A Casa de Arabu

por Robert E. Howard,

Originalmente publicado em 1952.


Para a casa de onde ninguém sai,
Para a estrada da qual não há retorno,
Para a casa cujos habitantes são privados da luz,
O local onde o pó é o alimento deles, e a comida deles o barro,
Eles não têm luz, vivem em densa escuridão,
E estão vestidos, como pássaros, numa roupa de plumas,
Onde o pó está espalhado sobre portão e ferrolho
”.
(A lenda babilônica de Ishtar)


- SERÁ QUE ELE viu um espírito da noite? Ele está ouvindo os sussurros daqueles que vivem nas trevas?

Palavras estranhas para serem sussurradas no salão de festas de Naram-Ninub, entre a melodia de alaúdes, o barulho de fontes e o tremeluzir da risada das mulheres. O grande salão demonstrava a riqueza de seu dono, não apenas pelas suas vastas dimensões, mas pela riqueza de seus adornos. A superfície lustrosa das paredes apresentava uma variedade desconcertante de cores: esmaltes azuis, vermelhos e laranjas, ornamentados por quadrados de ouro batido. O ar estava carregado de incenso, misturado com a fragrância de flores exóticas dos jardins externos. Os convidados – nobres vestidos em seda, de Nippur – se reclinavam sobre almofadas de cetim, bebiam vinho em vasos de mármore branco e acariciavam os brinquedos pintados e adornados de jóias, os quais a riqueza de Naram-Ninub trouxera de todos os lugares do Leste.

Havia dezenas destes: seus membros brancos se moviam rapidamente de um lado a outro, à medida que dançavam, ou brilhavam como marfim entre as almofadas onde se esparramavam. Uma tiara incrustada de jóias, presa num massa brilhante de cabelos negros como a noite; um bracelete de ouro maciço, incrustado de gemas; argolas de jade entalhado – estas eram suas únicas roupas. Seu perfume era estonteante. Desinibidas em dançar, festejar e fazer amor, suas risadas delicadas enchiam o salão em ondas de som prateado.

Num largo estrado, empilhado por travesseiros, se deitava o anfitrião da festa, alisando sensualmente os cachos lustrosos de uma graciosa árabe que havia se estirado sobre a barriga maleável, ao lado dele. Sua aparência de luxuriosa preguiça era desmentida pelo brilho de vitalidade em seus olhos escuros, quando ele examinava os convidados. Tinha o corpo largo, com uma curta barba preto-azulada: um semita, dentre os muitos que todo ano adentravam Sumer.

Com uma única exceção, seus convidados eram sumérios, de barbas e cabeças raspadas. Seus corpos eram cheios de vida rica; suas feições, suaves e plácidas. A exceção entre eles se sobressaía em surpreendente contraste. Mais alto que eles, não tinha nada da maciez suave dos outros. Era feito com a economia da implacável Natureza. Seu físico era do primitivo, e não do atleta civilizado. Ele era a encarnação do Poder: rude, duro, lupino – nos membros fortes, pescoço musculoso, no grande arco do peito e nos largos ombros firmes. Sob a emaranhada cabeleira dourada, seus olhos eram como gelo azul. Suas feições fortemente esculpidas refletiam a selvageria, sugerida por sua estrutura. Nele não havia nada do ócio moderado dos demais convidados, mas uma franqueza implacável em cada ação sua. Enquanto eles bebericavam, ele bebia em grandes goles. Eles comiam os petiscos aos bocadinhos, mas ele arrancava quartos inteiros de carne assada com os dedos e puxava os pedaços com os dentes. Contudo, sua fronte estava sombria e sua expressão, taciturna. Seus olhos magnéticos estavam introspectivos. Por isso, o Príncipe Ibi-Engur balbuciou novamente no ouvido de Naram-Ninub:

- Será que o lorde Pyrrhas ouviu o sussurro das coisas da noite?

Naram-Ninub olhou para seu amigo com certa preocupação:

- Venha, milorde – disse ele –; você está estranhamente aturdido. Alguma coisa lhe ofendeu aqui?

Pyrrhas despertou, como que de alguma meditação sombria, e sacudiu a cabeça:

- Não desta forma, meu amigo; se pareço distraído, é por causa de uma sombra que jaz sobre meu próprio pensamento. – Seu sotaque era bárbaro, mas o timbre de sua voz era forte e vibrante.

Os outros olharam para ele com interesse. Ele era general dos mercenários de Eannatum, um argivo(1) cuja saga era épica.

- É alguma mulher, lorde Pyrrhas? – perguntou o Príncipe Enakalli, com uma risada. Pyrrhas o mirou com seu olhar sombrio, e o príncipe sentiu um vento frio na espinha.

- Sim, uma mulher. – murmurou o argivo – Uma que assombra meus sonhos e flutua como uma sombra entre eu e a lua. Em meus sonhos, sinto os dentes dela em meu pescoço, e acordo ouvindo o bater de asas e o pio de uma coruja.

Um silêncio caiu sobre o grupo que estava no estrado. Somente no grande salão abaixo se erguia o borbulhar de alegria e conversa, e o tocar de alaúdes; e uma garota riu em voz alta, com um tom curioso em sua risada.

- Há uma maldição sobre ele. – sussurrou a jovem árabe. Naram-Ninub silenciou-a com um gesto, e estava prestes a falar, quando Ibi-Engur balbuciou:

- Milorde Pyrrhas, isto tem um toque sobrenatural, como a vingança de um deus. Você fez alguma coisa para ofender uma divindade?

Naram-Ninub mordeu os lábios, aborrecido. Era bem sabido que, em sua recente campanha contra Erech, o argivo matara um sacerdote de Anu em seu santuário. A cabeça cabeluda de Pyrrhas se moveu bruscamente para cima, e olhou ferozmente para Ibi-Engur, como que incerto em atribuir o comentário à malícia ou à falta de diplomacia. O príncipe começou a ficar pálido, mas a esguia árabe se ergueu sobre os joelhos e agarrou o braço de Naram-Ninub.

- Olhe para Belibna! – Ela apontou para a garota, que havia rido tão selvagemente no instante anterior.

Seus companheiros se afastavam apreensivamente desta garota. Ela não falou com eles, nem parecia vê-los. Agitou a cabeça enfeitada de jóias, e sua risada estridente ecoou por todo o salão de festas. Seu corpo esguio balançou para trás e para a frente; seus braceletes retiniam e, juntos, faziam um ruído dissonante enquanto ela agitava os braços brancos. Seus olhos escuros brilhavam com uma luz selvagem, seus lábios vermelhos se enroscavam com sua alegria não-natural.

- A mão de Arabu está sobre... ela. – sussurrou, inquieta, a árabe.

- Belibna? – Naram-Ninub gritou vigorosamente. A única resposta foi outra explosão de gargalhada selvagem, e a garota gritou subitamente:

- Para a casa da escuridão, para a morada de Irhalla; para a estrada da qual não há retorno; oh, Apsu, teu vinho é amargo!

A voz dela se rompeu num grito terrível, e, saltando de entre suas almofadas, ela se ergueu de um pulo sobre o estrado, com uma adaga na mão. Cortesãos e convidados gritaram em voz aguda e se arrastaram loucamente para longe do caminho dela. Mas foi em direção a Pyrrhas que a garota correu, o belo rosto uma máscara de fúria. O argivo agarrou o pulso dela, e a força incomum da loucura foi inútil contra os músculos de aço do bárbaro. Ele lançou-a para um lado, e escadas almofadadas abaixo, onde ela jazeu numa pilha amarrotada, sua própria adaga enfiada no coração quando ela caiu.

O zumbir da conversa, que havia cessado subitamente, se ergueu novamente quando os guardas arrastaram o corpo para longe dali, e as dançarinas pintadas voltaram aos seus travesseiros. Mas Pyrrhas se virou e, tirando seu largo manto vermelho de um escravo, o lançou ao redor dos ombros.

- Fique, meu amigo. – insistiu Naram-Ninub – Não vamos deixar que este pequeno transtorno interfira na nossa festa. A loucura é bastante comum.

Pyrrhas sacudiu irascivelmente a cabeça:

- Não; estou cansado de beber e comer. Vou para minha casa.

- Então, a festa acabou. – declarou o semita, levantando e batendo as mãos – Minha própria liteira irá levá-lo para a casa que o rei lhe deu... não! Esqueci que você despreza montar nas costas de outros homens. Então, eu mesmo lhe escoltarei para casa. Milordes, vocês vão... nos acompanhar?

- Caminhar, como homens comuns? – gaguejou o Príncipe Ur-Ilishu – Por Enlil, eu vou. Será uma rara novidade. Mas eu preciso de um escravo para segurar a cauda de meu manto, a fim de que ela não se arraste na poeira da rua. Venham, amigos, vamos ver a casa de lorde Pyrrhas, por Ishtar!

- Um homem estranho. – Ibi-Engur balbuciou para Libit-Ishbi, quando o grupo saiu do espaçoso palácio, e desceu a larga escada de ladrilhos, guardada por leões de bronze – Ele anda pelas ruas, desacompanhado, feito um verdadeiro comerciante.

- Cuidado! – murmurou o outro – Ele perde facilmente a paciência, e é bastante estimado por Eannatum.

- Embora até mesmo o preferido do rei devesse ter tido cuidado ao ofender o deus Anu. – respondeu Ibi-Engur, com a voz igualmente resguardada.

O grupo prosseguiu calmamente pela larga rua branca, interrompido pelas pessoas comuns, que meneavam rapidamente as cabeças raspadas à medida que eles passavam. O sol não estava muito alto, mas o povo de Nippur já estava em atividade. Havia muito vaivém entre as barracas de feira, onde os mercadores espalhavam seus produtos: um panorama dinâmico, entrelaçado de artífices, escravos, cortesãs e soldados em elmos de cobre. Lá, um mercador saía de seu armazém, uma figura calma em túnica solene e manto branco; lá, um escravo se apressava, vestido numa túnica de linho; lá, uma rapariga atrevida e pintada falava sem rodeios – sua curta saia aberta lhe exibia o quadril liso e macio a cada passo. Acima deles, o azul do céu se empalidecia com o calor do sol que se elevava. As superfícies lustrosas das edificações brilhavam. Elas tinham tetos planos, algumas delas com três ou quatro andares. Nippur era uma cidade feita com tijolos secados ao sol, mas seu revestimento de esmalte fazia dela uma orgia de cores brilhantes.

Em algum lugar, um sacerdote cantava:

- Oh, Babbat, honradamente erguida para ti a cabeça disto...

Pyrrhas praguejou em voz baixa. Estavam passando pelo grande templo de Enlil, o qual se erguia a mais de 90 metros em direção ao imutável céu azul.

- As torres ficam contra o céu, como se fossem parte dele. – ele praguejou, colocando para trás uma mecha úmida de sua testa – O céu é esmaltado, e este é um mundo feito pelo homem.

- Não, amigo. – objetou Naram-Ninub – Ea construiu o mundo a partir do corpo de Tiamat.

- Eu digo que os homens construíram Sumer! – exclamou Pyrrhas, com o vinho que bebera lhe ensombrecendo os olhos – Uma terra plana... uma verdadeira mesa de banquete em forma de terra... com rios e cidades pintados sobre ela, e um céu de esmalte azul acima dela. Por Ymir, nasci numa terra construída pelos deuses! Lá há grandes montanhas azuis, com vales semelhantes a longas sombras entre elas, e picos nevados brilhando ao sol. Rios correm, espumando os rochedos em constante agitação, e as largas folhas das árvores balançam sob ventos fortes.

- Eu também nasci numa terra espaçosa, Pyrrhas. – respondeu o semita – À noite, o deserto fica branco e majestoso sob a lua, e de dia ele se estende em infinito marrom sob o sol. Mas é nas cidades apinhadas dos homens, nestas colméias de bronze, ouro e esmalte, que ficam a riqueza e a glória.

Pyrrhas estava prestes a falar, quando um lamento alto lhe atraiu a atenção. Rua abaixo, veio uma procissão, carregando uma liteira entalhada e pintada, sobre a qual jazia uma figura escondida por flores. Logo atrás, vinha uma fila de jovens mulheres, com as roupas sumárias rasgadas e os cabelos negros selvagemente soltos. Elas batiam em seus seios nus e gritavam:

- Ailanu! Thammuz está morto!

As multidões na rua levantavam o grito. A liteira passou, balançando nos ombros dos que a carregavam; entre as flores altamente empilhadas, brilhavam os olhos pintados de uma imagem esculpida. O clamor dos adoradores ecoava rua abaixo, diminuindo à distância.

Pyrrhas sacudiu os poderosos ombros:

- Logo estarão pulando, dançando e gritando: “Adônis está vivo!”; e as moças, que lamentam tão amargamente agora, vão se entregar aos homens nas ruas, em júbilo. Quantos deuses há aqui, em nome do diabo?

Naram-Ninub apontou para o grande zigurate de Enlil, que meditava acima de tudo, como o sonho bruto de um deus louco.

- Vê os sete andares? O mais baixo é preto; o seguinte, de esmalte vermelho; o terceiro, azul; o quarto, laranja; o quinto, amarelo, enquanto o sexto é revestido de prata, e o sétimo com ouro puro, que flameja à luz do sol. Cada patamar no templo simboliza uma divindade: o sol, a lua e os cinco planetas que Enlil e sua tribo colocaram nos céus, como seus símbolos. Mas Enlil é maior do que todos, e Nippur é sua cidade favorita.

- Maior que Anu? – murmurou Pyrrhas, se lembrando de um santuário em chamas e de um sacerdote moribundo que arfava uma ameaça medonha.

- Qual a perna mais importante de uma mesa de três pés? – perguntou Naram-Ninub.

Pyrrhas abriu a boca para responder, e então recuou praguejando, com a espada desembainhada. Sob seus próprios pés, uma serpente se erguia, sua língua bifurcada palpitando como um jato de relâmpago vermelho.

- O que há, meu amigo? – Naram-Ninub e os príncipes o encaravam, surpresos.

- O que há? – ele praguejou – Não estão vendo a cobra sob seus próprios pés? Afastem-se... e me ajudem a dar um belo susto nela.

Sua voz se interrompeu e seus olhos se nublaram de dúvida.

- Ela sumiu. – ele murmurou.

- Não vi nada. – disse Naram-Ninub, e os outros sacudiram as cabeças, trocando olhares perplexos.

O argivo passou a mão pelos olhos, sacudindo a cabeça.

- Talvez seja o vinho. – murmurou – Mas ali havia uma víbora, eu juro pelo coração de Ymir. Estou amaldiçoado.

Os outros se afastaram dele, olhando-o estranhamente.


Sempre houve uma inquietude na alma de Pyrrhas O Argivo, a lhe freqüentar os sonhos e a fazê-lo sair em suas longas perambulações. Isto o havia levado para fora das montanhas azuis de sua raça, para o sul em direção aos vales férteis e planícies costeiras onde se erguiam as cabanas dos micênios; de lá para a ilha de Creta, onde, numa rude cidade de pedra áspera e madeira, um povo de pescadores morenos fazia permutas com as embarcações do Egito; naquelas embarcações, ele fora para o Egito, onde homens trabalhavam debaixo de chicotadas para erguerem as primeiras pirâmides, e onde, nas fileiras dos mercenários brancos, os shardanas(2), ele aprendeu as artes da guerra. Mas sua sede de aventuras o levou a atravessar novamente o mar, para uma aldeia comercial com paredes de barro, na costa da Ásia, chamada Tróia, de onde ele se dirigiu para o sul, na pilhagem e carnificina da Palestina, onde viviam os habitantes originais – a terra estava oprimida pelos bárbaros cananeus, vindos do Leste. Assim, por meios tortuosos, ele finalmente chegou às planícies de Sumer, onde cidade lutava contra cidade, e os sacerdotes de mil deuses rivais intrigavam e conspiravam, como vinham fazendo desde a aurora do Tempo, e como fizeram por séculos depois, até que a ascensão de uma obscura cidade da fronteira, chamada Babilônia, exaltasse sua cidade-deus, Merodach, acima de todas as outras como Bel-Marduk, o conquistador de Tiamat.

O simples perfil da saga de Pyrras O Argivo é vago e insignificante; não consegue captar os ecos da trovejante pompa que se proliferou através desta saga: os banquetes, festejos, guerras, o quebrar e estilhaçar de embarcações, e o ataque de bigas. Basta dizer que a honra de reis foi dada ao argivo, e que, em toda a Mesopotâmia, não havia homem tão temido quanto este bárbaro de cabelos dourados, cuja habilidade guerreira e fúria quebraram as hostes de Erech no campo de batalha, assim como o jugo de Erech no pescoço de Nippur.

De uma cabana na montanha até um palácio de jade e marfim, a saga de Pyrrhas o levara. Apesar dos obscuros sonhos meio animalescos que lhe preenchiam o sono, quando ele dormia, na sua juventude, numa pilha de peles de lobo na cabana de seu pai de cabelos desgrenhados – mas nada era tão estranho e monstruoso quanto os sonhos que o assombravam no leito de seda, no palácio de Nippur das torres azuis-turquesa.

E foi destes sonhos que Pyrrhas acordou subitamente. Nenhum lampião ardia em seu quarto, e a lua ainda não estava alta; mas a luz das estrelas se filtrava fracamente pelo batente da janela. E, neste brilho, algo se movia e tomava forma. Havia o vago contorno de uma forma esguia e o brilho de um olho. Súbito, a noite ficou opressivamente quente e parada. Pyrrhas ouviu o pulsar do próprio sangue nas veias. Por que temer uma mulher escondida no seu quarto? Mas nenhuma forma de mulher tinha aquela flexibilidade de pantera; nenhum par de olhos femininos brilhava tanto no escuro. Com um rosnado convulsivo, ele pulou da cama e sua espada assobiou ao cortar o ar – mas somente o ar. Algo semelhante a uma risada zombeteira lhe alcançou os ouvidos, mas a figura já tinha ido embora.

Uma garota entrou apressadamente com uma lamparina.

- Amytis! Eu a vi! Desta vez não era sonho! Ela riu de mim, na janela!

Amytis tremeu quando pôs a lamparina numa mesa de ébano. Era uma criatura macia e sensual, com olhos de cílios longos e pálpebras pesadas, e uma abundância de lustrosas e negras madeixas cacheadas. Quando ficava nua ali, a sensualidade de sua forma era capaz de mexer com o mais cansado dos devassos. Um presente de Eannatum, ela odiava Pyrrhas, e ele sabia disso, mas achava uma furiosa gratificação em possuí-la. Mas agora, o ódio dela estava afogado em terror.

- Era Lilitu! – ela gaguejou – Ela marcou você para a posse dela! Ela é o espírito da noite, a companheira de Adart Lili. Eles moram na Casa de Arabu. Você está amaldiçoado!

As mãos dele estavam banhadas de suor; gelo derretido parecia fluir lentamente por suas veias, ao invés de sangue.

- Para onde irei? Os sacerdotes me odeiam e temem, desde que queimei o templo de Anu.

- Há um homem que não está preso ao ofício de sacerdote, e poderia lhe ajudar. – ela deixou escapar.

- Então me diga! – Ele estava galvanizado – O nome dele, garota! O nome dele!

Mas, diante deste sinal de fraqueza, a malícia dela retornou. Ela havia deixado escapar o que estava em sua mente, em seu medo do sobrenatural. Agora, todo o seu espírito de vingança estava novamente desperto.

- Esqueci. – ela respondeu de forma insolente, os olhos brilhando de rancor.

- Cadela!

Ofegando com a violência de sua fúria, ele a arrastou pelos cabelos até um leito. Agarrando o cinto da espada, ele o brandiu com força selvagem, segurando, com a mão livre, o corpo nu que se contorcia. Cada pancada era como o impacto do chicote de um boiadeiro. Ele estava tão confuso de fúria, e ela tão desconexa de dor, que, a princípio, ele não percebeu que ela guinchava um nome em voz alta. Finalmente reconhecendo isto, ele a afastou, fazendo-a cair, contorcida, numa pilha no chão acarpetado. Tremendo e ofegando pelo excesso de fúria, ele lançou para o lado o cinto e olhou para baixo, em direção a ela.

- Gimil-Ishbi, hein?

- Sim! – ela soluçou, rastejando sobre o chão em sua torturante angústia – Ele era um sacerdote de Enlil, até que se tornou adorador do diabo e foi banido. Ahhh, estou fraca! Estou desmaiando! Piedade! Piedade!

- E onde o encontrarei? – ele demandou.

- Na colina de Enzu, a oeste da cidade. Oh, Enlil, fui esfolada viva! Estou morrendo!

Afastando-se dela, Pyrrhas vestiu apressadamente suas roupas e armadura, sem chamar nenhum escravo para ajudá-lo. Seguiu adiante, passou por entre seus criados adormecidos sem acordá-los, e pegou o melhor de seus cavalos. Havia talvez uns vinte em toda Nippur, propriedades do rei e de seus nobres mais ricos; haviam sido trazidos das tribos selvagens do norte distante, além do Cáspio, às quais, numa era posterior, os homens chamariam de citas. Cada cavalo representava uma verdadeira fortuna. Pyrrhas agarrou as rédeas do grande animal e montou sobre a sela – um simples pano almofadado, ornamentado e ricamente trabalhado.

Os soldados no portão ficaram boquiabertos diante dele, quando ele puxou as rédeas e lhes ordenou que abrissem os grandes portões de bronze, mas eles curvaram as cabeças e obedeceram sem questionar. Seu manto escarlate balançava atrás dele, quando atravessou o portão a galope.

- Por Enlil! – jurou um soldado – O argivo bebeu demais do vinho egípcio de Naram-Ninub.

- Não – respondeu outro –; você viu como o rosto dele estava pálido e a mão tremia na rédea? Os deuses o haviam tocado, e ele talvez cavalgue para a Casa de Arabu.

Sacudindo incertos as cabeças cobertas por elmos, eles ouviram as batidas dos cascos do cavalo diminuírem na direção oeste.


A norte, sul e leste de Nippur, fazendas, aldeias e bosques de palmeiras se aglomeravam na planície, atravessados pela rede de canais ligada aos rios. Mas, a oeste, a terra jazia nua e silenciosa até o Eufrates – apenas vastidões queimadas contavam sobre vilarejos anteriores. Poucas luas atrás, incursores haviam saído do deserto, numa onda que engolfou os vinhedos e cabanas, e jorrou contra as paredes cambaleantes de Nippur. Pyrrhas se lembrava da luta ao longo das muralhas e da luta nas planícies, quando sua expedição à frente de suas falanges havia quebrado os sitiadores e levado-os a uma fuga precipitada de volta, pelo Grande Rio. Então, a planície ficara vermelha de sangue e negra de fumaça. Agora, já estava novamente coberta de verde, enquanto o trigo levava plantas para a frente, negligenciadas pelo homem. Mas os trabalhadores, que haviam plantado aquele trigo, haviam partido para a terra da sombra e das trevas.

A inundação, desde regiões mais populosas, já estava vazando; de volta ao deserto feito pelo homem. Uns poucos meses – no máximo um ano –, e a terra apresentaria novamente o aspecto típico da planície mesopotâmica, apinhada de aldeias e delimitada por campos minúsculos, que mais pareciam jardins do que fazendas. O homem cobriria as cicatrizes que o homem havia feito, e haveria esquecimento até os incursores saírem novamente do deserto. Mas agora a planície estava nua e silenciosa, os canais entupidos, quebrados e vazios.

Aqui e ali, se erguiam os restos de bosques de palmeiras, as ruínas esmigalhadas de vilas e palácios do campo. Mais para fora, mal visível sob as estrelas, se erguia a pequena e misteriosa colina, conhecida como a colina de Enzu – a lua. Não era uma colina natural, mas ninguém sabia quais as mãos que a haviam erguido, nem por qual motivo. Antes que Nippur fosse construída, ela fora erguida sobre a planície, e os dedos sem nome que lhe deram forma desapareceram na poeira do tempo. Para lá, Pyrrhas dirigiu seu cavalo.


E, na cidade que ele havia deixado, Amytis abandonou furtivamente o palácio dele e tomou um caminho tortuoso para um certo destino. Ela caminhou bastante contida, mancando, e freqüentemente parava para se acariciar delicadamente e lamentar sobre as próprias lesões. Mas, capengando, praguejando e chorando, ela finalmente alcançou seu destino e ficou diante de um homem, cuja riqueza e poder eram grandes. Seu olhar era interrogativo.

- Ele foi para a Colina da Lua, falar com Gimil-Ishbi. – ela disse – Lilitu veio até ele novamente esta noite. – ela estremeceu, esquecendo momentaneamente sua dor e raiva – De fato, ele está amaldiçoado.

- Pelos sacerdotes de Anu? – Os olhos dele se estreitaram em fendas.

- Ele suspeita disso.

- E você?

- Quanto a mim? Não sei, nem me importo.

- Já se perguntou por que lhe pago para espioná-lo? – ele indagou.

Ela encolheu os ombros:

- Você me paga bem; isso é o bastante para mim.

- Por que ele vai até Gimil-Ishbi?

- Eu disse a ele que o renegado poderia ajudá-lo contra Lilitu.

Súbito, a raiva deixou o rosto do homem obscuramente sinistro.

- Pensei que você o odiasse.

Ela se contraiu diante da ameaça na voz:

- Falei do adorador do diabo sem pensar, e então ele me forçou a falar seu nome... maldito seja... não vou sentar confortavelmente durante semanas! – Seu ressentimento deixou-a momentaneamente sem fala.

O homem a ignorou, concentrado nas próprias meditações sombrias. Por fim, ele se levantou com súbita determinação.

- Esperei demais. – ele murmurou, como que pensando em voz alta – Os demônios brincam com ele, enquanto mordo minhas unhas, e aqueles que conspiram comigo ficam inquietos e suspeitos. Só Enlil sabe qual o conselho que Gimil-Ishbi dará. Quando a lua se erguer, cavalgarei e procurarei o argivo na planície. Uma estocada de surpresa... ele não suspeitará, até minha espada atravessá-lo. Uma lâmina de bronze é mais segura que os poderes das Trevas. Fui tolo em confiar, até mesmo num demônio.

Amytis ofegou horrorizada, e agarrou as cortinas de veludo para se apoiar.

- Você? Você? – Os lábios dela expressaram uma pergunta terrível demais para sonorizar.

- Sim! – ele lançou-lhe um olhar de diversão sombria. Com um arquejo de terror, ela disparou pela porta encortinada, suas espertezas esquecidas em seu medo.


Se a caverna foi escavada pelo homem ou pela Natureza, ninguém sabia. Pelo menos, suas paredes, chão e teto eram simétricos e formados por blocos de pedra esverdeada, encontrados em nenhum lugar daquela terra plana. Qualquer que fosse sua origem, o homem agora a ocupava. Um lampião estava pendurado no teto de rocha, lançando uma luz sobrenatural sobre o compartimento e a cabeça calva do homem que se sentava, debruçado sobre um rolo de pergaminho numa mesa de pedra à sua frente. Ele olhou para cima, quando passos firmes e rápidos soaram nos degraus de pedra que desciam para dentro de sua morada. No instante seguinte, uma figura alta se emoldurou na entrada.

O homem diante da mesa de pedra perscrutou esta figura com ávido interesse. Pyrrhas vestia uma cota-de-malha de couro preto e escamas de bronze; suas grevas de latão brilhavam à luz do lampião. O largo manto escarlate, lançado solto ao seu redor, não se emaranhava no longo punho de espada que se sobressaía de suas dobras. Ensombrecidos pelo seu elmo de bronze, decorado com chifres, os olhos do argivo brilhavam como gelo. Assim, o guerreiro encarou o sábio.

Gimil-Ishbi era muito velho. Não havia qualquer influência de sangue semita em suas veias murchas. Sua cabeça calva era redonda feito um crânio de abutre, e dela, seu grande nariz se sobressaía como o bico de um abutre. Seus olhos eram oblíquos – uma raridade, mesmo num sumério de sangue puro –, e eles eram brilhantes e negros como contas. Enquanto os olhos de Pyrrhas eram totalmente profundos, profundezas azuis e nuvens e sombras mutáveis, os olhos de Gimil-Ishbi eram escuros como azeviche, e nunca mudavam. Sua boca era um talho, cujo sorriso era mais terrível que o rosnar da mesma.

Vestia uma simples túnica preta, e seus pés, em suas sandálias de pano, pareciam estranhamente deformados. Pyrrhas sentiu uma estranha contração entre as espáduas, ao olhar para aqueles pés, e afastou os olhos de volta ao rosto sinistro.

- Permita-se adentrar minha humilde residência, guerreiro. – a voz era suave e sedosa, soando estranha daqueles ásperos lábios finos – Eu poderia lhe oferecer comida e bebida, mas temo que o alimento que como e o vinho que bebo encontrem pouca estima aos seus olhos. – Ele riu suavemente, como que de algum gracejo indefinido.

- Não vim para comer ou beber. – respondeu abruptamente Pyrrhas, subindo a passos largos até a mesa – Vim para comprar um amuleto contra demônios.

- Comprar?

O argivo esvaziou uma bolsa de moedas de ouro na superfície de pedra; elas brilharam fracamente à luz do lampião. A risada de Gimil-Ishbi foi como o sussurro de uma serpente através do capim seco.

- O que é esta sujeira amarela para mim? Você fala em demônios, e me traz poeira à qual o vento leva embora.

- Poeira? – Pyrrhas franziu a testa. Gimil-Ishbi pôs a mão sobre a pilha brilhante e riu; em algum lugar na noite, uma coruja gemeu. O sacerdote ergueu a mão. Sob ela, jazia uma pilha de pó amarelo que brilhava fracamente à luz do lampião. Um vento repentino se precipitou sobre as estepes, fazendo o lampião tremular e arrastando a pilha dourada para o alto. Por um instante, o ar foi ofuscado e enfeitado com as partículas brilhantes. Pyrrhas praguejou; sua armadura estava salpicada de pó amarelo; este cintilava por entre as escamas de sua cota-de-malha.

- Poeira, à qual o vento leva embora. – murmurou o sacerdote – Sente-se, Pyrrhas de Nippur, e vamos conversar um com o outro.

Pyrrhas olhou ao redor da sala estreita; para as pilhas planas e lisas de blocos de argila ao longo das paredes, e os rolos de papiro sobre elas. Logo, ele se sentou no banco de pedra, diante do sacerdote, deslocando o cinto da espada, de modo ao cabo desta ficar bem à frente

- Você está longe do berço de sua raça. – disse Gimil-Ishbi – É o primeiro nômade de cabelos dourados a pisar nas planícies de Shumir(3).

- Perambulei por muitas terras – murmurou o argivo –, mas os abutres arranquem meus ossos, se eu já vi uma raça tão dominada por demônios quanto esta, ou uma terra governada e assolada por tantos deuses e demônios.

Seu olhar estava fixo em deslumbramento nas mãos de Gimil-Ishbi: eram longas, finas, brancas e fortes – as mãos de um jovem. O contraste delas com a aparência idosa do sacerdote era vagamente perturbador.

- Para cada cidade, seus deuses e sacerdotes – respondeu Gimil-Ishbi –; e todos imbecis. Qual a importância dos deuses, para os quais a fortuna dos homens aumenta ou diminui? Por trás de todos os deuses dos homens; por trás da trindade primordial de Ea, Anu e Enlil, se escondem os deuses mais antigos, inalterados pelas guerras e ambições dos homens. Os homens negam o que não vêem. Os sacerdotes de Eridu, a qual é consagrada a Ea e à luz, não são mais cegos que os de Nippur, a qual é consagrada a Enlil, a quem consideram o lorde das Trevas. Mas ele é apenas o deus das trevas com as quais os homens sonham, não as verdadeiras Trevas que se escondem atrás de todos os sonhos e ocultam as verdadeiras e terríveis divindades. Vislumbrei esta verdade quando eu era um sacerdote de Enlil, motivo pelo qual me expulsaram. Há! Eles arregalariam os olhos, se soubessem quantos de seus adoradores se esgueiram até a mim pela noite, como você se esgueirou.

- Não me esgueiro para homem algum! – o argivo se indignou instantaneamente – Vim para comprar um amuleto. Diga o seu preço, maldito.

- Não fique furioso. – sorriu o sacerdote – Diga-me por que veio.

- Se você é tão abominavelmente sábio, já deveria saber. – resmungou o argivo, sem se acalmar. Logo, seu olhar se nublou, enquanto ele se lançava de volta à sua trilha emaranhada – Algum bruxo me amaldiçoou. – sussurrou ele – Quando eu cavalgava de volta de minha vitória sobre Erech, meu cavalo de guerra gritou e se assustou diante de Algo que ninguém viu, exceto ele. Logo, meus sonhos ficaram estranhos e monstruosos. Na escuridão do meu quarto, asas farfalhavam e pés se moviam furtivamente. Ontem, uma mulher enlouqueceu durante uma festa e tentou me apunhalar. Mais tarde, uma víbora se lançou do ar vazio e me atacou. Depois, nesta noite, aquela à qual os homens chamam de Lilitu veio ao meu quarto e zombou de mim com sua terrível gargalhada...

- Lilitu? – os olhos do sacerdote se iluminaram com um fogo meditativo; seu rosto de caveira se abriu num sorriso medonho – Realmente, guerreiro, eles planejam tua ruína na Casa de Arabu. Sua espada não consegue triunfar contra ela, nem contra seu amante Adart Lili. Na escuridão da meia-noite, os dentes dela acharão sua garganta. A gargalhada dela destruirá seus ouvidos, e seus beijos ardentes lhe murcharão como uma folha seca, soprada pelos ventos quentes do deserto. Loucura e morte serão o seu destino, e você descerá à Casa de Arabu, da qual ninguém retorna.

Pyrrhas se moveu inquieto, praguejando baixo e de forma incoerente.

- O que posso lhe oferecer, além de ouro? – ele resmungou.

- Muito! – os olhos negros brilharam; a boca-talho se torceu em alegria inexplicável – Mas devo fixar meu próprio preço, depois de ter lhe ajudado.

Pyrrhas assentiu com um gesto impaciente.

- Quem são os homens mais sábios do mundo? – perguntou abruptamente o sábio.

- Os sacerdotes do Egito, que rabiscam nos pergaminhos de lá. – respondeu o argivo.

Gimil-Ishbi sacudiu a cabeça; sua sombra caía sobre a parede, como a de um grande abutre se agachando sobre uma vítima moribunda.

- Ninguém é tão sábio quanto os sacerdotes de Tiamat, a quem os tolos pensam ter morrido há muito tempo sob a espada de Ea. Tiamat é imortal; ela reina nas sombras; ela estende suas asas escuras sobre seus adoradores.

- Não os conheço. – murmurou Pyrrhas, inquieto.

- As cidades dos homens não os conhecem; mas os lugares desolados os conhecem, os pântanos juncosos, os desertos pedregosos, as colinas e as cavernas. Para lá se movem furtivamente os alados da Casa de Arabu.

- Pensei que ninguém saísse daquela Casa. – disse o argivo.

- Nenhum humano retorna de lá. Mas os servos de Tiamat saem e entram ao bel-prazer deles.

Pyrrhas estava calado, refletindo sobre o lugar dos mortos, no qual os sumérios acreditavam: uma caverna vasta, poeirenta, escura e silenciosa, pela qual as almas dos mortos perambulavam para sempre, despojadas de todos os atributos humanos, sem alegria e sem amor, se lembrando de suas vidas anteriores apenas para odiarem todos os vivos, bem como seus atos e sonhos.

- Vou lhe ajudar. – murmurou o sacerdote. Pyrrhas ergueu a cabeça coberta pelo elmo e o encarou. Os olhos de Gimil-Ishbi não eram mais humanos que o reflexo da luz do fogo sobre poços subterrâneos de escuridão de breu. Seus lábios se encolheram como se ele olhasse com satisfação maligna para todas as aflições e misérias da humanidade: Pyrrhas o odiava, como um homem odeia a serpente invisível na escuridão.

- Ajude-me e diga seu preço. – disse o argivo.

Gimil-Ishbi fechou as mãos e as abriu; e, nas palmas, havia um casco de ouro, cuja tampa era presa por uma fivela enfeitada de jóias. Subitamente, ele abriu a tampa, e Pyrrhas viu que o casco estava cheio de pó cinza. Ele estremeceu sem saber o porquê.

- Este pó moído já foi o crânio do primeiro rei de Ur. – disse Gimil-Ishbi – Quando ele morreu, como até mesmo um necromante deve, escondeu o próprio corpo com todas as suas artes! Mas encontrei seus ossos em decomposição e, na escuridão acima deles, lutei contra sua alma como um homem luta contra uma píton à noite. Meu espólio era seu crânio, que continha segredos mais obscuros do que aqueles que jazem nas covas do Egito.

“Com este pó morto, você capturará Lilitu. Vá rapidamente a um local cercado... uma caverna ou um quarto... Não, aquela vila em ruínas, que fica entre este lugar e a cidade, servirá. Espalhe o pó em linhas finas pela soleira e janela; não deixe desprotegido nenhum ponto da largura da mão de um homem. Depois, se deite como se fosse dormir. Quando Lilitu entrar, como ela o fará, fale as palavras que vou lhe ensinar. Então, você se tornará dono dela, até libertá-la novamente ao repetir a invocação ao contrário. Você não pode matá-la, mas pode fazê-la jurar deixá-lo em paz. Faça-a jurar pelas tetas de Tiamat. Agora, se incline perto de mim, e eu lhe sussurrarei as palavras do encantamento”.

Em algum lugar na noite, um pássaro sem nome gritou asperamente; o ruído era mais humano que o sussurrar do sacerdote, o qual não era mais alto que o deslizar de uma víbora num limo lodoso. O argivo ficou por um instante como uma estátua de bronze. Suas sombras caíam juntas na parede, com o aspecto de um abutre curvado encarando um estranho monstro com chifres.

Pyrrhas pegou o casco e se levantou, envolvendo o manto escarlate ao redor de sua figura sombria, com seu capacete de chifres lhe emprestando uma impressão de ser anormalmente alto.

- E o preço?

As mãos de Gimil-Ishbi se tornaram garras, palpitando de intenso desejo.

- Sangue! Uma vida!

- Qual vida?

- Qualquer vida! Assim, o sangue jorra, e há medo e agonia, um espírito arrancado de sua carne palpitante! Tenho um preço para todos: uma vida humana! A morte é o meu êxtase; sacio minha alma com morte! Homem, moça ou recém-nascido. Você jurou. Cumpra seu juramento! Uma vida! Uma vida humana!

- Sim, uma vida!

A espada de Pyrrhas cortou o ar num arco flamejante, e a cabeça de abutre de Gimil-Ishbi caiu sobre a mesa de pedra. O corpo ficou ereto, esguichando sangue negro, e depois despencou pela pedra. A cabeça rolou pela superfície e caiu, com um baque surdo, sobre o chão. As feições miravam para o alto, congeladas numa máscara de terrível surpresa.

Lá fora, soou um grito medonho, quando o cavalo de Pyrrhas rompeu o cabresto e fugiu loucamente, correndo pela planície.

Da câmara obscura, com seus blocos de misteriosas escritas cuneiformes e papiros de hieróglifos obscuros, e dos restos do misterioso sacerdote, Pyrrhas fugiu. Quando subiu a escada entalhada e saiu à luz das estrelas, ele duvidou da própria sanidade.

Do outro lado da planície horizontal, a lua estava se erguendo, com um vermelho fosco, obscuramente acobreado. Um calor tenso e o silêncio dominavam a terra. Pyrrhas sentiu o suor frio lhe pingar profusamente da pele; seu sangue era uma corrente vagarosa de gelo em suas veias; sua língua lhe grudou no céu da boca. Sua armadura lhe pesava e seu manto era como um laço aderente. Praguejando incoerentemente, ele o arrancou de si; suando e tremendo, ele arrancou a armadura, pedaço por pedaço, e lançou-a para longe. Dominado por seus medos abismais, ele revertera ao primitivo. O verniz de civilização desapareceu. Usando apenas a tanga e a espada embainhada, ele andou a passos largos pela planície, levando o casco dourado sob o braço.

Nenhum som perturbava o silêncio expectante, quando ele chegou à vila arruinada, cujas paredes se erguiam cambaleantes por entre pilhas de entulho. Um compartimento se encontrava acima da ruína geral, deixado praticamente intocado por algum capricho do destino. Somente a porta fora arrancada de suas dobradiças de bronze. Pyrrhas entrou. O luar o seguia e deixava um brilho fraco portada adentro. Havia três janelas, com barras de ouro. Moderadamente, ele cruzou a soleira com uma fina linha cinza. Fez o mesmo com cada batente de janela. Então, jogando para o lado o casco vazio, ele se estirou num estrado desocupado que havia numa sombra profunda. Seu horror irracional estava sob controle. Ele, que havia sido a caça, agora era o caçador. A armadilha estava feita, e ele esperava por sua presa com a paciência do primitivo.

Ele não precisou esperar muito. Alguma coisa se agitava no ar, lá fora, e a sombra de grandes asas cruzou a portada iluminada pela lua. Houve um momento de tenso silêncio, no qual Pyrrhas ouviu o bater do próprio coração contra as costelas. Então, uma forma indistinta se emoldurou na porta aberta. Por um instante fugaz, ficou visível, e logo sumiu de vista. A coisa havia entrado; o demônio da noite estava dentro da câmara.

A mão de Pyrrhas apertava sua espada, quando ele se ergueu subitamente do estrado. Sua voz quebrou violentamente o silêncio, quando trovejou a obscura e enigmática invocação, sussurrada a ele pelo sacerdote morto. Ele foi respondido por um grito medonho; houve um rápido bater de pés descalços, e logo uma queda pesada, e algo estava se debatendo e contorcendo nas sombras sobre o chão. Quando Pyrrhas amaldiçoou a escuridão mascaradora, a lua lançou um aro escarlate sobre o batente de uma janela, feito um duende fitando uma, e um fluxo diluído de luz atravessou o chão. No pálido brilho, o argivo viu sua vítima.

Mas não era uma mulher-lobo que se contorcia lá. Era algo semelhante a um homem, esbelto, nu e de pele escura. Não diferia nos atributos de humanidade, exceto pela perturbadora flexibilidade dos membros e o brilho imutável dos olhos. Se arrastava como que em agonia mortal, com a boca espumando e o corpo se contorcendo em posições impossíveis.

Com um grito de fúria sanguinária, Pyrrhas correu até a figura e cravou-lhe a espada no corpo que se contorcia. A ponta retiniu no chão de ladrilho sob ele, e um uivo medonho explodiu dos lábios espumantes, mas esse foi o único efeito aparente da estocada. O argivo puxou sua espada, e olhou feroz e assombradamente, para não ver mancha alguma no aço, e nenhum ferimento no corpo pardo. Ele girou, quando o grito do cativo foi ecoado do lado de fora.

Logo de fora da soleira encantada, havia uma mulher nua, flexível e parda, com olhos grandes resplandecendo num rosto sem alma. A criatura no chão parou de se contorcer, e o sangue de Pyrrhas se congelou.

- Lilitu!

Ela tremia diante da soleira, como que presa por um limite invisível. Seus olhos eram eloqüentes de ódio: desejavam-lhe terrivelmente o sangue e a vida. Ela falou, e o efeito de uma voz humana, saindo daquela bela boca inumana, foi mais aterrorizante do que se um animal selvagem tivesse falado em língua humana.

- Você armou uma cilada para meu companheiro! Você ousa torturar Adart Lili, diante de quem os deuses tremem! Ah, você lamentará por isto! Você será dilacerado, osso por osso, músculo por músculo e veia por veia! Solte-o! Diga as palavras e o liberte, para que nem mesmo esta sina lhe seja negada!

- Palavras! – ele respondeu, com amarga selvageria – Você tem me caçado feito um sabujo. Agora, você não pode cruzar esta linha sem cair nas minhas mãos, como seu companheiro caiu. Venha para dentro da sala, vadia das trevas, e deixe-me acariciá-la, como faço com seu amante... assim! Assim! E assim!

Adart Lili espumava e uivava com a perfuração do aço afiado, e Lilitu gritava loucamente em protesto, batendo as mãos diante de uma barreira invisível.

- Pare! Pare! Ah, se eu pudesse chegar até você! Como eu faria de você um aleijado cego e mutilado! Chega! Peça o que quiser, e eu o farei!

- Está bem. – grunhiu sombriamente o argivo – Não posso tirar a vida desta criatura, mas parece que posso feri-la e, a menos que você me dê satisfações, darei a ele mais dor do que ele pensa existir no mundo.

- Peça! Peça! – insistiu a mulher-lobo, se contorcendo de impaciência.

- Por que me amaldiçoou? O que fiz para merecer seu ódio?

- Ódio? – ela agitou a cabeça – O que são os filhos dos homens para nós, de Shuala, odiarmos ou amarmos? Quando a ruína é solta, ela ataca cegamente.

- Então quem, ou o quê, soltou a ruína de Lilitu sobre mim?

- Alguém que mora na Casa de Arabu.

- Por que, em nome de Ymir? – praguejou Pyrrhas – Por que os mortos deveriam me odiar? – Ele parou, se lembrando de um sacerdote que morreu gorgolejando maldições.

- Os mortos atacam a mando dos vivos. Alguém que se move na luz do sol falou, à noite, com alguém que mora em Shuala.

- Quem?

- Eu não sei.

- Está mentindo, sua devassa! São os sacerdotes de Anu, e você os está protegendo. Por esta mentira, seu amante uivará com o beijo do aço...

- Carniceiro! – gritou Lilitu, em voz aguda – Detenha sua mão! Juro pelas tetas de Tiamat, a minha senhora, que eu não sei o que você pede. O que são os sacerdotes de Anu para eu protegê-los? Eu rasgaria as barrigas deles... como faria com a sua, se pudesse chegar até você! Liberte meu companheiro, e eu lhe guiarei para a própria Casa das Trevas, e você poderá arrancar a verdade da boca medonha do próprio morador, se você ousar!

- Eu irei – disse Pyrrhas –, mas deixo Adart Lili aqui, como refém. Se você me trapacear, ele vai se contorcer neste chão enfeitiçado por toda a eternidade.

Lilitu chorou de fúria, gritando:

- Nenhum demônio em Shuala é mais cruel que você. Rápido, em nome de Apsu!
Embainhando a espada, Pyrrhas atravessou a soleira. Ela agarrou-lhe o pulso com dedos feito aço alcochoado com veludo, gritando algo numa estranha língua inumana. Instantaneamente, o céu e planície enluarados foram apagados num grande movimento de escuridão gelada. Houve uma sensação de arremesso através de um vazio de frieza intolerável; um urro nos ouvidos do argivo, como de asas gigantescas. Logo, seus pés bateram contra chão sólido; a estabilidade seguiu aquele instante caótico, que havia sido como o momento de dissolução que junta ou separa dois estados de existência, iguais em estabilidade, mas em classe mais estranhos que o dia e a noite. Pyrrhas percebeu que, naquele instante, ele havia cruzado um golfo inimaginável, e que estava em terras nunca antes tocadas por pés humanos vivos.

Os dedos de Lilitu lhe agarravam o pulso, mas ele não conseguia vê-la. Ele estava numa escuridão de um tipo que jamais havia encontrado. Era quase palpavelmente suave, totalmente espalhada e totalmente envolvente. Estando no meio dela, não era fácil sequer imaginar a luz do sol, nem rios brilhantes, nem o capim cantando ao vento. Eles pertenciam àquele outro mundo – um mundo perdido e esquecido no pó de um milhão de séculos. O mundo de vida e luz era um capricho do destino – uma fagulha brilhante, ardendo momentaneamente num universo de poeira e sombras. Trevas e silêncio eram o estado natural do cosmo, e não a luz e os ruídos da Vida. Não era de se espantar que os mortos odiassem os vivos, os quais perturbavam a calma cinzenta do Infinito, com sua risada tilintante.

Os dedos de Lilitu o arrastavam através de escuridão abismal. Ele tinha uma vaga sensação, como a de estar numa caverna titânica, enorme demais para a compreensão. Ele sentia paredes e chão, embora não pudesse vê-los nem nunca alcançá-los; pareciam recuar à medida que ele avançava, embora sempre houvesse a sensação da presença de ambos. Às vezes, seus pés agitavam o que ele esperava ser apenas pó. Havia um cheiro empoeirado por toda a escuridão; ele cheirava os odores da decadência e do mofo.

Ele viu luzes se movendo como vermes incandescentes pela escuridão. Contudo, não eram luzes como ele conhecia o brilho. Eram mais como manchas de uma escuridão menor, que pareciam fosforescer apenas por contraste com as trevas envolventes, às quais salientavam sem iluminarem. Lenta e laboriosamente, rastejavam pela noite eterna. Alguém chegou muito perto dos companheiros, o cabelo de Pyrrhas se eriçou e ele agarrou a espada. Mas Lilitu não deu atenção, enquanto o conduzia apressadamente. A ponta fosca brilhou perto dele por um instante; ela iluminava vagamente um rosto indistinto, vagamente humano, embora estranhamente semelhante ao de um pássaro.

A existência se tornou algo obscuro e emaranhado para Pyrrhas, no qual ele parecia viajar por mil anos através da escuridão de poeira e decadência, puxado e guiado pela mão de uma mulher-lobo. Então, ele ouviu o murmúrio dela assobiar entre dentes, e ela parou.

Diante deles, tremeluzia outro daqueles estranhos globos de luz. Pyrrhas não sabia dizer se ele iluminava um homem ou um pássaro. A criatura estava ereta como um homem, mas estava coberta de plumas cinzas – pelo menos, pareciam mais plumas do que qualquer outra coisa. As feições não eram mais humanas que as deles eram de pássaro.

- Este é o morador de Shuala, que pôs sobre você a maldição dos mortos. – sussurrou Lilitu – Pergunte a ele o nome daquele que lhe odeia na terra.

- Diga-me o nome de meu inimigo! – indagou Pyrrhas, tremendo ao som da própria voz, que murmurava sombria e sobrenatural através da escuridão sem eco.

Os olhos do morto brilhavam, vermelhos, e o mesmo foi até ele com um farfalhar de penas de asas e um longo raio de luz, saltando de dentro da mão erguida do ser. Pyrrhas recuou, agarrando a espada, mas Lilitu sibilou:

- Não, use isto!

E ele sentiu um cabo enfiado entre seus dedos. Estava agarrando uma cimitarra de lâmina curva, em forma de lua crescente, que brilhava como um arco de fogo branco.

Ele aparou o ataque da coisa-pássaro, e fagulhas choveram na escuridão, queimando-o como partículas de fogo. As trevas se colaram nele como um manto negro; a incandescência do monstro emplumado o perturbava e frustrava. Era como enfrentar uma sombra no labirinto de um pesadelo. Somente o brilho ardente da lâmina de seu inimigo o protegia do toque deste. Por três vezes, cantou a morte em seus ouvidos, e ele a desviou por pouco; então, sua própria lâmina em forma de crescente cortou a escuridão e rangeu na articulação do ombro do outro. Com um grito agudo e estridente, a coisa deixou cair a arma e despencou bruscamente, com um líquido leitoso jorrando da ferida aberta. Pyrrhas ergueu novamente a cimitarra, quando a criatura arfou numa voz que não era mais humana que barras de galhos, sopradas umas contra as outras pelo vento:

- Naram-Ninub, o bisneto do meu bisneto! Através de artes negras, ele falou e me comandou através dos golfos!

- Naram-Ninub! – Pyrrhas ficou congelado de espanto. Novamente, os dedos de Lilitu se fecharam no pulso dele. Novamente, a escuridão foi afogada em trevas profundas e ventos uivantes soprando entre as esferas.

Ele cambaleou à luz da lua, do lado de fora da vila arruinada, oscilando com a vertigem de sua transformação. Ao seu lado, os dentes de Lilitu brilhavam entre os curvados lábios vermelhos. Agarrando as grossas madeixas amontoadas no pescoço dela, ele a sacudiu selvagemente, como faria com uma mulher mortal.

- Meretriz do Inferno! Qual a loucura que sua feitiçaria instilou em meu cérebro?

- Nenhuma loucura! – ela riu, empurrando-lhe o braço para um lado – Você viajou até a Casa de Arabu e retornou. Você falou e derrotou a espada de Apsu, a sombra de um homem morto há longos séculos.

- Então, não foi um sonho de loucura! Mas Naram-Ninub... – ele parou, em pensamento confuso – Por quê? De todos os homens de Nippur, ele tem sido meu mais leal amigo!

- Amigo? – ela zombou – O que é amizade, senão um fingimento agradável para entreter as horas ociosas?

- Mas por que, em nome de Ymir?

- O que são as intrigas insignificantes dos homens para mim? – ela exclamou furiosamente – Mesmo agora, lembro daqueles homens de Erech, envoltos em mantos roubados do palácio de Naram-Ninub.

- Ymir! – como um súbito fulgor de luz, Pyrrhas enxergou a razão, em impiedosa claridade – Ele ia vender Nippur para Erech, e primeiro ele teria que me colocar fora do caminho, pois as hostes de Nippur não são páreas para mim! Ah, cão, deixe minha faca achar seu coração!

- Confie em mim! – as importunações de Lilitu lhe afogaram a fúria – Confiei em você. Lhe guiei para onde nunca um homem vivo pisou, e lhe trouxe intacto. Traí os habitantes das trevas e fiz aquilo pelo que Tiamat me lançará nua numa grelha em brasa, por sete vezes sete dias. Fale as palavras e liberte Adart Lili!

Ainda absorto na traição de Naram-Ninub, Pyrrhas falou o encantamento. Com um suspiro alto de alívio, o lobisomem se levantou do chão de ladrilho e saiu ao luar. O argivo estava com a mão na espada e a cabeça baixa, perdido em pensamentos taciturnos. Os olhos de Lilitu lançaram uma rápida acepção ao companheiro. Ágil e silenciosamente, eles começaram a se aproximar do homem distraído. Algum instinto primitivo o fez erguer bruscamente a cabeça. Aproximavam-se dele, com os olhos ardendo e os dedos querendo alcançá-lo. Instantaneamente, ele percebeu seu erro: havia esquecido de fazê-los jurar trégua com ele; nenhuma praga os afastaria de sua pele.

Com guinchos felinos, eles atacaram, mas, mais veloz ainda, ele pulou para o lado e correu em direção à cidade distante. Tão ardentemente ansiosos pelo sangue dele para recorrerem à feitiçaria, eles o perseguiram. O medo lhe dava asas aos pés, mas, logo atrás de si, ele ouvia o rápido tropel dos pés deles, e o ofegar de ansiedade deles. Um súbito rufar de cascos soou distante dele e, irrompendo através de um pequeno bosque esfarrapado de palmeiras esqueléticas, ele quase se esbarrou contra um cavaleiro, o qual galopava feito o vento, com um longo brilho prateado na mão. Com uma praga sobressaltada, o cavaleiro puxou violentamente sua montaria para trás. Pyrrhas viu avultar diante de si um corpo poderoso, em malha de escamas; um par de olhos brilhantes, que o miravam sob um elmo em forma de cúpula, e uma curta barba negra.

- Seu cão! – ele gritou furiosamente – Maldito seja, veio completar, com sua espada, o que sua magia negra começou?

O cavalo se ergueu selvagemente, quando ele pulou em direção à cabeça do mesmo e lhe agarrou as rédeas. Praguejando loucamente e lutando para se manter equilibrado, Naram-Ninub deu uma cutilada em direção à cabeça de seu atacante, mas Pyrrhas desviou o golpe e estocou mortalmente para cima. A ponta da espada resvalou na couraça e arranhou todo o maxilar do semita. Naram-Ninub gritou em voz aguda e, esguichando sangue, caiu do cavalo que mergulhava. O osso da sua perna se quebrou, quando ele mergulhou pesadamente ao chão, e seu grito foi ecoado por um uivo exultante, vindo do pequeno bosque sombreado.

Sem puxar para baixo o cavalo que se erguia, Pyrrhas pulou sobre seu lombo e o fez girar com um puxão. Naram-Ninub estava gemendo e se contorcendo sobre o chão e, enquanto Pyrrhas olhava, duas sombras se arremessaram de dentro do bosque escuro e se agarraram à figura prostrada. Um grito terrível lhe irrompeu dos lábios, ecoado por uma gargalhada ainda mais medonha. Sangue no ar da noite; com ele, as coisas noturnas iriam se alimentar, selvagens feito cães loucos, sem fazer distinção entre homens.

O argivo girou e se afastou em direção à cidade; então, hesitou, sacudido por uma súbita reviravolta de sentimentos. A terra plana jazia imóvel sob a lua, e a rude pirâmide de Enlil se erguia em direção às estrelas. Atrás dele, jazia seu inimigo, saciando as presas dos horrores que ele próprio havia evocado dos Abismos. O caminho estava livre para Nippur, para seu retorno.

Seu retorno?... Para um povo dominado por demônios, rastejando sob os calcanhares de sacerdotes e do rei; para uma cidade corrompida por intrigas e por mistérios obscenos; para uma raça estranha que desconfiava dele, e uma amante que o odiava.

Girando novamente o cavalo, ele galopou para oeste, em direção às terras abertas, escancarando os braços num gesto de repúdio e de exultação de liberdade. O tédio da vida caiu dele como um manto. Sua cabeleira esvoaçava ao vento e, sobre as planícies de Sumer, se espalhou um som que eles nunca ouviram antes: a gargalhada borrascosa, elementar e imoderada de um bárbaro livre.


FIM




1) Argivo: Nome dado a quem nasce na cidade grega de Argos (Nota do Tradutor).

2) Também conhecidos como “povos do mar” (N. do T.).

3) O mesmo que Sumer ou Suméria (idem).




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fontes: http://gutenberg.net.au/ebooks06/0601771.txt
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