Povo da Costa Negra

(por Robert E. Howard)

Escrito em 1928.



Isto vem da busca por prazer ocioso e – mas o que induziu este pensamento? Algum atavismo puritano oculto em meu cérebro desmoronado, eu acho. Certamente, em minha vida passada, nunca dei atenção para tais ensinos. De qualquer forma, deixem-me rabiscar minha curta e hedionda história, antes que irrompa a hora sangrenta e a morte grite através das praias.

Éramos dois, no início. Eu, é claro, e Gloria, que seria minha noiva. Gloria tinha um avião, e ela adorava voar naquela coisa – esse foi o começo de todo o horror. Tentei dissuadi-la naquele dia – eu juro que tentei! –, mas ela insistiu e decolamos de Manilha com destino a Guam. Por quê? O capricho de uma jovem imprudente, que nada temia e sempre ardia de entusiasmo por alguma aventura nova – algum esporte nunca tentado.

Sobre nossa chegada à Costa Negra, há pouco para contar. Um daqueles raros nevoeiros se ergueu; voamos acima dele e perdemos nosso caminho entre espessas nuvens que se encapelavam. Nós avançamos com dificuldade, sabe Deus a que distância de nossa rota, e finalmente caímos no mar, no exato momento em que avistávamos terra através da névoa que se erguia.

Nadamos ilesos, da aeronave que afundava, até chegarmos à praia, e nos vimos numa terra estranha e desagradável. Praias largas subiam das infinitas ondas preguiçosas até o pé dos imensos penhascos. Estes pareciam ser de rocha sólida e com muitas centenas de pés de altura. O material era basalto, ou coisa semelhante. Quando descíamos, no avião quebrado, eu havia tido tempo para olhar rapidamente em direção à praia, e me parecia que, além daqueles penhascos, se erguiam outros, mais altos, como se em camadas, trincheira sobre trincheira. Mas é claro que, erguendo-nos diretamente sob o primeiro, não poderíamos assegurar. Até onde olhávamos em ambas as direções, podíamos ver a pequena faixa de praia correndo ao pé dos penhascos negros, em silenciosa monotonia.

- Agora que estamos aqui – disse Gloria, um tanto abalada por nossa experiência recente –, o que faremos? Onde estamos?

- Não há como saber. – respondi – O Pacífico é cheio de ilhas inexploradas. Estamos provavelmente numa delas. Só espero que não tenhamos um bando de canibais como vizinhos.

Eu desejara não ter mencionado canibais, mas Gloria não parecia assustada com aquilo.

- Não tenho medo de nativos. – ela respondeu inquieta – Não acho que haja algum por aqui.

Sorri para mim mesmo, refletindo como as opiniões das mulheres meramente refletem seus desejos. Mas havia algo mais profundo, como eu logo descobri de forma horrível; e agora eu acredito em intuição feminina. Suas fibras cerebrais são mais delicadas que as nossas – mais prontamente perturbadas e alcançadas por influências psíquicas. Mas eu não tinha tempo para fazer conjecturas.

- Vamos passear pela praia, e ver se podemos encontrar algum meio de subir estes penhascos e voltarmos à ilha.

- Mas a ilha é toda de penhascos, não? – ela perguntou.

De alguma forma, eu me sobressaltei:

- Por que diz isso?

- Não sei. – ela respondeu um tanto confusa – Foi essa a impressão que tive; de que esta ilha é apenas uma sucessão de penhascos altos, como degraus, um sobre o outro, todos de negra pedra nua.

- Se esse for o caso – eu disse –, estamos sem sorte, pois não podemos viver de algas e caranguejos...

- Oh! – Sua exclamação foi súbita e aguda.

Eu a tomei em meus braços, um tanto rudemente em meu alerta e medo.

- Gloria, o que é isso?

- Não sei. – Os olhos dela me encaravam perplexos, como se ela estivesse despertando de algum tipo de pesadelo.

- Você viu ou ouviu algo?

- Não. – Ela parecia não querer sair do abrigo dos meus braços – Foi alguma coisa que você disse... não, não foi. Eu não sei. As pessoas têm devaneios. Este deve ter sido um pesadelo.

Deus me ajude; eu ri, em minha presunção masculina, e disse:

- Vocês, garotas, são estranhas em algumas coisas. Vamos subir um pouco a praia.

- Não. – ela exclamou enfaticamente.

- Então, vamos descer a praia...

- Não, não!

Perdi a paciência:

- Gloria, o que deu em você? Não podemos ficar aqui o dia todo. Temos de achar um meio de subir aqueles penhascos e saber o que há do outro lado. Não seja tão tola; não é do seu feitio.

- Não ralhe comigo. – ela respondeu, com uma brandura que lhe era estranha – Alguma coisa parece continuar perseguindo, no lado externo do meu pensamento... algo que não consigo traduzir. Você acredita em transmissão de ondas de pensamento?

Eu a encarei. Nunca a ouvi falando daquela forma antes.

- Você acha que alguém está tentando lhe fazer sinais, mandando ondas de pensamento?

- Não, não são pensamentos. – ela murmurou distraidamente – Não como eu os conheço, pelo menos.

Então, como uma pessoa emergindo subitamente de um transe, ela disse:

- Vá e procure um lugar para subir os penhascos, enquanto eu espero aqui.

- Gloria, eu não gosto da idéia. Você vem comigo... ou, do contrário, esperarei até você se sentir disposta a ir.

- Não sei se vou me sentir assim em algum momento. – ela respondeu desconsolada – Você não precisa se perder de vista; dá para se ver um longo caminho daqui. Você já viu esses penhascos negros antes? Esta é uma costa negra, certo? Você já leu o poema de Tevis Clyde Smith “As longas costas negras da morte”, ou algo assim? Não consigo me lembrar com exatidão.

Senti um vago desconforto, ao ouvi-la falar daquela maneira, mas procurei pôr a sensação de lado com um encolher de meus ombros.

- Acharei uma trilha para cima – eu disse –; e talvez algo para nossa refeição... mexilhões ou um caranguejo...

Ela estremeceu violentamente:

- Não fale em caranguejos. Eu sempre os detestei, mas nunca percebi isso até você falar. Eles comem coisas mortas, não? Sei que o Demônio é igual a um monstruoso caranguejo.

- Tudo bem. – eu disse, para agradá-la – Fique bem aí; não irei muito longe.

- Beije-me antes de ir. – ela disse, com uma ânsia que me prendeu o coração. Eu a puxei suavemente para meus braços, contente com a sensação de seu esguio corpo jovem, tão vibrante de vida e beleza. Ela fechou os olhos enquanto eu a beijava, e notei o quão estranhamente branca ela parecia.

- Não fique longe de minha vista. – ela disse quando a soltei. Vários matacões ásperos pontilhavam a praia... caídos, sem dúvida, da face do penhasco saliente... e ela se sentou num deles.

Com alguns maus pressentimentos, eu dei a volta para ir. Segui ao longo da praia próxima à grande parede negra, a qual se erguia para dentro do azul como um monstro em direção ao céu, e finalmente até vários matacões incomumente grandes. Antes de andar por entre eles, olhei de relance para trás, e vi Gloria sentada onde eu a deixara. Percebi que meus olhos se suavizavam quando eu olhava para aquela esguia e corajosa figura pequena... pela última vez.

Perambulei por entre os matacões, e perdi a vista da praia atrás de mim. Eu sempre me pergunto por que ignorei tão irrefletidamente o último pedido dela. A estrutura do cérebro de um homem é mais tosca que a de uma mulher, e não é tão suscetível a influências externas. Mas eu me pergunto se, mesmo então, a aflição me pressionou...

De qualquer forma, segui perambulando, erguendo o olhar para a massa negra que se elevava, até parecer ter uma espécie de efeito hipnótico sobre mim. Quem nunca vira esses penhascos, possivelmente não consegue formar nenhuma idéia verdadeira sobre eles, nem eu consigo inserir em minha descrição a aura invisível de malevolência que parecia irradiar deles. Eu digo: eles se erguiam tão acima de mim, que suas beiradas pareciam cortar o céu, eu me sentia como uma formiga rastejando sob um muro babilônio e suas monstruosas faces serradas pareciam o peito de deuses empoeirados de uma era inconcebível – isto eu consigo dizer, isso eu consigo lhes revelar. Mas, se algum homem ler isto, que eles não pensem que eu pintei um verdadeiro retrato da Costa Negra. A realidade da coisa está, não na visão e sensação, e nem sequer nos pensamentos que elas induzem; mas nas coisas que você percebe sem pensar – as sensações e agitações da consciência, o fraco rastejar do lado externo da mente, o que não são pensamentos de forma alguma...

Mas eu descobri estas coisas mais tarde. Naquele momento, eu caminhava adiante, como um homem aturdido, quase hipnotizado pela monotonia rígida das trincheiras negras acima de mim. Às vezes, eu me sacudia, piscava e olhava em direção ao mar para me livrar desta sensação emaranhada, mas até mesmo o mar parecia ensombrecido pelas grandes muralhas. Quanto mais eu avançava, mais ameaçadoras elas pareciam. Minha razão me dizia que elas não podiam cair, mas o instinto nos fundos do meu cérebro sussurrava que elas iriam subitamente desabar e me esmagarem.

Então, encontrei subitamente fragmentos de madeira flutuante, a qual se espatifara na praia. Eu poderia ter gritado minha alegria. A simples visão delas provava que, pelo menos, existiram homens e que havia um mundo há muito removido destes penhascos escuros e sombrios, os quais pareciam preencher todo o universo. Achei um longo pedaço de ferro, preso a um dos pedaços de madeira, e o arranquei; se a necessidade surgisse, serviria como um bastante útil porrete de ferro. Um tanto pesado para um homem comum, é verdade, mas, em tamanho e força, eu não sou um homem comum.

Naquele momento, também, decidi que tinha ido bastante longe. Gloria estava longe de minha vista, e eu voltei apressadamente. Enquanto voltava, notei algumas pegadas na areia e refleti, divertidamente, que, se um caranguejo-aranha-gigante, um pouco maior que um cavalo, tivesse cruzado a praia aqui, ele deixaria exatamente este rastro. Então, apareci no local onde eu havia deixado Gloria e olhei para uma praia vazia e silenciosa.

Eu não ouvira grito nem choro. O silêncio reinava absoluto, como reina agora, enquanto eu estava de pé ao lado do matacão onde ela se sentara, e olhava para a areia na praia. Havia algo pequeno, esguio e branco caído ali, e caí de joelhos próximo àquilo. Era a mão de uma mulher, decepada na altura do pulso; e, quando vi no segundo dedo o anel de noivado que eu mesmo havia colocado ali, meu coração murchou no peito, e o céu se tornou um oceano negro que afogava o sol.

Por quanto tempo me agachei sobre aquele pobre fragmento, eu não sei. O tempo parou de existir para mim e, de seus minutos moribundos, nasceu a Eternidade. O que são dias, horas e anos para um coração despedaçado, para cujo ferimento vazio cada instante é uma Eternidade Constante? Mas, quando eu me levantei e cambaleei em direção à beira do mar, apertando aquela pequena mão em meu peito vazio, o sol havia se posto, a lua havia se posto e as duras estrelas brancas olhavam desdenhosamente para mim, através da imensidão do espaço.

Chegando ao mar, pressionei meus lábios várias vezes naquela pobre pele fria e deitei a esguia mão pequena sobre a onda que a carregou para o mar limpo e profundo, onde eu creio, Deus misericordioso, que a chama branca de sua alma encontrou descanso no Mar Interminável. E as ondas tristes e antigas, que conhecem todos os sofrimentos dos homens, pareciam chorar por mim, pois eu não conseguia chorar. Mas depois disso, muitos derramaram lágrimas, ó Deus, e as lágrimas foram de sangue!

Cambaleei ao longo da brancura zombeteira da praia, como um bêbado ou um louco. E, da hora em que me levantei da onda sussurrante ao momento em que caí exausto e fiquei inconsciente, pareceram séculos sobre incontáveis séculos, durante os quais eu delirava, gritava e cambaleava ao longo de enormes trincheiras negras, as quais carranqueavam para mim em frio desdém inumano... que pairavam sobre a formiga que guinchava aos pés dela.

O sol estava alto quando acordei, e percebi que eu não estava só. Eu me sentei. Por todos os lados, eu estava cercado por uma estranha e horrível multidão. Se vocês conseguem imaginar caranguejos-aranha-gigantes maiores que cavalos – mas eles não eram de fato caranguejos-aranha-gigantes, apesar da diferença de tamanho. Deixando essa diferença de lado, eu diria que havia uma divergência tão grande entre esses monstros e os verdadeiros caranguejos-aranha-gigantes, quanto há entre um europeu altamente desenvolvido e um bosquímano africano. Aqueles eram muito mais desenvolvidos, se vocês me entendem.

Eles se ergueram, sentando-se, e olharam para mim. Fiquei imóvel, incerto sobre o que esperar – e um medo frio começou a se aproximar de mim. Isto não foi causado por nenhum medo especial daqueles brutos me matarem, pois eu sentia, de alguma forma, que eles fariam isso, e o pensamento não me fez recuar. Mas seus olhos me perfuravam e faziam meu sangue se transformar em gelo. Porque neles eu reconheci uma inteligência infinitamente mais elevada que a minha, embora terrivelmente diferente. Isto é difícil de imaginar, e mais difícil ainda de explicar. Mas, quando olhei para dentro daqueles olhos assustadores, percebi que cérebros afiados e poderosos se escondiam por trás deles – cérebros que funcionavam numa esfera superior, numa dimensão diferente da minha.

Não havia amizade nem benevolência naqueles olhos, nem simpatia nem compreensão – nem ao menos medo ou ódio. É terrível para um ser humano ser olhado dessa maneira. Até mesmo os olhos de um inimigo humano que vai nos matar têm compreensão neles, e certa aceitação de afinidade. Mas esses demônios me contemplavam com algo da maneira na qual cientistas de coração frio olhariam para um verme prestes a ser cravado numa mesa de espécimes. Eles não me entendiam, e não o conseguiriam. Meus pensamentos, sofrimentos, alegrias e ambições, eles jamais conseguiriam compreender mais do que eu conseguiria compreender os deles. Éramos de espécies diferentes! E nenhuma guerra de natureza humana conseguiria se igualar, em crueldade, à constante luta que é travada entre coisas vivas de ordens divergentes. É possível que toda a vida tenha vindo de um só tronco? Agora eu não consigo crer nisso.

Havia inteligência e força nos olhos frios que estavam fixos em mim, mas não a inteligência como eu a conhecia. Eles haviam progredido muito mais que a humanidade em suas maneiras, mas progrediram ao longo de linhas diferentes. Mais do que isto eu não sei dizer. Suas mentes e faculdades de raciocínio são portas fechadas para mim, e muitas de suas ações parecem absolutamente sem significado; mas sei que essas ações são guiadas por pensamentos definitivos, embora inumanos, os quais, por sua vez, são os resultados de um estágio mais elevado de desenvolvimento do que a humanidade jamais poderá alcançar em seu caminho.

Mas, enquanto eu me sentava ali e esses pensamentos me surgiam – quando senti a força espantosa de seus intelectos inumanos se chocar contra meu cérebro e força de vontade –, eu me ergui de um pulo, congelado de medo; um selvagem medo irracional, o qual animais selvagens devem sentir quando confrontados pela primeira vez com homens. Eu sabia que estas coisas eram de uma ordem mais elevada que a minha própria, mas eu os odiava com toda a minha alma.

O homem comum não sente remorso ao lidar com os insetos que pisa. Ele não sente, como sente ao lidar com seu irmão homem, que os Poderes Elevados irão chamá-lo para prestar contas – dos vermes que pisa, nem das aves que come. Nem leão devora leão, embora se banqueteie nobremente com búfalos ou homens. Eu lhes digo, a Natureza é a mais cruel quando coloca as espécies umas contra as outras.

Assim eram estes caranguejos pensantes, olhando para mim, só Deus sabe como que tipo de presa ou espécime; pretendendo, só Deus sabe, que tipo de mal contra mim, quando quebrei a corrente de terror que me prendia. O maior deles, a quem eu encarava, agora me olhava com uma espécie de desaprovação sombria; uma espécie de fúria, como se ele se ressentisse soberbamente de minhas ações ameaçadoras – como um cientista possivelmente se ressente quando um verme se retorce sob a faca que o disseca. Diante daquilo, a fúria queimou em mim, e as chamas foram atiçadas por meu medo. Com um salto, alcancei o caranguejo maior e, com um golpe desesperado, eu o esmaguei e matei. Então, pulando sobre sua forma que se retorcia, fugi.

Mas não fui muito longe. Enquanto eu corria, me veio o pensamento de que eram eles a quem eu procurava para me vingar. Gloria... não me surpreende que ela tenha se sobressaltado quando falei o amaldiçoado nome “caranguejo”, e tenha concebido o Demônio em forma de caranguejo, quando, naquele momento, aqueles diabos deviam estar se movendo furtivamente ao nosso redor, formigando os pensamentos sensíveis dela com as ondas psíquicas que fluíam de seus cérebros horrendos. Então, eu girei e retornei alguns passos, com meu porrete erguido. Mas a multidão havia se juntado, como o gado faz diante da aproximação de um leão. Suas pinças estavam erguidas ameaçadoramente, e suas cruéis emanações de pensamento me atacaram como um poder de força física, de modo que cambaleei para trás e fui incapaz de prosseguir contra isso. Então, percebi que me temiam ao modo deles, pois recuaram lentamente de volta aos penhascos, mesmo me encarando.

Minha história é longa, mas devo rapidamente levá-la ao final. Desde aquela hora, empreendi uma guerra feroz e impiedosa contra uma raça que eu sabia ser mais elevada em cultura e intelecto do que eu. São cientistas e, em alguma horrível experiência deles, Gloria deve ter morrido. Não sei dizer.

Disto fui informado: a cidade deles fica no alto dessas camadas altas de penhascos, às quais não consigo ver por causa dos penhascos salientes da primeira camada. Acho que a ilha toda é assim: um mero pedestal de rocha basáltica, erguendo-se até um pináculo bem no alto – sem dúvida, este pináculo é a última camada de inumeráveis camadas de muralhas rochosas. Os monstros saem por um caminho secreto, ao qual só agora descobri. Eles têm me caçado, e eu a eles.

Notei também isto: o único ponto em comum entre estas bestas e os humanos é que, quanto mais uma raça se desenvolve mentalmente, menos agudas ficam suas faculdades físicas. Eu, que sou tão mentalmente inferior a eles quanto um gorila é inferior a um professor humano, sou tão mortífero em combate singular quanto um gorila seria contra um professor desarmado. Sou mais rápido e forte, e com sentidos mais agudos. Possuo uma coordenação que eles não têm. Numa palavra, há uma estranha reversão aqui: sou a besta selvagem, e eles são os seres civilizados e desenvolvidos. Não peço piedade e não dou nenhuma. O que são minhas ambições e desejos para eles? Eu jamais os molestaria, mais do que uma águia molesta homens, se eles não tivessem levado minha companheira. Mas, para satisfazerem alguma fome egoísta, ou elaborarem alguma inútil teoria científica, eles tiraram a vida dela e arruinaram a minha.

E agora eu fui, e serei, a besta selvagem da vingança. Um lobo pode atacar um rebanho, um leão devorador de homem destruiu uma aldeia inteira de homens, e eu sou um lobo, um leão, para o povo – se é que posso chamá-los assim – da Costa Negra. Vivi dos mexilhões que pude achar, pois nunca fui capaz de comer carne de caranguejo. E tenho caçado meus inimigos, ao longo das praias, sob a luz do sol e a das estrelas, por entre os matacões e no alto dos penhascos, até onde eu conseguia galgar. Não tem sido fácil, e em breve serei derrotado. Eles me enfrentaram com armas psíquicas, contra as quais não tenho defesa, e o constante espatifar de suas vontades contra a minha tem me enfraquecido de forma terrível, mental e fisicamente. Tenho me deitado à espera de um só inimigo, e tenho inclusive atacado e destruído muitos, mas o esforço tem sido terrível.

O poder deles é sobretudo mental e ultrapassa muitíssimo o hipnotismo humano. De início, era fácil mergulhar nas ondas de pensamento que me envolviam, e matá-los, mas eles encontraram pontos fracos em meu cérebro.

Isto eu não entendo, mas sei que, nos últimos tempos, tenho ido ao Inferno a cada batalha. Suas marés de pensamento pareciam fluir para dentro do meu crânio, em ondas de metal derretido, congelando, queimando e murchando meu cérebro e alma.

Estou escondido e, quando um homem-caranguejo se aproximar, eu saltarei e o matarei rapidamente, como um leão mata um homem com um rifle, antes que a vítima possa fazer mira e atirar.

Nem tenho escapado fisicamente intacto, pois ontem o golpe desesperado das pinças de um homem-caranguejo arrancou meu braço esquerdo, na altura do cotovelo. Aquilo teria me matado no passado, mas agora viverei o bastante para consumar minha vingança. Lá em cima, nas camadas mais altas, por entre as nuvens onde pairam a cidade de horror dos caranguejos, levarei a ruína. Sou um homem agonizante – os ferimentos das estranhas armas de meus inimigos me mostraram meu Destino –, mas meu braço esquerdo está atado de modo que não sangrarei até morrer, meu cérebro desmoronado se manterá inteiro por tempo suficiente, e ainda tenho minha mão direita e meu porrete de ferro. Já notei que, ao amanhecer, o povo-caranguejo fica mais perto de seus altos penhascos e, como já verifiquei, naquela hora é muito fácil matar. Por que, eu não sei, mas meu intelecto menos elevado me diz que, por algum motivo, esses Mestres ficam numa maré mais baixa de vitalidade ao amanhecer.

Estou escrevendo isto à luz de uma lua baixa. Logo virá o amanhecer e, na escuridão que precede o amanhecer, subirei pela trilha secreta que encontrei, a qual leva até as nuvens – e acima delas. Encontrarei a cidade do demônio e, quando o leste começar a se avermelhar, comecei o massacre. Ah, será uma grande batalha! Esmagarei, despedaçarei e matarei, e meus inimigos irão jazer numa grande pilha destroçada e, finalmente, também morrerei. Muito bem. Ficarei contente. Espalharei a morte como um leão. Alastrei as praias com seus cadáveres. Antes de morrer, matarei muito mais.

Gloria, a lua está baixa. Logo o amanhecer virá. Não sei se você aprova, da terra das sombras, meu trabalho sangrento de vingança, mas ele tem, até certo ponto, trazido conforto à minha alma congelada. Afinal, essas criaturas e eu somos de espécies diferentes, e é o costume cruel da Natureza que as ordens divergentes nunca devam viver em paz umas com as outras. Eles tomaram minha companheira; eu tiro suas vidas.


Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da Hungria.

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