O Serviço do Rei (fragmento)

(por Robert E. Howard)


Prólogo:

A LENTA ascensão e a queda abrupta de Roma sacudiram o mundo ocidental. Nas vegetações de cogumelos do Leste, a derrocada de cidades imperiais causou apenas uma agitação momentânea nas marés aglomeradas de humanidade inquieta, e sua própria lembrança se desmanchou do pensamento dos homens, quando a selva rastejante e o deserto soprado pelo vento apagaram as muralhas despedaçadas e torres destruídas.

Assim era um reino chamado Nagdragore, cujos rajás enfeitados por penas de águias arrecadavam tributos do Decão, enquanto bárbaros de cabelos amarelos atravessavam furtivamente, com mãos ensangüentadas, os portões de Roma.

As glórias de Nagdragore foram esquecidas por mil anos. Nem mesmo no enevoado abismo da lenda hindu, onde mil dinastias perdidas dormiam despercebidas, se demora qualquer insinuação daquele reino desaparecido. Nagdragore é uma dentre mil ruínas sem nome; uma massa desagregada de pedra destruída e mármore quebrado, perdida nas ondulantes profundezas verdes da selva cega e fervilhada de animais rastejantes.

Esta história é dos tempos do esplendor perdido de Nagdragore, antes que decaísse e caísse diante das devastações dos hunos brancos, tártaros e mongóis; uma história da Era que a viu brilhar como uma jóia cintilante no peito pardo da Índia, quando suas torres imperiais se erguiam douradas, brancas e púrpuras no azul, contemplando, com o orgulho do destino garantido, para o Golfo de Cambaia, cercado de verde e com espumas brancas.

***

- As brumas estão clareando.

Mãos peludas e calejadas descansavam sobre longos remos de freixo, e olhos gélidos perscrutavam através do véu que diminuía. O navio era um estranho em águas orientais: era longo, delgado, baixo no meio, alto na popa e proa, e esta última se curvava para o alto até a cabeça esculpida de um dragão. O estilo desimpedido de construção, a amurada com escudos e a proa indicavam-na como incursora tão claramente quanto a tripulação o fazia: guerreiros enormes, de barbas loiras, com frios olhos claros.

Na popa havia um pequeno grupo de homens, e um destes, um gigante de olhos meditativos e sobrancelhas carrancudas, praguejou através da barba.

- As hordas de Halheim sabem onde nós estamos, ou em qual direção fica a terra; mas a água e a comida estão escasseando... Hrothgar, você disse sentir terra na direção leste, mas por Thor...

Um súbito grito se ergueu da tripulação, enquanto os remadores punham seus remos para trás e olhavam fixamente com os queixos caídos. Diante deles, a neblina diminuía rapidamente, e agora, pendente no céu obscuro, um súbito brilho de pedras preciosas e mármore surgiu repentinamente diante de seus olhos. Vislumbraram, pasmados, os torreões, pináculos e ameias de uma enorme cidade no céu.

- Pelo sangue de Loki! – praguejou o chefe viking – É Mdigaard!

Um outro na popa riu. O viking se virou, irritado, para ele. Este homem era diferente dos companheiros; somente ele não portava armas nem vestia malha, embora os demais o encarassem com uma espécie de respeito mal-humorado. Havia, em seus modos, uma dignidade natural e leonina, uma nobreza de modos e uma percepção de poder sem arrogância. Era alto, de ombros tão largos e tão poderoso quanto qualquer homem ali, e havia ao seu redor certa flexibilidade felina que muitos dos guerreiros de membros pesados não tinham. Seu cabelo era dourado como os deles e seus olhos, tão azuis quanto, mas ninguém o confundiria com um deles. Seu rosto forte, bronzeado pelo sol, era esperto e expressivo com a caprichosa meio-zombaria do celta.

- Donn Othna. – disse raivosamente o chefe pirata – Qual é a graça desta vez?

O outro sacudiu a cabeça:

- Só ri ao pensar que, naquele brilho de beleza acolá, um saxão pudesse ver a cidade de seus deuses frios e selvagens, os quais constroem mais com espadas e caveiras do que com mármore e ouro.

A brisa levantou as brumas e a cidade brilhou mais claramente. O porto, o ancoradouro e os muros se destacaram, através da neblina que se desvanecia, com rapidez assombrosa.

- Parece uma cidade de sonhos. – murmurou Hrothgar, com os olhos frios alheios em sua admiração – A névoa era mais espessa do que pensamos, para nos aproximarmos tanto de um porto como este sem sermos percebidos. Vejam as embarcações que se aglomeram em seus ancoradouros. O que é agora, Athelred?

O gigante franziu a testa:

- Eles já nos avistaram; se fugirmos agora, teremos uns vinte navios se lançando como aves de rapina atrás de nós. E precisamos de água fresca... o que acha, Donn Othna?

O celta encolheu os poderosos ombros.

- Quem sou eu para achar qualquer coisa? Não sou chefe entre vocês... mas, se não podemos fugir... e dar a volta agora iria realmente provocar suspeitas... temos que nos pôr corajosamente diante deles. E vejo lá longe várias embarcações de comércio, que parecem viajar grandes distâncias, e possa ser que este povo faça comércio com muitas nações e não caia sobre nós à primeira vista. Nem todos os povos são saxões!

Athelred rosnou grosseiramente e gritou ao timoneiro, que descansava sobre o longo remo e encarava boquiaberto. Os longos remos de freixo começaram a bater novamente sobre as ondas, e o navio corajosamente se moveu em direção ao ancoradouro sonhador. Outras embarcações saíam para encontrá-los. Navios de estranho feitio e ricamente entalhados, tripulados por homens de pele escura, se lançavam para a frente, e os saxões eram obrigados a pararem, enquanto Athelred saudava os líderes deles.

Os vikings olhavam, maravilhados, para os navios suntuosamente ornamentados, e para os guerreiros de narizes aquilinos e turbantes, cujos trajes brilhavam em prata e seda, e cujas armas tremeluziam com relevos dourados e jóias faiscantes; ficaram boquiabertos diante dos pesados remos de ferro, os redondos escudos de pontas prateadas e reforçados com ouro, as longas lanças finas e sabres curvos. E, ao mesmo tempo, os orientais também olhavam, com igual admiração, para aqueles gigantes de pele branca e cabelos loiros, com seus elmos de chifres, camisas de cotas-de-malha e machados de lâminas brilhantes.

Um chefe alto, de barba negra, se encontrava no convés adornado da embarcação mais próxima e gritou para Athelred, que lhe respondeu na mesma língua. Não conseguiram entender um ao outro, e o chefe saxão começou a fumegar com a impaciência perigosa do bárbaro. Havia tensão no ar. Os vikings furtivamente abaixaram os remos e tatearam por seus machados, e a bordo dos outros navios, as cordas dos arcos deslizavam para as extremidades posteriores de flechas farpadas. Então, Donn Othna arriscou gritar uma saudação em Latim. Notou-se instantaneamente uma mudança no chefe oposto.

Ele abanou o braço e respondeu com uma única palavra na mesma língua, o que Donn Othna entendeu como uma resposta amigável. O celta falou algo mais, mas o chefe repetiu a única palavra latina e, com um abanar de seu braço, indicou que os estranhos deveriam ir à frente deles no porto. Os homens rudes, a um rosnado de seu chefe, ergueram novamente seus remos, e o navio em forma de dragão deslizou porto adentro e ao lado do cais, com a escolta de navios balouçantes a cada lado.

Ali, o líder oriental veio pelo lado e, com um gesto, indicou que eles deveriam ficar a bordo do próprio navio por algum tempo. A barba de Athelred se eriçou diante disto, mas não havia mais nada a ser feito. O chefe se afastou a passos largos, com um barulho de armas, e um grupo de guerreiros altos e barbados tomou oportunamente suas posições nos ancoradouros. Pareciam não perceberem os estranhos, mas Donn Othna notou que superavam em número a tripulação do navio-dragão, e que traziam arcos perigosos.

Uma grande multidão apareceu nos ancoradouros, gesticulando e gritando de espanto, fitando, com olhos arregalados, os sombrios gigantes brancos, que lhes devolviam o olhar com o mesmo fascínio. Os arqueiros puxaram rudemente a multidão para trás, forçando-a a deixar um amplo espaço livre. Donn Othna sorriu; mais do que seus mais imperturbáveis companheiros, ele apreciava o ostentoso panorama de cores diante de si.

- Donn Othna – era Athelred rosnando atrás dele –, de que lado você está?

- O que quer dizer?

O gigante acenou com a mão enorme em direção aos guerreiros nos ancoradouros.

- Se acabar em guerra, você lutará por nós, ou vai me esfaquear pelas costas?

O grande celta riu cinicamente:

- Estranhas palavras para um prisioneiro. Que utilidade teria uma única palavra contra suas hostes? – Logo seu ar mudou: – Traga-me a espada que seus homens tomaram de mim; se estou para ajudá-lo, não parecerei um escravo aos olhos dessa gente.

Athelred grunhiu uma ordem abrupta, mas seus olhos caíram diante do olhar frio do outro, e ele gritou um comando. Um enorme guerreiro imediatamente subiu na popa, trazendo consigo uma pesada espada numa bainha de couro, presa a um largo cinto de fivela prateada. Os olhos de Donn Othna cintilaram, quando ele pegou a arma e amarrou-a à cintura. Ele pôs a mão no cabo de marfim enfeitado de jóias, com seu pesado guarda-mão de prata e desembainhou-a pela metade. A lâmina de dois gumes, de um azul sinistro, zumbiu levemente.

- Por Thor! – murmurou Hrothgar – Sua espada canta, Donn Othna!

- Ela canta por ter voltado ao lar, Hrothgar. – respondeu o celta – Agora eu sei que aquela praia ali é a terra dos hindus, pois foi aqui que minha espada nasceu da fumaça, forja e martelo de um feiticeiro, há eras obscuras. Ela foi outrora um grande sabre que pertencia a um poderoso imperador oriental, ao qual Alexandre conquistou. E Alexandre levou-a consigo ao Egito, onde ficou até que romanos chegassem e um cônsul a pegasse para si mesmo. Não gostando do formato curvo, ele fez um forjador de espadas de Damasco refazer a lâmina... pois os romanos usavam espadas retas. Eu próprio a tomei de Eochaidh Mac Ailbe, rei de Erin, a quem matei numa luta marítima diante da costa oeste.

- Uma espada para um príncipe. – disse Hrothgar em franca admiração – Veja... vem chegando alguém!

Com um grande grito e retinir de armas, uma grande multidão desceu para o desembocadouro. Mil guerreiros em armaduras brilhantes e cavalos árabes; camelos e elefantes a grunhirem escoltavam alguém que se sentava numa cadeira em forma de trono, nas costas de um grande elefante. Donn Othna viu um rosto magro e soberbo, de barba negra e nariz aquilino; intensos olhos negros, brandos e ao mesmo tempo agudos, examinavam os ocidentais. O celta percebeu que este rei, lorde ou quem quer que fosse, não era da mesma raça de seus súditos.

A cavalgata parou diante do navio-dragão, as trombetas fenderam os céus numa fanfarra cortante, os címbalos colidiram ensurdecedores e logo um capitão ostentosamente vestido cavalgou para a frente, fez uma profunda saudação desde sua sela e desatou num vôo grandiloqüente de palavras que nada significavam para os ocidentais boquiabertos. O personagem na cadeira-trono deteve seu vassalo com um giro lânguido de uma mão branca e enfeitada de jóias, e falou em Latim claro e fluente:

- Ele está dizendo, meus amigos, que o exaltado filho dos deuses, o grande rajá Constantius lhes rende a estupenda, nunca antes ouvida e assombrosa honra de vir lhes saudar pessoalmente.

Todos os olhos se voltaram para Donn Othna, o único homem a bordo do navio-serpente capaz de entender as palavras. Os enormes saxões o observaram ansiosos, como grandes crianças perplexas, e foi nele que os olhos dos orientais se concentraram. O celta alto se demorou, com os braços cruzados e a cabeça lançada para trás, encontrando diretamente o olhar do rajá e, apesar do esplendor e adornos do oriental, sua realeza não era menos aparente que a do ocidental. Os dois líderes naturais se encaravam, reconhecendo o direito real de nascença um do outro.

- Sou Donn Othna, um príncipe da Bretanha. – disse o celta – Este líder é Athelred dos saxões. Nós navegamos por muitas luas cansadas, e só desejamos paz e uma chance de comercializar por comida e água. Que cidade é esta?

- Aqui é Nagdragore, um dos mais importantes principados da Índia. – respondeu o rajá – Venham à terra; vós sois meus convidados. Faz muitos dias desde que virei meu rosto para leste, e estou ansioso para falar com alguém na velha língua de Roma e ouvir as novidades do oeste.

- O que ele está dizendo? É paz ou guerra? Onde estamos? – as perguntas choveram sobre o bretão.

- Estamos realmente na terra dos hindus. – respondeu Donn Othna – Mas aquele rei não é indiano. Se ele for um grego, eu sou um saxão! Ele nos manda ser seus convidados em terra firme; isso pode significar prisioneiros, mas não temos escolha. Talvez ele pretenda se relacionar positivamente conosco.


1)

DONN OTHNA ergueu um copo esculpido em uma única jóia e bebeu intensamente. Ele o abaixou e olhou para o outro lado da ricamente entalhada mesa de teca, em direção ao rajá que se reclinava langorosamente no divã de seda. Estavam sós na sala, exceto pelo enorme negro mudo, o qual, vestindo apenas uma tanga de seda, se encontrava bem atrás de Constantius, segurando uma cimitarra de lâmina larga, quase tão longa quanto ele mesmo.

- Bem príncipe – disse o rajá, brincando despreocupadamente com uma grande safira em seu dedo –, não trabalhei honestamente com você e seus homens? Agora mesmo, eles se fartam com carne e comida que nunca sonharam existir, e descansam sobre leitos de seda, enquanto músicos tocam músicas de cordas para o prazer deles e garotas flexíveis como panteras dançam para eles. Nem sequer lhes tomei os machados... quanto a você, se banqueteia sozinho comigo aqui... contudo, vejo suspeita em seus olhos.

Donn Othna apontou para a espada à qual havia desafivelado e colocado sobre um banco polido.

- Eu não teria tirado a espada de Alexandre, se não confiasse em você. Quanto aos saxões... pela pilhéria de Crom! São como ursos num palácio. Se você tentasse desarmá-los, a admiração deles se tornaria uma fúria desesperada, e aqueles mesmos machados teriam bebido intensamente nas marés vermelhas. Não é suspeita o que vê em meus olhos, mas espanto. Pelos deuses! Quando eu era um garoto de cabelo despenteado, me aventurei em Tara e Erin, e fiquei embasbacado em Caer Odun. Depois, já um rapaz, quando fiz ataques-surpresa em território romano, achei que Corinium, Aquae Sulis, Eboracum e Lundinium fossem as maiores cidades da terra. Quando cheguei à idade adulta, a lembrança delas foi ofuscada pela minha primeira visão de Roma, embora ela estivesse se desagregando sob os pés profanadores dos godos e vândalos. E Roma parece uma simples aldeia, quando olho para as espirais coroadas e as torres lavradas a ouro de Nagdragore!

Constantius acenou com a cabeça, com um toque de amargura nos olhos.

- É um império pelo qual vale a pena lutar, e eu já tive sonhos de expandir a terra da Índia de mar a mar... mas me conte sobre Roma e Bizâncio; faz um longo tempo que virei o rosto em direção ao leste. Na época, os bárbaros germanos estavam assolando as fronteiras romanas, Genseric estava saqueando a própria cidade imperial, e rumores de um povo estranho e terrível chegaram até mesmo a Bizâncio, a qual se contorcia sob o calcanhar dos ostrogodos.

- Os hunos! – exclamou Donn Othna, com o rosto se iluminando ferozmente – Sim, eles vieram do Leste, como um vento de morte, como um enxame de gafanhotos. Empurraram os godos, os francos e os vândalos diante deles, e os teutões atropelaram Roma em sua fuga. Logo, com o mar diante deles, não puderam mais fugir. Ficaram encurralados, e as duas hostes se encontraram em Chalons... pelos deuses, as espadas se saciaram! Lá, os corvos se alimentaram e os machados se fartaram de vermelho! Rolaram sobre nós como uma onda negra, e assim como uma onda se quebra nas rochas, eles se espatifaram na parede de escudos germanos e nas fileiras das legiões de Aecius.

- Você estava lá? – exclamou Constantius.

- Sim! Com 500 dos homens de minha tribo! – Os olhos ferozes de Donn Othna arderam em chamas, e ele bateu de forma retumbante o punho sobre a mesa – Navegamos com aquelas legiões bretãs que foram socorrer Roma... e não retornaram mais à sua terra natal. Nas planícies da Gália e Itália, seus ossos apodrecem... assim como os de vários homens ocidentais dos clãs, que nunca se curvaram a Roma, mas que seguiram seus parentes civilizados.

“Lutamos o dia todo, e no final, os hunos foram vencidos. Por Crom, minha espada estava vermelha e coagulada do cabo até a ponta, e eu mal conseguia levantar meu braço. De meus 500 guerreiros, 50 estavam vivos!

“Bem, Vortigern havia chamado os jutos para ajudá-lo contra os pictos e os anglos, e os saxões os seguiam como lobos famintos. Retornei à Britânia e, no turbilhão de guerra que varria as costas meridionais, caí prisioneiro deste Athelred, o qual, sabendo meu nome e posto, queria me manter para um resgate. Mas algo estranho veio a acontecer...”.

Donn Othna fez uma pausa e riu rapidamente.

- Nós, do oeste, temos um antigo e grande ódio, e nossos primos gaélicos fazem um culto de vingança, mas, por Crom, nunca soube o que poderia ser o anseio por vingança, até avistarmos os navios de Asgrimm, o anglo. Este rei do mar tinha uma velha rixa com Athelred, e perseguiu com seus dez longos navios-serpente. Por Crom, ele nos perseguiu ao redor de meio mundo! Ele se pendurou à nossa popa feito um cão de caça, e não conseguíamos escapar dele.

“Corremos dele ao redor da costa da Gália e descendo a Espanha, e quando íamos dar a volta para dentro do Mediterrâneo, ele ficou muito próximo e nos expulsou das Colinas de Hércules. Para o sul e sempre para o sul, nós fugíamos, passando por costas sombrias e fumegantes, molhadas por pântanos ou escurecidas por florestas, onde pessoas negras, selvagens e nuas gritavam e lançavam flechas em nossa direção.

“Por fim, contornamos um cabo e nos dirigimos para leste, e, em algum lugar por lá, nos livramos de nossos perseguidores. Desde então, temos navegado e remado ao acaso. Como vê, rei Constantius, minhas notícias estão quase um ano atrasadas”.

Os intensos olhos escuros do rajá estavam meditativos com pensamentos internos. Ele suspirou e bebeu profundamente da taça que o escravo negro encheu e provou primeiro.

- Há quase vinte anos, naveguei de Bizâncio com comerciantes cipriotas destinados a Alexandria. Eu era apenas um jovem, ignorante e cheio de encanto pelo mundo, mas com sangue real em minhas veias. De Alexandria, perambulei por caminhos tortuosos até Damasco, e lá, me juntei a uma caravana que retornava até Xiraz, na Pérsia. Mais tarde, eu procurava pérolas no Golfo de Omã, e foi lá onde fui capturado por um pirata maldivo (*), que me vendeu numa loja de escravos em Nagdragore. Não preciso repetir para você o trajeto tortuoso pelo qual alcancei o trono.

“A velha dinastia estava se desagregando, prestes a cair; Nagdragore estava assolada por guerras incessantes com reinos vizinhos. Foi uma trilha vermelha, negra de conspiração e traição, que eu segui, mas hoje sou rajá de Nagdragore... embora o trono estremeça sob meus pés”.

Constantius descansou os cotovelos sobre a mesa, e o queixo em suas mãos; seus grandes olhos meditativos se fixaram no gigante loiro à sua frente.

- Você também é um príncipe, apesar de seu palácio ser de vime trançado. – ele disse – Somos do mesmo mundo, apesar de eu ter nascido numa extremidade, e você na outra extremidade desse mundo. Preciso de homens nos quais eu possa confiar. Meu reino está dividido contra si mesmo, e jogo um chefe contra outro até danificar Nagdragore, mas para meu próprio ganho. Meus chefes rivais são Anand Mulhar e Nimbaydur Singh. Um é rico, covarde e avarento; cauteloso e desconfiado demais para se opor abertamente a mim. O outro é jovem, arrebatado, romântico e valente, mas uma vítima dos agiotas que observam a maneira como um peixe salta.

“As pessoas comuns me odeiam, porque amam Nimbaydur Singh, que tem um traço de sangue real nas veias. Os nobres... os Rajputs... me detestam porque sou um forasteiro. Mas eu governo os agiotas e, através deles, Nagdragore.

“A guerra é mais ou menos secreta, e nela estou comprimido entre Anand Mulhar de um lado e Nimbaydur Singh do outro, embora eu ainda segure nas mãos as rédeas do poder. Eles se odeiam demais para se unirem contra mim.

“Mas é da silenciosa adaga assassina que devo ter medo. Confio em parte na minha guarda, mas meia confiança é um pouco melhor do que total suspeita e muito mais perigosa. Foi por isso que desci até o cais para eu mesmo cumprimentá-lo. Você e estes bárbaros vão permanecer aqui no palácio e lutar por mim, se a ocasião surgir?

“Eu não poderia fazer de vocês a minha guarda pessoal. Isto ofenderia os nobres, e todos se revoltariam instantaneamente. Mas irei ostensivamente fazer de vocês parte do exército; vocês permanecerão aqui no palácio e você, príncipe, será meu companheiro de copo”.

Donn Othna exprimiu um sorriso lento e preguiçoso, e estendeu a mão para pegar o jarro de vinho.

- Vou falar com Athelred. – ele disse – Acho que ele concordará.


2)

O BRETÃO encontrou Athelred sentado de pernas cruzadas num leito de seda, dilacerando um enorme quarto de cordeiro assado, entre enormes goles de vinho indiano. O saxão grunhiu uma saudação e continuou a comer e beber vorazmente, enquanto Donn Othna se sentou e olhou ironicamente ao seu redor. A tripulação pirata se esparramava confortavelmente por entre as almofadas no chão de mármore, ou perambulava ao redor da grande sala, olhando curiosamente para o alto, em direção à cúpula enfeitada de jóias lá em cima, ou olhando para fora das janelas com barras de ouro, em direção a pátios com árvores floridas e flores perfumando o ar, ou para quartos com colunas a intervalos regulares, onde fontes lançavam um brilho prateado para o alto. Eles estavam curiosos e encantados como crianças, e desconfiados como lobos. Cada um mantinha seu machado de cabo curvo e lâmina maldosa à mão.

- O que é agora, Donn Othna? – resmungou Athelred, mastigando sem pausa.

- O que fará? – disse o bretão de forma esquiva.

- Ora – o pirata girou um osso meio mastigado ao redor –, aqui tem pilhagem que faria os ossos de Hengist se abrirem e a boca de Cerdic salivar. Vamos fazer o seguinte: esta noite, vamos nos insurgir furtivamente e atear fogo ao palácio; então, durante a confusão, vamos nos apoderar de todo o saque que pudermos levar facilmente e abrir caminho até nosso navio que está desguarnecido ao longo das docas. E depois, ho, para os mares ocidentais! Quando meu povo vir o que trazemos, haverá cem navios-dragão nos seguindo! Pilharemos Nagdragore, e esculpiremos um reino com nossos machados.

- Isso tiraria seus lobos-do-mar da Britânia... – disse Donn Othna sombriamente – Devo concordar. Mas é um plano louco demais, mesmo para ser tentado por um saxão. Mesmo que eu pudesse perdoar a traição ao nosso anfitrião, não conseguiríamos alcançar metade do caminho até o navio. Cento e cinqüenta homens abrindo caminho através de 50 mil? Não pense mais nisto.

- Que faremos então? – grunhiu Athelred – Por Thor, parece que nossas posições mudaram! A bordo do navio, você era nosso prisioneiro. Agora parece que nós somos seus prisioneiros! Somos inimigos hereditários; como posso saber que pretende nos tratar de forma justa? Como posso saber o que você e o rei ficaram tagarelando um para o outro? Talvez vocês planejem cortar nossas gargantas.

- E, por não saber, você deve acreditar em minha palavra. – respondeu calmamente o príncipe – Não tenho amor por você ou sua raça, embora saiba que vocês são homens valentes. Mas aqui, temos que agir de forma combinada. Sem mim, você não tem intérprete; sem você, não tenho força armada para fortalecer meu direito à respeitabilidade. Constantius nos ofereceu serviço na guarda de seu palácio. Não confio nele mais do que você em mim; ele vai nos trair no momento em que estiver em vantagem. Mas, até tal momento, é vantagem para nós atendermos ao pedido dele. Se eu conheço os homens, avareza não é um dos defeitos dele. Viveremos bem em sua generosidade. Agora mesmo, ele precisa de nossas espadas. Mais tarde, essa necessidade deve passar, e deveremos embarcar novamente... mas entenda, Athelred, este serviço que lhe faço agora é meu resgate. Não sou mais seu prisioneiro, e se eu embarcar novamente em seu navio, sou um homem livre, ao qual você colocará em solo britânico sem preço.

- Juro pela minha espada. – grunhiu Athelred, e Donn Othna acenou, satisfeito, com a cabeça, sabendo que o rude saxão era um homem de palavra.

- O Leste está cheio de possibilidades ilimitadas. – disse o bretão – Aqui, um coração ousado e uma espada afiada podem realizar tanto quanto no Oeste, e a recompensa é maior, se for mais ligeira. Agora mesmo, duvido que Constantius confie totalmente em mim. Tenho que provar que podemos ter valor para ele.

A oportunidade chegou mais cedo do que ele esperava. Nos dias seguintes, Donn Othna e seus camaradas permaneceram nos labirintos da cidade oriental, assombrados com os estranhos contrastes: o esplendor e riquezas dos nobres, e a penúria e miséria dos pobres. Nem era o menor paradoxo ele, que se sentava sobre o trono.

Donn Othna estava sentado num aposento folheado a ouro, e bebia vinho com o rajá Constantius, enquanto o grande e silencioso homem negro os servia. O príncipe bretão olhava pasmado para o rajá. Constantius bebia intensa e insensatamente. Estava bêbado, seus olhos estranhos mais escuros e fluidos que nunca.

- Você é tanto um alívio quanto uma proteção para mim, Donn Othna. – ele disse, com um breve soluço – Eu posso ser meu eu não-corrompido com você... pelos menos, eu admito isso como meu eu não-corrompido. Confio em você, porque você traz o poder limpo e direto dos ventos ocidentais, e o limpo cheiro salgado dos mares ocidentais contigo. Não preciso ficar para sempre prevenido em minha guarda. Eu lhe digo, Donn Othna, este negócio de império não é algo que traz sossego ou alegria. Se tivesse que viver novamente, eu preferiria ser o que fui outrora: um jovem de membros bem proporcionados e pele marrom, mergulhando em busca de pérolas no Golfo de Omã e esbanjando-as com garotas árabes de olhos escuros.

“Mas a dignidade real é minha maldição e meu direito de nascença, assim como a sua. Sou rajá, não porque eu seja sábio ou tolo, mas porque tenho o sangue de imperadores em minhas veias, e segui um destino que não posso evitar. Você também viverá para requisitar um trono e amaldiçoar a coroa que lhe fatigar o pescoço cansado. Beba!”.

Donn Othna afastou a taça oferecida.

- Já bebi bastante, e você muito mais. – ele disse abruptamente – Por Crom, encontrei mais que um comilão e mais que um beberrão. Você é incrivelmente sábio e incrivelmente tolo. Como um homem como você consegue ser rei?

Constantius riu:

- Uma pergunta que já custou a cabeça de outro homem. Vou lhe dizer por que sou rei: porque sei adular os homens e ver através de sua adulação, porque conheço as fraquezas de homens fortes, porque sei como usar dinheiro; porque não tenho quaisquer escrúpulos, e recorro a qualquer método, honesto ou sórdido, para alcançar meus objetivos. Porque, tendo nascido no ocidente e sido criado no oriente, a astúcia dos dois mundos está em mim. Porque, embora eu seja essencialmente um tolo, tenho clarões de verdadeiro gênio, além do poder de um homem constantemente sábio. E porque... e todas as minhas outras dádivas seriam inúteis sem esta... tenho o poder de moldar mulheres como cera em minhas mãos. Deixe-me olhar nos olhos de qualquer mulher e a mantenha perto de mim, e ela será minha escrava para sempre.

Donn Othna estremeceu os poderosos ombros e abaixou sua taça.

- O Leste me atrai com um estranho fascínio – ele disse –, embora eu prefira governar uma tribo de gauleses de cabelos desgrenhados. Mas, por Crom, seus meios são tortuosos e estranhos.

Constantius riu e se levantou vacilante. O recolhimento do rajá foi acompanhado apenas pelo grande negro mudo. Donn Othna dormiu num quarto vizinho à sala folheada a ouro.

E agora Donn Othna, tendo dispensado seu próprio escravo, caminhou para a janela densamente gradeada que dava num pátio mais interno, e inspirou profundamente os cheiros apimentados do Oriente. A antiguidade sonhadora da Índia lhe tocava as pálpebras com dedos calmos e, nas profundezas de sua alma, vagas memórias raciais se agitaram. Apesar de tudo, ele sentiu certo parentesco com estes Rajputs de rosto aquilino e olhos agudos. Eram de seu sangue, se as antigas lendas fossem verdadeiras ao contarem sobre os dias em que os filhos de Aryan eram uma grande tribo, nas vagas e nebulosas eras, antes que os ancestrais de Nimbaydur Singh saíssem da nação naquela grande migração para o sul, e antes que os ancestrais de Donn Othna empreendessem a longa jornada para oeste.

Um leve som o trouxe de volta ao presente. Um rápido passo largo o levou, da sala onde ele olhava, para dentro da câmara folheada a ouro, através de uma cortina revestida de ouro. Uma dançarina havia entrado na câmara, e Donn Othna se perguntou como ela havia passado pelos espadachins, postados do lado de fora da porta. Era esguia e jovem, flexível e bonita, sua escassa cinta de seda e placas de ouro nos seios lhe acentuando seu encanto sinuoso. Ela se aproximou do enorme negro que a encarava em súbito espanto e ameaça. Ela se aproximou dele, com os lábios vermelhos suplicantes, e os olhos intensos seduzindo, suas pequenas mãos esticadas para fora e viradas para cima em súplica. Donn Othna não conseguia lhe entender os tons baixos – embora ele houvesse aprendido muito da linguagem Rajput –, mas viu o negro sacudir a cabeça pontiaguda e erguer ameaçadoramente a enorme cimitarra.

Ela agora estava bem perto do mudo – e se moveu como uma naja dando o bote. De algum lugar ao redor de suas roupas sumárias, ela puxou rapidamente uma adaga e, com o mesmo movimento, a enfiou no coração do mudo. Ele cambaleou como um grande ídolo negro, a espada lhe caiu das mãos sem força e ele caiu sobre a mesma, o rosto se contorcendo na agonia do esforço enquanto sua língua definhada tentava soar um aviso ao seu amo. Logo, o sangue jorrou daquela boca silenciosamente escancarada, e o grande escravo jazeu imóvel.

A jovem saltou rápida e silenciosamente em direção à porta, mas Donn Othna ficou diante dela num único pulo. Ela se deteve por um segundo fugaz, e logo saltou impetuosamente em direção à garganta dele. As danças do Leste tornam seus devotos flexíveis e com a dureza do aço em cada músculo. Eras mais tarde, quando os ocidentais invadiram novamente o Leste, acharam que uma esguia garota de dança profissional seria capaz de sobrepujar um homem. Mas aqueles homens nunca haviam puxado remos de galé, brandido machados de guerra de 9 kg ou puxado quatro cavalos de carruagens pelas rédeas. Donn Othna agarrou aquela megera felina, que arremetia tão ardentemente em busca da vida dele, desarmou-a com pouco esforço e enfiou-a sob um braço como se fosse uma criança.

Ele estava bastante certo do próximo passo dela, quando, saindo dos aposentos reais, veio o rajá, com os olhos ainda meio nublados pelo vinho. Uma simples olhadela mostrou a ele o que havia ocorrido.

- Outra mulher assassina? – ele perguntou casualmente – Meu trono contra sua espada, Donn Othna, Anand Mulhar a enviou. Nimbaydur Singh é honrado demais para tais coisas... aquele pobre idiota – Ele tocou negligentemente o corpo de seu fiel escravo com o dedão do pé, mas não fez comentários.

- O que farei com esta fera? – perguntou Donn Othna – Ela é jovem demais para ser enforcada, e se você deixá-la ir...

Constantius sacudiu a cabeça:

- Nem uma coisa nem outra; deixe que eu cuide dela.

Donn Othna a entregou ao rajá como se ela fosse uma criança, e contente por se livrar daquele pequeno demônio que arranhava e mordia.

Mas, ao primeiro toque das mãos de Constantius, ela ficou quieta, tremendo como um cavalo nervoso. O rajá se sentou num divã e forçou a garota a se ajoelhar diante dele, sem dureza e sem piedade. Ela choramingou um pouco, sentindo muito mais medo da calma do grego do que sentira da fúria de Donn Othna. Uma mão branca e enfeitada de jóias lhe agarrava o punho esguio, e a outra lhe pousava sobre a cabeça, forçando-a a olhar para o alto, em direção ao rosto do rajá, com olhos que tentaram desesperadamente escapar do olhar firme dele.

- Você é muito jovem e muito tola. – disse Constantius num tom ponderado – Você veio aqui me assassinar, porque algum amo maligno lhe enviou... – a mão dele a acariciou como um homem faz com um cão – Olhe dentro de meus olhos; sou seu legítimo dono. Não lhe farei mal; você ficará comigo e me amará.

- Sim, senhor. – a garota respondeu numa voz baixa, como uma moça em transe; seus olhos agora já não tentavam se esquivar de Constantius. Eles estavam bem arregalados e preenchidos com uma estranha luz nova; ela se inclinou para o afago do rajá. Ele sorriu, e a qualidade daquele sorriso o tornou estranhamente belo.

- Diga-me quem é você e quem lhe enviou. – ele ordenou e, para total espanto de Donn Othna, a garota inclinou a cabeça em obediência.

- Sou Yatala; meu amo, Anand Mulhar, me mandou para matá-lo, mestre. Por mais de uma lua, tenho dançado no palácio. Pois meu amo me colocou no grande edifício, e assim conseguiu que seu mago me comprasse dentre outras dançarinas. Foi bem planejado, mestre. Cheguei esta noite, e seduzi a guarda externa; então, quando eles deixaram que eu me aproximasse, vendo que eu era pequena e desarmada, soprei um pó escondido para dentro de seus olhos, de modo que um sono profundo caiu sobre eles. Logo, tirando uma adaga de um deles, eu entrei... e você sabe o resto, mestre.

Ela escondeu o rosto nos joelhos de Constantius, e o rajá ergueu o olhar para Donn Othna, com um sorriso vadio.

- O que acha agora do meu poder sobre as mulheres, Donn Othna?

- Você é um demônio. – respondeu francamente o príncipe – Sou capaz de jurar que nenhuma tortura seria capaz de arrancar desta garota o que ela acabou de lhe dizer espontaneamente... Escute!

Um passo furtivo soou do lado de fora. Os olhos da moça luziram com terror repentino.

- Cuidado, meu senhor! – ela gritou – Esse é Tamur, estrangulador de Anand Mulhar; ele me seguiu para ter certeza...

Donn Othna girou rapidamente em direção à porta – aberta para revelar uma forma terrível. Tamur era mais alto e pesado que o poderoso bretão. Vestindo apenas uma tanga, sua escura pele bronzeada ondulava sob nós e espirais de músculos. Seus membros eram como carvalho e aço, embora flexíveis e elásticos como os de um tigre; seus ombros eram incrivelmente largos. Um curto pescoço, em forma de tronco de árvore, sustentava uma cabeça bestial. A baixa testa inclinada, as narinas largas, o talho cruel da boca, as orelhas pregadas, o simiesco crânio raspado... tudo revelava a besta humana, o sangrador nato. Em seu cinto, estava amarrado o instrumento de seu ofício: uma sinistra corda de seda. Na mão direita, ele segurava uma espada curva.

Donn Othna lhe absorveu a aparência pavorosa num único olhar, e logo estava saltando para o ataque com a temerária selvageria de sua raça. Sua espada brilhou no ar, num resplandecente arco azul, no exato momento em que o outro atacava. Não houve precaução hesitante em nenhum dos lados. Ambos pularam e atacaram simultaneamente, prontos para encerrarem tudo em um único golpe. E, em pleno ar, a lâmina curva e a lâmina reta se encontraram com um ressoante entrechocar. A cimitarra se estilhaçou em mil fagulhas ressoantes e, antes que o bretão pudesse atacar novamente, o estrangulador deixou o cabo cair e, como uma cobra dando o bote, agarrou ferozmente seu rival de pele branca.

O príncipe bretão deixou cair sua espada, inútil em tais lutas corpo-a-corpo, e também o agarrou. Num instante, ele percebeu que estava se engalfinhando com um lutador habilidoso e cruel. O depilado corpo nu do indiano era como o de uma grande cobra, e igualmente difícil de pegar. Mas Donn Othna não havia tido suas aulas, com os melhores treinadores romanos de luta greco-romana, para nada. Agora, ele bloqueava e desviava joelhadas e cotoveladas, e o aperto de dedos de ferro que buscavam agarrar de forma cruel e aleijadora, enquanto ele mesmo lançava seu próprio ataque. O ralo verniz de civilização, adquirido através do contato com seus vizinhos romanos, havia desaparecido no calor da luta, e era um bárbaro branco, selvagem quanto qualquer godo ou saxão, que golpeava e rosnava no salão folheado a ouro dos rajás de Nagdragore.

Donn Othna viu, sobre a cabeça elevada de Tamur, Constantius se aproximar com a espada que ele havia deixado cair e, com os olhos azuis resplandecendo com a ânsia pela luta, rosnou para que o rajá se afastasse e o deixasse terminar sua própria luta.

Peito a peito, os gigantes lutavam, oscilando para trás e para a frente, mas ainda de pé, um frustrando cada esforço do outro. O polegar de Tamur se dirigiu ao olho de Donn Othna, mas o príncipe arremeteu a cabeça contra o peito sólido do outro, mudou seu abraço, e o estrangulador foi forçado a deixar de tentar afundar o olho e tentou se libertar do abraço do bretão, para salvar a própria espinha.

Mais uma vez, Tamur agarrou o braço de Donn Othna num súbito aperto transversal de quebrar os ossos, o qual teria arrebentado o cotovelo como a um pequeno galho, se o príncipe britânico não tivesse repentinamente dirigido a cabeça com força e desespero bem no meio do rosto do indiano. O sangue respingou, enquanto a cabeça de Tamur estalou para trás e Donn Othna, aproveitando a vantagem, o empurrou para trás e derrubou. Ambos se espatifaram pesadamente ao chão, mas o estrangulador se contorceu sob o bretão, e este último viu o pescoço ameaçado por um aperto, que lhe inclinou a cabeça para trás, num ângulo repugnante.

Com uma arfada, ele se libertou violentamente, no momento exato em que Tamur dirigiu angustiadamente o joelho à virilha do bretão. Então, quando o aperto férreo do homem branco relaxou involuntariamente, o homem marrom se livrou em um pulo, sacando a corda mortal de dentro do cinto. Donn Othna se ergueu mais devagar, nauseado com a dor daquele golpe sujo; e Tamur, com um grasnido inumano de triunfo, saltou e usou sua corda. O bretão ouviu a garota gritar, enquanto sentia o delgado comprimento se enrolar como uma serpente ao redor do pescoço, lhe interrompendo instantaneamente a respiração. Mas, no mesmo instante, ele golpeou cega e espantosamente, seu punho férreo cerrado encontrando a mandíbula de Tamur como uma marreta o faz com o lado de um navio. O estrangulador caiu como um cão, e Donn Othna, arfando, arrancou a corda do pescoço torturado e a arremessou para um lado, no exato momento em que Tamur engatinhou até seus pés, os olhos resplandecendo como os de um louco.

O bretão caiu furioso sobre ele, espancando-o com golpes que pareciam os de uma marreta, adquiridos em longas horas de prática com cestus (**). Tal ataque estava além da habilidade de Tamur em lutar; o Leste não tem o instinto de atacar com o punho fechado. Um giro se chocou bem em sua boca, espirrando sangue e quebrando dentes, e ele revidou com o único tipo de golpe que conhecia: um tapa, com a mão aberta e o braço esticado, no lado da cabeça, o qual fez Donn Othna oscilar e lhe encheu os olhos com uma momentânea escuridão cheia de fagulhas. Mas ele instantaneamente retomou os golpes, com um estrondo que afundou o diafragma de Tamur e o fez cair de joelhos, arfando e se contorcendo.

O estrangulador agarrou as pernas de Donn Othna e o arrastou para baixo, e mais uma vez, eles lutaram e golpearam corpo-a-corpo. Mas o voraz bretão sentiu seu inimigo ficar mais fraco agora e, redobrando a fúria de seu ataque como um tigre enlouquecido pelo cheiro de sangue, levou o indiano para trás e para baixo; procurou, e finalmente achou, um aperto mortal e estrangulou o estrangulador, afundando os dedos de ferro cada vez mais, até sentir a vida ir embora sob eles e o corpo que se contorcia se enrijecer.

Então, Donn Othna se levantou, sacudiu o sangue e o suor dos olhos, e sorriu sombriamente diante do fascinado rajá, o qual estava como que congelado, ainda balouçando a espada de Alexandre.

- Bem, Constantius – disse Donn Othna –, como pode ver, sou digno de sua confiança.



Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Fonte: http://en.wikisource.org/wiki/Author:Robert_E._Howard

(*) Maldivo: Nome dado a quem nasce nas Ilhas Maldivas, a sudoeste da Índia (Nota do Tradutor).

(**) Cestus: Luva para combate sem armas, ao estilo greco-romano (N. do T.).
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