(por Robert E. Howard)
Os olhos frios de Kull, rei da Valúsia, se nublaram de perplexidade ao pousarem no homem que tão abruptamente se dirigira à presença real, e que agora se encontrava diante do rei, trêmulo de ira. Kull suspirou; ele conhecia os bárbaros que o serviam, afinal não era ele próprio um atlante de nascença? Brule, o Lanceiro, irrompendo rudemente na câmara do rei, havia arrancado de sua armadura quaisquer emblemas que lhe foram dados pela Valúsia, e agora estava despido de qualquer sinal que o mostrasse como aliado do império. E Kull sabia o significado deste gesto.
- Kull! – vociferou o picto, pálido de fúria – Quero justiça!
Kull suspirou novamente. Havia ocasiões em que paz e tranqüilidade eram coisas a serem desejadas, e em Kamula, ele achou que as tivesse encontrado. Kamula, a sonhadora... mesmo enquanto ele esperava o furioso picto continuar suas injúrias, os pensamentos de Kull vagavam de volta aos dias lânguidos e preguiçosos que haviam passado desde sua chegada a esta cidade montanhosa, cujos palácios de mármore e lápis-lazúli foram construídos, camada sobre camada, ao redor da colina em forma de cúpula que formava o centro da cidade.
- Meu povo tem sido aliado do império por mil anos! – o picto fez um gesto rápido e furioso com o punho fechado – Agora, um de meus guerreiros pode ser arrebatado debaixo do meu nariz, no próprio palácio do rei?
Kull se empertigou, sobressaltado:
- Que loucura é esta? Que guerreiro? Quem o capturou?
- Você precisa descobrir. – rosnou o picto – Num momento, ele estava lá, recostado contra uma coluna de mármore... no seguinte... záz! Havia desaparecido, deixando apenas um repugnante mau cheiro e um grito assustador como rastros.
- Talvez um marido ciumento... – ponderou Kull.
Brule interrompeu rudemente:
- Grogar nunca olhou para mulher alguma... nem mesmo as de sua própria raça. Estes kamulianos odeiam a nós, pictos. Eu vejo isto no olhar deles.
Kull sorriu:
- Você está sonhando, Brule; este povo é muito indolente e amante do prazer para odiar a alguém. Eles amam, cantam, compõem poemas... Suponho que você pensa que Grogar foi arrebatado pelo poeta Talígaro, a cantora Zareta ou o príncipe Mandara?
- Não me importo! – rosnou Brule – Mas isto eu lhe digo, Kull: Grogar derramou seu sangue feito água pelo império, e ele é o meu melhor chefe dos arqueiros montados. Vou achá-lo, vivo ou morto, mesmo que eu tenha de rasgar Kamula, pedra por pedra! Por Valka, darei esta cidade de alimento para as chamas, e apagarei as chamas com sangue...
Kull se ergueu de sua cadeira.
- Leve-me até o local onde viu Grogar pela última vez. – ele disse, e Brule cessou suas injúrias e, mal-humorado, mostrou o caminho.
Saíram da câmara, através de uma porta interna, e desceram um corredor sinuoso, lado a lado, tão diferentes no aspecto quanto dois homens poderiam ser, embora iguais na flexibilidade do movimento, na rapidez do olhar e na intangível selvageria que indicava o bárbaro.
Kull era alto, de ombros largos e peito profundo – volumoso, porém flexível. Seu rosto era marrom, devido ao sol e ao vento; seu negro cabelo, de corte reto, era como a juba de um leão; seus olhos cinzas, frios como uma espada lampejando através de braças de gelo.
Brule era típico de sua raça: de estatura média, constituído com a economia selvagem de uma pantera, e com a pele bem mais escura que a do rei.
- Estávamos no Salão das Jóias. – grunhiu o picto – Grogar, Manaro e eu. Grogar estava recostado contra uma coluna que havia dentro da parede, quando deslocou todo o peso contra a parede... e desapareceu diante de nossos olhos! Um painel virou para dentro, e ele sumiu... e tivemos apenas um vislumbre de negra loucura lá dentro, e uma cena repugnante fluiu momentaneamente para fora. Mas Manaro, que estava ao lado de Grogar, sacou a espada naquele momento, e enfiou a boa lâmina na abertura, de modo que o painel não se fechou completamente. Nós nos arremetemos contra ele, mas não cedeu e eu corri atrás de você, deixando Manaro segurar a espada dele na fenda.
- E por que você arrancou seus emblemas valusianos? – perguntou Kull.
- Eu estava furioso. – resmungou o lanceiro, mal-humorado e evitando os olhos de Kull. O rei acenou com a cabeça, sem responder. Era a atitude natural e irracional de um selvagem enfurecido, para o qual não aparece nenhum inimigo natural para ser cortado e dilacerado.
Adentraram o Salão das Jóias, cuja parede mais afastada ficava dentro da pedra natural da colina onde Kamula foi construída.
- Manaro jurou ter ouvido um sussurro como o de uma música. – grunhiu Brule – Lá está ele, inclinado e com o ouvido na rachadura. Olá, Manaro!
Kull franziu a sobrancelha, ao ver que o valusiano alto não mudou de posição nem deu atenção ao chamado. Estava realmente inclinado contra o painel, uma das mãos agarrando a espada que segurava a entrada secreta, e um dos ouvidos grudado na estreita fenda. Kull percebia a escuridão quase material daquela fina faixa de negrume – parecia-lhe que, além daquela abertura desconhecida, a escuridão se escondia como uma coisa viva e sensível.
Ele caminhou impaciente para diante, e deu uma pesada palmada no ombro do soldado. E Manaro estremeceu e se afastou da parede, indo cair duro aos pés de Kull, com os olhos vitrificados de horror, mirando inexpressivos para o alto.
- Valka! – praguejou Brule – Ele foi apunhalado... fui um tolo em deixá-lo sozinho aqui...
O rei sacudiu a cabeça leonina:
- Não há sangue nele... olhe para seu rosto.
Brule olhou e praguejou. As feições do valusiano morto estavam paralisadas numa máscara de horror... e a impressão era claramente a de um ouvinte.
Kull se aproximou cautelosamente da fenda na parede, e logo chamou Brule com um aceno. De algum lugar além daquele portal misterioso, saía um tênue e lastimoso som, semelhante ao de uma fantasmagórica música de flauta. Era tão fraco que mal se ouvia, mas trazia em sua música todo o ódio e veneno de mil demônios. Kull encolheu os gigantescos ombros.
Tradução: Fernando Neeser de Aragão
Fonte: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Kull%2001%20-%20Kull%20-%20FF.txt
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