(por Robert E. Howard e Lin Carter)
Introdução:
Após chegarem à margem leste do Rio Stagus, Kull e seu exército descobrem que o verdadeiro Fenar havia sido morto na Valúsia, enquanto Lala-ah dormia profundamente no mesmo país onde o farsuniano foi morto. A “dupla” à qual seguiam era, na verdade, o feiticeiro Thulsa Doom. Este invoca uma horda demoníaca, no intuito de exterminar o exército trazido pelo atlante, enquanto cruza espadas com Kull num duelo acirrado. Com a ajuda de Kelkor, o rei Kull derrota Thulsa Doom, e a morte do necromante destrói as hordas infernais por ele invocadas. Satisfeito, Kull nomeia Kelkor primeiro-comandante dos Matadores Vermelhos.
No caminho de volta à Cidade das Maravilhas, o imperador atlante da Valúsia resolve descansar na cidade de Kamula.
(Fernando Neeser de Aragão)
Os olhos frios de Kull, rei da Valúsia, se nublaram de perplexidade ao pousarem no homem que tão abruptamente se dirigira à presença real, e que agora se encontrava diante do rei, trêmulo de ira. Kull suspirou; ele conhecia os bárbaros que o serviam, afinal não era ele próprio um atlante de nascença? Brule, o Lanceiro, irrompendo rudemente na câmara do rei, havia arrancado de sua armadura quaisquer emblemas que lhe foram dados pela Valúsia, e agora estava despido de qualquer sinal que o mostrasse como aliado do império. E Kull sabia o significado deste gesto.
- Kull! – vociferou o picto, pálido de fúria – Quero justiça!
Kull suspirou novamente. Havia ocasiões em que paz e tranqüilidade eram coisas a serem desejadas, e em Kamula, ele achou que as tivesse encontrado. Kamula, a sonhadora... mesmo enquanto ele esperava o furioso picto continuar suas injúrias, os pensamentos de Kull vagavam de volta aos dias lânguidos e preguiçosos que haviam passado desde sua chegada a esta cidade montanhosa, cujos palácios de mármore e lápis-lazúli foram construídos, camada sobre camada, ao redor da colina em forma de cúpula que formava o centro da cidade.
- Meu povo tem sido aliado do império por mil anos! – o picto fez um gesto rápido e furioso com o punho fechado – Agora, um de meus guerreiros pode ser arrebatado debaixo do meu nariz, no próprio palácio do rei?
Kull se empertigou, sobressaltado:
- Que loucura é esta? Que guerreiro? Quem o capturou?
- Você precisa descobrir. – rosnou o picto – Num momento, ele estava lá, recostado contra uma coluna de mármore... no seguinte... záz! Havia desaparecido, deixando apenas um repugnante mau cheiro e um grito assustador como rastros.
- Talvez um marido ciumento... – ponderou Kull.
Brule interrompeu rudemente:
- Grogar nunca olhou para mulher alguma... nem mesmo as de sua própria raça. Estes kamulianos odeiam a nós, pictos. Eu vejo isto no olhar deles.
Kull sorriu:
- Você está sonhando, Brule; este povo é muito indolente e amante do prazer para odiar a alguém. Eles amam, cantam, compõem poemas... Suponho que você pensa que Grogar foi arrebatado pelo poeta Talígaro, a cantora Zareta ou o príncipe Mandara?
- Não me importo! – rosnou Brule – Mas isto eu lhe digo, Kull: Grogar derramou seu sangue feito água pelo império, e ele é o meu melhor chefe dos arqueiros montados. Vou achá-lo, vivo ou morto, mesmo que eu tenha de rasgar Kamula, pedra por pedra! Por Valka, darei esta cidade de alimento para as chamas, e apagarei as chamas com sangue...
Kull se ergueu de sua cadeira.
- Leve-me até o local onde viu Grogar pela última vez. – ele disse, e Brule cessou suas injúrias e, mal-humorado, mostrou o caminho.
Saíram da câmara, através de uma porta interna, e desceram um corredor sinuoso, lado a lado, tão diferentes no aspecto quanto dois homens poderiam ser, embora iguais na flexibilidade do movimento, na rapidez do olhar e na intangível selvageria que indicava o bárbaro.
Kull era alto, de ombros largos e peito profundo – volumoso, porém flexível. Seu rosto era marrom, devido ao sol e ao vento; seu negro cabelo, de corte reto, era como a juba de um leão; seus olhos cinzas, frios como uma espada lampejando através de braças de gelo.
Brule era típico de sua raça: de estatura média, constituído com a economia selvagem de uma pantera, e com a pele bem mais escura que a do rei.
- Estávamos no Salão das Jóias. – grunhiu o picto – Grogar, Manaro e eu. Grogar estava recostado contra uma coluna que havia dentro da parede, quando deslocou todo o peso contra a parede... e desapareceu diante de nossos olhos! Um painel virou para dentro, e ele sumiu... e tivemos apenas um vislumbre de negra loucura lá dentro, e uma cena repugnante fluiu momentaneamente para fora. Mas Manaro, que estava ao lado de Grogar, sacou a espada naquele momento, e enfiou a boa lâmina na abertura, de modo que o painel não se fechou completamente. Nós nos arremetemos contra ele, mas não cedeu e eu corri atrás de você, deixando Manaro segurar a espada dele na fenda.
- E por que você arrancou seus emblemas valusianos? – perguntou Kull.
- Eu estava furioso. – resmungou o lanceiro, mal-humorado e evitando os olhos de Kull. O rei acenou com a cabeça, sem responder. Era a atitude natural e irracional de um selvagem enfurecido, para o qual não aparece nenhum inimigo natural para ser cortado e dilacerado.
Adentraram o Salão das Jóias, cuja parede mais afastada ficava dentro da pedra natural da colina onde Kamula foi construída.
- Manaro jurou ter ouvido um sussurro como o de uma música. – grunhiu Brule – Lá está ele, inclinado e com o ouvido na rachadura. Olá, Manaro!
Kull franziu a sobrancelha, ao ver que o valusiano alto não mudou de posição nem deu atenção ao chamado. Estava realmente inclinado contra o painel, uma das mãos agarrando a espada que segurava a entrada secreta, e um dos ouvidos grudado na estreita fenda. Kull percebia a escuridão quase material daquela fina faixa de negrume – parecia-lhe que, além daquela abertura desconhecida, a escuridão se escondia como uma coisa viva e sensível.
Ele caminhou impaciente para diante, e deu uma pesada palmada no ombro do soldado. E Manaro estremeceu e se afastou da parede, indo cair duro aos pés de Kull, com os olhos vitrificados de horror, mirando inexpressivos para o alto.
- Valka! – praguejou Brule – Ele foi apunhalado... fui um tolo em deixá-lo sozinho aqui...
O rei sacudiu a cabeça leonina:
- Não há sangue nele... olhe para seu rosto.
Brule olhou e praguejou. As feições do valusiano morto estavam paralisadas numa máscara de horror... e a impressão era claramente a de um ouvinte.
Kull se aproximou cautelosamente da fenda na parede, e logo chamou Brule com um aceno. De algum lugar além daquele portal misterioso, saía um tênue e lastimoso som, semelhante ao de uma fantasmagórica música de flauta. Era tão fraco que mal se ouvia, mas trazia em sua música todo o ódio e veneno de mil demônios. Kull encolheu os gigantescos ombros. A música demoníaca fez sua pele formigar. Até o inexorável Brule ficou pálido de nojo, quando o som da flauta diabólica se infiltrou pela abertura.
- Parece o tipo de música, com cujo som dançam os mortos nos pisos escarlates do inferno. – disse, com um estremecimento incontido.
Kull encolheu os ombros e empurrou a parede de mármore cor-de-pêssego, que não se moveu. Apoiou o ombro contra a parede e empurrou. Poderosos feixes de músculos se avolumaram em seu pescoço, e lhe percorreram as costas e peito como sinuosas serpentes, sob as roupagens de brocado. Era como tentar empurrar um acantilado de granito puro. Brule adicionou a própria força às suas tentativas, mas isso tampouco serviu. Agora aborrecido, Kull tirou as roupas luxuosas, despindo um torso poderoso que brilhou como bronze azeitado sob a luz do sol.
Segurou o cabo da espada de Manaro e tentou usá-la como alavanca, mas também não conseguiu nada. Então, começou a tatear com as mãos ao longo da parede, junto à coluna, em busca da mola oculta na qual Grogar havia, sem dúvida, tropeçado. De repente, ouviu um clique metálico, abafado pela parede de pedra, e o painel se afastou para um lado ao se deslizar suavemente e girar sobre um dispositivo de rodas.
Um abismo negro se abriu diante deles, como a boca de um poço que conduz ao inferno dos mitos mais obscuros. Do interior daquela boca negra, saiu uma baforada de ar enjoativo e úmido, carregado com um indescritível odor fétido. E a horrível flauta pareceu soar então com mais força – mais próxima e misteriosa. Seu som espectral arrancou um calafrio glacial das costas de Kull.
Brule colocou um vaso de bronze na abertura, para que a porta secreta não se fechasse.
- O que faremos, Kull? – perguntou – Quer que eu vá buscar mais homens?
O rei negou com um gesto da cabeça, fazendo a cabeleira negra balançar de um lado a outro.
- Não podemos fazer isso, Brule. Enquanto perdemos tempo aqui, Grogar pode estar enfrentando... só Valka sabe o quê!
Brule sorriu com uma careta felina, e os dentes brancos flamejaram em seu rosto bronzeado.
- Bem, de qualquer forma, para que precisamos dos demais? Bastam você e eu, ó rei, juntos e com as espadas na mão.
Kull assentiu com um gesto, e seus olhos furiosos tentaram penetrar as trevas. Avançou um passo em direção àquela escuridão desconhecida.
- Vamos!
Brule só se atrasou o tempo necessário para pegar uma tocha resinosa do aro que a sustentava na parede. Acendeu-a com os carvões de um turíbulo de prata, e logo se lançou à boca escura da porta, atrás dos calcanhares de Kull.
Estavam sobre uma estreita plataforma de pedra sólida. Abaixo, um abismo negro parecia cair e cair, como se descesse às mais profundas entranhas da terra. Degraus de pedra desciam em espiral para a garganta daquele poço negro. Das profundezas desconhecidas, chegava até eles um ar frio e enjoativo, levando em suas asas invisíveis aquela misteriosa melodia. O rei e o guerreiro iniciaram a descida dos degraus de pedra em espiral, movendo-se em silencioso cuidado.
A escada era velha, muito velha. Os pés de muitas gerações haviam desgastado a pedra durante séculos. Um lodo pálido se agarrava à pedra úmida e escorregadia dos degraus, sob seus pés. Continuaram sua descida para a escuridão, passo a passo, com a tocha lançando faíscas de luz alaranjada, que jogavam uma luz oscilante e enganosa diante deles. As sombras se sacudiam e brincavam contra a parede de tosca pedra úmida.
De vez em quando, rudemente entalhados na parede, apareciam petróglifos monstruosos, vagamente blasfemos, misteriosamente estranhos, que lhes causavam arrepios nas costas. Era como se as mãos que os tivessem cinzelado fossem tão alienígenas e inumanas quanto as mentes, em cujas profundezas corrompidas se conceberam aqueles símbolos monstruosos.
O rei ficou tenso, seus olhos emitiam frias labaredas cinzas, ao mesmo tempo em que tentavam penetrar as profundezas escuras lá de baixo.
- Escute! O que foi isso?
O ulular fantasmagórico havia se elevado num crescendo de frenesi demoníaco, como um som rangente e agudo, que parecia querer rasgar os nervos, como os dedos dotados de garras de um harpista poderiam rasgar e quebrar as cordas de seu instrumento. No mais alto deste som agudo, perceberam um grito fantasmagórico que lhes gelou o sangue.
- Por Valka! – balbuciou Brule, embora sua exclamação fosse quase mais uma oração.
Tinha os olhos acesos e brancos sob a luz da tocha.
O grito morreu, transformado num gorgolejo, como se houvesse sido estrangulado por uma mão implacável. A ele, seguiu-se um silêncio mortal, enquanto os ecos reverberavam por todo o poço, e produziam uma torrente de ecos que o devorou todo. O ruído daquele grito fez o sangue gelar em suas veias. Era o último grito, cheio de desespero, de uma alma arrastada à margem definitiva do terror e da loucura. Kull jamais havia imaginado que, de lábios humanos, pudesse surgir tal nota de angústia e pânico impotente. Ele apertou as mandíbulas, e sua poderosa mão agarrou o cabo da espada, com uma fúria que lhe embranqueceu os nós dos dedos.
- Vamos! – ele grunhiu.
E continuou a descida pelos degraus cobertos de lodo escorregadio.
Finalmente, a escada espiralada terminou num chão uniforme de pedra umedecida, sumida numa negrura gelada. O oscilante brilho alaranjado da tocha revelou uma fileira dupla de colunas toscamente entalhadas, que se estendiam pela caverna escura como a poderosa sala de um templo obscuro de deuses antigos. Com as espadas em punho, os dois homens desceram rapidamente em direção a esta nave de colunas, tão vastas e poderosas quanto as árvores mais eretas e titânicas. Rostos monstruosos os contemplavam, profundamente talhados nas escuras pedras eretas. Não eram rostos humanos, observou Kull com um ar carrancudo. Mas não se deteve por isso.
No final, a nave de colunas se abria para um enorme anel de pedras eretas. No centro, havia um altar de cristal negro: um cubo gigantesco de obsidiana resplandecente. De cada lado, chamas gêmeas e azuladas piscavam em largas urnas de latão, ardendo na escuridão como os olhos acesos de uma besta gigantesca e inimaginável.
Brule agarrou o braço nu de Kull, fazendo esforço para reprimir uma exclamação.
Escondido sobre os degraus que conduziam ao altar, nu como um bebê, havia um homem sentado que tocava uma flauta. A cacofonia ululante e demoníaca de sua melodia enlouquecedora se elevava, insuportavelmente forte, batendo o cérebro como martelos amortecidos que golpeiam implacáveis a própria cidadela da razão. Kull emitiu um grunhido lá do fundo da garganta e viu, claramente revelado, o rosto do homem. O flautista lançou a cabeça para trás, extasiado, ao mesmo tempo em que aumentava o som de sua canção demoníaca.
Era o poeta Talígaro!
Talígaro, o poeta mimado, sedoso e lânguido, cujas rimas melindrosas traziam frenesi a toda esta metrópole de sonhos; Talígaro, o tímido e afetado poeta... agora encolhido como um animal, nu e coberto de suor, tocava a flauta como um bacante enlouquecido, prostrado servilmente diante de um altar pagão.
Então, apareceram os outros fiéis, que se deslizaram em grupos de dois e três, saindo de entre as colunas. Estavam envoltos em capas de veludo negro, com as cabeças encapuzadas. Mas, quando a melodia enlouquecedora se elevou num atropelado frenesi, tiraram as capas e começaram a se prostrar diante do reluzente cubo de cristal, da cor do ébano.
Lá estavam os nobres e senhores de Kamula: homens e mulheres com os quais participara de festas, com os quais havia conversado durante sua prolongada e indolente estadia nesta cidade erguida ao redor de uma colina. Lá estava o gordo Ergon, barão da costa setentrional, movendo-se como um sapo nu, fazendo balançar obscenamente sua pança gorda. E lá estava também Nargol, o filho de uma casa antiga e honrosa, completamente nu à luz das chamas gêmeas de safira. Nargol, que era sempre tão rígido e aristocrático!
Foi então que ele viu o que estava sobre o altar negro.
Era Grogar, que jazia esparramado, preso por argolas de ferro nos tornozelos e pulsos. Seu corpo nu brilhava de umidade, devido a centenas de diminutos cortes, que salpicavam sua figura de bronze com o cálido líquido gotejante do sangue. Tinha o rosto voltado para Kull, e quando o rei contemplou aqueles olhos de mirada fria e vazia, aquela mandíbula caída que deixava a boca aberta, percebeu, pela contração dos lábios, de onde havia surgido aquele grito horrível e agonizante, cheio de desespero, que tinham ouvido enquanto desciam pela escada de pedra, depois de ter tido que suportar tormentos inacreditáveis. E aquela coisa nua e salpicada de sangue se atropelava estupidamente e se deslizava lentamente sobre o altar negro, como a essência da cobra condenada que se deslizava sobre os solos de vermelho vivo do próprio inferno.
Dois olhos flamejaram! Kull ficou rígido, e um suor frio brotou em pequenas gotas sobre seu torso nu. Do alto do altar, brilharam duas esferas gêmeas, dotadas de uma pálida chama verde... e se moveram!
A aguda e rangente melodia da flauta se elevou mais ainda, como se tentasse atrair algo. Os dançarinos se entregaram a uma série de movimentos selvagens, com os braços erguidos e as cabeças jogadas para trás. Aquele rito horripilante estava a ponto de alcançar seu apogeu.
Lentamente, com uma ondulação que se torcia e enroscava sobre si mesma, o gigantesco verme desceu, deslizando-se pela pedra tosca da mais alta das colunas. Ninguém sabia de que greta desconhecida conseguira sair, mas a música e o movimento dos dançarinos o haviam feito sair de sua moradia tenebrosa.
A brilhante lesma negra, de trinta metros de comprimento, era como um rio deslizante de lodo gelado. Dois olhos em forma de discos brilhavam suavemente, acima da mandíbula aberta, da qual babava um líquido estragado e repugnante. Aquela coisa deslizante se dirigia lentamente ao altar.
Estremecido até o fundo de sua alma, Kull se perguntou quantos milhares de vezes, nas longas eras do passado, aquele pesadelo putrefato havia se arrastado para fora de seu esconderijo com a intenção de... alimentar-se.
Os antigos símbolos gravados nas paredes de rocha do abismo não eram tão estranhos para o rei, pois mesmo na distante e selvagem Atlântida, ele tinha ouvido pronunciar em voz baixa aquele nome terrível: Zogthuu! Zogthuu, o que se desliza na noite, o espantoso, repugnante e imortal deus-verme, cujo culto havia sido exterminado há muitos séculos... e que agora aparecia vivo nos negros abismos existentes sob Kamula!
O maligno verme, como um rio fétido de azeite negro, pairou sobre o altar, contemplando, com os olhos semicerrados, o picto nu. Apesar de sua loucura, Grogar viu e soube qual seria o horror definitivo, destinado a se tornar seu fim. Lançou um grito terrível, capaz de amedrontar a alma, e que deve ter lhe rasgado o pescoço...
Kull então se lançou como um tigre enfurecido!
O selvagem vermelho que havia nele despertou em seu peito. Uma fúria incontida se apossou dele como uma maldição rubra, nublou sua visão já turva e fez chegar a seus lábios um grunhido de ira bestial. Saltou como uma pantera e se plantou em meio aos dançarinos servis, prostrados ao seu redor, com a poderosa espada desembainhada. Os fiéis se lançaram sobre ele, mas seu aço relampejou à direita e esquerda, e os homens caíram para trás, agarrando os cotos dos quais brotava sangue, onde antes havia mãos.
Saltou até o pé do altar, onde Talígaro, com olhos de louco, o mirou inexpressivamente. O aço frio cruzou o ar, como um relâmpago, e sua labareda glacial afundou no pútrido coração do poeta. A flauta demoníaca caiu daqueles dedos que a seguravam debilmente, sem energia.
Logo, montou sobre o altar, ficando entre o impotente picto e a cabeça oscilante do verme horrendo. Aqueles olhos reluzentes e inumanos lhe miravam, com uma labareda de um jade fosforescente de intensidade brilhante. Kull devolveu o olhar, atravessando a penumbra que o envolvia, olhando para as profundezas, para a própria alma de Zogthuu. E lá, bem no fundo dos olhos do verme monstruoso, Kull viu algo que despertou um temor primitivo e petrificante em sua alma, um terror jamais experimentado por qualquer outro homem mortal; sua carne ficou paralisada, como se estivesse subitamente à mercê do forte sopro de um poderoso vento gelado, surgido das profundidades de pesadelo do abismo negro dos infernos cósmicos, situados além do espaço e do tempo.
Porque lá dentro, nos olhos ardentes do verme monstruoso, brilhava uma espantosa inteligência – fria, solitária e torturada além de todo tormento que se pudesse imaginar.
Uma bílis azeda se elevou, repugnante, na garganta de Kull. Pois, naquela repugnante longitude de baba gelatinosa, se escondia uma mente pensante, consciente e horrivelmente sensível.
Encerrar um cérebro vivo na prisão fétida desta coisa fantasmagórica constituía uma idéia que ultrapassava os efeitos de dez mil infernos. A este castigo eterno e imortal os deuses haviam condenado um dos seus, que devia ter cometido algum crime imemorável, cuja maldade ultrapassava toda imaginação humana.
Kull golpeou como um homem enlouquecido. O aço brilhante assobiou e afundou na massa gelatinosa, que não lhe ofereceu resistência alguma. Um enorme pedaço de substância fétida se desprendeu e caiu ao chão de pedra com um ruído surdo. Mas Zogthuu não pareceu sentir nada; sua palpitante carne amebóide não ofereceu a menor resistência ao aço de Kull. Os golpes, dados um atrás do outro como um pilão, atravessavam o verme demoníaco sem lhe causar dano algum.
A petrificada tristeza, que se escondia para sempre naqueles olhos terríveis e inteligentes, não desapareceu com nenhum pestanejar de dor. O reluzente corpo babante continuou deslizando sobre o altar, e as mandíbulas, babantes e sem presas, se abriram, em busca da carne de Kull.
Passo a passo, o rei se viu obrigado a recuar, até que seus ombros nus encostaram na superfície quente da alta urna de latão, onde bailavam umas chamas azuladas. Mais um momento, e o verme estaria sobre ele. Kull sabia que não podia rechaçar aquela coisa deslizante que avançava implacável. Tampouco Brule poderia ajudá-lo, pois, em algum lugar às suas costas, percebeu o ruído da luta do guerreiro picto, que detinha a horda de fiéis enlouquecidos. Sua mente buscou desesperadamente uma saída!
Zogthuu continuou fluindo até ele, como um rio lodoso de azeite negro, e então, um brilho de inspiração surgiu nos olhos de Kull. Voltou-se para um lado, no momento em que o verme demoníaco se lançava para a frente como uma cobra. Agarrou com as duas mãos a urna de latão e a sacudiu, soltando-a do pedestal e inclinando-a sobre aquela coisa negra e rastejante. A urna caiu em cheio sobre o lombo de Zogthuu.
O azeite se derramou da pesada urna, ensopando os ondulantes anéis negros da besta; e, um instante depois, o fogo seguiu o rastro brilhante do azeite derramado... e Zogthuu se incendiou como uma gigantesca tocha viva!
Uma labareda azul envolveu toda a longitude retorcida de seu corpo, de um extremo a outro, com flamas que chamuscavam e abrasavam como mil ferros de tortura ao vermelho vivo. E, agora sim, agora uma dor enlouquecida apareceu nos olhos reluzentes do verme. Durante todos os eons de pesadelo de sua existência eterna, Zogthuu talvez nunca houvesse experimentado a fúria de uma dor, exceto pelo tormento interno de sua alma, encerrada na repugnante prisão de um corpo inimaginavelmente asqueroso. Agora, uma aguda dor vermelha flamejava em seus olhos grandes; e as mandíbulas, sem presas nem língua, se abriram num grito silencioso.
O azeite havia encharcado profundamente a carne esponjosa e gelatinosa. Em poucos instantes, o enorme verme não era mais que uma massa de fluido ardente, que inundava o estrado, formando uma enorme poça pútrida de lodo ardente. Kull saltou como uma mola até onde estava Brule, ofegante, rodeado pela pilha de corpos ensangüentados dos fiéis mortos.
- Não resta nenhuma esperança para Grogar. – gemeu Brule – Aquele cão do Nargol me lançou uma adaga, me agachei para evitá-la e a lâmina afundou na garganta de Grogar.
- Que Valka acolha o espírito do pobre coitado. – disse Kull, carrancudo – Mas é melhor assim. Se estivesse vivo, não seria mais do que um doido varrido. Em troca, uma morte limpa, causada por uma lâmina de aço...
- Sim! É a morte de um guerreiro!
Kull apontou para a escada distante.
- Vamos sair deste maldito poço, antes que fiquemos assados.
Enquanto subiam a escadaria espiralada, a mente de Kull continuava se vendo perseguida por aquela coisa que ele tinha visto nos olhos moribundos de Zogthuu, apenas um instante antes do monstro se desintegrar numa confusa e estranha mistura de lodo ardente.
Perguntou a si mesmo se, por acaso, aquela inteligência torturada e triste, que havia existido durante eras incontáveis por trás daqueles olhos brilhantes, dentro de seu pútrido corpo de verme, lhe havia dirigido um último e imperturbável olhar de patética gratidão por ter lhe soltado, finalmente, de sua prisão repugnante, permitindo entrar assim na noite eterna da morte.
Talvez...
Acima deles, através da porta que ainda permanecia parcialmente aberta, entrava o ar fresco e limpo do mundo superior, e a luz brilhante do sol que iluminava um mundo onde, certamente, jamais poderiam existir os horrores que haviam presenciado lá embaixo.
Tradução: Fernando Neeser de Aragão
Fontes: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Kull%2001%20-%20Kull%20-%20FF.txt e http://www.ebooket.net/
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