O Quinto Filho de Genseric (fragmento)

(por Robert E. Howard)


Há muito, muito tempo, nasceu um filho de Gudrun dos Cachos Brilhantes, esposa de Genseric o Espadachim, em sua pequena casa de pele de cavalo, nas neves congeladas de Vanaheim. Quando o primeiro choro do menino desatou sobre o ermo gelado, Genseric o ergueu com a mão poderosa e o examinou, em busca de qualquer defeito, como era o costume dos vanires e de seus irmãos, os aesires. E ele franziu a testa, pois a perna do bebê era torta.

Costumes imemoriais decretavam que apenas os perfeitos deveriam viver; mas Genseric se voltou interrogativamente para Gudrun, pois a última palavra no assunto era a dela. Mas Gudrun, com o tormento de suas convulsões ainda sobre ela, lançou feroz e orgulhosamente para trás os grossos cachos brilhantes, e disse asperamente:

- Tenho quatro filhos com membros belos e retos. Eu daria a eles um sapo aleijado como irmão?

Assim, Genseric saiu da tenda em direção à fria aurora cinza, carregando o menino nu. A fumaça de sua respiração se coagulava em sua barba, e seus pés calçados faziam ranger a crosta congelada. Havia gelo sobre o cabo de sua espada, e o ar gelado lhe penetrava a roupa de pele e a cota-de-malha sob ela.

Lá fora, sobre a desolação nebulosa, ele deitou o bebê, cujo corpo se azulava no vento que pranteava desde as profundezas escuras que cobriam os horizontes. Ele pôs a mão sobre sua espada, e logo, soprado de longe, veio o longo uivo dos grandes lobos cinzas. Deste modo, ele se virou e caminhou de volta, a passos largos, como um fantasma escuro da vaga aurora, e atrás dele, o grito da alcatéia se erguia a um crescendo de exultação e morria à distância.

Mas, antes mesmo que o sol houvesse atravessado seu caminho através das brumas geladas e nuvens baixas, para transformar os campos de neve numa planície flutuante de fogo cegante, o velho Bragi veio à tenda de Genseric, com sua barba cinza, seus olhos assombrados e a estranheza em sua alma – causada nele por um antigo corte de espada em sua cabeça.

- Eu vi você colocar a criança sobre a neve. – disse o velho Bragi – Eu vi enquanto retornava através dos ermos frios, no nascer cinza da aurora; ouvi o uivo dos lobos, quando você se afastou, e logo o rápido bater de suas patas sobre a crosta. Os olhos deles eram verdes no escuro, e suas línguas pendiam como que famintas entre suas presas brancas. Chegaram ao redor do bebê, onde ele estava sobre a neve, e lhe mexeram os membros com os focinhos, embora não o houvessem ferido. Pelo sangue gelado de Ymir, eles uivavam como os demônios dos ermos ao seu redor, e uma grande loba cinza se deitou ao seu lado e lhe entregou as tetas. Os dedos dele agarraram o rígido e cinza pêlo congelado dela, e ele sugou-lhe as tetas como se fosse um filhote de lobo. Logo, o medo caiu sobre mim, e fugi rapidamente. Mas o que falo é verdade.

Assim, Genseric e seus irmãos avançaram para dentro do ermo, até chegarem ao local onde o bebê fora deixado. Mas a criança se fora, e tudo o que havia ao redor do ponto onde ela fora deixada eram as pegadas dos lobos. Não havia sangue na neve, mas as pegadas de muitos lobos seguiam para oeste, em direção às planícies de gelo e neve eterna. Posteriormente, nas tendas de pele de cavalo de Vanaheim e Asgard, foi contada a história do quinto filho de Genseric, o menino que foi levado pelos lobos.

Eu era o menino. Eu, a quem os homens chamam agora James Allison, em outra era e clima – mais fraca e mais suave. Não consigo lhes dizer como possuo este conhecimento, mais do que vocês conseguem me dizer como os eventos de ontem, dos dias anteriores e dos anos anteriores permanecem inesquecivelmente impressos sobre aquela parte de suas consciências à qual nós chamamos de memória, de modo que vocês podem trazê-las à vida novamente pela fala e escrita. Vocês sabem, é tudo; e eu sei. Como vocês lembram de seus dias, eu lembro de minhas vidas. As lembranças de seus dias são inquebradas pelas noites de sono que as separam, e a lembrança de minhas vidas não é quebrada pelas noites alternadas de sono mais profundo ao qual chamamos morte. Perdi-me naquela noite dez mil vezes, e por dez mil vezes acordei dela, como acordarei muitas e muitas vezes, até que a destruição do planeta que a gerou quebre, de forma final e definitiva, a corrente fictícia de carne, sangue e ossos, que encobriu sucessivamente o espírito imortal que sou eu.

Mesmo a destruição do planeta não pode matar aquele espírito, seja seu fim o gelo escurecedor sob um sol morto e gelado, ou a ira dissipadora de fogos cósmicos. Mesmo que a terra exploda, como uma iridescente bolha de ar flutuando no golfo do infinito, ainda assim, a vida não é destruída. Já tive visões, vastas, terríveis e maravilhosas do cataclismo que não destruirá o espírito que sou eu, mas irá arremessá-lo dentro de infinitos incalculáveis, dentro de inimaginados oceanos de sóis e estrelas além da percepção do homem, para tomar novamente toda a infindável sucessão em mundos magníficos e estranhos, além dos vazios ressoantes.

Mas não tenho ânsia de sondar aquelas profundezas maravilhosas. Sou da terra mundana. Saí do pó e a ele retornei, não uma, mas um milhão de vezes, para me erguer em eterna ressurreição, vestido em uma nova carne e ardendo em juventude, como uma roupa nova e brilhante. Não olho além dos horizontes do planeta onde nasci. Meus pés estão no fundo dos mistérios de suas relvas e lagoas; seu orvalho é meu cabelo, e seu sol é ouro quente sobre meus ombros nus; sob minhas mãos, a terra quente pulsa com a vida que deu às raças humanas, e meus braços abraçam os troncos vivos de suas árvores – elas não são menos suas filhas do que eu; a fala de suas folhas não é menos articulada que a minha.

Ah, já fui muitos homens em muitas terras! Enquanto estou aqui, deitado, esperando que a morte me liberte deste corpo quebrado e doentio, não vejo as paredes sujas, o teto com teias de aranhas, as estampas que se passam por gravuras; eles não limitam minha visão, nem as casas, os arvoredos de carvalho e as colinas além; nem os próprios horizontes me limitam. Vejo as auroras flamejantes que conheci de tempos antigos, as terras distantes, os largos mares espumantes – penhascos brancos contra o claro mar frio, com uma fumaça de espuma brilhante ao redor de seus pés, e o grito das gaivotas. Vejo pompa, orgulho e glória; o brilho do sol sobre couraças douradas, o quebrar de lanças, o desdobrar de velas púrpuras e os olhos escuros de mulheres que me amaram.

Ah, eu vejo todos os homens que já fui! O bravo e o medroso, o forte e o fraco, o gentil e o cruel; as figuras amorosas, odiosas, luxuriosas, beberronas, comilonas, traiçoeiras e arrogantes que sustentaram igualmente, uma após outra, o espírito transitório e inquieto que agora anima a estrutura frágil e doentia à qual chamam James Allison.

O que será que não fui? Rei, guerreiro, escravo; morri em Maratona, em Arbela, Cannae, Charlons, Clontarf, Hastings, Agincourt, Austerlitz, São Jacinto e Gettysburg. Fui um anônimo chefe tribal, montando um garanhão semi-selvagem, quando trouxemos o bronze para dentro da Europa Ocidental; usei lança e escudo na falange macedônica, quando as planícies da Índia estremeceram diante da travessia de Alexandre; puxei um arco forte em Poitiers, quando nossas assobiantes nuvens de flechas romperam a cavalaria da França; ouvi o ranger de couro, o retinir de esporas e o cantar dos cavaleiros da noite, quando levamos os rebanhos de bois com chifres longos a mugirem pela trilha indistinta à qual chamam Chisholm, para construirmos um novo e jovem império, de couro, carne de boi e aço.

O que eu não poderia lhes dizer deste planeta, e da vida que se prolifera sobre ele; como eu desmentiria os cronistas e sábios, e riria de desprezo pelos historiadores e filósofos!

Mas prefiro recuar além de seus conhecimentos, para uma era da qual eles não têm informação. Falarei-lhes do filho de Genseric e de Gudrun dos Cachos Brilhantes, que foi amamentado por lobos.

Ah, a história não é novidade. Toda raça tem suas lendas de um bebê que sugou as tetas de uma loba. É a herança de todos os povos arianos, e deles outras raças já tomaram emprestada.

Mas, foi da realidade do filho de Genseric e Gudrun que nasceram todos estes contos. Rômulo foi amamentado por uma prostituta, e os filhos dele a chamavam de loba por cortesia e subterfúgio. Mas o leite de uma loba cinza foi o único alimento que o filho de Genseric conheceu.

Nunca tive um nome, como os homens têm; embora, nos anos de minha vida, eu tenha sido chamado de muitas coisas por muitas tribos. Eu era O Forte. Era o que meus muitos nomes significavam, em qualquer língua que os tivesse expressado. Lembro que uma tribo de aesires me chamou de Ghor, e desde então, aquele nome é tão bom quanto qualquer outro, e chamarei o filho de Genseric e Gudrun por aquele nome.





Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Fonte: Ghor, Kin-Slayer

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Deuce Richardson, moderador do site “The REH Forum” (www.conan.com/invboard)
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