(por Robert E. Howard)
Três homens estavam sentados diante de uma mesa, jogando. Pelo parapeito de uma janela aberta, sussurrava uma brisa suave, soprando as tênues cortinas e levando aos jogadores o perfume de rosas, parreiras e plantas verdes.
Três homens estavam sentados diante de uma mesa. Um deles era um rei; outro, o príncipe de uma antiga linhagem, e o outro era o chefe de uma nação terrível e bárbara.
- Ponto! – disse Kull, rei da Valúsia, enquanto movia uma das figuras de marfim – Meu mago ameaça seu guerreiro, Brule.
Brule acenou com a cabeça. Não era um homem tão corpulento quanto o rei, mas era de compleição firme – compacto, embora esbeltamente constituído. Kull era o tigre, Brule era o leopardo. Brule era um picto e escuro como toda sua raça. Feições imóveis sobre uma cabeça elegante, pescoço forte, ombros maciçamente compostos e peito profundo. Estes traços, com suas pernas e braços musculosos, eram típicos da nação à qual ele pertencia. Mas, em um aspecto, Brule diferia dos homens de sua tribo, pois, enquanto os olhos destes eram, em sua maioria, marrom cintilante ou ferozmente negros, os dele eram de um profundo azul vulcânico. Em algum lugar no seu sangue, havia uma vaga descendência de celtas, ou daqueles selvagens disseminados que viviam em cavernas de gelo, perto do Círculo Ártico.
- Um mago é um homem difícil de derrotar – disse este homem –, neste jogo, ou no jogo verdadeiro e rubro da batalha... bem, houve uma vez em que minha vida pendeu na balança do poder entre um mago picto e eu... ele tinha seus feitiços, e eu, uma lâmina bem-forjada...
Ele fez uma pausa para beber profundamente de um copo escarlate de vinho, que se encontrava diante de seu cotovelo.
- Conte-nos a história, Brule. – insistiu o terceiro jogador.
Ronaro, príncipe da grande casa de Atl Volante, era um jovem esbelto e elegante, com uma cabeça esplêndida, belos olhos escuros e um agudo rosto intelectual. Ele era o patrício... o mais elevado tipo de inteligência aristocrática que qualquer terra já havia produzido. Os outros dois, por sua vez, eram sua antítese. Ele nasceu num palácio; quanto aos outros, um havia nascido numa cabana de vime, e o outro numa caverna. Ronaro remontava às suas origens dois mil anos, através de uma linhagem de duques, cavaleiros, príncipes, homens de estado, poetas e outros. Brule conseguia remontar seus ancestrais vagamente por uns poucos séculos, e mencionava entre eles chefes vestidos de pele, guerreiros pintados e emplumados, xamãs com máscaras de caveira de bisão e colares com ossos de dedos... um ou dois rei de ilhas, cujas cortes eram em cabanas de lama, e um ou dois herói lendários, semi-deificados por proezas de força física ou de massacre. Kull nem sequer sabia quem eram seus próprios pais.
Mas, nos semblantes dos três, brilhava uma igualdade além dos grilhões de nascimento e circunstância – a aristocracia do Homem. Estes homens eram patrícios naturais, cada um ao seu modo. Os ancestrais de Ronaro eram reis; os de Brule, chefes em roupas de pele; os de Kull podem ter sido escravos ou chefes tribais. Mas, ao redor dos três, havia aquele elemento indefinível que destaca o homem superior e destrói a ilusão de que todos os homens nascem iguais.
- Bem – os olhos de Brule se encheram de lembranças pensativas –, aconteceu no início de minha juventude; sim, na minha primeira incursão de guerra. Ah, eu já havia matado um homem ou mais nas brigas de pescaria e nas festas tribais, mas ainda não tinha sido ornamentado com as cicatrizes do guerreiro do clã... – ele apontou o peito nu, onde os ouvintes viram três pequenas marcas horizontais, mal perceptíveis no poderoso peito, bronzeado de sol, do picto.
Ronaro o observava com infalível interesse, enquanto ele falava. Estes bárbaros ferozes, com sua vitalidade primitiva e petulância direta, intrigavam o jovem príncipe. Anos na Valúsia, como um dos mais fortes aliados do império, haviam bordado uma mudança externa no picto – não o haviam domesticado, mas dado a ele um verniz de cultura, educação e reserva. Mas, debaixo daquele verniz, brilhava o cego selvagem negro de sempre. Esta mudança ocorrera mais extensamente em Kull, outrora guerreiro da Atlântida, agora rei da Valúsia.
- Kull e Ronaro – disse Brule –, nós, das Ilhas, somos todos de um sangue, mas de várias tribos, e cada tribo tem costumes e tradições peculiares a cada uma. Todos nós reconhecemos Nial, dos Tatheli, como o rei principal, mas seu governo é flexível. Ele não interfere em nossos assuntos; nem cobra impostos, ou taxas como chamam os valusianos, de ninguém, exceto dos Nargi, dos Dano e dos Matadores de Baleia, que vivem na ilha de Tathel com sua própria tribo. A estes ele protege contra outras tribos, e por essa razão, ele coleta impostos. Mas ele não toma impostos de minha tribo, os Bornis, nem de qualquer outra tribo. Nem interfere quando duas tribos entram em guerra... a não ser que alguma ataque as três que lhe pagam tributo. Quando a guerra é lutada e vencida, ele arbitra sobre o assunto, e seu julgamento é definitivo: quais mulheres roubadas devem ser devolvidas, qual o pagamento em canoas de guerra a ser feito, qual o preço a ser pago em sangue, e assim por diante. E, quando os lemurianos, os celtas, ou qualquer nação estrangeira ou bando de saqueadores nos atacam, ele manda recado para que todas as tribos esqueçam suas rixas e lutem lado a lado. O que é uma coisa boa. Ele poderia ser o tirano supremo, se quisesse, pois sua própria tribo é muito forte; e, com a ajuda da Valúsia, poderia fazer o que quisesse... mas ele sabe que, embora possa, com suas tribos e aliados, esmagar todas as outras tribos, nunca haveria paz novamente, mas revolta enquanto um Borni, um Sungara, um Matador de Lobos ou quaisquer um dos homens das tribos estivesse vivo.
Tradução: Fernando Neeser de Aragão.
Fonte: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Kull%2001%20-%20Kull%20-%20FF.txt