria para a escuridão. Um
cheiro úmido e mofado exalava daquela porta, e Valéria estremeceu. Aquela devia
ser a porta que levava às catacumbas. Yasala havia se refugiado entre os
mortos.
Valéria avançou
até a porta e desceu os olhos para um lance de degraus de pedra que
desapareciam rapidamente na total escuridão. Evidentemente, era um poço que
levava diretamente aos fossos sob a cidade, sem nenhuma abertura para os
andares inferiores. Ela estremeceu levemente, ao pensar nos milhares de corpos
que jaziam em suas criptas de pedra lá embaixo, envoltos em suas roupas
emboloradas. Ela não tinha intenção de descer tateando por aqueles degraus de
pedra. Yasala, sem dúvida, conhecia cada curva e inclinação dos túneis
subterrâneos.
Ela estava
voltando, frustrada e furiosa, quando um grito soluçante se ergueu das trevas.
Parecia vir de uma grande profundeza, mas dava para distinguir vagamente palavras
humanas, e a voz era a de uma mulher.
- Oh, socorro!
Socorro, em nome de Set! Ahhhh!
A voz se
apagou, e Valéria teve a sensação de escutar o eco de uma risada fantasmagórica.
Valéria sentiu
sua pele se arrepiar. O que aconteceu com Yasala lá embaixo, na densa
escuridão? Não havia dúvidas que era ela quem gritara. Mas qual o perigo que
poderia ter se sucedido a ela? Era um xotalanca se esgueirando lá embaixo?
Olmec os havia assegurado que as catacumbas sob Tecuhltli eram separadas do
resto, de forma segura demais para que os inimigos passassem. Além disso,
aquela risada não soava nem um pouco humana.
Valéria se
apressou em voltar pelo corredor, não parando para fechar a porta que se abria
sobre as escadas. Voltando ao seu quarto, ela fechou a porta e passou a tranca
nela. Calçou as botas e afivelou o cinto da espada. Estava determinada a ir ao
quarto de Conan e apressá-lo, se ele ainda estivesse vivo, a juntar-se a ela
numa tentativa de saírem daquela cidade de demônios.
Mas, ao
alcançar a porta que se abria para o corredor, um longo grito de agonia ressoou
pelos salões, seguido pelo som de pés apressados e o clamor alto de espadas.
5) Vinte Pregos Vermelhos
Dois
guerreiros se reclinavam no corpo de guarda, no pavimento conhecido como o Andar
da Águia. Sua atitude era despreocupada, apesar de habitualmente alerta. Um
ataque, vindo de fora, na grande porta de bronze, era sempre uma possibilidade,
mas, por muitos anos, nenhum ataque como esse havia sido tentado em ambos os
lados.
- Os
forasteiros são aliados fortes. – disse um – Olmec atacará o inimigo amanhã, eu
creio.
Ele falou como
um soldado na guerra. No mundo pequeno de Xucholt, cada punhado de adversários
era um exército, e os salões entre os castelos eram o território onde eles
realizavam as operações militares.
O outro
meditou um pouco.
- Suponha que
eles nos ajudem a destruir Xotalanc. – ele disse – E depois, Xatmec?
- Ora –
respondeu Xatmec –, cravaremos um prego vermelho para cada um deles. Aos
cativos, iremos queimar, esfolar e esquartejar.
- Mas e
depois? – insistiu o outro – E depois que matarmos todos eles? Não parecerá
estranho não termos inimigos para enfrentar? Toda a minha vida, enfrentei e
odiei os xotalancas. Com o fim da rixa, o que acontecerá?
Xatmec
encolheu os ombros. Seus pensamentos nunca foram além da destruição de seus
inimigos. Ele não conseguia ir além disso.
Súbito, os
dois homens se empertigaram ao ouvir um barulho do lado de fora da porta.
- Para a
porta, Xatmec! – sibilou o último a falar – Vou observar através do Olho...
Xatmec, de
espada na mão, inclinou-se contra a porta de bronze, aguçando seu ouvido para
escutar através do metal. Seu companheiro olhou para dentro do espelho. Ele
estremeceu convulsivamente. Havia um grupo de homens aglomerados do lado de
fora da porta; homens sombrios, de rostos escuros e espadas nos dentes – e seus dedos enfiados nos ouvidos. Um
deles, com um chapéu emplumado, levava um conjunto de pífaros aos lábios e,
quando o tecuhltli começou a gritar um aviso, os pífaros começaram a tocar.
O grito morreu
na garganta do guarda, quando a música aguda e bizarra penetrou a porta de
metal e golpeou seus ouvidos. Xatmec ficou grudado na porta, como se paralisado
naquela posição. Seu rosto parecia uma imagem de madeira, e sua expressão era a
de um ouvinte horrorizado. O outro guarda, mais distante da fonte do som, ainda
assim sentia o horror que estava acontecendo, a ameaça pavorosa que havia
naquela música de pífaro. Ele sentia as tensões bizarras lhe puxando os tecidos
do cérebro, como dedos invisíveis; enchendo-o de emoções estranhas e impulsos
de loucura. Mas, com um esforço de rasgar a alma, ele quebrou o feitiço e
guinchou um aviso, numa voz que não reconhecia como dele próprio.
Mas, enquanto
ele gritava, a música mudou para um tom insuportavelmente estridente, que
parecia uma faca em seus tímpanos. Xatmec gritou em súbita agonia, e toda a
sanidade lhe abandonou o rosto como uma chama soprada pelo vento. Como um
louco, ele arrancou a corrente, escancarou a porta e correu para dentro do
salão, a espada erguida antes que o companheiro pudesse detê-lo. Uma dúzia de
lâminas o abateu e, passando por cima de seu corpo mutilado, os xotalancas
irromperam no corpo de guarda, com um grito longo e louco por sangue que
reverberou por toda a parte.
Com o cérebro
dando voltas por causa do choque daquilo tudo, o guarda restante deu um salto
para enfrentá-los com a lança. O horror pela bruxaria que ele acabara de
testemunhar foi submerso na percepção atordoada de que o inimigo estava em
Tecuhltli. E, quando a ponta de sua lança rasgou uma barriga escura, ele não
percebeu mais nada, pois o giro de uma espada lhe arrebentou o crânio, enquanto
guerreiros de olhos selvagens saíam correndo das salas atrás do posto de
guarda.
Foi o brado de
homens e o tinir do aço que fizeram Conan saltar de sua cama, totalmente
acordado e com a espada larga na mão. Num instante, ele alcançou a porta, a escancarou
e olhava para o corredor, no exato momento em que Techotl vinha correndo, os
olhos ardendo loucamente.
- Os
xotalancas! – ele gritou, numa voz quase inumana – Estão dentro da porta!
Conan disparou
pelo corredor, enquanto Valéria saía do quarto.
- Que diabo é
isso? – ela gritou.
- Techotl
disse que os xotalancas estão aqui dentro. – ele respondeu correndo – Pelo
barulho, parece que estão.
Com os
tecuhltlis seguindo-os, eles irromperam na sala do trono e se depararam com uma
cena que ia além do sonho mais desvairado de sangue e fúria. Vinte homens e
mulheres, seus negros cabelos soltos e as caveiras brancas lhes brilhando no
peito, estavam engalfinhados em combate contra o povo de Tecuhltli. As mulheres
em ambos os lados lutavam tão loucamente quanto os homens, e a sala e o salão
já estavam alastrados de cadáveres.
Olmec, vestindo
apenas uma tanga, lutava diante do trono e, quando os aventureiros entraram,
Tascela veio correndo de um quarto interno com uma espada na mão.
Xatmec e seu
companheiro estavam mortos, de modo que não havia ninguém para contar aos
tecuhltlis como seus inimigos haviam entrado em sua cidadela. Nem havia ninguém
para dizer o que havia causado aquele louco ataque. Mas as baixas entre os
xotalancas haviam sido maiores, e sua posição mais desesperada, do que os
tecuhltlis imaginavam. A mutilação de seu aliado escamoso, a destruição da
Caveira Flamejante e as notícias, arfadas por um homem moribundo, de que
misteriosos aliados de pele branca haviam se juntado aos seus inimigos, os
haviam levado ao frenesi do desespero e à selvagem determinação de morrer
matando seus antigos inimigos.
Os tecuhltlis,
recuperando-se do primeiro e atordoante choque da surpresa que os fizera recuar
à sala do trono e alastrar o chão com seus corpos, reagiram com fúria igualmente
desesperada, enquanto os guardas das portas dos andares inferiores vinham correndo
para se lançarem ao conflito. Era a luta mortal de lobos raivosos, cegos,
ofegantes e impiedosos. A luta avançava e recuava, da porta ao estrado, lâminas
zunindo e afundando em carne, sangue esguichando, pés pisando o chão vermelho
onde poças ainda mais vermelhas se formavam. Mesas de marfim eram derrubadas,
assentos eram despedaçados, cortinas de veludo arrancadas eram manchadas de
vermelho. Era o clímax sangrento de meio século sangrento, e cada homem ali
sentia isso.
Mas a
conclusão era inevitável. Os tecuhltlis superavam os invasores em quase dois
para um, e eles estavam encorajados por isso e pela entrada de seus aliados de
pele clara na luta.
Estes
golpeavam combate adentro como um furacão adentrando um bosque de árvores
novas. Em força bruta, nem três tlazitlanos eram páreos para Conan e, apesar de
seu peso, ele era mais rápido que qualquer um deles. Ele se movia através da
massa remoinhante e rodopiante com a segurança e o poder de destruição de um
lobo cinza no meio de cães de rua, e andava sobre um rastro de corpos
contorcidos.
Valéria lutava
ao lado dele, com os lábios sorrindo e os olhos ardendo. Ela era mais forte que
um homem comum, e mais rápida e feroz. Sua espada parecia viva em sua mão. Onde
Conan abatia os oponentes com seu peso e a força de seus golpes, quebrando
lanças, partindo crânios e abrindo peitos até o externo, Valéria usava uma finura
no manejo da espada que aturdia e desconcertava seus antagonistas antes mesmo de
matá-los. Mais de uma vez, um guerreiro que levantava a lâmina tinha a jugular
perfurada antes que pudesse golpear. Conan, o mais alto daquela rixa, caminhava
através do tumulto golpeando à direita e esquerda, mas Valéria se movia como um
fantasma ilusório, mudando constantemente de lugar, e perfurando e cortando
enquanto mudava. Espadas nunca a acertavam, e os manejadores das mesmas
ceifavam o ar vazio, morrendo com o coração ou pescoço trespassado e a risada
zombeteira dela nos ouvidos.
Sexo e
condições não eram considerados pelos enlouquecidos combatentes. As cinco
mulheres dos xotalancas estavam caídas, com suas gargantas cortadas, antes que
Conan e Valéria entrassem no combate e, quando um homem ou mulher caía
pisoteado, havia sempre uma faca pronta para a garganta indefesa, ou um pé
calçado em sandália, ansioso para lhe esmagar o crânio.
De parede em
parede, de porta em porta, rolavam as ondas do combate, espalhando-se para
dentro das câmaras adjacentes. Logo, somente Tecuhltli e os aliados de pele
branca ficaram de pé na grande sala do trono. Os sobreviventes encaravam
melancólica e inexpressivamente uns aos outros, como sobreviventes do Juízo
Final ou da destruição do mundo. Sobre pernas bem abertas, mãos agarrando
espadas marcadas e gotejantes, e o sangue lhes escorrendo em fios pelos braços,
eles encaravam uns aos outros através dos cadáveres mutilados de amigos e
inimigos. Não tinham fôlego para gritarem, mas um uivo bestial e louco se
ergueu de seus lábios. Não era um grito humano de triunfo. Era o uivo de uma
alcatéia raivosa que andava altivamente entre os corpos de suas vítimas.
Conan pegou o
braço de Valéria e a fez girar.
- Você foi
apunhalada na panturrilha. – ele resmungou.
Ela olhou para
baixo, pela primeira vez consciente de que os músculos de suas pernas doíam.
Algum homem moribundo no chão havia lhe cravado um punhal na carne, com seu
último esforço.
- E você
parece um açougueiro. – ela riu.
Ele sacudiu as
mãos, das quais caiu uma chuva vermelha:
- Não é meu.
Ah, tenho um arranhão aqui e ali. Nada de preocupante. Mas essa panturrilha
precisa ser enfaixada.
Olmec
atravessou o chão alastrado, parecendo um ogro com seus maciços ombros nus
salpicados de sangue, e sua barba negra borrifada de vermelho. Seus olhos
estavam vermelhos, como o reflexo do fogo em água negra.
- Nós
vencemos! – ele rosnou deslumbrado – A rixa acabou! Os cães de Xotalanc estão
mortos! Ah, se tivéssemos um cativo para esfolar vivo! Mas é bom olhar para
seus rostos mortos. Vinte cães mortos! Vinte pregos vermelhos para a coluna
negra!
- Seria melhor
você olhar seus próprios feridos. – grunhiu Conan, afastando-se dele – Aqui,
moça; deixe-me ver essa perna.
- Espere um
minuto! – ela se desvencilhou dele impacientemente. O fogo da luta ainda
queimava vivamente em sua alma – Como sabemos que estes eram os últimos? Eles
podem ter vindo numa invasão por conta própria.
- Eles não
dividiriam o clã numa incursão como esta. – disse Olmec, sacudindo a cabeça e
recuperando um pouco de sua inteligência normal. Sem sua túnica púrpura,
parecia mais com uma repelente ave de rapina do que com um príncipe – Aposto
minha cabeça que matamos todos eles. Eram menos do que eu pensava, e devia
estar desesperados. Mas como eles entraram em Tecuhltli?
Tascela se
aproximou, limpando sua espada na coxa nua e segurando na outra mão um objeto
que havia tirado do corpo do líder emplumado dos xotalancas.
- Os pífaros
da loucura. – ela disse – Um guerreiro me contou que Xatmec abriu a porta para
os xotalancas e foi morto, enquanto eles irrompiam para dentro do corpo da
guarda. Este guerreiro chegou ao corpo de guarda, desde o salão interno, bem a
tempo de ver o que acontecia e de ouvir as últimas notas de uma estranha música
que lhe congelou a própria alma. Tolkemec costumava falar desses pífaros, os
quais os xuchotlanos juravam estar ocultos em algum lugar das catacumbas, junto
com os ossos do feiticeiro antigo que os usava enquanto vivo. De alguma forma,
os cães de Xotalanc os encontraram e aprenderam seu segredo.
- Alguém
deveria ir até Xotalanc, e ver se ainda resta alguém vivo. – disse Conan – Eu
irei, se alguém quiser ser meu guia.
Olmec olhou
para os remanescentes de seu povo. Só restavam vinte vivos, e destes, muitos
gemiam no chão. Tascela era a única tecuhltli que escapara sem um só ferimento.
A princesa estava intacta, embora tivesse lutado tão selvagemente quanto os
demais.
- Quem irá até
Xotalanc com Conan? – perguntou Olmec.
Techotl se
aproximou mancando. O ferimento em sua coxa começara a sangrar novamente, e ele
tinha outro talho pelas costelas:
- Eu vou!
- Não, você
não. – vetou Conan – Nem você, Valéria. Daqui a pouco, essa perna vai ficar
rígida.
- Eu irei. –
ofereceu-se um guerreiro, que amarrava uma bandagem num antebraço talhado.
- Muito bem,
Yanath. Vá com o cimério. E você também, Topal. – Olmec apontou para outro
homem, cujos ferimentos eram leves – Mas primeiro ajude a colocar os gravemente
feridos nestes leitos, onde enfaixaremos seus ferimentos.
Isto foi feito
rapidamente. Enquanto levantavam uma mulher, que havia sido atordoada por um
porrete de guerra, a barba de Olmec roçou o ouvido de Topal. Conan achou que o
príncipe murmurava algo para o guerreiro, mas não tinha certeza. Poucos momentos
depois, ele guiava seus guerreiros pelo salão.
Conan olhou
para trás, enquanto saía da porta, para aquele matadouro onde os mortos jaziam
sobre o chão brilhante, com os ensangüentados membros escuros contraídos em
atitudes de feroz esforço muscular, rostos morenos congelados em máscaras de
ódio, e olhos vítreos mirando as jóias de fogo verde no alto, as quais banhavam
a cena pavorosa numa escura e esmeralda luz-de-bruxa. Entre os mortos, os vivos
se moviam a esmo, como pessoas andando em transe. Conan viu Olmec chamar uma mulher
e mandá-la enfaixar a perna de Valéria. A pirata a seguiu para dentro de uma
câmara adjacente, já começando a mancar levemente.
Os dois
tecuhltlis guiavam cautelosamente Conan ao longo do salão além da porta de
bronze, e através de câmara após câmara tremeluzente em fogo verde. Não viam ninguém
e não ouviam som algum. Após terem atravessado o Grande Salão, o qual separava
a cidade norte da sul, sua cautela foi aumentada ao perceberem que estavam próximos
do território inimigo. Mas as câmaras e salões estavam vazios aos seus olhares
precavidos, e finalmente chegaram até um longo saguão escuro e pararam diante
de uma porta de bronze, semelhante à Porta da Águia de Tecuhltli.
Corajosamente, eles a testaram e ela abriu silenciosamente sob seus dedos.
Temerosos, eles entraram nas câmaras com iluminação verde que ficavam além.
Durante 50 anos, nenhum tecuhltli adentrara aqueles salões, exceto como
prisioneiro indo para um destino horrendo. Ir para Xotalanc era o pior horror
que poderia acontecer a um homem do castelo ocidental. O terror daquilo lhes
espreitava os sonhos, desde a mais tenra infância. Para Yanath e Topal, aquela
porta de bronze era como o portal do inferno.
Eles recuaram,
com medo irracional nos olhos, e Conan passou no meio deles e caminhou a passos
largos para dentro de Xotalanc.
Timidamente,
eles o seguiram. Quando cada um deles pôs o pé no limiar da porta, eles olharam
nervosamente ao redor. Mas apenas sua respiração ofegante perturbava o
silêncio.
Chegaram a um
corpo de guarda quadrado, como aquele atrás da Porta da Águia de Tecuhltli, e
da mesma forma, um salão corria dele até uma câmara larga, a qual era uma cópia
da sala do trono de Olmec.
Conan olhava
para o salão, com seus carpetes, divãs e cortinas, e parou para escutar. Não
ouviu barulho algum, e as salas pareciam desertas. Ele não acreditava que
houvesse qualquer xotalanca vivo em Xuchotl.
- Vamos. – ele
murmurou, e começou a andar pelo salão.
Não havia ido
longe, quando percebeu que apenas Yanath o seguia. Girou para trás, para ver Topal
parado numa atitude de horror, um dos braços erguido como se para desviar algum
perigo ameaçador, seus olhos arregalados fixos com intensidade hipnótica em
algo que se sobressaía de trás de um divã.
- Que diabos?
Então, Conan
viu o que Topal encarava, e sentiu um leve arrepio na pele entre as espáduas
gigantes. Uma cabeça monstruosa aparecia por trás de um divã – uma cabeça
reptiliana, tão grande quanto a de um crocodilo, com presas curvadas para baixo
se projetando sobre a mandíbula inferior. Mas a coisa tinha uma flacidez
não-natural, e os olhos horrendos estavam vitrificados.
Conan espiou
atrás do leito. Era uma grande serpente que jazia desabada e morta, mas uma
serpente como ele nunca tinha visto em suas andanças. O fedor e o frio da profunda
terra negra estavam nela, e sua cor era um matiz indeterminado que mudava a
cada ângulo do qual ele a examinava. Um grande ferimento em seu pescoço
mostrava o que causara sua morte.
- É o
Rastejador! – sussurrou Yanath.
- É a coisa à
qual cortei na escada. – grunhiu Conan – Depois de ter nos perseguido até a
Porta da Águia, ela se arrastou até aqui para morrer. Como os xotalancas conseguiam
controlar esse animal?
Os tecuhltlis
estremeceram e sacudiram as cabeças.
- Eles
trouxeram-na para cá desde os túneis negros sob as catacumbas. Descobriram
segredos desconhecidos aos tecuhltlis.
- Bom, ela
está morta e, se eles tivessem outras delas, as teriam trazido com eles quando
atacaram Tecuhltli. Vamos.
Seguiram seus
passos, próximos uns aos outros, enquanto ele caminhava a passos largos pelo
salão e entrava na porta trabalhada a prata, do outro lado.
- Se não
acharmos ninguém neste andar – ele disse –, desceremos para os inferiores.
Vamos explorar Xotalanc, do teto às catacumbas. Se Xotalanc for como Tecuhltli,
todas as salas e salões neste andar estarão iluminados... Que diabos?!
Eles haviam
entrado na larga sala do trono, bastante similar à de Tecuhltli. Havia o mesmo
estrado de mármore e trono de marfim, e os mesmos divãs, carpetes e cortinas
nas paredes. Não havia nenhuma coluna negra com marcas vermelhas por trás do
pedestal, mas não faltavam evidências da rixa sombria.
Enfileiradas
ao longo da parede atrás da plataforma, havia uma série de prateleiras
protegidas por vidros. E, nessas prateleiras, centenas de cabeças humanas,
perfeitamente preservadas, encaravam os espectadores surpresos com olhos sem
emoção, como haviam feito por sabem os deuses quantos meses e anos.
Topal
praguejou baixinho, mas Yanath ficou em silêncio, a luz da loucura lhe crescendo
nos olhos grandes. Conan carranqueou, sabendo que a sanidade dos tlazitlanos
pendia por um fio.
Súbito, Yanath
apontou para as relíquias medonhas com um dedo contraído.
- Aquela é a
cabeça do meu irmão! – ele murmurou – E aquela é a do irmão mais velho de meu
pai! E ali atrás delas, a do filho mais velho de minha irmã!
Começou
inesperadamente a chorar, sem lágrimas, com soluços ásperos e altos que
sacudiam sua estrutura. Ele não tirava os olhos das cabeças. Seus soluços
ficaram mais estridentes e se tornaram uma assustadora risada alta, e logo esta
se tornou um insuportável grito agudo. Yanath estava totalmente louco.
Conan pôs uma
mão em seu ombro e, como se o toque houvesse libertado todo o delírio em sua
alma, Yanath gritou e girou, atacando o cimério com sua espada. Conan deteve o
golpe, e Topal tentou pegar o braço de Yanath. Mas o louco o evitou e, com
espuma lhe voando pelos lábios, enfiou sua espada no corpo de Topal. Topal caiu
com um gemido, e Yanath girou por um instante como um louco dervixe; então, ele
correu até as prateleiras e começou a quebrar o vidro com a espada, dando
guinchos blasfemos.
Conan saltou
atrás dele, tentando pegá-lo desprevenido e o desarmar, mas o louco girou e
pulou em direção a ele, guinchando como uma alma penada. Percebendo que o
guerreiro estava irremediavelmente insano, o cimério virou para o lado e,
enquanto o maníaco passava, deu um corte que lhe decepou a omoplata e o peito,
fazendo-o cair morto ao lado de sua vítima morta.
Conan se
curvou sobre Topal, vendo que o homem estava em seu último suspiro. Era inútil
tentar estancar o sangue que jorrava do horrível ferimento.
- Você está
acabado, Topal. – grunhiu Conan – Tem alguma mensagem para mandar à sua gente?
- Chegue mais
perto. – arfou Topal, e Conan se aproximou... e, no instante seguinte, agarrou
a mão do homem quando Topal tentou lhe enfiar uma adaga no peito.
- Crom! –
praguejou Conan – Você também está louco?
- Olmec
mandou! – ofegou o moribundo – Não sei por quê. Enquanto colocávamos os feridos
nos leitos, ele me sussurrou, ordenando que eu lhe matasse quando voltássemos
para Tecuhltli... – E, com o nome de seu clã nos lábios, Topal morreu.
Conan
carranqueou perplexo para ele. Aquilo tudo parecia loucura. Olmec era louco
também? Será que todos os tecuhltlis eram ainda mais loucos do que ele pensava?
Com um encolher de ombros, ele caminhou de volta pelo salão e saiu da porta de
bronze, abandonando os tecuhltlis mortos diante dos olhos sem vida das cabeças
de seus parentes.
Conan não
precisava de guia para voltar pelo labirinto que haviam atravessado. Seu
instinto primitivo de direção o guiava infalivelmente ao longo do caminho pelo
qual vieram. Ele o atravessou tão cautelosamente quanto antes, de espada na mão
e seus olhos procurando ferozmente em cada canto e esquina sombreados; pois era
aos seus antigos aliados que ele temia agora, e não aos fantasmas dos
xotalancas mortos.
Ele havia
atravessado o Grande Salão e adentrado as câmaras além, quando ouviu algo se
movendo à sua frente... algo que respirava convulsivamente e ofegava, movendo-se
com um barulho agonizante e rastejador. Um instante depois, Conan viu um homem
se arrastando, sobre o chão flamejante, em sua direção... um homem cujo avanço
deixava uma larga mancha sangrenta na superfície brilhante. Era Techotl, e seus
olhos já se vitrificavam; de um corte profundo em seu peito, o sangue jorrava
constantemente entre os dedos de sua mão fechada. Com a outra mão, ele se
arrastava.
- Conan. – ele
gritou sufocado – Conan! Olmec levou a mulher de cabelos amarelos!
- Então, é por
isso que ele mandou Topal me matar! – murmurou Conan, ajoelhando-se ao lado do
homem que, como seus olhos experientes diziam, estava morrendo – Olmec não é
tão louco quanto eu pensava.
Os dedos
tateantes de Techotl agarraram o braço de Conan. Na vida fria, sem amor e
completamente hedionda dos tecuhltlis, sua admiração e afeto pelos invasores do
mundo externo formavam um oásis caloroso e humano, e constituíam uma ligação
com uma humanidade mais natural, a qual era totalmente inexistente em seu povo,
cujas únicas emoções eram ódio, luxúria e o impulso por sádica crueldade.
- Tentei
impedi-lo. – gorgolejou Techotl, o sangue lhe borbulhando e espumando até os
lábios – Mas ele me derrubou. Ele pensou ter me matado, mas saí me arrastando. Oh,
Set, nem sei o quanto rastejei sobre meu próprio sangue! Cuidado, Conan! Olmec
pode ter preparado uma cilada para quando você retornar! Mate Olmec! Ele é um
animal selvagem. Pegue Valéria e fuja! Não tenha medo de atravessar a floresta.
Olmec e Tascela mentiram sobre os dragões. Eles mataram uns aos outros anos
atrás, e só o mais forte sobreviveu. Há doze anos que só existe um único
dragão. Se você o matou, não há nada na floresta que possa lhes fazer mal. Ele
era o deus a quem Olmec adorava; e Olmec fazia sacrifícios humanos para ele,
oferecendo-lhe os mais velhos e os mais jovens entre nós, amarrados e lançados
pela muralha! Depressa! Olmec levou Valéria para a Câmara d...
Sua cabeça
despencou bruscamente para trás, e ele estava morto antes que caísse ao chão.
Conan se
ergueu de um pulo, com os olhos faiscando como brasas. Então, era aquele o
plano de Olmec, depois de ter usado os forasteiros para destruírem seus
inimigos! Ele deveria saber que algo desse tipo estaria passando pela cabeça
daquele degenerado de barba negra.
O cimério se
dirigiu para Tecuhltli com velocidade indiferente. Rapidamente, ele calculou o
número de seus ex-aliados. Apenas 21, incluindo Olmec, haviam sobrevivido
àquela batalha demoníaca na sala do trono. Três homens haviam morrido desde
então, o que deixava 17 inimigos. Em sua raiva, Conan se sentia capaz de dar
conta de todo o clã sozinho.
Mas a astúcia
inata do selvagem apareceu para guiar sua fúria berserk. Ele se lembrou do aviso de Techotl sobre uma cilada. Era
bastante provável que o príncipe tomasse tais providências, caso Topal falhasse
em sua missão. Olmec esperaria que ele retornasse pelo mesmo caminho que
seguira ao ir para Xotalanc.
Conan ergueu o
olhar para uma clarabóia sob a qual passava, e percebeu o brilho indistinto de
estrelas. Elas ainda não haviam começado a se empalidecer com a aurora. Os
eventos daquela noite aconteceram num espaço de tempo relativamente curto.
Ele se desviou
de seu caminho direto, e desceu uma escada em espiral até o andar de baixo. Ele
não sabia onde ficava a porta que levava para dentro do castelo naquele andar,
mas sabia que poderia encontrá-la. Como arrombaria as trancas, ele não sabia; acreditava
que as portas de Tecuhltli estavam todas fechadas e trancadas, até mesmo pela
força do hábito de meio século. Mas o único jeito era tentar.
De espada na
mão, ele avançou rápida e silenciosamente por um labirinto de salas e
corredores escuros, ou iluminados por verde. Ele sabia que já devia estar perto
de Tecuhltli, quando um som o fez parar. Ele reconheceu do que se tratava: um
ser humano tentando gritar através de uma mordaça asfixiadora. O som vinha de
algum lugar à sua frente e à esquerda. Nestas câmaras silenciosas como a morte,
um som baixo percorria um longo caminho.
Conan virou
para o lado e seguiu o som, o qual continuava sendo repetido. Logo ele
assistia, de um vão de porta, a uma cena bizarra. Na sala para a qual olhava,
havia uma mesa baixa de ferro, em forma de cavalete, no chão, e uma figura
gigante estava deitada e amarrada. Sua cabeça descansava numa cama de pregos de
ferro, cujas pontas já estavam vermelhas com o sangue onde já haviam penetrado
no couro cabeludo. Um mecanismo em forma de touca lhe envolvia a cabeça, mas de
forma que a faixa de couro não protegia seu couro cabeludo dos espetos. Esta
touca estava conectada, através de uma corrente fina, ao mecanismo que
sustentava uma enorme bola de ferro, a qual estava suspensa acima do peito
peludo do prisioneiro. Enquanto o homem conseguisse se forçar a ficar imóvel, a
bola de ferro ficava no seu lugar. Mas, quando a dor causada pelas pontas de
ferro o forçava a levantar a cabeça, a bola descia alguns centímetros. Os músculos
doloridos do pescoço não agüentariam manter sua cabeça em sua posição
não-natural, e ela cairia de volta nos pregos. Era óbvio que a bola finalmente
o esmagaria, de forma lenta e inexorável. A vítima estava amordaçada e, acima
da mordaça, seus grandes olhos bovinos rolavam desvairados para o homem na
entrada, o qual permanecia em pasmo silencioso. O homem na mesa de tortura era
Olmec, príncipe de Tecuhltli.
6) Os Olhos de Tascela
- Por que me
trouxe até este quarto, para enfaixar minha perna? – indagou Valéria – Você não
poderia fazer isso na sala do trono?
Ela se sentava
num leito, com sua perna ferida esticada, e a mulher tecuhltli havia acabado de
enfaixá-la com bandagens de seda. A espada, manchada de vermelho, de Valéria
estava no leito ao lado.
Ela franziu a
testa enquanto falava. A mulher havia executado sua tarefa silenciosa e
eficientemente, mas Valéria não gostava do toque demorado e carinhoso dos dedos
esguios dela, nem da expressão em seus olhos.
- Levaram o
restante dos feridos para os outros quartos. – respondeu a mulher na fala suave
das mulheres tecuhltlis, a qual, de alguma forma, não sugeria suavidade nem
gentileza em quem falava. Pouco tempo antes, Valéria tinha visto esta mesma mulher
apunhalar uma xotalanca no peito e arrancar, com uma pisada, os olhos de um
xotalanca ferido.
- Levarão os
cadáveres dos mortos para dentro das catacumbas – ela acrescentou –, para que os
fantasmas não fujam para os quartos e fiquem lá.
- Você
acredita em fantasmas? – perguntou Valéria.
- Sei que o
fantasma de Tolkemec mora nas catacumbas. – ela respondeu com um calafrio – Eu
já o vi uma vez, enquanto me escondia numa cripta entre os ossos de uma rainha
morta. Passou por mim na forma de um velho, com barba e cabelos brancos e
abundantes, e olhos luminosos que brilhavam no escuro. Era Tolkemec; eu o vi
vivo, quando eu era criança, e o vi sendo torturado.
A voz dela se
tornou um sussurro amedrontado:
- Olmec ri,
mas sei que o fantasma de Tolkemec mora nas catacumbas! Dizem que são ratos,
que mastigam a carne dos ossos dos recém-mortos... mas fantasmas comem carne.
Quem sabe o que...
Ela olhou
rapidamente para cima, quando uma sombra caiu de um lado a outro do leito.
Valéria ergueu os olhos, para ver Olmec olhando para ela. O príncipe havia limpado
a mão, torso e barba do sangue que os salpicava, mas ele não havia vestido sua
túnica; e seu enorme e escuro corpo e membros sem pêlos renovavam a impressão de
força bestial em sua natureza. Seus profundos olhos negros ardiam com uma luz
mais elementar, e havia a sugestão de contração nos dedos que puxavam a espessa
barba preto-azulada.
Ele olhou
fixamente para a mulher, e ela se levantou e saiu do quarto. Enquanto passava
pela porta, ela lançou um olhar para trás em direção a Valéria – um olhar cheio
de escárnio cínico e zombaria obscena.
- Ela fez um
trabalho mal-feito. – criticou o príncipe, aproximando-se do divã e curvando-se
sobre a bandagem – Deixe-me ver...
Com rapidez
espantosa para seu tamanho, ele agarrou a espada dela e a lançou para o outro
lado do quarto. Seu próximo passo foi agarrá-la com os braços gigantes.
Apesar do
movimento ter sido rápido e inesperado, ela quase o igualou; pois, no momento em
que ele a agarrou, o punhal de Valéria estava na mão dela, que o dirigiu
mortalmente à garganta dele. Mais por sorte do que por habilidade, ele lhe
agarrou o pulso, e então começou uma luta selvagem. Ela o enfrentava com
punhos, pés, joelhos, dentes e unhas, com toda a força de seu corpo magnífico e
todo o conhecimento de luta corpo-a-corpo que adquirira em anos de andanças e
combates no mar e na terra. Isso de nada adiantou contra a força bruta dele.
Ela perdeu o punhal no primeiro momento de contato, e depois se viu incapaz de
causar qualquer dor perceptível no gigante que a atacava.
O brilho em
seus estranhos olhos negros não se alterou, e a expressão deles a encheu de
fúria, atiçada pelo sorriso sardônico que parecia estar esculpido nos seus
lábios barbados. Aqueles olhos e sorriso continham todo o cinismo cruel que se
esconde sob a máscara de uma raça sofisticada e degenerada; e, pela primeira
vez na vida, Valéria sentiu medo de um homem. Era como lutar contra alguma
enorme força da Natureza; seus braços de ferro lhe frustravam os esforços, com
uma facilidade que fez o pânico lhe percorrer os membros. Ele parecia
insensível a qualquer dor que ela pudesse lhe infligir. Somente uma vez, quando
ela afundou selvagemente os dentes brancos em seu pulso, ele reagiu. E foi uma
reação brutal: ele golpeou-lhe o lado da cabeça, de modo que estrelas brilharam
diante dos olhos dela, e sua cabeça rolou sobre os ombros.
A camisa dela
fora aberta durante a luta e, com cínica crueldade, ele esfregou a barba
espessa nos seus seios nus, fazendo o sangue se espalhar na pele clara, e
arrancando um grito de dor e ultrajada fúria dela. Sua resistência convulsiva
era inútil; foi deitada num leito, desarmada e ofegante, seus olhos ardendo
como os de um tigre capturado.
No momento
seguinte, ele corria do quarto, carregando-a nos braços. Ela não ofereceu resistência,
mas o brilho em seus olhos mostrou que ela era, pelo menos, indomável no
espírito. Ela não gritou. Sabia que Conan estava longe do alcance da voz, e não
lhe ocorrera que alguém em Tecuhltli ia se opor ao príncipe deles. Mas ela
percebeu que Olmec avançava furtivamente, com a cabeça virada para um lado,
como se aguçasse os ouvidos para possíveis sons de perseguição; e ele não
retornou à sala do trono. Ele a carregou através de uma porta oposta àquela
pela qual entrara, atravessou outra sala e começou a percorrer silenciosamente
um salão. Quando percebeu que ele temia alguma oposição ao rapto, ela lançou a
cabeça para trás e soltou um grito agudo com toda a força de sua voz vigorosa.
Foi castigada
por um tapa que a deixou meio atordoada, e Olmec apressou seu passo para uma
corrida desajeitada.
Mas o grito
dela havia ecoado e, virando a cabeça, Valéria, apesar das lágrimas e estrelas
que a cegavam parcialmente, viu Techotl claudicando atrás deles.
Olmec girou
rosnando e colocou a mulher numa posição desconfortável e certamente indigna
sob um dos enormes braços, onde ele a segurou enquanto ela se contorcia e
chutava em vão, como uma criança.
- Olmec! –
protestou Techotl – Você não pode ser tão cachorro para fazer isto! Ela é a
mulher de Conan! Ela nos ajudou a matar os xotalancas, e...
Sem uma
palavra, Olmec fechou a mão livre e deixou o ferido guerreiro estirado e
inconsciente aos seus pés com um murro. Curvando-se e sem se incomodar com as
contorções e imprecações de sua cativa, ele desembainhou a espada de Techotl e
a enfiou no peito do guerreiro. Então, lançando a arma para um lado, ele voltou
a fugir pelo corredor. Ele não viu o rosto escuro de uma mulher, espionando-o
cautelosamente por trás de uma cortina. O rosto desapareceu, e em seguida
Techotl gemeu e se agitou, ergueu-se atordoado e cambaleou como um bêbado para
longe dali, chamando o nome de Conan.
Olmec chegou
ao fim do corredor e desceu uma escada de marfim em espiral. Ele atravessou
vários corredores, e finalmente parou numa câmara larga, cujas portas estavam
cobertas por pesadas tapeçarias, com exceção de uma: uma pesada porta de
bronze, semelhante à Porta de Águia no andar superior.
Ele resmungou
e apontou para ela:
- Esta é uma
das portas externas de Tecuhltli. Pela primeira vez em 50 anos, está
desguarnecida. Não precisamos mais de guardas, pois Xotalanc não existe mais.
- Graças a
Conan e a mim, seu patife sanguinário! – escarneceu Valéria, tremendo de fúria
e vergonha pela humilhação física – Seu cão traiçoeiro! Conan vai cortar sua
garganta por isto!
Olmec não se
preocupou em enunciar sua convicção de que a própria garganta de Conan já fora
cortada, de acordo com sua ordem sussurrada. Ele era cínico demais para se
interessar pelos pensamentos e opiniões dela. Seus olhos flamejantes a
devoravam, demorando-se ardentemente nas generosas extensões de pele branca
exposta, onde a camisa e calções haviam sidos rasgados na luta.
- Esqueça
Conan. – ele disse guturalmente – Olmec é o senhor de Xuchotl. Xotalanc acabou.
Não haverá mais luta. Passaremos nossas vidas bebendo e fazendo amor. Primeiro
vamos beber!
Ele se sentou
a uma mesa de marfim e a forçou a se sentar no seu colo, como um sátiro de pele
escura com uma ninfa branca nos braços. Ignorando-lhe as imprecações – nada
condizentes com uma ninfa –, ele a abraçava indefesa com um dos grandes braços
ao redor da cintura dela, enquanto o outro braço se estirava sobre a mesa e
pegava um vaso de vinho.
- Beba! – ele
ordenou, forçando-lhe o vaso nos lábios, enquanto ela retraía a cabeça.
A bebida se
derramou, lhe ardendo nos lábios e se esparramando em seus seios nus.
- Sua
convidada não aprecia seu vinho, Olmec. – disse uma voz fria e sardônica.
Olmec se
enrijeceu; o medo lhe cresceu nos olhos ardentes. Lentamente, ele girou a
grande cabeça e fitou Tascela, que posava negligentemente na porta com
cortinas, com uma das mãos no quadril macio. Valéria se virou com um puxão no
aperto férreo e, quando se deparou com os olhos ardentes de Tascela, um
calafrio lhe formigou pela espinha flexível. Novas experiências estavam
inundando o espírito orgulhoso de Valéria naquela noite. Acabara de aprender a
temer um homem; agora, ela sabia o que era temer uma mulher.
Olmec ficou
imóvel, com uma palidez cinzenta se espalhando pela pele escura. Tascela
mostrou a outra mão, que estava atrás das costas, e mostrou um pequeno vaso de
ouro.
- Tive receio
de que ela não gostasse de seu vinho, Olmec – ronronou a princesa –, e por
isso, eu trouxe um pouco do meu; um pouco do que eu trouxe comigo, há muito
tempo, das margens do lago Zuad... está entendendo Olmec?
Gotas de suor
brotaram subitamente da testa de Olmec. Seus músculos afrouxaram, e Valéria
escapou e pôs a mesa entre eles. Mas, embora a razão lhe dissesse para sair
correndo daquela sala, algum encanto que ela não conseguia entender a mantinha
rígida, assistindo à cena.
Tascela se
aproximou do príncipe sentado, com um caminhar oscilante e ondulante que era a
própria encarnação da zombaria. A voz dela era suave e indistintamente carinhosa,
mas seus olhos brilhavam. Seus dedos esguios brincaram com a barba dele.
- Você é
egoísta, Olmec. – ela cantou de forma sentimental – Queria manter nossa bela
convidada com você, embora sabendo que eu também desejo entretê-la. Muita negligência
de sua parte, Olmec!
A máscara caiu
por um instante: seus olhos cintilaram, seu rosto se retorceu e, com uma
assustadora demonstração de força, sua mão se fechou convulsivamente na barba
dele, arrancando-lhe um grande punhado da mesma. Esta evidência de força
não-natural não era mais aterradora do que a demonstração momentânea da fúria
infernal que esbravejava sob sua aparência branda.
Olmec se
ergueu cambaleante com um rugido, e ficou oscilando como um urso, suas mãos
enormes se fechando e abrindo.
- Vadia! – Sua
voz estrondosa ecoou pela sala – Bruxa! Demônia! Tecuhltli deveria ter lhe
matado há 50 anos! Vá embora! Já lhe agüentei demais! Esta jovem de pele branca
é minha! Saia daqui, antes que eu lhe mate!
A princesa riu
e arremessou os pêlos ensangüentados no rosto dele. Sua risada era menos
piedosa que o tinir do sílex no aço.
- Outrora,
você falava diferente, Olmec. – ela escarneceu – Outrora, na sua juventude,
você falava palavras de amor. Sim, você já foi meu amante, anos atrás, e, por
me amar, dormia em meus braços sob o lótus encantado... e, deste modo, pôs em
minhas mãos as correntes que lhe escravizaram. Você sabe que não pode resistir
a mim. Você sabe que só preciso lhe olhar nos olhos, com o poder místico que um
sacerdote da Stygia me ensinou há muito tempo, e você fica impotente. Você se
lembra daquela noite, debaixo do lótus negro que ondulava sobre nós, agitado
por uma brisa que não era terrena; você fareja novamente os perfumes
sobrenaturais, que deslizavam furtivamente e se erguiam como uma nuvem ao seu
redor, para lhe escravizar. Você não pode lutar contra mim. Você é meu escravo,
como foi naquela noite... e como continuará sendo enquanto viver, Olmec de
Xuchotl!
A voz dela
havia se tornado um murmúrio, semelhante à agitação de um curso d’água pela
escuridão iluminada por estrelas. Ela se curvou sobre o príncipe e estirou os
longos dedos delgados sobre o peito gigante dele. Seus olhos resplandeceram e
suas grandes mãos lhe caíram moles dos lados do corpo.
Com um sorriso
de malícia cruel, Tascela ergueu o vaso e o colocou nos lábios dele.
- Beba!
Mecanicamente,
o príncipe obedeceu. E instantaneamente o olhar vítreo desapareceu, e seus
olhos foram inundados com fúria, compreensão e um medo terrível. Sua boca se abriu,
mas nenhum som saiu dela. Por um instante, ele cambaleou sobre os joelhos que
se dobravam, e então caiu como um amontoado flácido sobre o chão.
A queda dele
arrancou Valéria de sua paralisia. Ela girou e saltou em direção à porta, mas,
com um movimento de causar inveja ao pulo de uma pantera, Tascela ficou à sua
frente. Valéria dirigiu-lhe um soco no qual pôs toda a força de seu corpo
flexível. Mas, com uma ágil torção de seu torso, Tascela evitou o golpe e
agarrou o pulso de Valéria. No instante seguinte, a mão direita de Valéria
estava presa e, juntando-lhe os pulsos com uma única mão, Tascela os amarrou
calmamente com uma corda à qual puxou do cinto. Valéria pensava já ter
saboreado a pior das humilhações naquela noite, mas sua vergonha em ter sido tratada
brutalmente por Olmec não era nada, comparada às sensações que agora lhe
sacudiam o corpo flexível. Valéria sempre teve tendência a desprezar outros
membros do seu sexo; e era constrangedor encontrar outra mulher que pudesse
tratá-la como uma criança. Quase não reagiu, quando Tascela a forçou a se sentar
e, puxando seus pulsos amarrados para os joelhos de Valéria, amarrou-os à
cadeira.
Pisoteando
casualmente Olmec, Tascela andou até a porta de bronze, tirou a tranca e a
escancarou, revelando um saguão externo.
- Neste salão
– ela disse, dirigindo-se pela primeira vez à sua prisioneira –, há uma câmara
que, nos velhos tempos, era usada como sala de tortura. Quando nos retiramos
para Tecuhltli, trouxemos quase toda a aparelhagem conosco, mas havia um aparelho
pesado demais para ser levado. Ainda funciona perfeitamente. Acho que ele será
bem conveniente agora.
Uma chama de
compreensão e terror se ergueu nos olhos de Olmec. Tascela caminhou de volta
até ele, curvou-se e o agarrou pelos cabelos.
- Só está momentaneamente
paralisado. – ela comentou, em tom de conversa – Ele pode ouvir, pensar e
sentir... ah, ele pode realmente sentir muito bem!
Com esta
observação sinistra, ela se dirigiu à porta, arrastando o gigante com uma
facilidade que fez os olhos da pirata se arregalarem. Ela adentrou o salão e
andou nele sem hesitar, logo desaparecendo com seu prisioneiro dentro de uma
câmara que se abria lá dentro, e da qual logo depois saiu o ruído do ferro.
Valéria
praguejou baixinho e se contorceu em vão, com suas pernas amarradas na cadeira.
As cordas que a prendiam eram aparentemente inquebráveis.
Tascela logo
retornou sozinha; atrás dela, um gemido abafado saía da câmara. Ela fechou a
porta, mas não a trancou. Tascela não estava presa a hábitos, como também não estava
presa a outros instintos e emoções humanas.
Valéria ficou
sentada em silêncio, observando a mulher em cujas mãos delgadas, a pirata
percebeu, repousavam seu destino.
Tascela lhe
agarrou as madeixas loiras, forçando-lhe a cabeça para trás e olhando impessoalmente
para seu rosto. Mas o brilho de seus olhos escuros não era impessoal.
- Eu lhe
escolhi para uma grande honra. – ela disse – Você irá restaurar a juventude de
Tascela. Ah, você me vê assim! Minha aparência é esta, de juventude, mas em minhas
veias, rasteja o frio inerte da velhice se aproximando, como já senti mil vezes
antes. Sou velha, tão velha que não me lembro da minha infância. Mas já fui uma
jovem, e um sacerdote da Stygia me amou e revelou-me o segredo da imortalidade
e da eterna juventude. Depois, ele morreu... alguns disseram que foi
envenenado. Mas eu morei em meu palácio às margens do Lago Zuad, e o passar dos
anos não me afetava. Até que finalmente, um rei da Stygia me desejou, e meu
povo se rebelou e me trouxe até esta terra. Olmec me chamava de princesa. Não
tenho sangue real. Sou maior que uma princesa. Sou Tascela, cuja juventude a
sua própria e gloriosa juventude vai restaurar.
A língua de
Valéria ficou pregada ao céu da boca. Ela sentiu ali um mistério mais obscuro
que a degeneração à qual pressentira.
A mulher mais
alta desamarrou os pulsos da aquiloniana e a colocou de pé. Não era o medo da
força superior, oculta nos membros da princesa, que fazia de Valéria uma
prisioneira trêmula. Eram os ardentes, hipnóticos e terríveis olhos de Tascela.
7) Ele Vem das Trevas
- Bem, eu sou
um kushita! – Conan olhou para o homem sobre o cavalete de ferro: – O que
diabos está fazendo em cima dessa coisa?
Sons
incoerentes saíram de trás da mordaça, e Conan se curvou e tirou-a, arrancando
um bramido de medo do cativo; pois seu ato havia feito com que a bola de ferro
descesse até quase tocar o peito largo.
- Tenha
cuidado, em nome de Set! – implorou Olmec.
- Por quê? –
indagou Conan – Acha que eu me importo com o que acontece com você? Só queria ter
tempo de ficar aqui e ver esse pedaço de ferro esmagar suas entranhas. Mas
estou com pressa. Onde está Valéria?
- Solte-me! –
suplicou Olmec – Eu lhe contarei tudo!
- Conte-me
primeiro.
- Nunca! – As
mandíbulas pesadas do príncipe se fecharam teimosamente.
- Tudo bem. –
Conan se sentou num banco próximo – Eu a encontrarei sozinho, depois que você
virar geléia. Creio que posso acelerar o processo, girando a ponta de minha
espada em sua orelha. – ele acrescentou, estendendo a arma de forma
experimental.
- Espere! – As
palavras saíram rapidamente dos lábios empalidecidos do prisioneiro – Tascela
tirou-a de mim. Nunca passei de um boneco nas mãos de Tascela.
- Tascela? –
Conan rosnou e cuspiu – Ora, aquela imunda...
- Não, não! –
ofegou Olmec – É pior do que você pensa. Tascela é velha... tem séculos de
idade. Ela renova sua vida e juventude, sacrificando mulheres bonitas e jovens.
É uma das coisas que reduziu o clã ao estado atual. Ela vai sugar a essência da
vida de Valéria para o próprio corpo, e florescerá com vigor e beleza
renovados.
- As portas
estão trancadas? – perguntou Conan, passando o polegar no fio da espada.
- Sim! Mas
conheço um caminho para entrar em Tecuhltli. Somente eu e Tascela conhecemos, e
ela acha que estou indefeso e você está morto. Liberte-me, e juro que lhe
ajudarei a salvar Valéria. Sem minha ajuda, você não conseguirá alcançar
Tecuhltli; pois, mesmo que você me torturasse até eu lhe revelar o segredo,
você não conseguiria usá-lo. Solte-me, e pegaremos Tascela de surpresa e a
mataremos, antes que ela possa usar a magia... antes que ela possa fixar os
olhos dela nos nossos. Uma faca nas costas fará o serviço. Eu deveria tê-la
matado desse jeito há muito tempo, mas temia que, sem ela para nos ajudar, os
xotalancas nos derrotassem. Ela também precisava de minha ajuda, e esta é a
única razão pela qual me deixou viver até agora. Agora, nenhum de nós precisa
do outro, e um tem que morrer. Juro que, depois de matarmos aquela bruxa, você
e Valéria estarão livres e poderão partir tranqüilamente. Meu povo me obedecerá
quando Tascela estiver morta.
Conan se
curvou e cortou as cordas que amarravam o príncipe, e Olmec deslizou
cautelosamente sob a bola enorme e se levantou, sacudindo a cabeça como um
touro e murmurando pragas enquanto passava os dedos na nuca ferida.
Ombro a ombro,
os dois homens eram um quadro impressionante de força primitiva. Olmec era tão
alto quanto Conan e mais corpulento; mas havia algo de repulsivo no tlazitlano,
algo abismal e monstruoso que contrastava desfavoravelmente com a firmeza
escultural do cimério. Conan havia tirado os restos de sua camisa esfarrapada e
encharcada de sangue, e sua extraordinária massa muscular se revelava de forma
impressionante. Seus ombros poderosos eram tão largos quanto os de Olmec, e
mais bem-torneados; e seu peito enorme tinha uma curva mais impressionante e se
afunilava até uma cintura firme, a qual não tinha o volume abdominal do torso
de Olmec. Ele poderia ser uma imagem de força primitiva, esculpida em bronze.
Olmec era mais escuro, mas não devido ao sol. Se Conan parecia ter saído da
aurora do tempo, Olmec era uma figura desengonçada e sombria, saída das trevas
da madrugada primordial.
- Mostre o
caminho. – Conan ordenou – E fique à minha frente. Não confio em você, mais do
que confiaria em segurar um touro pela cauda.
Olmec deu a
volta e andou altivamente adiante dele, com uma das mãos se retorcendo
levemente enquanto puxava a barba emaranhada.
Olmec não
guiou Conan de volta à porta de bronze, à qual o príncipe naturalmente achou
que Tascela houvesse trancado, mas a certa câmara na fronteira de Tecuhltli.
- Este segredo
ficou guardado por meio século. – ele disse – Nem mesmo nosso próprio clã o
conhecia, e os xotalancas jamais descobriram. O próprio Tecuhltli construiu
esta entrada secreta e depois matou os escravos que realizaram o trabalho, pois
temia se ver isolado do próprio reino por causa do rancor de Tascela, cuja
paixão por ele logo se transformou em ódio. Mas ela descobriu o segredo, e
trancou a porta secreta contra ele, num dia em que ele voltava fugindo de uma
incursão mal-sucedida, e os xotalancas o pegaram e esfolaram. Mas uma vez,
espionando-a, eu a vi adentrar Tecuhltli por este caminho, e assim aprendi o
segredo.
Ele pressionou
um ornamento dourado na parede, e um painel girou para dentro, mostrando uma
escada de marfim que levava para cima.
- Esta escada
foi construída dentro da parede. – disse Olmec – Ela leva até uma torre acima
do teto, e de lá, outras escadas descem para as várias câmaras. Depressa!
- Depois de
você, companheiro. – Conan retrucou satiricamente, balançando sua espada larga
enquanto falava, e Olmec encolheu os ombros e subiu a escada. Conan instantaneamente
o seguiu, e a porta se fechou atrás deles. Lá em cima, um cacho de jóias de
fogo fazia a escada parecer o poço de um dragão.
Subiram até
Conan calcular que estavam acima do nível do quarto andar, e logo adentraram
uma torre cilíndrica, em cujo teto abobadado estavam encaixados os cachos de
jóias de fogo que iluminavam a escada. Através de janelas com grades de ouro, encaixadas
com inquebráveis chapas de cristal – as primeiras janelas que ele via em Xuchotl
–, Conan teve um vislumbre de telhados altos, abóbadas e mais torres, avultando
obscuramente contra as estrelas. Estavam olhando para os tetos de Xuchotl.
Olmec não
olhou pelas janelas. Ele desceu correndo uma das muitas escadas que
serpenteavam para baixo desde as torres e, após terem descido um pouco, esta
escada se tornou um corredor estreito que continuava serpenteando tortuosamente
por alguma distância. Ele terminava numa escada íngreme que guiava para baixo.
Olmec parou ali.
Lá de baixo,
abafado, mas inconfundível, fluiu o grito de uma mulher, carregado de medo,
fúria e vergonha. E Conan reconheceu a voz de Valéria.
Na fúria
imediata, despertada por aquele grito, e no assombro de perguntar a si mesmo
qual perigo poderia arrancar tal guincho dos lábios destemidos de Valéria, Conan
esqueceu Olmec. Ele passou pelo príncipe e desceu a escada. O instinto o fez
girar novamente, no exato momento em que Olmec o golpeava com seu punho em
forma de marreta. O golpe, feroz e silencioso, foi dirigido à base da cabeça de
Conan. Mas o cimério girou a tempo de receber o soco no lado do pescoço. O
impacto quebraria as vértebras de um homem mais fraco. Conan cambaleou para
trás, mas, mesmo perdendo o equilíbrio, ele deixou cair sua espada, inútil
naquela curta distância, e agarrou o braço esticado de Olmec, arrastando o
príncipe consigo na queda. Rolaram juntos pelos degraus, num turbilhão
giratório de membros, cabeças e corpos. E, enquanto rolavam, os dedos férreos
de Conan encontraram e apertaram a garganta taurina de Olmec.
O pescoço e o
ombro do bárbaro estavam dormentes devido ao impacto do poderoso soco de Olmec,
no qual fora colocada toda a força do maciço antebraço, tríceps volumoso e
grande ombro. Mas isto não lhe afetou a ferocidade. Como um mastim, ele se agarrou
sombriamente enquanto rolavam, até finalmente baterem numa porta de marfim lá
embaixo, com tal impacto que a despedaçaram. Mas Olmec já estava morto, pois
aqueles dedos de ferro lhe haviam quebrado o pescoço durante a queda.
Conan se
levantou, sacudindo as lascas dos ombros poderosos e tirando o sangue e poeira
de seus olhos.
Ele estava na
grande sala do trono. Havia 15 pessoas naquele local, além dele mesmo. A
primeira a quem viu foi Valéria. Havia um curioso altar negro diante da plataforma
do trono. Enfileiradas ao redor, sete velas negras em sete castiçais lançavam
para o alto espirais de densa fumaça verde, de cheiro perturbador. Estas
espirais se uniam numa nuvem próxima ao teto, formando um arco fumegante acima
do altar. Naquele altar, Valéria estava deitada, completamente nua, sua pele
branca brilhando em contraste chocante com a cintilante pedra cor-de-ébano. Não
estava amarrada. Estava simplesmente deitada, com os braços estirados acima da
cabeça. Numa ponta do altar, ajoelhava-se um jovem, segurando-lhe firmemente os
braços. Uma jovem se ajoelhava na outra extremidade, agarrando-lhe os
tornozelos. Entre eles, ela não conseguia se erguer nem mexer.
Onze homens e
mulheres de Tecuhltli se ajoelhavam em silêncio num semicírculo, assistindo à
cena com olhos ardentes e lascivos.
No trono de
marfim, Tascela se recostava indolentemente. Tigelas de bronze, contendo
incenso, rolavam suas espirais ao redor dela; os pequenos feixes de fumaça se
encaracolavam ao redor de seus membros nus, como dedos que acariciavam. Não conseguia
se sentar quieta: ela se torcia e mexia em abandono sensual, como se sentindo
prazer no contato do marfim liso com sua pele macia.
O espatifar da
porta, quando ela se quebrou sob o impacto dos corpos, não causou mudança na
cena. Os homens e mulheres ajoelhados simplesmente olharam sem curiosidade para
o cadáver de seu príncipe, e para o homem que se erguia das ruínas da porta, e
logo voltaram a olhar avidamente para a forma branca que se contorcia sobre o
altar negro. Tascela o olhou de forma insolente e voltou a se esparramar em seu
trono, rindo zombeteiramente.
- Cadela!
A visão de
Conan ficou vermelha. Suas mãos se fecharam como martelos de ferro, quando ele
avançou em direção a ela. Ao dar seu primeiro passo, algo retiniu alto e o aço
lhe mordeu selvagemente a perna. Ele cambaleou e quase caiu, interrompido em
sua corrida impetuosa. As mandíbulas de uma armadilha de ferro haviam se fechado
em sua perna, com dentes que afundavam e seguravam. Somente os músculos
poderosos de sua panturrilha impediram que o osso se quebrasse. A coisa maldita
havia saído do chão flamejante repentinamente e sem aviso. Agora ele via as
fendas, no chão onde as mandíbulas haviam estado, perfeitamente camufladas.
- Idiota! –
riu Tascela – Achou que eu não ia me prevenir para o seu possível retorno? Cada
porta desta sala possui armadilhas como essa. Agora fique aí e veja, enquanto
cumpro o destino de sua bela amiga! Depois decidirei o seu.
A mão de Conan
buscou instintivamente o cinto, apenas para encontrar uma bainha vazia. Sua
espada estava na escadaria atrás dele. Seu punhal ficara lá na floresta, onde o
dragão o havia arrancado da mandíbula. Os dentes de aço em sua perna queimavam
como carvão, mas a dor não era tão feroz quanto a fúria que lhe fervia na alma.
Estava preso numa armadilha, como um lobo. Se ele tivesse sua espada ao
alcance, cortaria a própria perna e se arrastaria pelo chão para matar Tascela.
Os olhos de Valéria viraram para ele, com um apelo mudo, e sua própria condição
indefesa fazia ondas de loucura rolarem pelo seu cérebro.
Ajoelhando-se
sobre sua perna livre, ele tentou enfiar seus dedos entre os dentes da
armadilha, para abri-los com pura força bruta. O sangue brotava sob suas unhas,
mas as mandíbulas se fechavam ao redor de sua perna num círculo tão fechado,
que não havia espaço entre sua carne dolorida e o aço com presas. A visão do
corpo nu de Valéria só fazia aumentar ainda mais o fogo de sua raiva.
Tascela o
ignorou. Erguendo-se languidamente de seu trono, ela percorreu as fileiras de
seus súditos com um olhar investigador, e perguntou:
- Onde estão
Xamec, Zlanath e Tachic?
- Eles não
voltaram das catacumbas, princesa. – respondeu um homem – Assim como nós, eles
levaram os corpos dos mortos para dentro das criptas, mas não retornaram.
Talvez o fantasma de Tolkemec os tenha levado.
- Cale-se,
idiota! – ela ordenou rudemente – Aquele fantasma é um mito.
Ela desceu da
plataforma, brincando com uma fina adaga de cabo dourado. Seus olhos brilhavam
como o inferno. Parou ao lado do altar, e falou em meio àquela tensa quietude.
- Sua vida me
rejuvenescerá, mulher branca! – ela disse – Vou me inclinar sobre seu peito e
colocar meus lábios sobre os seus; e devagar... ah, bem devagar!... afundarei
esta lâmina em seu coração, de modo que sua vida, saindo de seu corpo que
enrijece, entrará no meu e me fará florescer novamente em juventude e vida
eterna!
Lentamente,
como uma serpente prestes a dar o bote, ela se curvou, através da fumaça que se
retorcia, cada vez mais perto da mulher agora imóvel, a qual lhe mirava os
incandescentes olhos escuros – olhos que ficavam maiores e mais profundos,
brilhando como luas negras na fumaça que remoinhava.
As pessoas ajoelhadas
juntaram suas mãos e prenderam a respiração, ansiosas pelo clímax sangrento; o
único som ali era o ofegar feroz de Conan, enquanto ele se esforçava para
livrar a perna da armadilha.
Todos os olhos
estavam fixos no altar e na figura branca sobre ele; o estrondo de um trovão
dificilmente quebraria o feitiço, mas foi apenas uma exclamação discreta que
despedaçou a imobilidade da cena e fez todo mundo girar rapidamente – uma
exclamação discreta, mas suficiente para arrepiar os cabelos. Eles olharam e viram.
Emoldurada na
porta à esquerda da plataforma do trono, havia uma figura de pesadelo. Era um
homem, com emaranhados cabelos brancos e desgrenhada barba branca que lhe caía
no peito. Farrapos só cobriam parcialmente sua forma magra, revelando membros seminus
de aparência estranhamente não-natural. A pele não era a de um humano normal.
Havia uma sugestão de escamas, como
se o dono tivesse vivido muito tempo em condições quase opostas àquelas onde a
vida humana normalmente floresce. E não havia nada de humano nos olhos que
ardiam sob os emaranhados cabelos brancos. Eram grandes discos brilhantes que
não piscavam; eram luminosos, esbranquiçados e sem qualquer insinuação de
emoções e sanidade normais. A boca se abriu, mas não saíram palavras coerentes
– apenas uma risada.
- Tolkemec! –
sussurrou Tascela, pálida, enquanto os outros se encolhiam em horror mudo –
Então, não era mito nem fantasma! Por Set! Você viveu durante 12 anos na escuridão!
Doze anos entre os ossos dos mortos! Que comida medonha você achou? Que louca
paródia de vida você viveu, na total escuridão da noite eterna? Agora vejo por
que Xamec, Zlanath e Tachic não retornaram das catacumbas... e jamais
retornarão. Mas por que demorou tanto? Estava procurando alguma coisa nos
fossos? Alguma arma secreta que você sabia estar oculta lá? E você finalmente a
achou?
A horrível
risada baixa foi a única resposta de Tolkemec, quando ele saltou para dentro da
sala, com um longo pulo que o fez passar por cima da armadilha secreta diante
da porta – por sorte, ou por alguma vaga lembrança dos costumes de Xuchotl. Ele
não era louco no sentido comum da palavra. Havia vivido separado da humanidade
por tanto tempo, que não era mais humano. Somente um fio inquebrável de
memória, cristalizado em ódio e desejo de vingança, o deixara conectado com a
humanidade que o rejeitara e o manteve se espreitando próximo ao povo que
odiava. Apenas esta fina corda o impediu de correr e saltitar para sempre,
dentro dos corredores negros e domínios do mundo subterrâneo que ele descobrira,
há muito tempo.
- Você
procurava algo oculto. – sussurrou Tascela, recuando – E você o encontrou! Você
se lembra da rixa. Após todos esses anos de escuridão, você se lembra!
De fato, na
mão magra de Tolkemec agora ondulava um curioso cetro cor de jade, em cuja
extremidade brilhava um bulbo escarlate em forma de romã. Ela saltou para o
lado, quando ele a apontou como uma lança e um raio de fogo vermelho disparou
da romã. Ele errou Tascela, mas a mulher que segurava os tornozelos de Valéria
estava no caminho e foi atingida entre as espáduas. Houve um agudo crepitar, e
o raio de fogo lhe saiu do peito e atingiu o altar negro, com uma explosão de
fagulhas azuis. A mulher caiu de lado, se enrugando e murchando como uma múmia
enquanto desabava.
Valéria rolou para
o outro lado do altar, e se dirigiu engatinhando à parede oposta. Pois o
inferno estava solto na sala do trono do falecido Olmec.
O homem que
segurava as mãos de Valéria foi o próximo a morrer. Ele se virou para correr,
mas antes que desse meia-dúzia de passos, Tolkemec, com uma agilidade assustadora
para sua estrutura, girou e pulou até uma posição que pôs o homem entre ele e o
altar. Novamente, o raio de fogo vermelho brilhou, e o tecuhltli rolou sem vida
pelo chão, enquanto o relâmpago completava seu curso com uma explosão de
fagulhas azuis contra o altar.
Então começou
o massacre. Gritando loucamente, as pessoas tentaram sair da câmara,
esbarrando-se umas nas outras e caindo. E, entre elas, Tolkemec saltitava e se
saracoteava, distribuindo morte. Não podiam fugir pelas portas; pois,
aparentemente, o metal delas servia – assim como o altar de pedra raiado de
metal – para completar o trajeto do poder infernal que lampejava como trovão do
bastão mágico usado pelo velho. Quando pegava um homem ou mulher entre ele e
uma porta, ou o altar, a pessoa morria instantaneamente. Ele não escolhia uma
vítima específica. Acertava-as ao acaso, com seus trapos lhe balançando ao
redor dos membros que giravam selvagemente, e os ecos borrascosos de sua
risada, percorrendo a sala, mais altos que os gritos. E corpos caíam como
folhas de outono, ao redor do altar e diante das portas. Um guerreiro
desesperado correu até ele, erguendo uma adaga, apenas para tombar antes que
pudesse golpear. Mas o restante parecia uma manada enlouquecida, sem pensar em
resistir e sem chance de fugir.
O último
tecuhltli, com exceção de Tascela, havia caído, quando a princesa alcançou o
cimério e a garota que se abrigara ao lado dele. Tascela se abaixou e tocou o
chão, pressionando um desenho neste. Instantaneamente, as mandíbulas de ferro
soltaram o membro ensangüentado e voltaram para dentro do piso.
- Mate-o, se
puder! – ela ofegou, e lhe pôs um pesado punhal na mão – Não tenho magia para
enfrentá-lo!
Com um
grunhido, ele saltou à frente da mulher, sem se importar com a perna dolorida
no calor do desejo por luta. Tolkemec se aproximava dele, com os estranhos
olhos resplandecendo, mas hesitou ao ver o brilho da faca na mão de Conan.
Então, começou um jogo sombrio, quando Tolkemec procurou girar ao redor de
Conan e pegar o bárbaro entre ele e o altar ou uma porta de metal, enquanto
Conan procurava evitar isto e usar seu punhal. As mulheres assistiam tensas,
prendendo a respiração.
Não havia som
algum, exceto o sussurrar e raspar de pés que se deslocavam rapidamente.
Tolkemec não se saracoteava nem piruetava mais. Ele não estava diante de pessoas
que morreram gritando e fugindo. No brilho elementar dos olhos do bárbaro, ele
lia uma determinação de matar tão grande quanto a dele próprio. Eles se moviam
para trás e para a frente e, quando um se mexia, o outro também se movimentava,
como se fios invisíveis os prendessem um ao outro. O tempo todo, porém, Conan
foi se aproximando cada vez mais de seu inimigo. Os músculos contraídos de suas
coxas estavam começando a se dobrar para um pulo, quando Valéria gritou. Por um
rápido instante, uma porta de bronze ficou alinhada com o corpo em movimento de
Conan. A linha vermelha disparou, chamuscando o corpo de Conan quando girou
para o lado e, enquanto se esquivava, ele arremessou a faca. O velho Tolkemec
caiu, desta vez realmente morto, com o cabo lhe tremendo no peito.
Tascela
saltou, não em direção a Conan, mas até a vara que tremeluzia como uma coisa
viva no chão. Mas, quando ela saltou, Valéria fez o mesmo, segurando uma adaga
arrancada de um homem morto; e a lâmina, enfiada com toda a força dos músculos
da pirata, trespassou a princesa de Tecuhltli de modo que a ponta se sobressaiu
entre os seios. Tascela soltou um breve grito e caiu morta, e Valéria empurrou o
corpo com o calcanhar, enquanto ele caía.
- Eu tinha que
fazer isso, em nome do meu respeito próprio! – arfou Valéria, encarando Conan,
que estava do outro lado do corpo caído.
- Bom, isto
encerra a rixa. – ele grunhiu – Foi uma noite infernal! Onde essa gente
guardava sua comida? Estou faminto.
- Você precisa
de uma atadura nessa perna. – Valéria rasgou um pedaço grande de seda de uma
cortina e o prendeu ao redor da cintura, e depois arrancou tiras menores, as
quais ela amarrou eficazmente ao redor do membro ferido do bárbaro.
- Posso andar.
– ele a assegurou – Vamos embora. Já está amanhecendo do lado de fora desta
cidade infernal. Estou farto de Xuchotl. Ainda bem que a raça se exterminou
sozinha. Não quero nenhuma de suas malditas jóias. Elas podem estar
enfeitiçadas.
- Há bastante
pilhagem limpa no mundo, para mim e para você. – ela disse, endireitando-se até
ficar ereta e esplêndida diante dele.
A antiga chama
voltou aos olhos dele, e desta vez ela não ofereceu resistência quando ele a
agarrou ardentemente nos braços.
- É um longo
caminho até a costa. – ela disse dentro em pouco, retirando os lábios dos dele.
- Que importa?
– ele riu – Não há nada que não possamos conquistar. Já estaremos plantados no
convés de um navio, antes que os stígios abram seus portos para a temporada
comercial. E então, mostraremos ao mundo o que significa saquear!
FIM
(*) –
Basilisco: Serpente lendária, capaz
de matar com um simples bafo, olhar ou contato (Nota do Tradutor).
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.