Delenda Est

(por Robert E. Howard)


- Eu lhes digo que não é império! É pura falsidade. Império? Bah! Piratas, é tudo o que somos! – era Hunegais, é claro, sempre mal-humorado e sombrio, com suas trançadas madeixas negras e bigodes caídos lhe revelando o sangue eslavônico. Ele suspirou borrascosamente, e o vinho falérnio desceu sobre a borda da taça, apertada em sua mão musculosa. Ele bebeu ruidosamente, à maneira de um cavalo, e voltou, com prazer melancólico, à sua queixa inicial.

- O que fizemos na África? Destruímos os grandes proprietários de terra e os sacerdotes, e nos fixamos como donos das terras. Quem cultiva a terra? Vândalos? De jeito nenhum! Os mesmos homens que a cultivaram sob as ordens dos romanos. Nós simplesmente caminhamos em sapatos romanos. Arrecadamos impostos e rendas, e somos obrigados a defender a terra dos malditos berberes. Nossa fraqueza está em nossos números. Não podemos nos misturar com o povo! Seríamos absorvidos. Não podemos fazer deles aliados ou súditos. Tudo o que podemos fazer é manter uma espécie de prestígio militar... somos um pequeno grupo de estrangeiros, assentados em castelos e, por enquanto, impondo nosso governo sobre uma grande população nativa... a qual, é verdade, não nos odeia mais do que odiou aos romanos, mas...

- Algo deste ódio poderia ser eliminado. – interrompeu Athaulf. Ele era mais novo que Hunegais, rosto bem barbeado, e não era feio; seus modos eram menos primitivos. Era um suevo, que havia passado a juventude como penhor na corte de Roma Oriental – Eles são ortodoxos; se pudéssemos renunciar ao Arianismo...

- Não! – as pesadas mandíbulas de Hunegais se juntaram num estalo que lascaria dentes mais fracos que os dele. Seus olhos escuros se incendiaram com o fanatismo que era, entre todos os teutônicos, a posse exclusiva de sua raça – Nunca! Somos os amos! É deles a submissão... não nossa. Conhecemos a verdade de Arian. Se os infelizes africanos não conseguem perceber seu erro, devem ser obrigados a perceber... pela tocha e espada, e pela tortura se necessário! – Então, seus olhos ficaram novamente opacos e, com outro suspiro ventoso das profundezas de sua barriga, ele tateou pelo jarro de vinho.

- Dentro de 100 anos, o reino vândalo será uma lembrança. – ele profetizou – A vontade que os mantém juntos agora é a vontade de Genseric. – Ele pronunciou Geiserich.

O indivíduo assim chamado riu, se inclinou para trás em sua entalhada cadeira de ébano, e esticou as pernas musculosas diante dele. Eram as pernas de um cavaleiro; mas seu dono havia trocado a sela pelo convés de uma galera de guerra. Dentro de uma geração, ele havia transformado uma raça de cavaleiros numa raça de piratas. Era o rei de uma raça, cujo nome se tornou um termo para destruição, e era o dono do melhor cérebro do mundo conhecido.

Nascido nas margens íngremes do Danúbio e crescido até a idade adulta naquela longa jornada para oeste, quando as migrações dos povos se espremeram sobre as paliçadas romanas, ele havia trazido para a coroa, forjada para ele na Espanha, toda a sabedoria selvagem que o tempo poderia ensinar, no festejar de espadas, e no jorrar e triturar de raças. Seus cavaleiros selvagens haviam arrebatado as lanças dos governantes romanos da Espanha para o esquecimento. Quando os visigodos e os romanos uniram forças e começaram a olhar para o sul, foram as intrigas de Genseric que trouxeram os cicatrizados hunos de Átila em multidões para oeste, para perfurarem os horizontes flamejantes com seus milhares de lanças. Átila agora estava morto, e ninguém sabia onde jaziam seus ossos e tesouros, guardados pelos fantasmas de 500 escravos assassinados. Seu nome trovejou ao redor do mundo; mas em seus dias, ele era apenas mais um dos peões movidos irresistivelmente pela mão do rei vândalo.

E quando, após Charlons, as hostes dos godos desceram através dos Pireneus, Genseric não esperou para ser esmagado por números superiores. Os homens ainda amaldiçoavam o nome de Bonifacius, o qual pediu a Genseric que o ajudasse contra seu rival Aecius, e abriu o caminho dos vândalos para... a África. Sua reconciliação com Roma fora muito tardia – tão inútil quanto a coragem com a qual tentara desfazer o que havia feito. Bonifacius foi morto por uma lança vândala, e um novo reino se ergueu ao sul. E agora Aecius também estava morto, e as grandes galés de guerra dos vândalos se moviam para o norte, os longos remos mergulhando e reluzindo como prata à luz das estrelas, os grandes navios se inclinando e balançando ao erguer das ondas.

E, na cabine da galé, à frente de todas, Genseric ouvia a conversa de seus capitães e sorria suavemente, enquanto penteava a rebelde barba loira com dedos musculosos. Em suas veias não havia traço do sangue cita que deixava sua raça um pouco à parte dos outros teutões, de muito tempo atrás, quando cavaleiros dispersos pelas estepes, migrando para oeste diante dos conquistadores sármatas, vieram para o meio do povo que morava nas extensões mais altas do rio Elba. Genseric era germano puro: de estatura média, com um magnífico arco de ombros e peito, e um volumoso pescoço musculoso, sua estrutura indicava vitalidade física tanto quanto seus grandes olhos azuis refletiam vigor mental.

Era o homem mais forte do mundo conhecido, e era um pirata – o primeiro dos incursores teutônicos do mar, aos quais os homens mais tarde chamariam de vikings. Mas seu domínio de conquista não era o Báltico, nem o azul Mar do Norte, mas as praias ensolaradas do Mediterrâneo.

- E a vontade de Genseric – ele riu, em resposta ao último comentário de Hunegais – é que a gente beba e se banqueteie, e deixe o amanhã cuidar de si mesmo.

- É o que você diz! – bufou Hunegais, com a liberdade que ainda existia entre os bárbaros – Quando foi que você deixou um amanhã tomar conta de si mesmo? Você planeja e planeja, não só para um amanhã, mas para mil amanhãs! Não precisa fingir conosco! Não somos os romanos, para sermos enganados com a idéia de que você seja um tolo... como Bonifacius era!

- Aecius não era tolo. – murmurou Thrasamund.

- Mas ele está morto, e estamos navegando em Roma. – respondeu Hunegais, com o primeiro sinal manifestado de satisfação – Alaric não obteve todo o saque, graças a Deus! E estou contente por Átila ter perdido a coragem no último minuto... mais saque para nós.

- Átila se lembrou de Charlons. – falou Athaulf em tom arrastado – Há, ao redor de Roma, algo vivo... pelos santos, é estranho. Mesmo quando o império parece estar totalmente arruinado, poluído e esfarrapado, alguma parte dele volta a germinar. Stilicho, Theodosius, Aecius... quem pode dizer? Esta noite, em Roma, talvez esteja dormindo um homem que irá derrotar a nós todos.

Hunegais bufou e bateu na mesa manchada de vinho.

- Roma está tão morta quanto a égua branca em que montei na tomada de Cartago! Só precisamos esticar nossas mãos e pegar a pilhagem dela!

- Outrora havia um grande general que pensava assim. – disse Thrasamund em tom sonolento – Um cartaginês também, por Deus! Esqueci o nome dele. Mas ele derrotava os romanos todas as vezes. Cortar, despedaçar, era este o seu modo!

- Bem – comentou Hunegais –, ele deve ter perdido no final, ou do contrário teria destruído Roma.

- É verdade! – exclamou Thrasamund.

- Não somos cartagineses. – riu Genseric – E quem falou em saquear Roma? Não estamos simplesmente navegando para a cidade imperial, em resposta ao apelo da Imperatriz, que está cercada por inimigos invejosos? Agora saiam daqui, todos vocês. Quero dormir.

A porta da cabine bateu sobre as predições sombrias de Hunegais, as chistosas réplicas mordazes de Athaulf e os murmúrios dos outros. Genseric se levantou e se moveu em direção à mesa, para servir a si mesmo um último copo de vinho. Caminhava mancando; uma lança franca lhe havia apertado a perna há longos anos.

Ele ergueu a taça enfeitada de jóias em direção aos lábios... e girou com uma praga sobressaltada. Não havia escutado a porta da cabine se abrir, mas havia um homem do outro lado da mesa.

- Por Odin! – o Arianismo de Genseric era apenas superficial – O que faz em minha cabine?

A voz era calma, quase serena, após a primeira praga alarmada. O rei era astuto demais para demonstrar com freqüência suas verdadeiras emoções. Sua mão se fechou furtivamente no cabo da espada. Um súbito e inesperado ataque...

Mas o homem não fez qualquer movimento hostil. Ele era um estranho para Genseric, e o vândalo sabia que ele não era teutônico nem romano. Era alto, moreno, com uma cabeça majestosa e as mechas pendentes presas por uma faixa vermelho-escura. Uma barba cacheada e patriarcal lhe caía sobre o peito. Uma vaga e desmerecida familiaridade contraiu o pensamento do vândalo, enquanto olhava.

- Não vim lhe fazer mal! – A voz era profunda, forte e ressoante. Genseric pouco poderia falar sobre suas vestes, vez que ele estava encoberto por um largo manto vermelho. O vândalo se perguntou se ele segurava alguma arma sob a capa.

- Quem é você, e como entrou em minha cabine? – indagou.

- Quem eu sou, não importa. – respondeu o outro – Eu estava neste navio, desde que você partiu de Cartago. Você embarcou à noite; cheguei a bordo naquele momento.

- Nunca lhe vi em Cartago. – murmurou Genseric – E você é um homem que se destacaria numa multidão.

- Moro... em Cartago. – respondeu o estranho – Morei lá por muitos anos. Nasci lá, e meus antepassados antes de mim. Cartago é minha vida! – A última frase foi proferida numa voz tão apaixonada e feroz, que Genseric recuou involuntariamente, com os olhos se estreitando.

- O povo da cidade tem certa razão em se queixar de nós. – ele disse – Mas o saque e destruição não foram sob minhas ordens. Mesmo então, era meu objetivo fazer de Cartago minha capital. Se você sofreu perdas devido ao ataque, por que...

- Não foi culpa de seus lobos. – respondeu sombriamente o outro – Saque da cidade? Eu vi um saque, como nem você, bárbaro, já sonhou! Eles chamam você de bárbaro. Já vi o que os romanos civilizados podem fazer.

- Os romanos não pilharam Cartago em minha memória. – resmungou Genseric, franzindo a sobrancelha com certa perplexidade.

- Justiça poética! – gritou o estranho, com a mão saindo de seu manto para bater sobre a mesa. Genseric notou que a mão era musculosa, mas era branca; a mão de um aristocrata – Os romanos cobiçaram e traiçoeiramente destruíram Cartago, e o comércio a reconstruiu com outra aparência. Agora você, bárbaro, navega dos portos dela para humilhar seu conquistador! É de se espantar que velhos sonhos prateem as cordas de seus navios e se movam furtivamente por entre as prisões, e que fantasmas esquecidos arrombem suas tumbas antiqüíssimas para deslizarem sobre seus conveses?

- Quem falou em humilhar Roma? – indagou Genseric, inquieto – Eu simplesmente navego para arbitrar uma disputa pela sucessão...

- Bah! – Novamente a mão bateu sobre a mesa – Se você soubesse o que sei, você varreria a vida daquela cidade maldita, antes de virar as proas de seus navios de volta ao sul. Agora mesmo, aqueles que navegam com você planejam sua ruína... e há um traidor a bordo de seu navio!

- O que quer dizer? – Ainda não havia agitação nem ira na voz do vândalo.

- Suponha que eu lhe dê uma prova de que seu companheiro e vassalo de maior confiança planeja sua destruição, com aqueles para cuja ajuda você ergue suas velas?

- Dê-me esta prova; depois peça o que quiser. – respondeu Genseric, com um toque sombrio.

- Leve isto, como sinal de confiança! – O estranho tilintou uma moeda sobre a mesa, e ergueu um cinto de seda, o qual o próprio Genseric havia negligentemente deixado cair.

- Siga-me à cabine de seu conselheiro e escriba, o homem mais belo entre os bárbaros...

- Athaulf? – Apesar de si mesmo, Genseric se sobressaltou – Confio nele acima de todos os outros.

- Então, você não é tão sábio quanto lhe julguei. – respondeu sombriamente o outro – O traidor dentro de casa deve ser mais temido que o inimigo fora dela. Não foram as legiões de Roma que me derrotaram... foram os traidores dentro de meus portões. Roma não negocia apenas com espadas e navios, mas com as almas dos homens. Vim de uma terra distante, para salvar seu império e sua vida. Em troca, só lhe peço uma coisa: encharque Roma em sangue!

Por um instante, o estranho ficou transfigurado: o poderoso braço erguido, o punho fechado e os olhos escuros ardendo em fogo. Uma aura de terrível poder irradiava dele, atemorizando até mesmo o selvagem vândalo. Então, girando o manto púrpura ao redor de si com um gesto majestoso, o homem caminhou altivamente até a porta e através dela, apesar da exclamação e esforço de Genseric para detê-lo.

Praguejando com perplexidade, o rei claudicou até a porta, a abriu e olhou fixamente para fora, em direção ao convés. Um lampião ardia na popa. Um mau cheiro de corpos sujos se erguia da prisão onde os remadores cansados labutavam em seus remos. O estalar rítmico competia com o coro minguante dos navios que seguiam numa longa linha fantasmagórica. A lua dava um brilho prateado às ondas e brilhava branca no convés. Havia apenas um guerreiro de guarda, do lado de fora da porta de Genseric; o luar faiscava em seu dourado capacete de crista e no corselete romano. Ele ergueu a azagaia em saudação.

- Para onde ele foi? – demandou o rei.

- Quem, meu senhor? – indagou estupidamente o guerreiro.

- O homem alto, seu estúpido. – exclamou Genseric impacientemente – O homem de manto vermelho que acabou de deixar minha cabine.

- Ninguém deixou sua cabine, desde que lorde Hunegais e os outros saíram, milorde. – respondeu o vândalo, desconcertado.

- Mentiroso! – a espada de Genseric era uma onda de prata em sua mão, ao deslizar para fora da bainha. O guerreiro empalideceu e recuou.

- Deus é testemunha, meu rei... – ele jurou – Não vi nenhum homem assim esta noite.

Genseric olhou fixamente para ele. O rei vândalo era um conhecedor de homens, e percebeu que este não estava mentindo. Ele sentiu uma estranha contração no couro cabeludo e, virando-se sem uma só palavra, claudicou apressadamente até a cabine de Athaulf. Lá, ele hesitou e depois abriu a porta.

Athaulf jazia estatelado sobre uma mesa, numa posição que não precisava de um segundo olhar para ser classificada. Seu rosto estava roxo; seus olhos vidrados, dilatados, e sua língua pendia sombriamente para fora. Ao redor do pescoço, amarrado com o nó de um marinheiro, estava o cinto de seda de Genseric. Próxima à sua mão, havia uma pena de escrever; e, perto da outra, tinta e um pedaço de pergaminho. Erguendo-o, Genseric o leu laboriosamente:

“Para sua majestade, a imperatriz de Roma:

Eu, teu servo fiel, atendi às tuas ordens e estou preparado para persuadir o bárbaro a quem sirvo para adiar o ataque dele à cidade imperial, até que a ajuda que tu esperas de Bizâncio tenha chegado. Então, eu o guiarei à baía que mencionei, onde ele pode ser pego como numa morsa e destruído com toda a sua frota, e...”

O texto encerrou com um rabisco irregular. Genseric olhou para ele, e mais uma vez os cabelos curtos lhe arrepiaram no couro cabeludo. Não havia sinal do forasteiro alto, e o vândalo sabia que ele jamais seria visto novamente.

- Roma pagará por isto. – ele murmurou. A máscara que usava em público havia caído; o rosto do vândalo era o de um lobo faminto. Em seu olhar fixo e no crispar de sua mão forte, não era preciso ser filósofo para ler o destino de Roma. Súbito, ele lembrou que ainda apertava na mão a moeda que o estranho deixara cair em sua mesa. Olhou para ela, e o ar sibilou entre seus dentes, quando reconheceu os caracteres de uma linguagem antiga e esquecida, assim como as feições de um homem que vira freqüentemente esculpidas em mármore antigo, na velha Cartago, poupadas do ódio romano.

- Aníbal! – murmurou Genseric.




Tradução: Fernando Neeser de Aragão


Fonte: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Delenda%20Est%20-%20FF.txt?PHPSESSID=cf831176db70beb9d46b0f7340cd86dc
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