Akram, O Misterioso (fragmento)

(por Robert E. Howard)


Outrora, eu fui Hengibar, o Nômade. Não consigo explicar meu conhecimento deste fato por quaisquer murmúrios ocultos ou esotéricos, e nem tentarei. Um homem lembra da sua vida passada; eu me lembro das minhas vidas passadas. Da mesma forma que um homem normal se recorda das formas que tinha na infância, adolescência e juventude, eu me lembro das formas que tive em eras esquecidas. Por que tenho esta lembrança, não consigo dizer mais do que consigo explicar os milhares de fenômenos da Natureza, que se defrontam comigo e com todos os outros mortais diariamente. Mas, enquanto estou aqui deitado, esperando que a morte me liberte de minha longa enfermidade, vejo de forma clara e certa as grandes avenidas de vidas que se movem em fila indiana atrás de mim. Vejo os homens que fui e os animais que fui. Pois minha memória não acaba com a chegada do Homem. Como poderia, quando o Animal se transforma tão gradualmente em Homem, a ponto de não haver linha definida para marcar os limites da bestialidade? Neste momento, vejo um vago panorama sombrio, por entre as gigantescas árvores de uma floresta primordial, a qual nunca conheceu o som de um pé calçado em couro. Vejo um vulto enorme, peludo e bamboleante que se move pesada, mas rapidamente – às vezes ereto, às vezes de quatro. Ele escava troncos podres de árvores caídas, em busca de larvas e insetos, e suas pequenas orelhas se contraem o tempo todo. Ele levanta a cabeça e mostra presas amarelas. Ele é primitivo, bestial e antropóide; mas é James Allison, e eu reconheço o parentesco. Parentesco? Melhor dizer unidade. Não é questão de família. Eu sou ele; ele sou eu. Minha pele é macia, branca e sem pêlos; a dele é escura, dura e emaranhada de pêlos negros. Contudo somos um só e, em seu cérebro débil e nublado, já estão começando a se moverem, a arderem e formigarem os pensamentos e sonhos humanos – rudes, caóticos e fugazes, embora fossem as bases para todas as visões elevadas e sublimes com as quais os homens têm sonhado em todas as longas eras seguintes.

Meu conhecimento sequer pára aí. Ele volta, volta, até panoramas que não ouso seguir – para abismos escuros e medonhos demais para a mente humana penetrar. E, mesmo lá, sou consciente de minha identidade, minha individualidade. Eu lhes digo: a identidade nunca se perde, seja no fosso do qual um dia emergimos – cegos, gritando e malcheirosos –, ou naquele definitivo Nirvana, no qual um dia mergulharemos – ao qual já vislumbrei à distância, brilhando como um crepuscular lago azul entre as montanhas das estrelas.

Mas chega. Falarei-lhes de Hengibar. Ah, foi há muito, muito tempo! Há quanto tempo, não ouso dizer. Por que eu haveria de procurar insignificantes comparações humanas para descrever uma região indefinível, incompreensivelmente distante?

Fui Hengibar. E quando eu, o fraco, o aleijado, penso em Hengibar, eu seria capaz de gritar por alegria. Sim, pela pura e cega alegria vibrante da força física. Ah, o sangue puro cantando pelas veias fortes, bombeado por um coração mais forte que um dínamo! Ah, os grandes tendões se agitando sob a pele bronzeada! Quem disse que a mente é a única medida do homem? Digo-lhes que o sangue, os músculos, os ossos e a dura fibra da carne são tão Homem quanto a polpa cinza do cérebro, e os sonhos aos quais ele afia. Por ser o homem moderno suave, branco e fraco, ele despreza o esplendor físico do primitivo. O que sabe ele da força física? O que sabe um cego sobre a visão? Eu lhes digo, não há hoje homem na terra que entenda a onda de glória e poder muscular como eu, que estou aqui deitado com os membros moles e flácidos, e tendões fracos como cordoalha podre. Muito de mim já está morto; sobre este assunto, todo homem civilizado carrega ao seu redor massas de tecido morto, atrofiado e definhado.

Mas, quando eu era Hengibar, cada célula, tecido e fibra de minha forte constituição era veloz, vibrante e elétrica de vida ardente. Meus sentidos eram como facas afiadas. Meus olhos percebiam detalhes microscópicos desconhecidos aos olhos embotados das pessoas modernas. Eu ouvia sons que os homens não haviam escutado por mil séculos, desde que a civilização lhes cegou as sensações.

Meus olhos eram azuis e meu cabelo, amarelo – não o descolorido matiz cor-de-palha de muitos loiros atuais, mas um dourado vivo que capturava a luz flamejante do sol. Onde eu não era bronzeado pelo sol, minha pele era branca como leite. Meus quadris eram cobertos por um pedaço de pele de leopardo. Com ambas as mãos, eu conseguia manejar meu pesado machado de lâmina de sílex.

Eu era aparentado do povo com o qual perambulava, mas não era um deles. Como eu, eram altos e de olhos azuis, mas os cabelos deles eram de um vermelho flamejante. Eles eram de Vanaheim, e eu de Asgard, as divisões naturais de Nordheim, aquela terra natal sombria e semi-mítica de todos os proto-arianos. Na época de Hengibar, a maioria dos nordheimeres ainda morava lá, em suas tendas de pele de cavalo entre as neves: aesires de cabelo dourado e vanires ruivos, guerreando uns contra os outros e de tempos em tempos lançando migrações de tribos, que perambulavam ao redor do mundo e deixavam suas marcas em estranhos lugares distantes.

Devo ter nascido numa daquelas migrações de durações seculares. Nunca soube quem era minha gente. Os vanires de Wolfgang o Caolho me acharam quando eu era bebê, numa escura floresta primordial de uma terra bem distante a oeste, sozinho e nu, meus lábios manchados pelo sangue de um filhote de lobo, ao qual eu havia estrangulado com meus dedos de criança e ao qual eu devorava cru e ainda quente. Rosnei para eles feito um filhote de tigre, eles disseram. Wolfgang, vendo meu cabelo amarelo, estava prestes a derramar meus miolos com seu machado, mas quando ele agarrou a parte de trás do meu pescoço, torci minha cabeça para o lado, sem chorar, e afundei meus dentes de leite na pele peluda de seu antebraço.

- Por Ymir – ele roncou –, o menino tem sangue de lobo nele. Cuidaremos dele, e ele se tornará um homem poderoso... um matador de homens e um comedor de carne crua. Ele restituirá o clã em sua reconstrução, nos dias futuros.

Sim, e eu fiz, pela barba congelada de Ymir! Na guerra e na caça, ninguém me superou em crescimento; e, quando fiquei adulto, cheguei ao vale, assombrado por demônios, de Akram.

Éramos uma tribo numerosa para aquela época. Só os nossos lutadores eram mais de 170 homens. Vivendo principalmente da caça e do saque, ela observava que nenhum local iria sustentar nosso clã por longos períodos. Assim, nossa vida era uma contínua busca por carne e, naquela longa jornada, homens nasceram, envelheceram e morreram.

Eu era um dos batedores que percorriam muitas milhas adiante da principal coluna, quando chegamos aos contrafortes das montanhas, após as quais se estende Akram, o misterioso. Eu os vi pela primeira vez, quando a floresta escura ficou esparsa – trincheiras azuis, subindo suavemente até o céu, encosta empilhada sobre encosta.

Eu sabia que o único batedor à minha frente era Wulfgar, e eu me perguntava se ele havia subido e adentrado os morros, ou se estava percorrendo a floresta em busca de carne. Não me interroguei mais, ao encontrá-lo – ou ao que sobrou dele – por entre as árvores esparsas. O cadáver se esparramava no mofo úmido da floresta, a perfeição de seus membros desdenhada e desmentida por sua horrível mutilação.

Pela marca de flecha em seu peito e as pegadas na marga, eu rapidamente reconstituí a cena. Wulfgar havia saído despreocupadamente da floresta mais profunda. Um homem havia se agachado atrás de uma moita, evidentemente observando-o. Pude imaginar o resto – o súbito vibrar de uma corda de arco, o impacto de uma seta dentro do coração de Wulfgar, e logo o rápido golpear do machado ou lâmina que completou o trabalho. As pegadas do matador diferiam de qualquer uma que eu já tinha visto. Não eram como as pegadas feitas pelos estreitos pés de curvas altas dos nordheimeres; eram as marcas de pés largos e chatos. E levavam em direção às colinas encobertas de azul.

A língua é muito ineficaz para descrever a fúria que fervilhou em minha alma, quando olhei para baixo, em direção à carniça sem cabeça que havia sido Wulfgar dos vanires. A morte era nossa companheira constante naqueles dias sombrios. Matar ou morrer era nossa ocupação principal. Mas, neste caso, era mais do que qualquer amizade pessoal por Wulfgar que havia instigado minha fúria. Ele havia sido abatido numa cilada, sem qualquer chance de dar um golpe; aquilo se devia, em grande parte, à sua falta de cuidado, e eu o xinguei de idiota, mesmo enquanto ansiava pelo sangue de seu assassino. Mas matá-lo daquele modo, e levar sua cabeça, era um tapa no rosto de toda a tribo. Não consigo lhes explicar os sentimentos de Hengibar sobre o assunto, mas levar a cabeça de um homem era algo vergonhoso, o pior insulto ao seu clã, e somente a matança total poderia limpá-lo.

Fazia parte do sentimento do clã e, uma vez que essa emoção é desconhecida do homem moderno, me é útil tentar explicar por que, quando Hengibar se erguia sobre o mutilado membro de sua tribo, seu sangue latejou em seus ouvidos, suas veias incharam, e o céu ficou amarelo e riscado de vermelho ao seu olhar enlouquecido.

Deixei o cadáver onde ele estava. A tribo iria achá-lo e removê-lo, ou as criaturas da selva limpariam seus ossos. Não importava; a indignidade definitiva lhe fora ofertada, e minha primeira obrigação era achar o homem que levou a cabeça de Wulfgar, e matá-lo da forma mais sangrenta e terrível que eu pudesse.

Parti no rastro do desconhecido caçador, e não fui calmamente. A longa paciência do selvagem não me pertencia. Eu queimava com a impaciência de lavar a honra de meu clã com sangue. Eu invejava cada momento em que o matador vivia, cada vez em que ele respirava, cada passo que ele dava na terra verde.

Não era difícil seguir suas pegadas através da floresta esparsa. Mesmo quando a marga deu lugar ao solo rochoso das colinas, não tive dificuldade em seguir a trilha. Eu não tinha os sentidos atrofiados dos homens modernos. Eu estava vivo, alerta e desperto para tudo o que se estendia diante de meus olhos e ouvidos. O grito de um inseto, o ruído dissonante de uma asa contra um galho, o roçar de folhas de capim umas nas outras, tudo tinha significados claros para mim, aos quais eu conseguia interpretar e entender, como vocês entendem as explicações de seus professores e conferencistas. Um ramo de capim deslocado, uma pitada de musgo esmagado, um pequeno galho curvado – estas coisas me serviam, do mesmo modo como postes indicadores e guias de estradas servem para o viajante moderno. Eu havia seguido o rastro de um homem, através de uma extensão de rochas nuas, e não errei. Mas o sujeito, a quem eu seguia para dentro das colinas de Akram, deixou uma trilha à qual uma criança vanir conseguiria seguir. Ele era um homem desajeitado e descuidado, o qual jamais conseguiria emboscar um vanir, exceto por puro acaso. Percebi isto enquanto lhe seguia o rastro evidente, e minha fúria foi atiçada pelo pensamento de tamanho palerma ter levado a cabeça de um irmão guerreiro.

O corpo de Wulfgar já estava frio, e o rastro não era recente. Eu sabia que o assassino tinha uma vantagem de horas sobre mim. Também sabia que meu passo rápido estava lhe anulando a vantagem. Eu desejava avançar sobre ele, antes que ele alcançasse sua aldeia – pois era bastante óbvio que havia uma aldeia ao seu alcance, ou ele não teria se encarregado da cabeça. Assim, rápida e vingativamente, segui o rastro montanhas adentro.

À medida que eu galgava cada vez mais, comecei a ouvir um estranho assobio à minha frente e acima de mim, e ao subir da lua, cheguei ao ponto mais alto da passagem, através da qual a trilha seguia, e encontrei a fonte do barulho. Sobre estacas, fincadas verticalmente na terra, estavam fixadas dezenas de crânios humanos. Buracos haviam sido feitos neles, com habilidade demoníaca, e o vento, ao soprar através deles, cantava lugubremente. Minha pele se arrepiou diante de tal bruxaria, mas não hesitei.

Após várias horas de viagem rápida, cheguei ao alto das inclinações, olhei para um vale amplo e me surpreendi com o que vi. Pois, na incandescência vermelha da lua que se punha, vi os contornos de uma cidade murada – eu, que nunca tinha visto nenhuma moradia, exceto as tendas, de pele de cavalo, de meu povo, e as cabanas, cobertas de palha, do povo da cevada. Por algum tempo, fiquei bestificado e mudo. Tal visão estava além da minha mais louca imaginação. Minha mente se recusava a compreendê-la. Pensem, meus irmãos civilizados, tentem pensar exatamente no que a visão de uma cidade murada seria para um primitivo, cuja idéia mais grandiosa de arquitetura era abrangida por uma cabana de barro com um teto de palha. Nada em minha experiência passada, ou na experiência de meu povo, me preparou para tal visão. Nenhum deles jamais sonhara com a existência de muros de pedra e ruas regulares.

O que eles poderiam significar, senão moradias de deuses? E, pelas minhas reações, ou preferivelmente pelas minhas ações, percebo que Hengibar era uma pessoa extraordinária. Pois eu não caí com o rosto no chão em adoração, nem fugi uivando de medo. Confrontado por aquele incrível fenômeno, raciocinei que, homens ou deuses, os assassinos de Wulfgar estavam dentro daqueles muros; e, agarrando meu machado com mais firmeza, desci as inclinações muradas em direção àquela cidadela de mistério.

O vale era riscado em linhas cruzadas por fossos – fossos de irrigação, regando campos outrora férteis, embora, é claro, não pudesse conhecer o significado deles. Mas vi e reconheci as marcas de pilhagem. Os fossos estavam secos, ou cheios de água limosa; estavam quebrados; os campos estavam estéreis.

Entre os campos e os muros, havia uma faixa de terra gramada, pontilhada por grupos de palmeiras; muitas delas haviam sido quebradas, como numa destruição injustificada. Mas elas me deram cobertura, e eu deslizei através da tênue luz das estrelas, até me agachar num agrupamento de palmeiras, próximo ao grande portão, e olhar mortiferamente para o homem que se acocorava lá.

O cheiro dele estava em minhas narinas, fazendo os pêlos curtos de meu pescoço se eriçarem de ódio. Seu cheiro não era como o de nenhum homem que eu já houvesse encontrado. Eu podia vê-lo suficientemente bem – pois meus olhos eram como espadas afiadas – para lhe distinguir as características. Era alto e poderosamente constituído, embora liso onde eu era emaranhado de músculos. Sua cabeça era redonda, e seu cabelo lhe caía nos ombros, em cordões lisos. Seus olhos eram oblíquos e reluziam com os de uma fera à luz das estrelas. Ele vestia uma tanga e segurava uma lança nas mãos.

Seus sentidos, comparados aos meus, eram obtusos. Ele não me ouviu, nem cheirou, nem viu. Por fim, cansado de sua posição, ele se ergueu, se estirou e começou a andar despreocupadamente de um lado a outro, diante do portão. E, como uma sombra, saí rastejando das palmeiras e deslizei sobre ele. Ele estava bocejando e esticando novamente os braços, quando avancei em direção às suas costas e o golpeei no meio delas, um pouco acima da cintura. A afiada lâmina de sílex lhe cortou a espinha, ele caiu silenciosamente e morreu.

Então me voltei para o portão e o empurrei cuidadosamente. Ele se abriu e me movi furtivamente através dele. Quando percebi que estava dentro dos muros, o pânico do selvagem caiu sobre mim, e eu lutei contra isso. A cidade estava diante de mim.

Deixem-me descrever aquela cidade, a qual parecia mais vasta, inexplicável e incrível para Hengibar do que Londres pareceria a um selvagem zulu. Pois o negro sabe que as aldeias cafres contêm centenas de cabanas, e Hengibar não sabia. Contudo, aquela cidade era pequena, afinal de contas, e ficava na planície, com contornos simples. Tinha a forma de um retângulo. Havia três ruas, correndo paralelamente. A rua principal ia do portão até a grande estrutura, a qual ocupava toda a parte final da cidade. De cada lado da rua, havia casas pequenas, de pedras aplainadas – quadradas, com tetos planos e um só pavimento, com apenas poucos metros separando cada casa de sua vizinha. Atrás destas casas, do outro lado, seguia uma rua mais estreita, enfileirada por casas quadradas construídas contra o muro externo. O final da cidade era ocupado por uma construção relativamente grande, rodeada por um semi-círculo de palmeiras.

Não vi luzes; ninguém se movia. As ruas estavam vazias. Embora eu me movesse furtivamente pela rua principal, me mantendo nas sombras das casas, eu sabia que havia homens ao meu redor – vários homens. O cheiro deles enchia o ar, e meu cabelo formigava de ódio.

Quando me deslizei como uma sombra por uma porta, alguém murmurou lá dentro, como um homem que grunhe durante o sono, atormentado por sonhos malignos. E, diante do som, todo o medo e cautela foram varridos de meu cérebro por uma onda vermelha de fúria berserk e sede de sangue.

Com um rosnado sanguissedento, me lancei contra a porta e através de seus restos estilhaçados, lançados para dentro da escuridão além dela. Não consegui ver nada, mas havia homens na sala comigo, e meu machado, se movendo no escuro, esmagou um crânio humano. Alguém se levantou, gritando em alarme, e meu machado o acertou de raspão, transformando-lhe os brados em gritos de dor e medo. Ele correu desvairadamente para a porta e se lançou através dela, ainda guinchando, e eu estava em seu encalço, talhando e cortando em fúria silenciosa. Ele saiu rapidamente na rua, e correu cambaleante por ela, pingando sangue a cada passo e gritando feito um porco espetado. De todos os lados, homens acordavam em suas casas, abriam as portas e gritavam uns para os outros em sua língua estranha, mas não dei atenção. Só havia lugar, no meu cérebro, para a sede de sangue, e saltei atrás do homem que fugia, o derrubei com um tremendo golpe por trás e, saltando sobre seu corpo que se contorcia, eu o golpeei várias vezes, até ele jazer imóvel sob meu machado gotejante.

Então, levantei meu olhar, como uma pantera que olha ferozmente desde sua presa, e vi homens se aglomerarem para fora de suas casas, ao longo de toda a rua. Com um rosnado, girei e me afastei, pulando em direção à cobertura das sombras entre as casas. Um homem barrou meu caminho, com a tocha erguida para o alto. Fui diretamente até ele e, quando a luz da tocha caiu em meus olhos resplandecentes, feições rosnantes e salpicadas de sangue, e machado gotejante, ele gritou e recuou, como um homem recua de um tigre. No momento seguinte, meu machado se ergueu e desceu, cortando-lhe o breve grito; e, sobre sua forma dilacerada, saltei até as sombras entre as casas.

Logo, começou um jogo sombrio de esconde-esconde. Por toda a rua principal, tochas tremeluziam, lanças brilhavam, e homens corriam e gritavam. Aparentemente, as casas construídas contra o muro eram inabitadas. As mobílias dentro delas estavam quebradas, e o cheiro de sangue deteriorado, há muito tempo seco, pesava no ar.

Sua disposição era tão simples, que até eu a compreendi rapidamente. E me refugiei nelas, deslizando para fora, no outro lado, quando os caçadores se aproximavam demais. E, verdade seja dita, parecia não haver muito entusiasmo na busca deles, e eles estavam pouco dispostos a deixarem a rua principal. Deslizei por entre as casas ao longo do muro – vingativo, me esquivando como uma velha pantera –, e logo ataquei de surpresa a um, que era mais corajoso que seus irmãos, e estava perscrutando por entre as sombras, a tocha numa mão e a lança em outra. Ele estava só. E tinha os sentidos notavelmente embotados. Eu estava quase lhe alcançando o ombro, quando ele se virou e me viu; ele gritou e tentou evitar o machado que girava para baixo, num arco cintilante. Seu crânio se quebrou como uma casca de ovo, mas seu grito chamou seus companheiros.

Recuei furtivamente para dentro das sombras, e houve uma grande tagarelice quando acharam o corpo. Quando se aglomeraram ao redor, sob a luz das tochas, vi que suas peles eram amarelas ao invés de brancas. Agitaram suas lanças, tagarelaram e, finalmente unidos num grupo compacto, recuaram em direção à rua principal, suas lanças ameaçando todos os pontos do espaço. Apesar de sua coragem à luz do dia, eram fracos à noite, e um feroz desprezo surgiu dentro de mim, para completar o ódio que eu sentia por eles. Pois seus pés eram chatos e largos, e fiquei ciente de que um deles era o homem a quem eu procurava.

Eles não mostraram sinal de abandonarem a rua iluminada por tochas.




Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Fonte: The “New” Howard Reader #1

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Deuce Richardson, moderador do site “The REH Forum” (www.conan.com/invboard)
Compartilhar