A Pedra Negra


(por Robert E. Howard)

Escrito em 1931.


“Dizem que seres repugnantes de Tempos Antigos ainda se escondem
Em obscuros cantos esquecidos do mundo.
E Portões ainda se abrem para soltar, em certas noites,
Formas enclausuradas no Inferno”.
(Justin Geoffrey)

A primeira vez em que li isso foi no estranho livro de Von Junzt, o excêntrico alemão que viveu tão curiosamente, e morreu de maneira tão horrível e misteriosa. Foi sorte minha ter tido acesso à sua obra Cultos Sem Nome na edição original, o também chamado Livro Negro, publicado em Dusseldorf, em 1839, pouco antes que um destino desprezível surpreendesse o autor. Colecionadores de livros raros estavam familiarizados com Cultos Sem Nome, graças, principalmente, à tradução barata e mal-feita, a qual foi pirateada em Londres por Bridewall em 1845, e à edição cuidadosamente expurgada e posta à luz pela Golden Goblin Press de Nova Iorque, 1909. Mas o volume com o qual me deparei foi uma das não-expurgadas cópias alemães, com capa de pesado couro negro e cadeados de ferro oxidado. Duvido que haja mais de meia-dúzia de tais volumes no mundo inteiro atualmente, pois a quantidade publicada não foi grande e, quando foi espalhada a maneira como o autor morreu, muitos dos que possuíam o livro queimaram seus volumes em pânico.

Von Junzt passou sua vida inteira (1795-1840) pesquisando temas proibidos; ele viajou por todos os lugares do mundo, conseguiu ingressar em inúmeras sociedades secretas, e ler incontáveis livros e manuscritos esotéricos e pouco conhecidos na forma original; e, nos capítulos do Livro Negro, que variam entre uma surpreendente claridade de explosão e uma obscuridade ambígua, há afirmações e alusões para gelar o sangue de um homem ponderado. Ler o que Von Junzt ousou imprimir suscita especulações inquietantes sobre o que ele não se atreveu a dizer. Quais assuntos obscuros, por exemplo, estavam contidos naquelas páginas, escritas com letras apertadas, as quais formavam o manuscrito não-publicado, no qual ele trabalhou incessantemente durante meses, antes de sua morte, e que foi encontrado rasgado e espalhado sobre o chão do cômodo trancado, no qual Von Junzt foi encontrado morto com marcas de dedos com garras em seu pescoço? Nunca se saberá, pois o amigo mais próximo do autor, o francês Alexis Ladeau, após ter passado uma noite inteira juntando os fragmentos e lendo o que fora escrito, os queimou totalmente e cortou a própria garganta com uma navalha de barbear.

Mas o conteúdo do volume publicado já é estremecedor o bastante, mesmo aceitando a opinião geral, de que só representa os delírios de um louco. Lá, entre muitas coisas estranhas, achei uma menção à Pedra Negra, aquele monólito curioso e sinistro que paira entre as montanhas da Hungria, e sobre o qual tantas lendas se aglomeram. Von Junzt não lhe dedicou muito espaço – a maior parte de seu trabalho sombrio se refere a cultos e objetos de adoração, os quais ele assegura existir em sua época, e parece que a Pedra Negra representa alguma ordem ou ser, perdido e esquecido há séculos. Mas ele falou dela como uma das chaves – uma frase usada várias vezes por ele, em várias referências, e que constitui uma das obscuridades de seu trabalho. E ele insinuou brevemente sobre visões curiosas ao redor do monólito, na Noite de 24 de junho. Ele mencionou a teoria de Otto Dostmann, segundo a qual este monólito seria um vestígio da invasão huna, e havia sido erguido para comemorar uma vitória de Átila sobre os godos. Von Junzt contradisse tal afirmação, sem apresentar fatos que o refutassem – meramente comentando que atribuir a origem da Pedra Negra aos hunos era tão lógico quanto supor que Guilherme O Conquistador construiu Stonehenge.

Esta implicação de enorme antiguidade atiçou imensamente o meu interesse e, após algumas dificuldades, consegui localizar uma cópia bolorenta e roída de ratos de Restos de Impérios Perdidos (Berlim, 1809, Editora “Der Drachenhaus”), de Dostmann. Fiquei desapontado, ao perceber que Dostmann se referia à Pedra Negra ainda mais brevemente do que Von Junzt, despachando-a em poucas linhas como um artefato relativamente moderno em comparação às ruínas greco-romanas da Ásia Menor, que eram seu tema favorito. Ele admitia sua incapacidade em compreender os caracteres desfigurados gravados no monólito, mas os declarou inconfundivelmente mongolóides. Entretanto, entre o pouco que aprendi com Dostmann, ele mencionou o nome da povoação vizinha à Pedra Negra: Stregoicavar – um nome agourento, que significa algo como “Cidade da Bruxa”.

Um exame bem atento, em guias e artigos de viagens, não me deu maiores informações: Stregoicavar, que não consegui achar em nenhum mapa, fica numa região selvagem e pouco freqüentada, fora do caminho de turistas casuais. Mas encontrei assunto para pensar em Folclore Magiar, de Dornly. Em seu capítulo sobre Mitos de Sonhos, ele menciona a Pedra Negra e fala sobre algumas superstições curiosas a respeito dela – especialmente a crença, de que, quem dormir próximo ao monólito, será eternamente assombrado por pesadelos monstruosos. E citou histórias de camponeses sobre pessoas curiosas demais, que se aventuraram a visitar a Pedra na Noite de 24 de junho e que morreram em louco delírio, por causa de algo que viram lá.

Isso foi tudo o que consegui entender de Dornly, mas meu interesse foi ainda mais intensamente despertado quando senti uma aura claramente sinistra ao redor da Pedra. A sugestão de antiguidade obscura e a repetitiva alusão a eventos sobrenaturais na Noite de 24 de junho, tocaram algum instinto adormecido em meu ser, da mesma forma que sente, mais do que ouve, o fluir de algum rio subterrâneo na noite.

E eu subitamente vi uma conexão entre esta Pedra e um certo fantástico poema sobrenatural, escrito pelo poeta louco Justin Geoffrey: O Povo do Monólito. Averiguações levaram à informação de que Geoffrey havia, de fato, escrito aquele poema enquanto viajava pela Hungria, e eu não pude duvidar que a Pedra Negra fosse o próprio monólito ao qual ele se referia em seus estranhos versos. Lendo as estrofes novamente, percebi mais uma vez as estranhas agitações obscuras de lembranças do subconsciente, as quais eu notara quando li pela primeira vez sobre a Pedra.

Eu procurava um local para passar uma breves férias, até que me decidi. Fui para Stregoicavar. Um trem antiquado me levou de Tremesvar até uma distância ainda respeitável do meu objetivo; e uma viagem de três dias, num vagão aos solavancos, me levou ao pequeno vilarejo que ficava num vale fértil, nas montanhas cobertas de abetos. A viagem em si foi tranqüila, mas, durante o primeiro dia, passamos pelo velho campo de batalha de Schomvaal, onde o bravo cavaleiro polaco-húngaro, o Conde Boris Vladinoff, fez sua nobre e inútil resistência contra as hostes de Suleyman O Magnífico, quando o Grande Turco invadiu a Europa Oriental em 1526.

O cocheiro me apontou um grande amontoado de pedras desmoronadas sobre uma colina próxima, sob a qual, segundo ele, jaziam os ossos do bravo conde. Eu me lembrei de uma passagem das Guerras Turcas, de Larson: “Após a escaramuça [na qual o conde e seu pequeno exército haviam rechaçado a vanguarda turca], o conde se erguia ao pé das muralhas do velho castelo na colina, dando ordens para dispor suas forças, quando um ajudante lhe trouxe uma pequena caixa envernizada, a qual fora tirada do corpo do famoso escriba e historiador Selim Bahadur, o qual havia morrido na luta. O conde tirou dela um rolo de pergaminho e começou a ler; mas ele não havia lido muito, quando ficou bastante pálido e, sem dizer uma só palavra, recolocou o pergaminho na caixa e enfiou a caixa no manto. Naquele exato momento, uma bateria de canhões turcos, ali escondida, subitamente abriu fogo e as balas atingiram o velho castelo; os húngaros ficaram horrorizados ao verem as muralhas desmoronarem, cobrindo completamente o bravo conde. Sem líder, o pequeno e valente exército foi despedaçado, e nos anos de guerra assoladora que se seguiram, os ossos dos nobres nunca foram recuperados. Hoje, os nativos apontam uma enorme e desmoronada pilha de ruínas próximas a Schomvaal, sob as quais, segundo dizem, ainda descansam tudo o que os séculos deixaram do Conde Boris Vladinoff”.

Achei o vilarejo de Stregoicavar onírico e sonolento, aparentemente contradizendo seu apelido sinistro – um esquecido remoinho do passado, ignorado pelo progresso. As casas estranhas, e as roupas e modos ainda mais estranhos de seu povo, pertenciam a uma época mais antiga. Eram amigáveis, amavelmente curiosos sem serem intrometidos, apesar de visitantes estrangeiros serem extremamente raros.

- Há dez anos, outro americano veio aqui e ficou poucos dias no vilarejo – disse o dono da taverna onde eu havia me hospedado –; um sujeito jovem e estranho – ele murmurou para si –; um poeta, eu acho.

Percebi que ele devia estar se referindo a Justin Geoffrey.

- Sim, ele era um poeta – respondi –, e escreveu um poema sobre parte da paisagem próxima a este mesmo vilarejo.

- Verdade? – O interesse de meu anfitrião foi despertado – Então, vez que todos os grandes poetas são estranhos em suas falas e atos, ele deve ter alcançado grande fama, pois suas ações e conversas eram as mais estranhas que já vi em qualquer homem.

- Isso é comum com artistas. – respondi – A maior parte de seu reconhecimento vem depois de morto.

- Ele morreu, então?

- Morreu gritando num manicômio, há cinco anos.

- Lamentável, lamentável. – meu anfitrião suspirou de forma compassiva – Pobre rapaz... olhou demais para a Pedra Negra.

Meu coração deu um pulo, mas disfarcei meu interesse agudo e disse como que casualmente:

- Já ouvi algo sobre esta Pedra Negra; ela fica em algum lugar próximo a este vilarejo, não?

- Mais perto do que as pessoas cristãs desejam. – respondeu – Veja!

Ele me levou para uma janela de treliças de metal, e me apontou as inclinações, cobertas de abetos, das montanhas azuis que pairavam ali:

- Ali, atrás da face nua daquele penhasco saliente que você vê, se ergue a maldita Pedra. Antes fosse triturada, e seu pó fosse lançado dentro do Danúbio, para ser carregado ao oceano mais fundo! Uma vez, os homens tentaram destruir aquela coisa, mas cada homem que desceu o martelo ou a marreta contra ela, teve um fim maligno. As pessoas agora a evitam.

- O que há de maligno nela? – perguntei curioso.

- É uma coisa assombrada pelo demônio. – ele respondeu, inquieto e com a sugestão de um estremecimento – Na minha infância, conheci um jovem que subiu para cá e riu de nossas tradições... em sua imprudência, ele foi até a Pedra numa Noite de 24 de junho e, ao amanhecer, cambaleou de volta ao vilarejo, mudo e enlouquecido. Algo lhe havia destroçado o cérebro e selado os lábios, pois, até o dia de sua morte, a qual veio logo depois, ele só falava para proferir terríveis blasfêmias ou babar coisas sem nexo.

“Meu próprio sobrinho era bem pequeno, quando se perdeu nas montanhas e dormiu na floresta próxima à Pedra; e agora, em sua idade adulta, ele é torturado por sonhos repugnantes, de modo que, às vezes, ele assombra a noite com seus gritos e acorda com suor frio sobre ele.

“Mas vamos mudar de assunto, Herr; não é bom insistir nessas coisas”.

Comentei sobre a evidente antiguidade da taverna, e ele respondeu com orgulho:

- As fundações têm mais de 400 anos; a casa original foi a única na vila que não foi destruída por fogo, quando os demônios de Suleyman cruzaram as montanhas. Aqui, na casa que se erguia sobre estes mesmos alicerces, é dito que o escriba Selim Bahadur tinha seu quartel-general enquanto devastava a região próxima.

Eu logo soube que os atuais habitantes de Stregoicavar não são descendentes do povo que morava lá antes da invasão turca de 1526. Os vitoriosos muçulmanos não deixaram um ser humano vivo na vila nem nos arredores, quando passaram por lá. Exterminaram homens, mulheres e crianças num holocausto vermelho de assassinato, deixando uma vasta extensão do país silenciosa e totalmente deserta. O povo atual de Stregoicavar é descendente de vigorosos colonos dos vales, que entraram na vila em ruínas depois que os turcos foram expulsos.

Meu anfitrião falou do extermínio dos habitantes originais sem ressentimento algum, e eu soube que seus ancestrais das terras baixas olhavam para os montanheses com mais ódio e aversão do que para os próprios turcos. Ele falou vagamente sobre as causas desta inimizade, mas falou que os habitantes originais de Stregoicavar tinham o costume de fazer incursões furtivas nas terras baixas, roubando garotas e crianças. Além disso, ele falou que eles não eram exatamente do mesmo sangue que seu povo; a vigorosa e original linhagem eslavo-magiar havia se miscigenado e cruzado com uma degradada raça aborígine, até a raça se fundir, produzindo um desagradável amálgama. Quem eram aqueles aborígines, ele não tinha a menor idéia, mas assegurava que eram “pagãos” e haviam morado nas montanhas desde tempos imemoriais, antes da chegada dos povos conquistadores.

Dei pouca importância a esta história; só vi nela um paralelo com a fusão das tribos celtas com aborígines mediterrâneos das colinas de Galloway, com a resultante raça misturada, a qual, como os pictos, tem um vasto papel nas lendas escocesas. O tempo tem um efeito curioso de perspectiva no folclore e, assim como os relatos dos pictos se entrelaçaram com lendas de uma raça mongólica mais antiga, de modo que finalmente foi atribuída aos pictos a aparência repulsiva dos atarracados homens primitivos, cuja individualidade foi absorvida oralmente pelas lendas pictas e foi esquecida; assim, eu percebia, os supostos atributos inumanos dos primeiros aldeões de Stregoicavar poderiam remontar a mitos obsoletos e mais antigos, dos invasores hunos e mongóis.

Na manhã seguinte à minha chegada, recebi instruções do meu anfitrião, que as deu preocupadamente, e parti em busca da Pedra Negra. Após algumas horas de caminhada sobre as inclinações cobertas por abetos, cheguei à face do penhasco de áspera pedra sólida, o qual se sobressaía íngreme do lado da montanha. Uma trilha estreita serpenteava para o alto ali e, galgando-a, avistei do alto o pacifico vale de Stregoicavar, o qual parecia dormir, protegido em ambos os lados por grandes montanhas azuis. Nenhuma cabana, nem qualquer sinal de habitação humana, aparecia entre o penhasco onde eu estava e a vila. Vi várias fazendas dispersas no vale, mas todas ficavam do outro lado de Stregoicavar, o qual parecia fugir às inclinações meditativas que escondiam a Pedra Negra.

O cume dos penhascos demonstrava ser uma espécie de platô espessamente coberto por bosques. Caminhei pela densa vegetação e, logo depois, cheguei a uma larga clareira; e, no centro daquela clareira, se erguia uma figura magra de Pedra Negra.

Tinha formato octogonal, com uns cinco metros de altura e menos de meio metro de largura. Ela outrora havia sido, evidentemente, bastante polida, mas agora a superfície havia sido bastante golpeada, como se esforços selvagens houvessem sido feitos para demoli-la; mas os martelos haviam feito pouco mais do que tirar pequenos pedaços de pedra e mutilar os caracteres que outrora haviam, evidentemente, subido em espiral, ao redor da haste até o topo. A uns três metros da base, esses caracteres estavam quase totalmente apagados, de modo que era muito difícil traçar a direção deles. Mais acima, eram mais claros, e consegui me torcer parte do caminho haste acima e examiná-los a uma distância curta. Estavam todos mais ou menos desfigurados, mas eu estava certo de que eles não simbolizavam nenhuma linguagem agora lembrada na face da terra. Sou bastante familiarizado com todos os hieróglifos conhecidos por pesquisadores e filólogos, e eu posso dizer, com certeza, que aqueles caracteres não se pareciam em nada com qualquer coisa que eu já tivesse lido ou ouvido falar. A coisa mais próxima a eles que eu já vi foram uns arranhões toscos sobre uma gigante e estranhamente simétrica rocha, num vale perdido de Iucatã. Eu me lembro que, quando eu havia apontado aquelas marcas ao arqueólogo que era meu companheiro, ele afirmara que elas representavam uma erosão ou arranhões sem importância, feitos por um índio. Diante de minha teoria, de que aquela rocha era realmente a base de uma coluna há muito desaparecida, ele simplesmente havia rido, chamando minha atenção para as dimensões dela, as quais sugeriam que, se ela fosse construída de acordo com as normas naturais de simetria arquitetônica, a coluna teria 300 metros de altura. Mas aquilo não me foi convincente.

Não quero dizer que os caracteres da Pedra Negra fossem similares aos daquela rocha colossal em Iucatã; mas uma coisa sugeria outra. Quanto ao material do monólito, fui novamente frustrado. A pedra da qual se compunha era negra e de pouco brilho, cuja superfície, onde não estava espancada nem enrugada, criava uma curiosa ilusão de semi-transparência.

Passei boa parte da manhã ali e voltei frustrado. A Pedra não me sugeria conexão com nenhum outro artefato no mundo. Era como se o monumento houvesse sido erguido por mãos estranhas, numa era distante e afastada do conhecimento humano.

Retornei ao vilarejo com meu interesse nem um pouco diminuído. Agora que eu tinha visto aquela coisa singular, meu desejo foi mais aguçado ainda para investigar o assunto mais a fundo, e procurar saber por quais mãos estranhas e por qual estranho propósito a Pedra Negra havia sido construída, há tanto tempo.

Procurei o sobrinho do taverneiro e o perguntei sobre seus sonhos, mas ele foi vago, apesar do meu esforço. Ele não se importava em falar deles, mas era incapaz de descrevê-los com qualquer clareza. Embora tivesse sempre os mesmos sonhos, e embora estes fossem horrivelmente vívidos, eles não deixavam impressões distintas em sua mente desperta. Só se lembrava deles como pesadelos caóticos, através dos quais enormes remoinhos de fogo lançavam rubras labaredas, e um tambor negro retumbava incessantemente. Ele só se lembrava claramente de uma coisa: num dos sonhos, ele tinha visto a Pedra Negra, não na inclinação de uma montanha, mas encaixada como uma torre num colossal castelo negro.

Quanto ao restante dos aldeões, eu não os encontrei dispostos a falar sobre a Pedra, com exceção do professor da escola – um homem de instrução surpreendente, o qual passou muito mais tempo de sua vida pelo mundo afora do que qualquer um dos outros.

Ele ficou bastante interessado no que lhe contei sobre as observações de Von Junzt a respeito da Pedra, e concordou ardentemente com o autor alemão, sobre a alegada idade do monólito. Ele acreditava que outrora existiu um conclave de bruxas nos arredores e que, possivelmente, todos os habitantes originais haviam sido membros daquele culto à fertilidade, o qual, no passado, ameaçou debilitar a civilização européia e deu origem a histórias de bruxaria. Ele citou o próprio nome do vilarejo para provar seu propósito; seu nome, originalmente, não era Stregoicavar, ele disse; de acordo com as lendas, seus fundadores o chamavam de Xuthltan, que era o nome primitivo do local que havia sido construído há tantos séculos atrás.

Este fato causou novamente uma sensação indescritível de desconforto. Aquele nome bárbaro não sugeria conexão com nenhuma raça cita, eslava ou mongol, à qual aquele povo aborígine destas montanhas pertencia, sob circunstâncias naturais.

Que os magiares e eslavos dos vales acreditavam que os habitantes originais do vilarejo eram membros do culto de bruxaria, isso era evidente, como o professor dissera pelo nome que lhe deram, e cujo nome continuou a ser usado mesmo depois que os habitantes mais antigos haviam sido massacrados pelos turcos, e o vilarejo fora reconstruído por uma raça mais pura e saudável.

Ele não acreditava que os membros do culto ergueram o monólito, mas acreditava que eles o usavam como centro de suas atividades; e, repetindo lendas vagas que haviam sido transmitidas de geração a geração antes da invasão turca, ele expôs uma teoria de que os aldeões degenerados a haviam usado como uma espécie de altar, no qual se ofereciam sacrifícios humanos, usando como vítimas as garotas e bebês roubados de seus próprios ancestrais nas terras baixas.

Não levava em conta os mitos de eventos bizarros na Noite de 24 de junho, assim como uma lenda curiosa a respeito de uma estranha divindade, sobre a qual se dizia que o povo feiticeiro de Xuthltan invocava com cânticos e selvagens rituais de flagelação e matança.

Ele nunca visitara a Pedra na Noite de 24 de junho, ele disse, mas não teria medo de fazê-lo; o que quer que houvesse existido ou acontecido lá no passado, havia sido há muito engolfado nas brumas do tempo e do esquecimento. Havia perdido seu significado, exceto como sendo um elo para um passado morto e poeirento.

Foi enquanto retornava de uma visita a este professor – numa noite, quase uma semana após minha chegada a Stregoicavar –, que tive uma súbita lembrança: era Noite de 24 de junho! A própria hora conectada pelas lendas com as horrendas implicações à Pedra Negra. Afastei-me da taverna e caminhei rapidamente através do vilarejo. Stregoicavar estava em silêncio; os moradores se recolheram mais cedo. Não vi ninguém, enquanto saía rapidamente do vilarejo e subia os abetos que cobriam as inclinações da montanha com uma escuridão sussurrante. Uma grande lua prateada estava suspensa sobre o vale, inundando os penhascos e inclinações com uma luz fantástica, e destacando sombras negras. Nenhum vento soprava pelos abetos, mas havia um sussurro misterioso e intangível por toda a parte. Certamente numa noite daquela, em séculos passados, minha imaginação excêntrica me dizia, bruxas nuas montadas em vassouras voavam pelo vale, perseguidas por demoníacos espíritos zombeteiros.

Cheguei aos penhascos e me senti algo inquieto, ao notar que a ilusória luz da lua dava a eles um aspecto tênue que eu não havia notado antes – naquela luz fantástica, eles pareciam menos com rochedos naturais, e mais com as ruínas de ameias ciclópicas e erguidas por titãs, se sobressaindo da inclinação da montanha.

Livrando-me com dificuldade desta alucinação, cheguei até o platô e hesitei por um momento, antes de mergulhar na escuridão meditativa da mata. Uma espécie de tensão ofegante pendia sobre as sombras, como um monstro invisível prendendo seu fôlego para não afugentar sua presa.

Livrei-me da sensação – perfeitamente natural, considerando o caráter lúgubre do lugar e sua reputação maligna – e caminhei através da mata, experimentando uma desagradável sensação de estar sendo seguido e parando uma vez, certo de que algo pegajoso e instável havia me roçado o rosto na escuridão.

Cheguei a uma clareira, e vi o monólito alto alçando sua estatura magra acima do gramado. Nos limites do bosque, em direção aos penhascos, havia uma pedra que formava uma espécie de assento natural. Sentei-me, imaginando ter sido provavelmente ali que o poeta louco Justin Geoffrey havia escrito seu fantástico Povo do Monólito. Meu anfitrião achava que foi a Pedra que havia causado a insanidade de Geoffrey, mas as sementes da loucura já haviam sido lançadas no cérebro do poeta, bem antes dele vir a Stregoicavar.

Uma olhada em meu relógio me mostrou que era quase meia-noite. Eu me curvei para trás, à espera de qualquer manifestação espectral que pudesse aparecer. Um suave vento noturno se ergueu entre os galhos dos abetos, com uma sugestão sobrenatural de flautas invisíveis sussurrando uma música medonha e maligna. A monotonia do som e meu olhar firme para o monólito produziram uma espécie de auto-hipnose em mim; fiquei sonolento. Lutei contra esta sensação, mas o sono se aproximava, apesar de mim mesmo. O monólito parecia oscilar e dançar, estranhamente distorcido ao meu olhar, e logo dormi.

Abri meus olhos e tentei me levantar, mas fiquei imóvel, como se uma mão gelada me agarrasse sem que eu pudesse fazer nada. Um terror frio se apossou de mim. A clareira não estava mais deserta. Estava apinhada por uma multidão silenciosa de pessoas estranhas, e meus olhos dilatados percebiam estranhos detalhes bárbaros nas roupas, as quais minha razão dizia que eram arcaicas e esquecidas, mesmo nesta terra atrasada. Certamente, eu pensei, são aldeões que haviam chegado aqui para fazer algum conclave grotesco – mas outra olhada me mostrou que aquelas pessoas não eram o povo de Stregoicavar. Era uma raça mais baixa e atarracada, cujas testas eram mais baixas, e cujos rostos eram mais largos e obtusos. Alguns tinham traços eslavos e magiares, mas aqueles traços estavam degradados pela mistura com alguma raça estrangeira e mais baixa, a qual eu não conseguia classificar. Muitos deles vestiam peles de animais selvagens, e todo o seu aspecto, tanto de homens quanto de mulheres, era de brutalidade sensual. Eles me aterrorizavam e repugnavam, mas não me davam atenção. Formaram um vasto semicírculo em frente ao monólito, e começaram uma espécie de cântico, estendendo os braços em uníssono e balançando seus corpos da cintura para cima. Todos os olhos estavam fixos no topo da Pedra, à qual pareciam estar invocando. Mas o mais estranho de tudo era a obscuridade de suas vozes; a uns 45 metros distantes de mim, homens e mulheres estavam inconfundivelmente erguendo suas vozes a um canto selvagem, mas aquelas vozes chegavam a mim como um fraco murmúrio indistinto, como se viesse de várias léguas de distância... ou de tempo.

Diante do monólito, se erguia uma espécie de braseiro, do qual uma fumaça vil, nauseabunda e amarela se encapelava numa espiral oscilante ao redor da haste, como uma cobra vasta e instável.

Num dos lados deste braseiro, jaziam duas figuras: uma jovem garota, totalmente nua, com mãos e pés amarrados, e um menino aparentando poucos meses de idade. No outro lado daquele braseiro, se acocorava uma bruxa velha, com um estranho tipo de tambor negro em seu colo; ela batia este tambor com golpes pausados e leves de suas mãos abertas, mas eu não conseguia ouvir o som.

O ritmo dos corpos oscilantes ficou mais rápido; e, no espaço entre as pessoas e o monólito, saltou uma jovem mulher nua, com os olhos resplandecendo e os longos cabelos negros flutuando soltos. Girando vertiginosamente nas pontas dos pés, ela deu voltas através do espaço livre e caiu prostrada diante da Pedra, onde ficou imóvel. No instante seguinte, uma figura fantástica a seguiu – um homem, de cuja cintura pendia uma pele de bode e cujas feições estavam totalmente escondidas por uma espécie de máscara, feita de uma enorme cabeça de lobo, de modo que ele parecia ser uma monstruosa criatura de pesadelo – uma horrível mistura, tanto de elementos humanos quanto bestiais. Em sua mão, ele segurava um buquê de longas varas de abetos, amarradas pelas extremidades mais grossas, e o luar brilhava numa pesada corrente de ouro, amarrada ao redor do pescoço. Uma corrente menor, presa a ela, sugeria um tipo de pingente, mas este faltava.

As pessoas agitavam violentamente os braços para cima, e pareciam redobrar seus gritos, enquanto aquela criatura grotesca galopava através do espaço livre, com muitos e fantásticos saltos e cabriolas. Aproximando-se da mulher que se deitava ao pé do monólito, ele começou a açoitá-la com as varas que trazia, e ela se ergueu de um pulo e se entregou à dança mais selvagem e incrível que eu já tinha visto. E seu atormentador dançava com ela, mantendo o ritmo selvagem, igualando cada rodopio e salto dela, enquanto lhe descia golpes impiedosos no corpo nu. E, a cada golpe, ele gritava uma única palavra, mais e mais, e todas as pessoas a gritavam de volta. Eu podia ver o movimento de seus lábios, e agora o fraco murmúrio distante de suas vozes se fundia e misturava num grito distante, repetido várias e várias vezes com êxtase babante. Mas não conseguia entender qual era a palavra.

Os dançarinos selvagens giravam em rodopios vertiginosos, enquanto os espectadores, de pé e parados, acompanhavam o ritmo da dança com o oscilar de seus corpos e o entrelaçar de seus braços. A loucura aumentava nos olhos da devota que dava cambalhotas, e era refletida nos olhos dos espectadores. O rodopiar frenético daquela dança louca ficou ainda mais selvagem e extravagante – tornou-se uma coisa bestial e obscena, enquanto a velha bruxa uivava e batia no tambor como uma louca, e as varas estrondeavam uma melodia diabólica.

O sangue escorria dos membros da dançarina, mas ela parecia não sentir o chicote, exceto como um estímulo para outras enormidades de movimento escandaloso; saltando no meio da fumaça amarela, que agora estendia tênues tentáculos para abraçar ambas as figuras dançantes, ela parecia se fundir àquela bruma repugnante e se ocultar nela. Logo, apareceu novamente, seguida pela coisa bestial que a açoitava, e disparou para dentro de um jorro indescritível e explosivo de dinâmicos movimentos loucos e, no auge daquele louco ondular, ela caiu subitamente no gramado, tremendo e ofegando como se completamente vencida por seu esforço frenético. O chicoteamento continuou com inalterada violência e intensidade, e ela começou a se retorcer de bruços em direção ao monólito. O sacerdote – por assim chamá-lo – a seguiu, chicoteando-lhe o corpo desprotegido com toda a força de seu braço, enquanto ela se retorcia, deixando um grosso rastro de sangue sobre o chão pisoteado. Ela alcançou o monólito e, arfando e ofegando, lançou ambos os braços ao redor dele e cobriu a pedra fria com ferozes beijos quentes, como numa adoração frenética e profana.

O grotesco sacerdote saltava no ar, lançando para longe as varas salpicadas de vermelho; e os adoradores, uivando e com as bocas espumando, voltaram-se uns contra os outros com unhas e dentes, rasgando as roupas e carne uns dos outros numa cega paixão de bestialidade. O sacerdote, com um longo braço, se aproximou do bebê e, gritando novamente aquele Nome, girou no ar o pequeno que chorava e lhe estatelou os miolos contra o monólito, deixando uma mancha horrível sobre a superfície negra. Congelado de horror, eu o vi abrir aquele pequeno corpo com seus dedos brutais e lançar punhados de sangue sobre a coluna, e depois arremessar o corpo vermelho e rasgado dentro do braseiro, apagando o fogo e a fumaça numa chuva escarlate, enquanto os brutos enlouquecidos atrás dele uivavam o Nome repetidas vezes. Logo, todos subitamente caíram prostrados, retorcendo-se como cobras, enquanto o sacerdote estendia amplamente as mãos ensangüentadas, como em triunfo. Abri minha boca para gritar meu horror e repugnância, mas só consegui articular um ruído seco: uma coisa enorme e monstruosa, em forma de sapo, se acocorava no topo do monólito!

Vi seu contorno inchado, repulsivo e instável destacado contra o luar e, situado no que deveria ser o rosto de uma criatura natural, seus enormes olhos a piscarem, os quais refletiam toda a luxúria, a cobiça abismal, obscena crueldade e perversidade monstruosa que haviam espreitado os filhos dos homens, desde que seus ancestrais se moviam, cegos e sem pêlos, nas copas das árvores. Naqueles olhos medonhos estavam refletidas todas as coisas profanas e segredos vis, que dormem nas cidades sob o mar e se escondem da luz do dia, na escuridão das cavernas primordiais. E assim, aquela coisa pavorosa – à qual aquele ritual ímpio de crueldade, sadismo e sangue havia invocado do silêncio das colinas – olhava e piscava para seus brutais adoradores, os quais rastejavam em repugnante humilhação diante dela.

Agora, o sacerdote com máscara de animal ergueu, com suas mãos brutais, a garota amarrada que se retorcia debilmente, e a manteve erguida em direção àquele horror no monólito. E, quando aquela monstruosidade inspirou, lasciva e babante, algo estalou em meu cérebro e caí num piedoso desmaio.

Abri meus olhos num amanhecer ainda pálido. Todos os acontecimentos daquela noite me vieram rapidamente à cabeça, eu me ergui de um pulo e logo olhei ao meu redor com assombro. O monólito pairava magro e silencioso sobre o gramado, que ondulava verde e intacto à brisa matutina. Algumas passadas rápidas me fizeram atravessar a clareira; aqui, os dançarinos haviam pulado e saltado, de modo que o chão deveria ter ficado sem grama; e aqui, a devota se retorceu em seu caminho doloroso até a Pedra, derramando sangue sobre a terra. Mas não havia uma gota de sangue no gramado intacto. Olhei, com um estremecimento, para o lado do monólito contra o qual o brutal sacerdote havia arrebentado os miolos do bebê roubado – mas nenhuma mancha vermelha, nem coágulo medonho, aparecia ali.

Um sonho! Havia sido um pesadelo violento... ou então... encolhi meus ombros. Que sonho vividamente claro!

Voltei tranqüilamente ao vilarejo e adentrei a taverna sem ser visto. Lá, eu me sentei, meditando sobre os estranhos acontecimentos da noite. Eu estava cada vez mais propenso a descartar a teoria de um sonho. Que eu tinha visto uma ilusão sem substância material, era evidente. Mas eu acreditava ter visto a sombra espelhada de um acontecimento praticado, de forma horrendamente real, em dias passados. Mas, como eu podia saber? Que prova poderia confirmar que minha visão havia sido mais uma reunião de espectros repugnantes, do que um pesadelo oriundo de meu cérebro?

Como em resposta, um nome lampejou em eu pensamento: Selim Bahadur! De acordo com a lenda, este homem, que fora tanto soldado quanto escriba, havia comandado aquela parte do exército de Suleyman que devastara Stregoicavar. Parecia bastante lógico; e, se era assim, ele havia ido diretamente do campo devastado para o sangrento campo de batalha de Schomvaal e ao seu destino final. Ergui-me de um pulo, com um grito repentino... aquele manuscrito que fora tirado do corpo do turco, e que fizera o Conde Boris estremecer... ele não poderia conter alguma narrativa do que os conquistadores turcos encontraram em Stregoicavar? O que mais poderia ter sacudido os nervos de ferro do aventureiro polonês? E, uma vez que os ossos do conde nunca haviam sido recuperados, qual a dúvida de que a caixa envernizada, com seu conteúdo misterioso, ainda jazia oculta sob as ruínas que cobriam Boris Vladinoff? Comecei a arrumar minha mala com pressa feroz.

Três dias depois, eu me encontrava escondido numa pequena aldeia, a poucas milhas do campo de batalha. E, quando a lua se ergueu, eu trabalhava com intensidade selvagem na grande pilha de pedras desmoronadas que coroavam a colina. Foi um trabalho cansativo – pensando agora, não entendo como consegui levá-lo a cabo, embora eu tenha trabalhado sem descanso, do erguer da lua ao clarear do dia. No momento em que o sol estava se erguendo, eu afastei o último emaranhado de pedras e olhei para tudo o que havia sobrado do Conde Vladinoff – apenas alguns fragmentos insignificantes de ossos esmigalhados; e, entre eles, totalmente amassada, havia uma caixa, cuja superfície envernizada a havia poupado do apodrecimento completo, através dos séculos.

Eu a agarrei com ansiedade frenética e, após empilhar algumas pedras de volta sobre os ossos, me afastei depressa; pois eu não queria ser descoberto pelos camponeses desconfiados, num ato de aparente profanação.

De volta ao meu quarto na taverna, abri a caixa e encontrei o pergaminho relativamente intacto; e havia algo mais na caixa: um pequeno objeto achatado, envolto em seda. Eu estava louco para sondar os segredos daquelas páginas amareladas, mas o cansaço não me deixou. Desde que deixei Stregoicavar, eu mal havia dormido; e, combinados a isso, os tremendos esforços da noite anterior haviam me derrotado. Apesar de mim mesmo, fui forçado a me estirar na cama, e não acordei antes do pôr-do-sol.

Jantei rapidamente e depois, à luz de uma vela palpitante, eu me sentei para ler os elegantes caracteres turcos que cobriam o pergaminho. Era um trabalho difícil, pois não sou profundamente versado naquela língua; e o estilo arcaico da narrativa me desorientava. Mas, quando eu labutava, uma palavra ou frase aqui e ali era decifrada por mim, e um vago horror crescente me estremecia. Apliquei todas as minhas energias à tarefa e, quando a história ficou mais clara e assumiu uma forma mais tangível, meu sangue gelou em minhas veias, meus cabelos se arrepiaram e minha língua endureceu. Todas as coisas externas tomaram parte da loucura medonha daquele manuscrito infernal; até os sons noturnos de insetos e criaturas nas matas tomaram a forma de murmúrios horríveis e passos furtivos de horrores vampirescos, e o sussurro do vento noturno se tornou a risonha exultação obscena do mal sobre as almas dos homens.

Finalmente, quando a aurora cinza se infiltrava através da janela de treliça, deixei o manuscrito a um lado, e peguei e desenrolei a coisa no pedaço de seda. Mirando-a com olhos ansiosos, descobri que a verdade do assunto estava firmada, mesmo tendo sido possível duvidar da veracidade daquele terrível manuscrito.

E recoloquei aquelas duas coisas obscenas na caixa, e não descansei, dormi nem comi, até o conteúdo daquele estojo que os continha ser sobrecarregado por pedras e arremessado dentro da corrente mais profunda do Danúbio, a qual, queira Deus, as levou de volta ao Inferno do qual vieram.

Não fora um sonho o que tive na Noite de 24 de junho, nas colinas sobre Stregoicavar. Justin Geoffrey havia ficado ali apenas à luz do sol e seguiu seu caminho; e, por haver presenciado aquele louco conclave, seu cérebro louco havia enlouquecido de vez, antes que ele morresse. Como conservei meu juízo, eu não sei.

Não... não foi sonho... Eu havia presenciado um bando repugnante de adoradores há muito falecidos, surgidos do Inferno para prestarem culto como no passado; fantasmas se prostrando diante de um fantasma. Pois o Inferno há muito havia reclamado seu deus horrendo. Há muito, muito tempo, ele vivia entre as colinas – um vestígio enlouquecedor de uma era antiga –, mas suas garras obscenas já não apertam mais, em busca das almas dos homens vivos, e seu reino está morto, povoado apenas pelos fantasmas daqueles que o serviram em vida.

Por qual alquimia sórdida ou feitiçaria ímpia as Portas do Inferno se abrem nessa noite medonha, eu não sei, mas meus próprios olhos haviam presenciado. E sei que não vi nenhum ser vivente naquela noite, pois o manuscrito, redigido pela mão cuidadosa de Selim Bahadur, narrou minuciosamente o que ele e seus incursores acharam no vale de Stregoicavar; e eu li, descritas detalhadamente, as obscenidades blasfemas que a tortura arranca dos lábios de adoradores uivantes; também li sobre a perdida e sombria caverna negra, no alto das colinas, onde os horrorizados turcos encurralaram um ser monstruoso, inchado, viscoso e em forma de sapo, e o mataram com fogo e aço antigo, abençoado em épocas passadas por Maomé, e com encantamentos que eram antigos quando a Arábia era jovem. E, mesmo assim, a mão firme do velho Selim tremia, ao se lembrar dos cataclísmicos e estremecedores gritos de morte daquela monstruosidade, a qual não morreu só – pois dez de seus matadores pereceram com ela, de uma forma que Selim não quis, ou não pôde, descrever.

E aquele ídolo achatado, esculpido em ouro e embrulhado em seda, era uma imagem desse ser; e Selim a arrancou da corrente de ouro que envolvia o pescoço do sumo sacerdote mascarado, o qual fora morto.

Que bom que os turcos varreram aquele vale sórdido com tocha e aço limpo! Visões como as que essas montanhas meditativas haviam presenciado, pertencem à escuridão e abismos de eons perdidos. Não... não é o medo daquela coisa em forma de sapo o que me faz tremer na noite. Ele está trancado no Inferno, com sua horda nojenta, e só são soltos durante uma hora, na noite mais sobrenatural que já vi no ano. Quanto aos seus adoradores, não resta nenhum.

Mas é o conhecimento de tais coisas, que outrora se acocoraram como bestas sobre as almas dos homens, o que faz minha testa suar frio; e eu temo olhar novamente para as folhas da abominação de Von Junzt. Pois agora eu entendo sua frase repetida sobre chaves: Sim! Chaves para Portas Externas; elos com um passado detestável e, quem sabe, com esferas detestáveis do presente. E entendo por que os penhascos parecem ameias ao luar, e por que o sobrinho do taverneiro, assombrado por pesadelos, viu em sonhos a Pedra Negra como a torre de um ciclópico castelo negro. Se os homens já escavaram entre essas montanhas, devem ter achado coisas incríveis sob aquelas inclinações que mascaram. Pois a caverna onde os turcos encurralaram aquela... coisa... não era propriamente uma caverna, e eu estremeço ao meditar sobre o gigantesco golfo de eons, que deve existir entre esta época e aquela época em que a terra tremeu e ergueu, como uma onda, aquelas montanhas azuis que, ao se levantarem, cobriram coisas inconcebíveis. Que nenhum homem tente escavar esta horrível torre, chamada a Pedra Negra!

Uma chave! Sim, ela é uma chave, símbolo de um horror esquecido. Aquele horror havia desaparecido dentro do limbo do qual rastejara, de forma repugnante, na negra aurora da terra. Mas, e quanto às outras possibilidades demoníacas, sugeridas por Von Junzt? E quanto à mão monstruosa que lhe estrangulou a vida? Desde que li o que Bahadur escreveu, não posso mais duvidar de nada no Livro Negro. O homem nem sempre foi dono da terra... e ele o é agora?

E o pensamento volta a me ocorrer... se uma entidade monstruosa, como o Senhor do Monólito, sobreviveu à sua própria e incalculavelmente distante época... quais formas sem nome podem ainda espreitar pelos lugares obscuros do mundo?


FIM


Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

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