Os Reis de Tombalku

Por Osvaldo Magalhães



INTRODUÇÃO



Robert E. Howard (1906-1936), o criador de Conan, nasceu em Peaster, no estado norte-americano do Texas, mas passou grande parte de sua vida em Cross Plains, na parte central do Texas. Durante sua breve vida (que terminou em suicídio), Howard publicou dezoito contos de sua maior criação, Conan, o Cimério; outros três contos só foram publicados postumamente – além de cinco aventuras incompletas do Cimério, as quais só recentemente ganharam as páginas do livro Conan O Cimério Vols. 1 e 2, da Editora Conrad.

Um desses fragmentos sem título que Howard deixou conta, em flash-back, como Conan e Amalric se juntaram ao exército mercenário de Argos, que foi traído, posteriormente, por Koth e deixado para ser derrotado no deserto da Stygia.


Este conto, que você irá ler em breve e que batizei de “Os Reis de Tombalku”, procura fazer a narrativa dessa empreitada mal-sucedida de Conan.

Não sei qual vai ser sua opinião ao ler a última linha desta narrativa, mas posso lhe garantir que eu, particularmente, fiquei muito contente com o resultado final; e, se ao final você tiver gostado, então meu esforço terá valido a pena.

Logo a seguir, está a indicação das referências usadas neste conto.


Osvaldo Magalhães
osvabsb@ig.com.br
http://www.cronicasdacimeria.hpg.ig.com.br/








Transcrição de um trecho de “Um Estudo Sobre a Guerra nos Tempos de Conan”, de Jim Neal, Capítulo IV – O Tempo Passa, página 58, publicado em Conan Saga # 10, de maio de 1995.

"A guerra entre Argos e Stygia irrompeu mais uma vez, mas com uma diferença. Desta vez, o rei Strabonus estava envolvido, pois Koth também declarou guerra à Stygia. Lutando como mercenário para Argos, Conan participou de uma bem-sucedida batalha marítima que deixou a armada Stygia bastante avariada. Com outros soldados, o Cimério foi desembarcado na costa de Kush e partiu para nordeste, penetrando a Stygia e tendo como objetivo encontrar-se com as hostes kothianas que deveriam vir do norte.

Strabonus, porém, concluiu uma paz em separado com a Stygia, e simplesmente não se incomodou em mandar suas tropas para encontrar os argoseanos. Houve uma batalha renhida em algum ponto da Stygia, e os sobreviventes de Argos tiveram que fugir para o sul, com Conan entre eles."




O maior herói da Era Hiboriana não foi um hiboriano, mas um bárbaro, Conan da Ciméria, ao redor de quem gira todo um ciclo de lendas. Das civilizações mais antigas da época hiboriana e atlante, sobrevivem somente algumas poucas narrativas fragmentadas, meio lendárias. Uma delas, Crônicas da Nemédia, fornece a maior parte do que é conhecido sobre a carreira de Conan. A seção que trata de Conan começa assim:


"Saiba, ó Príncipe, que entre os anos quando os oceanos tragaram a Atlântida e as reluzentes cidades, e os anos quando se levantaram os Filhos de Aryas, houve uma era inimaginável, repleta de reinos esplendorosos que se espalharam pelo mundo como miríades de estrelas sob o firmamento. Nemédia; Ophir; Brithúnia; Hiperbórea; Zamora, com suas lindas mulheres de negras cabeleiras e torres de mistérios e aranhas; Zíngara, com sua cavalaria; Koth, que fazia fronteira com as terras pastoris de Shem; Stygia, com suas tumbas protegidas pelas sombras; Hirkânia, cujos cavaleiros ostentavam aço, seda e ouro. Não obstante, o mais orgulhoso de todos era Aquilônia, que dominava supremo no delirante oeste. Para lá se dirigiu Conan, o cimério, de cabelos negros, olhos ferozes, espada na mão, um ladrão, um saqueador, um matador, com gigantescas crises de melancolia e não menores fases de alegria, que humilhou sob seus pés os frágeis tronos da terra”.




Os Reis de Tombalku
(por Osvaldo Magalhães)



Sangue no Mar


1.

O disco dourado e flamejante do sol descia lentamente no horizonte do Mar do Oeste. As ondas murmurantes assemelhavam-se à lava incandescente de um vulcão sob os raios do fulgurante astro em chamas. As gaivotas brancas, com suas extremidades escuras, e os grandes pelicanos, com suas bolsas membranosas, agitavam suas asas sob um céu plúmbeo tingido de rubro, de vez em quando mergulhando nas águas agitadas para agarrar algum peixe que se arriscasse um pouco mais na superfície do mar.

Na imensidão azul, uma frota de navios cortava as águas revoltas poucas milhas a oeste da costa argoseana; mais de sessenta naus que faziam parte de um exército mercenário formado em Messântia, a capital de Argos, sob uma aliança com o país de Koth contra a beligerante Stygia e seu séqüito viperino.

Um príncipe zíngaro, Zapayo Da Kova, havia sido nomeado comandante desse exército mercenário de Argos e tinha por missão levar a armada até a costa stígia e, de lá, avançar até o coração de Lúxur, destruindo tudo o que pudesse em seu caminho. O exército kothiano, ao mesmo tempo, marcharia para o sul, atravessando Shem até chegar às terras stígias. O encontro das duas forças resultaria na total destruição da Terra das Cobras e dos Magos.

Em um dos navios, debruçado sobre uma amurada, de costa para o convés, estava uma figura de pele bronzeada. Tinha a estatura de um gigante, os ombros largos e poderosos e o porte de um guerreiro selvagem; seus cabelos eram negros como o ébano e sob eles destacava-se uma cabeça leonina; seus olhos faiscantes carregavam um azul metálico e frio e sua face rígida mostrava um semblante impávido... intimorato!

Ele se afastou do costado e começou a andar pelo convés esticando seus enormes braços musculosos, como um felino faz ao espreguiçar-se após um bom descanso. Usava um rústico cinturão de couro cru que sustentava a bainha na qual ia uma grande espada. Seus trajes eram compostos de uma camisa de algodão sobre a qual retinia uma cota de malha que só poderia ter sido feita na Nemédia; uma tanga de pele de urso, vinda sem dúvida de alguma tribo do norte, descia por sob seu cinturão até as coxas das pernas poderosas; e suas botas polidas eram as de um verdadeiro cavaleiro aquiloniano.

Os homens ao seu redor, na maioria mercenários das inúmeras nações hiborianas, o conheciam como Conan, o cimério. Eram soldados, mercenários, ladrões e bandidos de toda espécie. Vinham de Argos, Zíngara, Koth, Shem e Aquilônia. Alguns usavam armaduras, outros nada usavam além de sumários trajes e armas penduradas de todos os lados. Portavam arcos e flechas, machados de guerra de duas lâminas, compridas cimitarras e adagas de todos os tamanhos e formas. Gritavam o tempo todo, insultando-se uns aos outros de seus respectivos navios.

Todos simpatizavam com Conan, tanto por sua sorte no jogo e alegria na bebida, como por sua postura indomável e selvagem. Grande parte daqueles homens jamais havia navegado antes e podia-se ver alguns vomitando pelos cantos, despejando sobre o convés a última refeição. Estavam navegando há apenas dois dias... pouco tempo para se acostumar ao balanço do mar. Conan, ao contrário, era um marinheiro experiente que já havia navegado com os Corsários Negros por aquelas mesmas águas, anos atrás.

Agora ele era apenas mais um mercenário a serviço de Argos, sob o comando de Zapayo Da Kova, um nobre aventureiro zíngaro com sonhos de grandeza. Para Conan não importavam os motivos da guerra – apesar de estar aliado ao traiçoeiro rei Strabonus de Koth, contra o qual lutara por duas vezes (a mais recente, há um ano, quando o rebelde sobrinho deste morrera com quarenta flechadas) –, mas apenas o soldo e os saques que conseguisse naquela incursão.

A costa argoseana ia ficando cada vez mais para trás e os homens cada vez mais se iam acostumando ao mar e ao seu balanço ritmado. A brisa salgada roçava no rosto de Conan como uma amante lasciva. As conversas frívolas chegavam aos seus ouvidos como um convite irrecusável; então ele se juntou aos homens que jogavam uma partida de dados feitos com osso lascado e sua risada se fez ouvir em meio ao burburinho dos piratas.


2.

Quando a borda superior do sol perfurou a linha do horizonte a manhã trouxe consigo a gelada brisa marítima soprando respingos de água salgada nas faces dos lobos do mar. Os homens caminhavam vagarosamente; uns ainda acordando no convés sobre alguns cordames e velas dobradas; outros se refazendo da ressaca da noite anterior. Os navios avançavam placidamente pelo Mar do Oeste, seguindo para o sul, para a costa stígia. O tempo era bom e os ventos favoráveis.

Logo apareceram às vistas as costas de Shem, com suas extensas pradarias salpicadas por cidades coroadas de zigurates. As aves marinhas agitavam-se numa litania de grasnados, aninhando-se nas rochas da enseada e, em seguida, partindo em sua revoada para o anil do céu. Grandes albatrozes, com suas longas e estreitas asas, planavam delicadamente, mostrando suas penas brancas manchadas de preto nas costas, asas e cauda; exibiam-se graciosamente para os homens que os observavam.

E assim iam-se os dias, arrastando as horas preguiçosamente enquanto o sol e a lua alternavam-se num balé solitário.

Então, quando se aproximaram de um promontório que antecedia a grande baía na qual o rio Styx despejava suas águas algumas milhas antes das torres negras de Khemi, surgiu uma frota de navios de guerra. Mais de cinqüenta galeões de seis remos, impulsionados por escravos, que avançavam firmes e rápidos sobre a superfície da água. Estavam apinhados de fuzileiros stígios. Homens altos, quase negros, queimados pelo sol de sua terra cheia de desertos. Todos prontos para o confronto, com grevas que cobriam as pernas dos joelhos aos pés, couraças de escamas de bronze e elmos com detalhes dourados. Usavam tangas de malha de ferro, para proteger suas partes pudendas, e corseletes de bronze. Suas armas eram a lança e a cimitarra; além de um escudo esférico de bronze.

Cada capitão-de-bordo da frota de Argos gritou seus comandos e se preparou para aquele combate que não era nenhuma surpresa. Os navios mercenários abriram sua formação em um leque fatal, uma meia-lua que se abriu como a bocarra de um monstro marítimo. Os stígios, ao contrário, assumiram uma formação em cunha, tal qual a cabeça triangular de uma serpente.

As naves aproximavam-se umas das outras numa velocidade surpreendente. As de Argos impulsionadas pelos ventos favoráveis e as da Stygia pelos músculos dos remadores nos galeões. Então aconteceu o choque das robustas embarcações. Os mercenários lançavam seus ganchos contra as amuradas inimigas e eram recebidos com lanças e cimitarras. O caos e o pandemônio imperavam e os gritos subiam numa cacofonia ensurdecedora.

Conan, o cimério, caiu de pé sobre o tombadilho do inimigo já com sua espada empunhada. Avançou sobre dois stígios com seus escudos levantados e os estraçalhou com seus poderosos golpes. Os homens da aliança, que ficaram em seus navios, usavam suas flechas de ponta de metal impulsionadas por grandes arcos, e chapinhavam os conveses inimigos banhando-os em sangue. Homens caiam das alturas dos mastros estatelando-se no piso de madeira ou afogando-se nas águas revoltas. A matança prosseguiu por todo o dia! Sem tréguas, sem piedade!

Conan estava todo coberto de sangue coagulado; seu corpo, arranhado e repleto de ferimentos em sua maioria leves. Sua espada já não era mais de um aço azulado, mas sim uma lâmina escarlate... rubra de sangue! Seus cabelos estavam empastados de suor, sangue e catarro do inimigo. Mas ele continuava a lutar, empilhando a seus pés os cadáveres stígios. O fogo consumia os velames e os mastros de alguns navios alastrando-se de popa a proa. Conan percebeu, visivelmente, a vantagem que os mercenários tinham. Apesar de serem os stígios que lutavam por sua nação, eram os estrangeiros invasores que guerreavam com determinação e bravura. Conan viu um jovem loiro, Amalric da Aquilônia, que ele conhecera em seu navio, ser atacado por um fuzileiro gigantesco. O jovem caiu de costas no convés e seu algoz ergueu a lança para trespassá-lo, mas a sorte ou o destino fez com que o homem escorregasse em uma poça de sangue quando avançava em seu golpe final. O aquiloniano ergueu sua curta espada e perfurou a barriga do stígio no espaço entre o corselete e a tanga. Ergueu-se, então, vacilante, apenas para ver os stígios em retirada para sua cidade. À sua volta a morte fizera uma bela colheita, cadáveres, corpos estraçalhados e membros decepados se espalhavam pelo convés e pelo tombadilho, enquanto o fogo lambia incessante com suas chamas vermelhas, tal qual um dragão enfurecido.

No porto de Khemi a multidão acompanhava, apreensiva, o desfecho daquela batalha, e podiam ver suas armadas desfazendo-se em chamas ou naufragando à distância. Era de manhã, por volta da hora do mercado, e a brisa litorânea soprava. A fumaça negra dos destroços carenados começou a obscurecer o campo de visão; a resina da calafetação do madeirame ardia em fúria, atiçada e carregada pelo vento, que transformava os borrões ardentes em fogueiras vorazes e estrondosas. Então eles viram alguns de seus navios recuando, arrastando-se sobre as águas de volta ao cais como monstros marinhos assustados e feridos. Homens, mulheres e crianças observavam a cena, incrédulos, sem acreditar que os famigerados fuzileiros stígios foram sobrepujados por marinheiros esfarrapados e sem disciplina. O temor se instalou em seus corações e começaram também eles a fugir, correndo para seus lares em busca de pertences valiosos para depois se infiltrarem em suas tocas no deserto. Mas, ao invés de perseguir os fugitivos, a aliança inimiga seguiu para o sul. Deixando os desnorteados cidadãos stígios, aqueles que ainda não haviam debandado, boquiabertos, e os marinheiros nos galeões, aliviados.


3.

A bordo do navio de Conan, o Almirante Da Kova dava ordens para que seus capitães seguissem para o sul. Havia uma certa cautela em sua atitude, uma desconfiança de que talvez houvesse alguma escaramuça nos becos de Khemi. Os mercenários poderiam facilmente invadir a cidade e de lá navegar pelo rio Styx rumo a Lúxur, a capital da Stygia, onde se daria o encontro com o exército de Koth. Mas uma apreensão se apossou dele como uma ave de rapina se apossa de uma lebre e a decisão de atracar nas costas de Kush foi acatada.

Assim, depois de vários e tediosos dias, eles chegaram às costas de Kush no início de uma manhã. Diante deles, a faixa branca de uma praia estendia-se à distância, espremida entre o azul do mar e o verde das suaves encostas cobertas de árvores. O odor dessa vegetação era carregado até eles pela brisa suave daquela manhã.

Erguendo-se sobre a densa floresta, bem acima das copas verdejantes agitadas pelo vento, o sol lançava sua intensa claridade sobre as águas azuladas que eram rompidas pelos remos dos marinheiros que avançavam rumo à praia. Todos se reuniram sobre a areia em pequenos grupos aguardando a chegada de toda a força. Alguns foram destacados para adentrarem a floresta à procura de água e frutas frescas que seriam consumidas na marcha rumo ao leste, e eles se espalharam por entre as gigantescas árvores desconfiados e de espada em punho. Parte dos mercenários permaneceu de guarda naquela parte do litoral, encarregada de vigiar a costa contra qualquer possível ataque externo – e, também, para aguardar o retorno (triunfante ou não) do exército de Zapayo.



Travessia Sangrenta


1.

Após uma penosa marcha de dois dias para atravessar uma densa floresta na parte kushita da fronteira com a Stygia, a força mercenária de Argos invadiu, saqueou e incendiou duas aldeias stígias, que recusaram-se a dar mantimentos aos mercenários. As vidas humanas, todavia, foram poupadas, graças à boa-vontade de Zapayo, Amalric e, sobretudo, de Conan. Horas depois, o mesmo exército chegou às terras semi-desérticas que compõem a fronteira entre Stygia e os Reinos Negros de Kush e Darfar – estes últimos, separados um do outro por um enorme deserto.

A parte equatorial de Kush é uniformemente quente e chuvosa e possui densas florestas, o lar dos gorilas, chimpanzés, macacos e ocapis. Suas savanas são povoadas por leões, girafas, antílopes e zebras. Ao leste dessas savanas estendem-se os grandes desertos das terras negras, onde só sobrevivem as raposas do deserto, os lagartos e os arbustos. Ainda assim, a parte central de Kush desfruta de um clima singular, com invernos moderadamente úmidos e verões quentes e secos, onde os sobreiros, oliveiras e outras árvores resistentes e copadas sobrevivem à seca do verão.

Os capinzais recobrem as mais altas montanhas de Kush, sobrevoadas por aves de rapina. Os crocodilos e os hipopótamos vivem em lagos e rios, que abrigam aves aquáticas, como as cegonhas.

Naquela exuberante região do norte de Kush, eles acamparam numa noite, num rio próximo a uma pavorosa cabana, amontoada de caveiras. Mas não muito próximos à choupana, pois todos ali temiam o sobrenatural. Amalric foi o único daquele exército a conversar com o único morador daquela choupana – um bruxo negro –, porque este se aproximou do loiro ex-nobre aquiloniano. O feiticeiro falou ao jovem mercenário sobre um deus, o qual vivia numa casa rubra, numa cidade em ruínas, e era adorado por cultos sombrios em selvas negras e ao longo de rios sombrios e escuros. E o velho sussurrou ao aquiloniano, em tons atemorizantes e estremecedores, um encanto contra aquela misteriosa criatura. Naquele momento, a noite prendeu seu fôlego, os leões – mantidos à distância pelas fogueiras – pararam de rugir ao longo do rio, e as próprias folhas das palmeiras pararam de roçar umas nas outras. No dia seguinte, todos levantaram acampamento e seguiram em frente.

Durante vários dias eles marcharam pelas vastas savanas kushitas, um panorama tropical onde ocorrem verões prolongados e a vegetação é constituída, principalmente, de plantas rasteiras. Para onde se olhava nada se via além de grandes extensões de grama alta. Arbustos de acácias espalhavam-se timidamente pela imensidão. Da mesma forma, dracenas que emitiam uma suave fragrância exibiam suas folhas grossas em forma de espada, com suas duas faixas longitudinais prateadas brilhando sob o sol tropical. Podia-se ver, também, à distância, as abundantes flores vermelhas das poinsétias, assim como arbustos de lobélias, conhecidas por suas propriedades tanto de cura como de envenenamento.

Havia um contraste naquele exército. Nobres, orgulhosos de suas origens, com suas armaduras reluzentes, montados em seus robustos cavalos, desfilavam por entre sujeitos esfarrapados, de olhares frios e sanguinários, homens de gestos e de linguajar chulos. Mas, ainda assim, todos eram bravos e sabiam como usar uma espada.

Seu número, irrisório em comparação à imensidão à sua volta, parecia chocalhar pela pradaria como moedas numa mesa de aposta. Somente quatro dúzias de animais de carga iam atrás das colunas, assim como os trens de carga. Aqueles entre os mercenários e nobres que possuíam cavalos, e que constituíam a cavalaria daquele exército, marchavam sobre o lombo desses animais; enquanto que os infelizes que não os possuíam, os infantes, iam a pé ao longo do caminho que separava as fronteiras stígia e negra.

Os homens, além dos itens de dormir e de campanha, levavam suas armas, aljavas de lanças e flechas envolvidas em couro de cabra e vários outros artigos indispensáveis: anzóis e categutes para suturas; bolsas de ervas medicinais, euforbiácea e resina de pinho; tiras para as artérias, faixas para a mão, compressas de linho, dentes de bronze para aquecer e serem comprimidos nos ferimentos provocados por perfurações, para cauterizar a pele, ferros com a mesma função em lacerações; sabão, pele de toupeira, materiais de costura; o material de cozinha, espeto, panelas, pedra-de-fogo e gravetos. E ainda mais as rações: cevada não-moída, cebolas, alho, figos, carne de cabra defumada, frutas, além de vinho e água.

Durante a marcha ao leste, as colunas aliadas haviam se deparado com várias tribos camponesas, onde os aldeões, à visão daquele exército, fugiam para o sul ou se escondiam nas vegetações ribeirinhas, abandonando suas choupanas.

Da Kova deu ordens para que os alimentos encontrados nessas aldeias fossem confiscados, mas não se poderia atear fogo nas choupanas para não alertar nenhuma patrulha stígia. É naquele momento que o príncipe zíngaro se recorda – juntamente com Conan, Amalric e o exército mercenário – das duas aldeias stígias que mandara queimar, dias atrás. Mas enfim, concluem eles, não adiantava chorar pelo leite derramado.

Depois de alguns dias, um acampamento foi montado às margens do lago Zuad, algo bem melhor do que os bivaques pelos quais vinham passando nos últimos dias. Mas, antes mesmo de o acampamento aliado ser delimitado, o comandante Da Kova despachou grupos de patrulheiros com ordens de prosseguir ao norte, do outro lado da fronteira, para uma missão de reconhecimento no deserto. Da Kova temia a aproximação de alguma patrulha ou força inimiga e queria estar preparado caso isso acontecesse. Afinal, no dia seguinte, avançariam rumo ao coração da Stygia: Lúxur! Após a montagem do acampamento, uma aldeia de tlazitlanos (mestiços de stígios com um povo do leste) próxima dali foi brevemente saqueada – mas também com as vidas de seus habitantes poupadas.

Na escuridão que se acentuava, um prodígio quase quebrou a vontade dos aliados antes mesmo de tirarem suas coisas dos ombros. Um soldado argoseano pisou, acidentalmente, em um ninho de serpentes bebês e recebeu no tornozelo descoberto todo o veneno de meia dúzia delas, veneno que, como todo caçador sabe, deve ser mais temido do que o de uma serpente adulta, pois quando bebês elas ainda não aprenderam a soltá-lo em doses, e o injetam todo na pele humana. O soldado morreu em uma hora, após um sofrimento terrível, apesar de ter sido sangrado, a ponto de quase empalidecer completamente, pelos cirurgiões.

A noite caíra quando esse pobre homem, a quem a sorte se opôs, expirou.

Da Kova ordenou que o homem fosse enterrado ali mesmo e despachou com seus capitães para que as sentinelas fossem postadas ao redor do acampamento, e mais algumas espalhadas a alguma distância.

O acampamento, por fim, foi montado. As fogueiras foram acesas e distribuídas às margens do lago. Os homens descarregaram seus alforjes e trouxas, tiraram suas capas – aqueles que as tinham. Removeram suas vestimentas de malha de aço, corseletes e peitorais. Abriram seus alforjes e retiraram seus alimentos e bebidas, que se transformariam em seus jantares.

Mas o infortúnio do soldado argoseano que fora mordido por serpentes se espalhou como o vento sobre as areias e logo os homens o interpretaram como um mau agouro. Afinal, não era contra os stígios adoradores de cobras que eles iriam guerrear?

Mas o assunto foi esquecido e os mercenários se espalharam ao redor das fogueiras bebendo vinho e conversando alegremente. Depois de vários odres de vinho terem sido esvaziados, os homens ajeitaram-se para dormir.


2.

Ao amanhecer, os patrulheiros retornaram de sua inspeção no deserto. Relataram que uma força de aproximadamente quatro mil stígios estava acampada cerca de treze quilômetros ao norte. Haviam deduzido essa quantidade pelo número de fogueiras nos acampamentos.

Ao mesmo tempo, uma parte do destacamento que fora deixado na costa sul da Stygia apareceu, informando que outra força stígia atacara e incendiara os navios ali atracados, bloqueou qualquer possível saída dos mercenários pelo mar, e estava avançando para o leste. E pior! O rei Strabonus havia firmado um tratado de paz com o rei Ctesphon III, da Stygia! Levado pelo desespero, o comandante Zapayo Da Kova lembrou novamente das aldeias stígias incendiadas e ordenou, então, que o acampamento fosse levantado e que os homens se preparassem para a marcha. Conan, por sua vez, não se surpreendera como Da Kova, pois o rei de Koth já havia feito a mesma coisa com um exército do qual o cimério participara, alguns invernos antes.

A idéia de Zapayo era marchar para o leste, atravessando o Alto Styx e a fronteira leste da Stygia até alcançarem as terras do extremo sudeste de Shem. Parecia loucura, mas era a única forma de sair daquele país e, conseqüentemente, daquela situação infernal. A missão foi tomada por uma urgência implacável. Seria necessária toda diligência e, assim, o passo das colunas logo deixou o trem de provisões sem condições de alcançá-las. As carroças e bestas de carga foram simplesmente deixadas para trás, para que as acompanhassem da melhor maneira possível, os itens necessários transferidos para as costas dos homens.

A cada quilômetro, a região das savanas, do lado stígio, se tornava mais rarefeita à medida que as colunas se aproximavam das regiões desérticas. Então um grupo de batedores stígios surgiu de detrás de uma rocha e, ao avistarem o exército estrangeiro, deu meia-volta e galopou pelas areias de volta ao seu acampamento. Ainda assim, dois deles foram abatidos pelas flechas mercenárias.

O sol inclemente se abatia sobre aqueles homens endurecidos pelos elementos como uma fornalha de um ferreiro. Mas, não obstante, eles avançavam resolutos.

Então, mais alguns quilômetros adiante, o exército mercenário chegou a uma planície na qual, espalhado como gafanhotos numa plantação, um exército os esperava para a batalha.


3.

A cavalaria stígia era formidável. Os cavaleiros estavam sobre excelentes montarias. Usavam capacetes e elmos de bronze e protetores metálicos para o pescoço. Eram homens altos, de pele escura e rosto comprido, dotados de músculos poderosos. O vento do deserto soprava seus trajes de linho e as crinas de seus cavalos.

Atrás deles estava a infantaria com seus homens agrupados. Escudos, elmos e pontas de lança do comprimento de um antebraço haviam sido polidos de tal forma que brilhavam como um espelho; cintilavam ao sol, conferindo à formação a aparência de uma fresa colossal, composta de mais ferro e bronze do que de homens.

Então, os soldados mercenários se posicionaram na linha. Primeiro os cavaleiros no centro da linha, o proeminente Zapayo Da Kova entre eles, trinta cabeças por cinco de profundidade; à esquerda, os lanceiros, quarenta e oito lanças ao largo por oito de fundo; depois o regimento dos suicidas, mil mercenários lunáticos que lutavam com a fúria incontida de selvagens – Conan e Amalric estavam entre eles. À direita, dispondo a tropa, todo o restante de soldados profissionais de Argos e Koth, com cento e quarenta escudos de largo por dez de fundo.

Somando-se esta força o resultado chega a pouco mais de três mil homens. Uma grande desvantagem em relação aos cerca de quatro mil stígios que os aguardavam mais adiante. Parecia o reverso da batalha naval diante dos muros negros de Khemi. Todavia, agora era tarde demais para fugir ou desistir.

Do outro lado, os stígios reunidos somavam a mesma largura dos aliados, mais seis ou mais escudos de profundidade. Em suas linhas, a floresta laminada de ferro das lanças de dois metros destacava-se sólida como uma cerca de pregos grandes, as lanças alinhadas na posição vertical, retas como a linha de um geômetra, completamente imóveis.

Então o clamor teve início.

Nas fileiras stígias, os mais valentes começaram a bater com as hastes de suas lanças sobre o bojo de seus escudos de bronze, gerando um tumulto que reverberou por toda a planície circundada pelas areias. Outros reforçaram a barulheira impelindo as pontas de suas lanças e cimitarras para o céu, emitindo súplicas aos deuses e gritos de ameaça e raiva. A gritaria triplicou, aumentou cinco, dez vezes, enquanto a retaguarda e o flanco captavam o clamor e contribuíam com os seus próprios brados e batidas no bronze. Em breve, todos os quatro mil estavam bradando o grito de guerra. Seu comandante impeliu sua lança à frente e a massa surgiu atrás dele, no movimento de avançar.

Os mercenários não tinham se movido nem feito qualquer som.

Aguardavam pacientemente em suas posições, nem sombrios nem rígidos, apenas trocando, calmamente, palavras de encorajamento e estímulo, nos preparativos finais para a ação pela qual atravessaram mar, selvas e savanas.

Ali vinha o inimigo, acelerando o passo de seu avanço. A cavalaria com largas passadas rítmicas. A linha estendeu-se mil metros da esquerda à direita; os mais valentes precipitando-se à frente e os hesitantes se retraindo.

A planície começou, então, a ribombar com o bater dos pés do exército stígio e o ar começou a ressoar com os seus gritos inspirados pela raiva.

Então os aliados avançaram. Rítmicos. As lanças com suas pontas afiadas cintilando verticalmente ao sol. Então irromperam em ataque a toda carga. Cavalaria contra cavalaria. Infantaria contra infantaria. Flechas de bambu atacaram com uma velocidade mortífera as linhas, tanto de um lado quanto de outro. Flechas com a cabeça de ferro ricochetearam nas faces de bronze dos escudos ressoando como um martelo numa bigorna. Como uma onda que assalta as areias de uma praia, com o seu fluxo e refluxo contínuo, os exércitos se encontraram. O clangor do aço contra o aço, do bronze contra o bronze, ecoou como o ribombar de trovões.

As forças confundiam-se num turbilhão indefinível e a maré alternava-se de cada lado.

Assim como um leão, acuado por hienas desesperadas, gira em sua fúria, arrepiando o pêlo e mostrando suas presas, enraivecido, e se firma no poder e destemor de sua força, Conan da Ciméria se move como um animal preparado para matar.

O braço que guiava sua espada movia-se à guisa de um relâmpago. Decepava aqui, estripava ali, degolava acolá; cada movimento seu deixava sob seus pés um cadáver ou um moribundo. Ele já não pisava sobre a areia quente, mas sim sobre os corpos lacerados de seus inimigos. Conan matou seis homens do inimigo tão rápido que os dois últimos estavam mortos antes que o primeiro par chegasse ao chão. Quantos o cimério matou naquele dia? Cinqüenta? Cem? Seria preciso mais do que isso para derrubá-lo. Não somente por sua força e perícia, mas por que ele lutava como um animal selvagem. Entre os cimérios, é um axioma a coragem e a loucura na batalha. Somente um homem sem temor consegue sobrepujar seus próprios demônios em uma luta. Nada se iguala ao êxtase da vitória ou ao prazer da matança em um combate.

Após o que pareceram horas lutando, avançando, recuando, saltando e matando, Conan avistou seu companheiro aquiloniano, Amalric, diante de um monstro do inimigo, de mais de dois metros de altura, páreo para três homens ou um urso selvagem. O monstro estava desarmado, sua lança havia sido quebrada em pedacinhos, e ele estava de tal modo possesso que não teve a presença de espírito de recorrer à espada que levava dependurada em sua cintura de centauro.

Amalric atacou-o e foi rechaçado pelo escudo do gigante, que o usava como uma arma afiada como uma acha. O primeiro golpe do stígio estilhaçou o escudo do aquiloniano. Amalric tentou atingi-lo com a espada na altura do queixo, mas um segundo golpe arrancou-a de sua mão. O jovem loiro ficou, então, sem defesa diante daquele demônio. Quando o gigantesco stígio ergueu o escudo numa intenção degoladora, Conan surgiu ao lado de Amalric e atirou sua espada como se fosse uma lança que atingiu a górgona stígia bem embaixo do nariz; o aço esmagou seus dentes, atravessou-lhe o maxilar e penetrou em sua garganta, firmando-se ali e projetando-se para fora da face como uma flor de aço em um jardim de carne e ossos.

Mas nem isso impediu o gigante ou o deixou mais lerdo. Como uma criatura animada por magia ele avançou até Conan prendendo suas mãos como tenazes em volta do pescoço musculoso do cimério. Mas o aquiloniano agarrou o stígio por baixo e Conan fez o mesmo por cima, assim eles o derrubaram. Amalric agarrou o que restara de sua lança e enfiou na barriga do inimigo, logo abaixo do corselete de bronze. Depois, pegou o resto de uma lança deixada por alguém na areia e jogou todo o seu peso nela, atravessando a virilha do gigante stígio até atingir o solo, prendendo-o ali. Conan pegou a espada do demônio e extirpou a metade de sua cabeça, atravessando o bronze de seu elmo. Ainda assim ele se levantou. Conan nunca experimentara tamanho pavor. “Demônios de Crom!”, gritou ele, mas não foi uma praga e sim uma oração, uma oração de pavor. Então Amalric pegou sua espada que estava caída e esquecida naqueles momentos de terror e atravessou o fígado do monstro, retirou-a e enfiou-a desta vez onde pendia o sexo do homem. O titã olhou direto para o aquiloniano, berrou uma vez, depois caiu como um saco para fora de uma carroça.

Imóvel!


4.

Os mercenários lutavam como homens possessos. Apesar de serem inferiores numericamente, conseguiram, a duras penas, numa luta acirradíssima, fazer o enorme exército stígio recuar, minguado, até o acampamento.

Cansados, resfolegantes e feridos – porém vivos e aliviados – os sobreviventes do exército mercenário, o qual fora reduzido à metade, encaravam uns aos outros, como fantasmas, após o Juízo Final. Todavia, o trabalho ainda não havia terminado. Havia uma outra força stígia para enfrentarem.

Então, o príncipe zíngaro deu ordens para marcharem e acamparem o mais longe possível daquele monte de cadáveres. Julgavam que o exército oriundo do oeste ainda demoraria alguns dias para chegar – tempo talvez suficiente para chegarem à fronteira leste da Stygia ou, em último caso, de se prepararem para uma outra luta e, quem sabe, outra vitória.

Mas, o destino pregou uma peça nos mercenários. Na manhã seguinte, o exército do oeste, com dois mil stígios, caiu sobre o acampamento dos ainda mal-recuperados mercenários. No início da luta, as chances estavam equilibradas; todavia, ao cair da tarde, o restante do primeiro exército stígio derrotado voltou, para reforçar o ataque. De longe, manchado com o próprio sangue e o sangue inimigo, o esfarrapado Amalric continuava sendo um dos melhores guerreiros mercenários, superado apenas por Zapayo e, é claro, por Conan. Todos os rebeldes estavam cientes de sua inferioridade numérica e o desespero era o único apoio com o qual podiam contar. Gritos de pavor elevavam-se de gargantas, tanto aliadas quanto stígias, tão primitivos que gelavam o sangue e, então, eram tragados novamente pelo tumulto.

O pandemônio imperou e o caos se fez presente para os rebeldes. Sua formação se rompeu, enquanto o pânico, como chamas agitadas por uma ventania, refulgia nos grupos aterrorizados no interior da formação. Aqueles que se viravam para fugir colidiam com seus camaradas que avançavam da retaguarda. Escudo contra escudo, lança sobre lança; carne e bronze se emaranhavam quando homens tropeçavam e caíam, tornando-se obstáculos aos seus próprios camaradas que avançavam. Via-se os bravos avançando em passadas largas, gritando irados para seus companheiros que os abandonavam. Aqueles que ainda mantinham a coragem empurravam os que a tinham abandonado, gritando ultrajados e furiosos, pisoteando os da frente, até a bravura também os abandonar, e fugirem para salvar a pele. Mas como ter coragem e vontade quando a iminência da própria extinção se aproximava? Como sobrepujar uma desvantagem como aquela? Não. Os mercenários, homens corajosos, bravos e veteranos de inúmeras guerras, não sabiam. Tudo o que pensavam naquele momento era em salvar a própria pele.

Zapayo Da Kova tombou atingido por meia dúzia de lanças, cego sob o seu elmo amassado pelo golpe de uma acha, o braço esquerdo inútil com o escudo lascado, quando, finalmente, caiu sob a pressão do número das tropas stígias. Morreu traído e com certo desgosto. Talvez se ele, famoso por sua cautela, tivesse sido ainda mais cuidadoso em não deixar incendiarem aldeias stígias, seria mais difícil de ser achado pelos soldados adoradores de Set. E, com esta amarga conclusão, Zapayo deixou o mundo dos vivos.

No auge da confusão dos aliados a direita stígia atacou-os. Agora, até os mercenários mais bravos romperam a disciplina. Por que um homem, por mais corajoso que fosse, resistiria até morrer quando à sua esquerda e direita, à frente e atrás, seus companheiros o abandonavam? Escudos e lanças foram jogados a esmo sobre a areia.

Era impossível enxergar. O pó era levantado em tal quantidade pelos pés dos homens que a planície toda parecia estar sendo atravessada por uma tempestade de areia. Somente a poeira teve clemência. Somente a sopa fétida sob os passos dos guerreiros oferecia trégua e socorro.

Já não havia ordem nem plano algum. Tudo se transformou em uma cega fuga pelo deserto. Mercenários debandavam em grupos ou isolados e stígios caíam sobre eles com uma fúria assassina. Os cavaleiros atropelavam os fugitivos sem qualquer piedade e aqueles que conseguiam fugir a cavalo eram perseguidos. Ainda assim, muitos foram os que conseguiram escapar.

Quando a poeira baixou, podia-se ver no centro da matança a areia revolvida e fendida como se mil mamutes a tivesse atacado o dia todo com a força de suas patas e o peso de seus corpos. A areia novamente remexida, mais uma vez úmida de urina e sangue, estendia-se numa linha de quatrocentos por duzentos metros de profundidade, onde os pés das formações em conflito haviam sulcado e pressionado ao se firmarem. Corpos espalhavam-se por toda parte, empilhados como lenha, até a cintura de um homem. Jaziam espalhados, de bruços, com os cortes vergonhosos sofridos nas costas enquanto fugiam.



Tombalku!


1.

A noite fria do deserto já havia espalhado seu negro manto sobre as estrelas brilhantes quando uma dupla de cavaleiros diminuiu o trote de suas montarias e apeou para observar à sua volta.

O olho ciclópico da lua observava impávido enquanto tímidos véus de nuvens flutuavam à sua frente, por vezes escondendo os minúsculos e nervosos homens que se acentuavam logo abaixo.

Conan, o cimério, encostou seu ouvido na areia morna para tentar auscultar algum indício de cavaleiros em seu encalço.

Nada.

- Parece que nos livramos de nossos perseguidores, guri! – falou Conan, movendo o rosto escuro e cicatrizado na direção de seu companheiro, Amalric, da Aquilônia.

- É, mas... Conan, tem certeza de que devemos seguir para o sul? – Amalric parecia assustado, com seu rosto lívido destacando-se na escuridão como o semblante de um fantasma.

- Não temos opção, praga! – respondeu o cimério – A Stygia não é segura para estrangeiros, ainda mais nesta época de guerra. Já estive nesta parte do mundo antes e acredito que temos alguma chance de sobreviver se conseguirmos sair desta região desértica. Se seguirmos para o sul, chegaremos a um oásis. De lá poderemos cavalgar para o leste até chegarmos aos desertos na região sul de Shem. Depois... só Crom sabe! – acrescenta o bárbaro.


2.

No dia seguinte...

O sol inclemente ardia sob a cúpula fulgurante do firmamento. As areias secas e incendiadas como brasas de uma impiedosa fogueira, queimavam sob os pés calçados com botas dos dois homens que avançavam penosamente rumo ao leste.

O único movimento evidente era o tremular das ondas de calor que se estendiam à frente dos seus olhos febris. Então, ao subirem por uma duna, como uma miragem produzida por uma mente torturada e desesperada, um oásis verde e convidativo acenou para eles como uma criança acenando para amigos.

Montaram em seus cavalos, também exaustos, e galoparam na direção daquela suposta miragem. Mas, se ambos viam aquele oásis, então ele só poderia ser real.

Mal galoparam o suficiente para levantar uma pequena nuvem de poeira e avistaram uma tropa de stígios furiosos cavalgando em sua direção. Suas gargantas bradavam gritos de guerra agudos e nocivos aos ouvidos.

Conan e Amalric deram meia-volta, amaldiçoando todos os deuses, e fugiram mais uma vez para o sul.

Seus cavalos babavam e espumavam pelas bocas, mais por sede do que por cansaço.

A perseguição não durou mais do que duas horas. Os stígios desistiram daquelas presas insignificantes e retornaram para defender o oásis. Se aquela tropa estava ali por acaso ou se aguardava alguma força inimiga, Conan não sabia e nem se importava.

Temendo encontrar mais stígios, se continuasse rumo ao leste, a dupla continuou descendo para o sul e, sobre suas cabeças, o sol e a lua se alternavam em sua vigilância.

Dias depois...

O sol estava em seu zênite naquela tarde torturante quando a última gota de água do último oásis que visitaram desde que os stígios lhes repeliram no primeiro deles, caiu do cantil de pele de cabra de Amalric e rolou por sua garganta coberta de pó. Seu rosto estava escuro como a máscara de um deus negro e os seus lábios, que antes eram finos e corados, estavam esbranquiçados e ressequidos como as areias estéreis sob seus pés.

As ondas de calor tremeluziam, o ar estava seco e quente como o de um forno de ferreiro, o céu assemelhava-se a um prato de brasas de algum templo que, aparentemente, havia sido invertido por um sacerdote louco.

Conan fraquejou sobre os joelhos e apertou com as duas mãos a têmpora que latejava como o coração de uma lebre assustada. O sangue que corria nos vasos sanguíneos de seu crânio pulsava incessante como um rio de lava borbulhante. Seu rosto estava coberto pela poeira cinzenta, assemelhando-se a uma máscara de areia.

Seu companheiro loiro, entretanto, não parecia melhor, oscilando de um lado para o outro, adernando a bombordo e a estibordo como um bêbado. Sua pele branca estava estorricada aonde sua camisa de algodão não cobria. Conan percebia que seu amigo mais tombava para frente do que caminhava, com sua cabeça pendida, o queixo quase encostando ao peito.

O Cimério sentiu sua vista embaçada. Forçando os olhos ele olhou ao redor e nada mais viu do que areias e horizontes, pedregulhos e dunas. Alguns arbustos secos e espinhentos lhes faziam companhia, é verdade, mas nem um lagarto desnutrido se arriscava a rastejar por aquela região maldita.

Ele resmungou uma maldição a Crom e continuou sua marcha, puxando pelas rédeas sua esgotada montaria também coberta de pó.

Após o que pareceu uma eternidade o sol finalmente se suicidou no mar de lava do oeste, deixando seu rastro escarlate para que a lua o seguisse mais tarde.

Logo depois, a sombra da noite se espalhou e se esparramou por aquela imensidão desértica trazendo um frescor abençoado e uma leve e preguiçosa brisa.

O meio-sorriso da lua encontrou dois homens exaustos e famintos sobre montarias nas mesmas condições. Conan julgava mais sábio poupar os cavalos durante o dia e forçá-los durante metade da noite. Paravam para comer suas exíguas rações e dormitar um pouco somente quando o astro noturno iniciava sua monótona descida para o oeste.

Mas, naquela noite, eles viram fogo e galoparam em sua direção na esperança de travar contato com os homens que lá estivessem. Mas, quando estavam quase chegando, uma chuva de setas os recepcionou e, pela segunda vez depois que estiveram vagando pelo deserto, deram meia-volta e fugiram de novo.

Só que, desta vez, a montaria de Conan foi atingida e o bárbaro caiu, estatelando-se nas ásperas areias. Amalric olhou para trás e, ao ver seu companheiro imóvel e os inimigos que se aproximavam, continuou a galopar deixando atrás de si somente uma nuvem de poeira.


3.

Quando Conan, o cimério, despertou viu que suas mãos e pés estavam amarrados. À sua volta homens altos, esguios e bem morenos, usando estranhos trajes bárbaros, o observavam com carrancas curiosas e severas. Mesmo enfraquecido devido às privações pelas quais vinha passando, o bárbaro arrebentou suas grossas amarras de couro tomado de uma ira tempestuosa. Mas antes que pudesse se levantar e livrar suas pernas os selvagens do deserto caíram sobre ele com mais cordas. O cimério, entretanto, não os dava oportunidade. Chutou a cabeça de um infeliz que tentava segurar-lhe as pernas e com o punho direito, que ainda estava livre, arrebentou o nariz curvo de um outro selvagem. Por um momento quase conseguiu se levantar, mas aí a turba se fechou sobre ele e o cimério foi dominado.

Houve uma conferência depois daquele tumulto e os homens do deserto que, agora Conan podia perceber, pareciam ser de alguma raça misturada entre negros e stígios, decidiram levar o bárbaro com eles. Jogaram Conan atravessado sobre o lombo de um garanhão e cavalgaram para o sul.


4.

Na manhã seguinte, chegaram a uma cidade que o curioso cimério descobriu ser Tombalku, localizada nas areias do deserto, junto a um oásis de muitas nascentes.

Aquela região, Conan julgou estar no triângulo desértico entre os Reinos Negros, Kush e Darfar.

Ao atravessarem os portões de madeira que encerravam um enorme e alto muro
de tijolos, Conan observou, de sua incômoda posição, as ruas de Tombalku, uma cidade que, para ele, não passava de uma lenda. Ele viu uma grande praça no centro da cidade e uma construção que ele não conseguiu definir se era um templo ou um palácio. Ele viu jardins bem cuidados e ruas cobertas de areia, e viu edifícios de tijolo ocre com terraços arborizados.

Conan observou que havia várias facções naquela semilendária cidade: homens negros e bem vestidos espalhavam-se pelas ruas e praças; mulheres caminhavam através de um mercado com suas cestas nas cabeças e crianças corriam distraídas; ele também viu homens e mulheres de cor marrom, que ele julgou serem meio shemitas. Mas estes se aglutinavam em esquinas, com olhares sombrios e rostos mal-humorados.

Então chegaram ao que parecia ser um palácio, não muito opulento, mas, de certo modo, nobre, com finas lâminas de ouro cobrindo as paredes. Relutantemente, Conan foi empurrado através de um salão onde vários pardos e pouquíssimos negros conversavam num baixo murmúrio. Adiante, sobre uma plataforma onde repousava, em uma cadeira, um homem magro, de feições meio negras, meio shemitas, cabelos lisos e pele marrom, rodeado por alguns servos, Conan foi parado e anunciado. Aquele que parecia ser o comandante dos homens que o haviam capturado deu um passo à frente, diante daquele que parecia ser o rei, e disse, num dialeto, o qual Conan pôde entender um pouco, devido à sua semelhança com o dos Mandingo ocidentais, que vivem na costa:

- Ó, Zehbeh, Senhor das Abadias do Deserto, Soberano de Tombalku, peço o perdão de Vossa Grandeza por trazer à sua sagrada presença esta criatura desprezível e selvagem que encontramos no deserto. – e, assim dizendo, estendeu sua mão calejada na direção de Conan.

O homem a quem o militar havia se dirigido de forma tão condescendente era uma criatura esquálida que usava um engraçado apetrecho sobre sua cabeça, seu traje era semelhante àqueles usados por alguns habitantes das tribos sulistas, composto de uma tanga de linho branco stígio, um colar no qual estavam dependurados alguns dentes de felinos, e os únicos indícios de sua nobreza eram os enfeites para os pulsos e tornozelos que pareciam ser de ouro. Estava sentado em uma cadeira de madeira de espaldar alto e apoio para os braços que pareciam ser de marfim. Ao lado dessa estranha figura estava uma outra mais estranha ainda, na qual, somente agora, Conan reparou: um negro gordo, espalhado em sua cadeira toda de presas de marfim, com sua grande barriga de sapo elevando-se como uma protuberância de ébano sobre o seu flácido corpanzil. O traje que usava era semelhante ao de seu vizinho e ele também usava um engraçado artefato na cabeça, que poderia se passar por uma coroa. Ele estava cochilando, mesmo com todo aquele burburinho naquela incomum sala do trono. E tudo isso Conan percebeu em um vislumbre.

Aquele a quem chamavam de Zehbeh dirigiu um olhar enrugado e carregado de veneno para o cimério. Então ele falou:

- Quem é você, homem de bronze? – sua voz ressoou como os estertores de uma múmia ressuscitada.

Conan nada respondeu, limitando-se a fitá-lo com seus olhos de chumbo, arreganhando seus dentes como o faz um leão antes de saltar sobre um antílope.

- Não vai responder... Não é, cão? – perguntou Zehbeh com sua voz de múmia. – Daura... – sussurrou ele, olhando para um homem marrom, forte e musculoso, que parecia ser um sacerdote – Jogue seus dados para sabermos o que Jhil deseja que façamos a esse infeliz!

- Sim, ó Zehbeh. – respondeu o outro, com certa alacridade em sua voz.

O sacerdote, que usava um manto verde de linho, colares de contas coloridas e um longo cajado de ébano, retirou dois dados de osso de dentro de seu manto e jogou-os aos pés de Conan. O cimério permaneceu hirto feito uma escultura de bronze. Em torno de si, dois guardas seguravam seus braços e encostavam as pontas de suas espadas às costas do cimério.

- Ó, Zehbeh! – bradou o sacerdote. Em seu rosto, dois olhos pretos como carvão se incendiaram e seus lábios finos se abriram num sorriso macabro – Jhil quer o estrangeiro esfolado vivo diante de seu altar! Se assim não for, sua ira se abaterá sobre nossas cabeças como um machado de pedra! – ao ouvirem essas palavras os captores de Conan comemoraram numa algazarra eufórica erguendo suas espadas e saudando com gritos eufóricos o rei Zehbeh.

Foi então que Conan deu o seu bote! Mesmo amarrado, saltou para frente como uma cobra e cuspiu diretamente no olho de Daura.

- Seus ladrões malditos, filhos covardes de prostitutas! – berrou o cimério – Sacerdote e reis de estrume! Se é para me esfolarem vivo, então, por Crom, me dêem logo um barril de vinho antes de começarem!

À reação do bárbaro a algazarra dos pardos e negros aumentou e isso fez com que o gordo esparramado na cadeira acordasse. Primeiro ele soltou alguns resmungos de descontentamento e depois, olhando à sua volta, arregalou seus olhos quando viu Conan.

- Amra! Por Jullah! É você, Amra?!

Conan, ao ouvir o nome pelo qual era conhecido na Costa Negra durante o tempo em que navegou com Bêlit e seus Corsários Negros, voltou-se para aquele que o havia chamado, e sua reação não foi de menos surpresa.

- Por Crom e Mitra! – exclamou o cimério, com uma luz de reconhecimento em seus olhos azuis – Sakumbe! Ora, seu macaco velho... então agora você é rei, hein!

- Sim, Amra. Mas... O que está fazendo aí amarrado? – ele disse. Então, Sakumbe ergueu-se do trono e abraçou alegremente Conan. Apesar da grande e velha amizade entre eles, o cimério se sentiu incomodado com a o forte cheiro de suor que exalava de Sakumbe durante o abraço – se tal cheiro partisse de uma mulher, tudo bem, mas não de um homem! Então, o ex-traficante de marfim, ouro em pó e escravos – e agora rei de Tombalku – desamarrou Conan, que se espreguiçou como um felino gigante. Então, com extrema pompa, o rei negro dirigiu-se a todos ali presentes:

- Povo de Tombalku, este é Amra, O Leão, o maior corsário de toda a Costa Negra e meu amigo! E, como tal, deve ser tratado com respeito e dignidade. Nenhuma mão, negra, branca ou parda deve erguer-se para fazer-lhe mal!

Mas Zehbeh levantou-se de sua cadeira e disse que o estrangeiro seria sacrificado a Jhil e que essa era a vontade do deus. Sakumbe retrucou que Conan era seu amigo de longa data e que não iria admitir que ele fosse morto. Então a discussão e o burburinho voltaram à sala do trono. Nesse momento, uma comitiva de negros entrava, confusa e curiosa com toda aquela movimentação, no recinto. Sakumbe ergueu a voz e chamou então um outro sacerdote, chamado Askia. Quando ele surgiu, Conan viu diante de si um negro todo coberto de penas, chocalhos e pele de cobras. O bruxo começou a dançar e a fazer uns encantamentos e depois parou de chofre erguendo seus braços e gritando:

- Hai! Sakumbe é o escolhido de Ajujo, o Escuro, e a sua palavra é a lei! Hai! Os deuses dizem que este homem deve ser poupado! – a estas palavras seguiu-se uma algazarra de satisfação vinda das gargantas de todos os negros presentes àquela reunião, os quais deram aplausos.

Sabendo que a população negra era a maioria em Tombalku, Zehbeh não teve opção a não ser concordar com a libertação de Conan. E o cimério soube, naquele momento, que Sakumbe era o verdadeiro rei de Tombalku. O bárbaro sorriu como um tigre, e disse:

- E então? Vocês não vão me oferecer vinho e carne assada? Por Crom, Mitra e Ajujo! Eu estou com tanta fome e sede que poderia devorar um boi!

E, com estas últimas palavras, ele se juntou ao seu amigo Sakumbe, e aos demais negros, e saiu da sala do trono com expectativas de muitas lutas, intrigas, traições e farras pela frente.

FIM?
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