O Estrangeiro Negro

(por Robert E. Howard)



1) Os Homens Pintados

Por um instante, a clareira estava vazia; no momento seguinte, um homem se encontrava cautelosamente posicionado no limite das moitas. Não houvera nenhum som para avisar os esquilos cinzentos da sua chegada. Mas os pássaros de cores alegres, que voavam ao redor, sob o sol do espaço aberto, se assustaram diante de sua súbita aparição e se ergueram numa ruidosa nuvem. O homem franziu a testa e olhou rapidamente para trás do caminho pelo qual viera, como se temendo que o vôo deles tivesse traído sua posição para alguém invisível. Então, ele andou furtivamente pela clareira, pisando com cuidado. Apesar de sua constituição pesada, ele se movia com a flexível resolução de uma pantera. Estava nu, exceto por um farrapo enrolado nos quadris; e seus membros estavam riscados, em linhas cruzadas, por arranhões de sarças e empastados com lama seca. Uma atadura, incrustada de marrom, estava amarrada ao redor de seu musculoso braço esquerdo. Sob a emaranhada cabeleira negra, seu rosto era contraído e magro, e seus olhos brilhavam como os de uma pantera ferida. Mancava levemente, enquanto seguia a trilha quase invisível que levava de um lado a outro do espaço aberto.

No meio da clareira, ele parou abruptamente e girou tão rápido quanto um gato, encarando o caminho pelo qual viera, quando um grito longo reverberou pela floresta. Para outro homem, pareceria meramente o uivo de um lobo. Mas este homem sabia que não era lobo. Ele era um cimério e entendia as vozes da selva, do mesmo modo que um homem da cidade reconhece a voz de seus amigos.

A fúria queimou vermelha em seus olhos injetados de sangue, enquanto ele voltava mais uma vez e se apressava pelo caminho, o qual, depois do declive, seguia ao longo do limite de uma densa moita que se erguia numa espessa massa de verdor, entre as árvores e as moitas. Um pesado tronco caído de árvore, profundamente encaixado na terra de grama, estava paralelo à margem da moita, situado entre esta e o caminho. Quando o cimério viu este tronco, parou e olhou para trás, por toda a clareira. Para o olho comum, não havia sinais de sua passagem; mas havia sinais visíveis para seus olhos aguçados pela selva, e portanto para os igualmente agudos olhos daqueles que o perseguiam. Ele rosnou silenciosamente, a fúria vermelha crescendo em seus olhos – a fúria berserk de uma fera caçada, pronta para ser encurralada.

Desceu a trilha com relativo descuido, esmagando aqui e ali uma folha de capim, com o pé. Logo, quando alcançou a extremidade do tronco, ele pulou sobre o mesmo, virou-se e correu despreocupadamente de volta, ao longo dele. A casca havia sido desgastada há muito tempo pelos elementos. Ele não deixou sinal que mostrasse ao mais aguçado olho daquela floresta que ele havia dobrado em seu caminho. Quando alcançou o ponto mais denso da moita, ele desapareceu como uma sombra, dificilmente o balanço de uma folha marcando-lhe a passagem.

Os minutos se arrastaram. Os esquilos cinzas tagarelavam novamente nos galhos – logo, aplanaram os corpos e ficaram subitamente mudos. Novamente a clareira era invadida. Tão silenciosamente quanto aparecera o primeiro homem, outros três homens se materializaram no canto leste da clareira. Eram escuros, de baixa estatura, com peitos e braços musculosos. Usavam tangas de pele de gamo, enfeitadas por contas, e uma pena de águia estava enfiada na negra cabeleira de cada um. Estavam pintados com desenhos hediondos, e pesadamente armados.

Haviam esquadrinhado cuidadosamente a clareira, antes de aparecerem em campo aberto, pois saíram dos matagais sem hesitação, em fila única e compacta, andando tão suavemente quanto leopardos e se curvando para olharem atentamente o caminho. Estavam seguindo a trilha do cimério, mas não era trabalho fácil, mesmo para estes sabujos humanos. Se moviam devagar pela clareira, e logo um deles se empertigou, grunhiu e apontou, com sua perfurante lança de lâmina larga, para uma folha pisada de capim, na qual a trilha adentrava novamente a floresta. Todos pararam instantaneamente, e seus olhos, negros como contas, procuraram pela muralha verde. Mas sua caça estava bem escondida; não viram nada que lhes despertasse a suspeita, e dali a pouco, se moveram novamente, seguindo as tênues marcas, que pareciam indicar que sua presa estava ficando descuidada, devido à fraqueza ou ao desespero.

Eles mal haviam passado pelo ponto onde a moita ficava mais perto da antiga trilha, quando o cimério saltou para dentro do caminho atrás deles e cravou sua faca entre as espáduas do último homem. O ataque foi tão rápido e inesperado, que o picto não teve chance de se salvar. A lâmina estava em seu coração, antes dele perceber que corria perigo. Os outros dois se voltaram com a instantânea rapidez dos selvagens, mas, mesmo enquanto o seu punhal afundava, o cimério deu um tremendo golpe com o machado de guerra em sua mão direita. O segundo picto estava se virando, quando o machado caiu. Este abriu-lhe o crânio até os dentes.

O picto remanescente – um chefe, a julgar pela ponta escarlate de sua pena de águia – atacou selvagemente. Estava dirigindo uma punhalada ao peito do cimério, enquanto este puxava o machado da cabeça do morto. O cimério arremessou o cadáver contra o chefe, e em seguida atacou tão furiosa e desesperadamente quanto a investida de um tigre ferido. O picto, cambaleando sob o impacto do cadáver contra ele, não tentou desviar o machado que caía. Com o instinto de matança submergindo até mesmo o de viver, ele dirigiu ferozmente a lança ao peito largo do inimigo. O cimério tinha a vantagem de uma inteligência maior, e uma arma em cada mão. A machadinha, detendo seu movimento para baixo, desviou a lança para o lado, e a faca na mão direita do cimério foi para o alto, rasgando a barriga pintada.

Um uivo medonho saiu dos lábios do picto, enquanto ele caía estripado – um grito, não de medo ou de dor, mas de fúria frustrada e bestial, o guincho de morte de uma pantera. Ele foi respondido por um coro selvagem de gritos, a alguma distância a leste da clareira. O cimério olhou convulsivamente e girou, se agachando como uma coisa selvagem encurralada, os lábios rosnando e sacudindo o suor do rosto. O sangue lhe escorria do antebraço sob a bandagem.

Com uma praga arfante e desconexa, ele deu meia-volta e fugiu para oeste. Ele não retomou seu caminho, mas correu com toda a velocidade de suas longas pernas, apelando para todas as inesgotáveis reservas de resistência, que são a compensação da Natureza para uma existência bárbara. Atrás dele, por um espaço de tempo, a mata estava em silêncio; logo, um uivo demoníaco explodiu no ponto que havia abandonado recentemente, e ele ficou ciente de que seus perseguidores encontraram os corpos de suas vítimas. Não teve fôlego para amaldiçoar as gotas de sangue que ficaram espalhadas pelo chão, vindas de seu ferimento recém-aberto, deixando um rastro que até uma criança poderia seguir. Ele pensara que talvez aqueles três pictos fossem os únicos que ainda o perseguiam, do bando de guerra que o havia seguido por mais de mil e seiscentos quilômetros. Mas ele deveria saber que estes lobos humanos nunca abandonam um rastro de sangue.

As árvores estavam quietas novamente, e aquilo significava que estavam correndo atrás dele, observando-lhe a trilha pelas traiçoeiras gotas de sangue que ele não conseguia deter. Um vento, vindo do oeste, soprou-lhe no rosto e estava carregado por uma umidade salina que ele reconheceu. Ele ficou imediatamente espantado. Se estava tão perto do mar, a longa perseguição havia sido ainda mais longa do que imaginara. Mas estava quase terminada. Mesmo sua vitalidade lupina estava diminuindo, devido ao terrível esforço físico. Ele ofegava e havia uma dor aguda em seu lado. Suas pernas tremiam de cansaço, e a que mancava doía como o corte de uma faca nos tendões, a cada vez que ele punha o pé no chão. Ele seguira os instintos da selva que o havia gerado, forçando todos os nervos e tendões, e exaurindo todas as astúcias e artifícios para sobreviver. Agora, em seu limite, ele estava obedecendo outro instinto, procurando um lugar para fazer frente aos perseguidores e vender sua vida por um preço sangrento.

Ele não abandonou a trilha para ir às profundezas emaranhadas do outro lado. Sabia que era inútil ter esperanças de escapar de seus perseguidores agora. Correu pela trilha, enquanto o sangue lhe pulsava cada vez mais forte nos ouvidos, e cada respiração era um doloroso ofego de secar os lábios. Atrás dele, irrompeu um louco latido grave, dando a impressão de que eles estavam próximos aos seus calcanhares e na expectativa de alcançarem rapidamente sua presa. Chegariam agora tão rápidos quanto lobos famintos, uivando a cada salto.

Impetuosa e abruptamente, ele saiu da espessura das árvores e viu, à sua frente, o solo se erguendo de forma abrupta, e a antiga trilha enroscando saliências rochosas para o alto, entre matacões irregulares. Tudo se aglomerava diante dele numa vertiginosa bruma vermelha, mas era uma colina que ele tinha de alcançar – um áspero penhasco, que se erguia abruptamente da floresta que lhe cercava a base. E a tênue trilha serpenteava para o alto, até uma vasta saliência próxima ao cume.

Aquela saliência seria um lugar tão bom para morrer quanto qualquer outro. Subiu manquejando pela trilha, usando mãos e joelhos nos locais mais íngremes, a faca entre os dentes. Ele ainda não alcançara a saliência, quando uns quarenta selvagens pintados saíram correndo entre as árvores, uivando como lobos. Ao verem sua presa, seus gritos se ergueram a um crescendo diabólico, e correram em direção ao pé do penhasco, lançando flechas enquanto se aproximavam. As setas choveram sobre o homem, que escalava obstinadamente, e uma delas se fincou na barriga de sua perna. Sem interromper sua subida, ele a puxou e lançou para um lado, sem se importar com os projéteis menos precisos que se estilhaçavam nas rochas ao seu redor. Implacavelmente, ele se arrastou para cima da beirada da saliência e girou ao redor, puxando sua machadinha e erguendo o punhal na mão. Deitou-se na beirada, olhando ferozmente para seus perseguidores; somente sua cabeleira emaranhada e olhos ardentes estavam visíveis. Seu peito ofegava, enquanto sorvia o ar em grandes e trêmulos ofegos, e ele apertou os dentes ao sentir náusea.

Somente umas poucas flechas assobiavam em sua direção. A horda sabia que sua presa estava encurralada. Os guerreiros avançaram uivando, pulando agilmente sobre as rochas ao pé da colina, com os machados de guerra nas mãos. O primeiro a alcançar o penhasco era um bravo musculoso, cuja pena de águia estava manchada de escarlate como um sinal de sua condição de chefe. Ele parou brevemente, um dos pés na trilha inclinada, flecha entalhada e parcialmente puxada para trás, a cabeça lançada para trás e os lábios abertos para um grito exultante. Mas sua seta jamais foi disparada. Ele ficou subitamente imóvel, e a sede de sangue em seus olhos negros deu lugar a um olhar de surpreendente reconhecimento. Com um grito, ele recuou, abrindo bem os braços para deter o avanço de seus bravos uivantes. O homem que se agachava na saliência acima deles entendia a língua picta, mas estava muito longe para entender o significado das frases ditas bruscamente pelo chefe de plumas escarlates.

Mas todos pararam com seus ganidos e, em silêncio, olharam fixamente para o alto – não para o homem na saliência, parecia-lhe. Então, sem maior hesitação, eles desarmaram os arcos e os enfiaram nos estojos de pele de gamo, em seus cintos; viraram as costas e correram pelo espaço aberto, para sumirem dentro da floresta sem olharem para trás.

O cimério olhou assombrado. Ele conhecia muito bem a natureza picta para não entender a finalidade expressa na retirada. Sabia que eles não voltariam. Estavam se dirigindo para suas aldeias, 1600 km a leste.

Mas ele não conseguia entender. O que havia lá, ao redor de seu refúgio, para fazer um bando de guerreiros pictos abandonar uma perseguição, que eles seguiram tão longe com toda a fúria de lobos famintos? Ele sabia haver lugares sagrados, pontos situados à parte como santuários pelos vários clãs, e que um fugitivo, se refugiando num destes santuários, estava a salvo do clã que o erguera. Mas as diferentes tribos raramente respeitavam santuários de outras tribos; e os homens que o perseguiram certamente não tinham pontos sagrados pertencentes a eles nesta região. Eram homens dos Águias, cujas aldeias ficavam bem distantes a leste, vizinhas à região dos pictos Lobos.

Foram os Lobos que o haviam capturado, numa incursão contra os povoados aquilonianos ao longo do Rio Trovão, e dado-o aos Águias, em troca de um chefe Lobo capturado. Os Águias tinham uma dívida de sangue contra o gigante cimério, e agora ela ficou ainda mais sangrenta, pois sua fuga custara a vida de um notável chefe de guerra. Foi por isso que eles o haviam seguido tão implacavelmente, sobre largos rios e colinas, e através de longas léguas de florestas sombrias, os territórios de caça de tribos hostis. E agora, os sobreviventes daquela longa perseguição viraram as costas, quando seu inimigo estava pego na armadilha. Ele sacudiu a cabeça, incapaz de entender.

Ele se ergueu cautelosamente, atordoado pelo longo esforço, e pouco capaz de compreender que havia acabado. Seus membros estavam rígidos e seus ferimentos, doloridos. Cuspiu secamente e praguejou, esfregando os ardentes olhos injetados em sangue com as costas de seu grosso pulso. Piscou e olhou ao seu redor. Sob ele, as selvas verdes ondulavam e se encapelavam numa massa sólida; e, acima de sua orla ocidental, se erguia uma névoa azul como aço, a qual ele sabia estar suspensa sobre o oceano. O vento agitava-lhe a cabeleira negra, e o penetrante odor salgado da atmosfera o reviveu. Ele estufou o enorme peito e o aspirou.

Logo, ficou rígido e dolorido, rosnando devido à pontada na barriga de sua perna, e foi investigar a saliência onde se encontrava. Atrás dela, se erguia um penhasco rochoso até a crista do mesmo, uns nove metros acima dele. Uma estreita escada de mão havia sido escavada dentro da rocha. E, a pouca distância do pé dela, havia uma fenda na rocha – larga e alta o suficiente para um homem entrar.

Ele claudicou até a fenda, olhou atentamente para dentro e grunhiu. O sol, no alto da floresta ocidental, se inclinava sobre a fenda, mostrando uma caverna em forma de túnel além dela, e descansava numa reveladora viga no arco onde o túnel acabava. Naquele arco, havia uma pesada porta de carvalho, revestida com ferro!

Isto era espantoso. Esta região era uma selva uivante. O cimério sabia que, por mais de mil e seiscentos quilômetros, esta costa ocidental era nua e inabitada, exceto pelas aldeias das ferozes tribos do litoral, que eram ainda menos civilizadas que suas irmãs das florestas.

Os povoados de civilização mais próximos eram os assentamentos ao longo do Rio Trovão, centenas de milhas a leste. O cimério sabia ser o único homem branco a cruzar a selva que ficava entre o rio e a costa. No entanto, aquela porta não era trabalho dos pictos.

Sendo inexplicável, era motivo de desconfiança, e desconfiadamente ele se aproximou, com o machado e a faca preparados. Então, quando seus olhos injetados em sangue ficaram mais acostumados à suave escuridão que se escondia em ambos os lados da estreita haste de luz solar, ele percebeu algo mais: grossas arcas cobertas de ferro se enfileiravam ao longo das paredes. Um brilho de compreensão apareceu em seus olhos. Curvou-se sobre uma, mas a tampa resistiu a seus esforços. Ergueu seu machado para despedaçar a antiga fechadura, mas logo mudou de idéia e manquejou em direção à porta arcada. Seu comportamento estava mais confiante agora, suas armas estavam penduradas em seus lados. Ele empurrou a porta adornadamente esculpida, e ela girou para dentro sem resistência.

Então, sua atitude mudou novamente, com a brusquidão de um relâmpago: ele recuou, praguejando assustadoramente, com a faca e o machado reluzindo ao assumirem posições defensivas. Por um instante, ficou parado ali, como uma estátua de ameaça feroz, esticando o sólido pescoço para olhar através da porta. Era mais escuro, na grande câmara natural para onde estava olhando, mas um brilho fraco emanava da grande jóia, que estava sobre um diminuto pedestal de marfim, no centro da grande mesa de ébano, ao redor da qual se sentavam aquelas formas silenciosas, cuja aparência havia surpreendido o intruso daquela forma.

Não se moviam; não viraram as cabeças em direção a ele.

- Bom – ele disse asperamente –, vocês estão bêbados?

Não houve resposta. Ele não era um homem fácil de se embaraçar, embora naquele momento se sentisse desconcertado.

- Vocês poderiam me oferecer um copo desse vinho que estão bebendo. – rosnou, com sua truculência natural despertada pelo embaraço da situação – Por Crom, vocês têm uma maldita falta de cortesia com um homem de sua própria irmandade. Vocês vão...?

Sua voz se arrastou até se calar, e em silêncio ele ficou encarando por um instante aquelas figuras bizarras, que se sentavam tão silenciosamente ao redor da grande mesa de ébano.

- Não estão bêbados. – murmurou pouco depois – Não estão sequer bebendo. Que brincadeira dos diabos é esta?

Ele adentrou a soleira e, no momento seguinte, estava lutando por sua vida, contra os invisíveis dedos assassinos que lhe agarravam a garganta.


2) Homens do Mar

Belesa agitava ociosamente uma concha marinha, com um gracioso dedão calçado com chinelo, comparando mentalmente suas delicadas bordas cor-de-rosa com a primeira névoa rosa do amanhecer, que se erguia sobre as praias brumosas. Não estava amanhecendo agora, mas o sol se erguera há não muito tempo, e as leves nuvens verde-pérola, que se arrastavam sobre as águas, ainda não tinham sido dispersas.

Belesa ergueu sua cabeça esplendidamente formada, e olhou fixamente para uma cena que lhe era estranha e repelente, embora sombriamente familiar em cada detalhe. De seus pés graciosos, as areias amarelas corriam para encontrar as suaves ondas envolventes, que se estendiam para oeste, até se perderem na bruma azul do horizonte. Ela se encontrava na curva meridional da grande baía, e ao sul dela, a terra subia até um baixo cume, que formava um chifre daquela baía. Daquele cume, ela sabia, dava para olhar na direção sul, pelas águas nuas – até distâncias de infinidade tão absoluta quanto a vista para oeste e norte.

Olhando apaticamente em direção à terra, ela distraidamente esquadrinhou a fortaleza que tem sido sua casa no último ano. Contra um vago céu da manhã pérola e azul, pairava a bandeira dourada e escarlate de sua casa – uma insígnia que não despertava entusiasmo em seu peito jovem, embora a mesma houvesse sido desfraldada sobre vários e sangrentos campos de batalha, no Sul distante. Ela notou as figuras de homens trabalhando nos jardins e campos que se amontoavam próximos ao forte, parecendo evitarem o abrigo sombrio da floresta que demarcava a faixa aberta sobre o leste, se estendendo para o norte e sul até onde sua visão podia alcançar. Ela temia aquela floresta, e aquele medo era compartilhado por todos naquele pequeno povoamento. Não era um medo fútil – a morte se escondia naquelas profundezas sussurrantes; morte rápida e terrível; morte lenta, horrenda, oculta, pintada, incansável e implacável.

Ela suspirou e caminhou apaticamente até a beira d’água, sem nenhum objetivo fixo na mente. Os dias que se arrastavam eram todos de uma só cor, e o mundo das cidades, cortes e alegrias parecia estar, não apenas a milhares de quilômetros, mas a longas eras de distância. Mais uma vez, tentou em vão entender o motivo que levara um conde de Zingara a fugir, com seus empregados, para esta costa selvagem, a mais de 1600 quilômetros da terra que o gerara, trocando o castelo de seus ancestrais por uma cabana de troncos de árvore.

Seus olhos se suavizaram com o leve ruído de pequenos pés nus sobre as areias. Uma jovem garota veio correndo sobre o cume baixo e arenoso, completamente nua, seu corpo esguio molhado e seu cabelo loiro umidamente emplastado em sua pequena cabeça. Seus olhos ansiosos estavam arregalados de agitação.

- Lady Belesa! – ela gritou, exprimindo as palavras zíngaras com um suave sotaque ophiriano – Oh, Lady Belesa!

Sem fôlego, devido à sua correria, ela gaguejou e fez gestos incoerentes com as mãos. Belesa sorriu e pôs um dos braços ao redor da criança, sem se importar por seu vestido de seda ter se encostado no corpo molhado e morno. Em sua vida solitária e isolada, Belesa aplicava a delicadeza de uma índole naturalmente carinhosa na pobre criança abandonada, que ela tirara das mãos de um amo brutal, encontrado naquela longa viagem desde as costas meridionais.

- O que está tentando me dizer, Tina? Recupere o fôlego, criança.

- Um navio! – gritou a menina, apontando para o sul – Eu estava nadando numa piscina que a maré deixou na areia, do outro lado do cume, e o vi! Um navio, vindo do sul!

Ela puxou timidamente a mão de Belesa, seu corpo delgado todo trêmulo; e Belesa sentiu o próprio coração bater mais rápido, diante do mero pensamento de um visitante desconhecido. Elas não tinham visto um navio, desde que chegaram a essa costa árida.

Tina correu na frente dela, sobre as areias amarelas, contornando as pequenas piscinas que as marés haviam deixado em rasos bancos de areia. Subiram o baixo cume ondulante, e Tina se equilibrou ali – uma delgada figura branca destacada contra o céu que clareava, o loiro cabelo molhado soprado contra seu rosto esguio, um delicado braço trêmulo esticado.

- Veja, milady!

Belesa já tinha visto: uma ondulante vela branca, preenchida pelo refrescante vento sul que batia ao longo da costa, a umas poucas milhas do ponto. Seu coração pulava. Uma coisa pequena pode ficar grande, em vidas isoladas e sem cor; mas Belesa sentiu uma premonição de acontecimentos estranhos e violentos. Sentiu que não era por acaso que este navio estava subindo esta costa solitária. Não havia cidade portuária ao norte, embora já se tivesse viajado para as longínquas praias geladas; e o porto mais próximo ao sul ficava a mais de 1600 quilômetros. O que trazia este forasteiro à solitária Baía de Korvela?

Tina se apertou contra sua senhora, a apreensão afligindo-lhe as feições esguias.

- Quem pode ser, milady? – gaguejou, com o vento colorindo-lhe as bochechas pálidas – É o homem a quem o conde teme?

Belesa olhou para baixo em direção a ela, com a testa ensombrecida.

- Por que diz isso, menina? Como sabe que meu tio teme alguém?

- Deve temer – respondeu Tina singelamente –, ou jamais viria se esconder neste lugar solitário. Veja, milady, como ele vem rápido!

- Temos que ir e informar meu tio. – sussurrou Belesa – Os barcos de pesca ainda não saíram, e nenhum dos homens viu ainda aquele navio. Vista-se, Tina. Depressa!

A criança desceu correndo o cume baixo, até a piscina natural onde tomava banho quando avistara a embarcação, e pegou os chinelos, túnica e cinto que deixara sobre a areia. Subiu de volta o cume, aos pulos, saltando grotescamente enquanto vestia as roupas escassas em meia-fuga.

Belesa, observando ansiosamente o navio que se aproximava, tomou-lhe a mão, e elas correram em direção ao forte. Poucos momentos após adentrarem o portão da paliçada de troncos de árvores, que cercava a construção, o clangor estridente da trombeta sobressaltou os trabalhadores nos jardins, e aos homens que acabavam de abrir as portas dos abrigos dos barcos, para empurrarem os botes de pesca pelos cilindros de rolagem até a beira d’água.

Todos os homens do lado de fora do forte abandonaram suas ferramentas, ou qualquer coisa que estivessem fazendo, e correram para a paliçada, sem pararem para olhar ao redor, por causa do alarme. As linhas dispersas de homens em fuga convergiram ao portão aberto, e todas as cabeças se curvavam por cima dos ombros, para olharem, temerosas, a fronteira escura de floresta ao leste. Nenhum olhou para o mar.

Se aglomeraram através do portão, gritando perguntas às sentinelas que patrulhavam as brilhantes saliências, construídas sob as pontas, perfiladas para cima, dos troncos verticais da paliçada.

- O que é? Por que estão nos chamando para dentro? Os pictos estão chegando?

Como resposta, um taciturno homem armado, vestido em couro desgastado e aço enferrujado, apontou para o sul. De sua posição elevada, o navio agora estava visível. Os homens começaram a galgar as saliências, olhando para o mar.

Numa pequena torre de vigia, no teto da casa feudal, que era feita de troncos como as outras construções, o Conde Valenso observava o navio que se aproximava, enquanto este rodeava o ponto do chifre meridional. O conde era um homem magro, duro e flexível como arame, de estatura mediana e no final da meia-idade. Era moreno, de expressão sombria. Os calções e o casaco eram de seda negra; a única cor ao redor de seus trajes eram as jóias, que brilhavam no cabo de sua espada, e o manto cor de vinho, lançado negligentemente sobre o ombro. Torceu nervosamente o fino bigode preto, e virou os olhos sombrios para seu senescal – um homem de feições coriáceas, vestido em aço e cetim.

- O que acha, Galbro?

- Uma nau. – respondeu o senescal – É uma nau, adornada e equipada como uma embarcação dos piratas barachos... olhe ali!

Um coro de gritos abaixo deles lhe ecoou a exclamação; o navio se afastara do ponto, e estava girando para dentro da baía. E todos viram a bandeira que subitamente se desdobrou do mastro: uma bandeira negra, com uma caveira escarlate brilhando ao sol.

As pessoas que estavam dentro da paliçada arregalaram involuntariamente os olhos, diante do terrível emblema; então, todos os olhos viraram para o alto, em direção à torre, onde o senhor do forte se erguia, sombrio, seu manto lhe batendo ao redor no vento.

- É baracha mesmo. – grunhiu Galbro – E, a menos que eu esteja louco, é o Mão Vermelha, de Strom. O que ele está fazendo nesta costa desolada?

- Ele pode não significar nenhum bem para nós. – resmungou o conde.

Uma olhada para baixo o mostrou que os portões maciços haviam sido fechados, e que o capitão de seus soldados, brilhando em aço, estava dirigindo seus homens, alguns para as saliências e alguns para as seteiras. Ele estava concentrando sua força principal ao longo da muralha oeste, no meio da qual ficava o portão.

Valenso fora seguido no exílio por cem homens: soldados, vassalos e servos. Destes, uns 40 eram soldados, que usavam elmos e trajes de malha, armados com espadas, machados e bestas. Os demais eram trabalhadores sem armadura, exceto por camisas de couro endurecido, mas estes eram robustos e vigorosos, e habilidosos no uso de seus arcos de caça, machados de lenhador e lanças para javalis. Tomaram seus lugares, franzindo as testas diante dos seus inimigos hereditários. Os piratas das Ilhas Barachas, um pequeno arquipélago próximo à costa sudoeste de Zingara, vinham pilhando o povo do continente por mais de um século.

Os homens na paliçada agarraram seus arcos ou lanças de caça, e olharam sombriamente para a nau que balançava-se em direção à costa, com seu acabamento em latão brilhando ao sol. Podiam ver as formas aglomeradas no convés, e ouvir os gritos vigorosos dos homens do mar. O aço cintilava ao longo do parapeito.

O conde havia se retirado da torre, enxotando a sobrinha e a ansiosa protegida desta, e, tendo colocado o elmo e a couraça, se dirigiu até a paliçada para comandar a defesa. Seus súditos o observavam com fatalismo melancólico. Pretendiam vender suas vidas tão caro quanto pudessem, mas tinham pouca esperança de vitória, apesar de sua posição privilegiada. Eram oprimidos por uma convicção de destino. Um ano naquela costa desolada, com a ameaça preocupante daquela floresta assombrada por demônios, que avultava constantemente às suas costas, havia nublado suas almas com presságios sombrios. Suas mulheres estavam em silêncio, nas portas de suas cabanas, construídas dentro da paliçada, e tranqüilizavam a gritaria de suas crianças.

Belesa e Tina observavam ansiosamente, de uma janela mais alta na casa feudal, e Belesa sentia o pequeno corpo tenso da criança se tremendo todo, dentro da curva de seu braço protetor.

- Eles vão ancorar perto da casa dos barcos. – murmurou Belesa – Sim! Lá vem a âncora, a uns 90 metros da praia. Não trema assim, criança! Eles não podem tomar o forte. Talvez queiram apenas água fresca e suprimentos. Talvez uma tempestade os tenha trazido para estes mares.

- Estão vindo à praia em longos botes! – exclamou a menina – Oh, milady, estou com medo! São homens grandes em armaduras! Veja como o sol brilha em suas lanças e elmos! Eles vão nos comer?

Belesa explodiu de rir, apesar da apreensão.

- Claro que não! Quem colocou essa idéia em sua cabeça?

- Zingelito me disse que os barachos comem mulheres.

- Ele estava caçoando de você. Os barachos são cruéis, mas não são piores que os renegados zíngaros, que se autodenominam bucaneiros. Zingelito foi um bucaneiro no passado.

- Ele era cruel. – murmurou a criança – Estou feliz que os pictos tenham cortado fora a cabeça dele.

- Cale a boca, criança. – Belesa tremeu ligeiramente – Você não deve falar desse jeito. Veja, os piratas alcançaram a praia. Estão se enfileirando lá, e um deles está vindo em direção ao forte. Aquele deve ser Strom.

- Ô do forte! – veio uma chamada, numa voz borrascosa como o vento – Venho sob uma bandeira de trégua!

A cabeça protegida do conde apareceu sobre as pontas da paliçada; seu rosto severo, emoldurado em aço, examinava sombriamente o pirata. Strom havia parado bem ao alcance dos ouvidos. Era um homem grande, com a cabeça descoberta e o cabelo claro soprado pelo vento. De todos os piratas que freqüentavam as Ilhas Barachas, nenhum era mais famoso por suas crueldades do que ele.

- Fale! – ordenou Valenso – Tenho pouca vontade de conversar com alguém da sua espécie.

Strom riu com os lábios, e não com os olhos.

- Quando seu galeão escapou de mim, naquele temporal perto de Trallibes no ano passado, nunca pensei em reencontrá-lo na Costa Picta, Valenso! – ele disse – Embora na ocasião, eu tivesse curiosidade em saber do seu destino. Por Mitra, se eu soubesse, teria lhe seguido na época! Fiquei sobressaltado, há pouco, quando vi seu falcão escarlate ondulando sobre uma fortaleza, onde eu havia imaginado não ver nada, exceto praia nua. Você já o encontrou, naturalmente.

- Encontrei o quê? – retrucou impacientemente o conde.

- Não tente ser hipócrita comigo! – A natureza violenta do pirata se mostrou por um momento, num lampejo de impaciência – Eu sei por que você veio aqui... e vim pela mesma razão. Não pretendo ser impedido. Onde está seu navio?

- Não é da sua conta.

- Você não tem nenhum. – afirmou o pirata com convicção – Vejo pedaços de mastros de um galeão nessa paliçada. Deve ter naufragado, de algum modo, depois que você desembarcou aqui. Se você tivesse um navio, já teria navegado para longe daqui, com sua pilhagem, há muito tempo.

- Do que está falando, maldito? – vociferou o conde – Minha pilhagem? Acaso sou um baracho, para queimar e saquear? Mesmo assim, o que eu iria saquear nesta costa desolada?

- Aquilo que você veio encontrar. – respondeu friamente o pirata – A mesma coisa que eu busco... e pretendo ter. Mas serei bondoso e negociarei: apenas me dê a pilhagem, e seguirei meu caminho e lhe deixarei em paz.

- Você deve ser louco. – rosnou Valenso – Vim para cá a fim de encontrar o isolamento e a solidão, dos quais desfrutei até você sair rastejando do mar, seu cão de cabelos amarelos. Vá embora! Não pedi nenhuma negociação com inimigos, e estou cansado desta conversa vazia. Leve sua corja e sigam seus caminhos.

- Quando eu for, deixarei esta choupana reduzida a cinzas fumegantes! – rugiu o pirata, num arrebatamento de fúria – Pela última vez: vai me dar o saque em troca de suas vidas? Tenho você encurralado aqui, e 150 homens prontos para lhes cortarem as gargantas sob minhas ordens.

Como resposta, o conde fez um gesto rápido com a mão, sob as pontas da paliçada. Quase instantaneamente, uma fecha zuniu virulentamente através de uma seteira e se estilhaçou na couraça de Strom. O pirata gritou ferozmente, pulou para trás e correu em direção à praia, com flechas assobiando ao seu redor. Seus piratas urraram e se juntaram a ele feito uma onda, as lâminas lampejando ao sol.

- Maldito seja, cão! – rugiu o conde, derrubando o ofendido arqueiro com seu punho vestido em ferro – Por que não atingiu a garganta dele? Depressa com seus arcos, homens... lá vêm eles!

Mas Strom havia alcançado seus homens, impedindo-lhes a investida precipitada. Os piratas se espalharam numa longa linha, que cobria parcialmente as extremidades da parede oeste, e avançaram cautelosamente, soltando as setas à medida que chegavam. Sua arma era o arco longo, e sua arte de atirar com arco e flecha era superior à dos zíngaros. Mas os últimos estavam protegidos por sua barreira. As longas flechas se curvavam sobre a paliçada e estremeciam verticalmente na terra. Uma delas atingiu a soleira da janela sobre a qual Belesa observava, arrancando um grito de medo de Tina, que se encolheu para trás, seus olhos grandes fixos na maligna seta vibrante.

Os zíngaros mandaram seus dardos e suas flechas de caça em resposta, apontando e soltando sem muita pressa. As mulheres haviam levado suas crianças para dentro de suas cabanas, e agora aguardavam, qualquer que fosse o destino que os deuses lhes reservavam.

Os barachos eram famosos por seu furioso e temerário estilo de batalha, mas eram tão cautelosos quanto furiosos, e não pretendiam desperdiçar sua força em vão, em ataques diretos contra as trincheiras. Eles mantinham sua formação bem espalhada, se arrastando e tirando vantagem de cada depressão natural e pedaço de vegetação – a qual não era muita, pois o chão fora desmatado em todos os lados do forte, para evitar traiçoeiros ataques pictos.

Uns poucos corpos jaziam na terra arenosa, pedaços de empunhaduras brilhando ao sol, setas se erguendo de axilas ou pescoços. Mas os piratas eram ágeis como gatos, sempre mudando suas posições, e estavam protegidos por suas armaduras leves. Seus tiros constantes eram uma ameaça contínua para os homens na paliçada. Contudo, era evidente que, se a batalha permanecesse uma troca de tiros de flechas, a vantagem permaneceria com os protegidos zíngaros.

Mas, descendo para o abrigo de barcos na praia, havia homens trabalhando com machados. O conde praguejou exaltado, ao ver a destruição que estavam fazendo entre os barcos dele, os quais haviam sido laboriosamente feitos com pranchas tiradas de toras sólidas.

- Os malditos estão fazendo um mantelete! – ele esbravejou – Um ataque agora, antes que eles o completem... enquanto ainda estão espalhados...

Galbro sacudiu a cabeça, olhando para os mal-armados homens de confiança e suas lanças toscas.

- Suas flechas nos deixariam crivados, e não somos páreos para eles na luta corpo-a-corpo. Devemos ficar atrás de nossos muros e confiar em nossos arqueiros.

- Boa idéia... – rosnou Valenso – Se conseguirmos mantê-los do lado de fora dos nossos muros.

Logo, a intenção dos piratas se tornou aparente para todos, quando um grupo de uns 30 homens avançou, empurrando diante deles um grande escudo, feito com as pranchas dos barcos, e as madeiras que a compunham o próprio abrigo de barcos. Haviam encontrado um carro de boi, e montado o mantelete sobre as rodas – grandes discos sólidos de carvalho. Enquanto o rolavam pesadamente diante deles, ele os escondia da visão dos defensores, exceto por vislumbres de seus pés em movimento.

Ele rolou até o portão, e a fileira irregular de arqueiros convergiu até ele, atirando enquanto seguiam caminho.

- Atirem! – gritou Valenso, pálido – Parem-nos, antes que alcancem o portão!

Uma tempestade de flechas zuniu pela paliçada, e os emplumou sem machucá-los, dentro da madeira grossa. Um grito zombeteiro respondeu à rajada. Setas encontravam seteiras agora, enquanto o resto dos piratas se aproximava, e um soldado cambaleou e caiu da beirada, arfando e asfixiado, com uma flecha de mais de 90 centímetros atravessada na garganta.

- Atirem nos pés deles! – gritou Valenso, e logo: – Quarenta homens para o portão, com lanças e machados! O resto, defenda o muro!

Flechas furavam a areia diante do escudo móvel. Um uivo sanguinário anunciou que uma delas havia encontrado seu alvo sob a borda, e um homem cambaleou à vista, praguejando e saltando, enquanto lutava para retirar a seta que lhe espetava o pé. Num instante, ele estava emplumado por uma dúzia de flechas de caça.

Mas, com um grito profundamente gutural, o mantelete foi empurrado até o muro, e um pesado pau-de-carga com ponta de ferro, enfiado através de uma abertura no centro do escudo, começou a ribombar no portão, empurrado por braços musculosos e recuado com fúria sanguinária. O portão maciço estalou e tremeu, enquanto, da paliçada, flechas choviam numa saraivada contínua, e algumas alcançavam o alvo. Mas os selvagens homens do mar estavam incendiados pela ânsia de batalha.

Com gritos intensos, eles balançavam o aríete e, de todos os lados, os outros se aproximavam, enfrentando corajosamente os tiros debilitados que vinham das muralhas, e atirando rápida e vigorosamente.

Praguejando como um louco, o conde pulou da muralha e correu para o portão, desembainhando a espada. Uma massa de soldados desesperados se juntou atrás dele, agarrando suas lanças. A qualquer momento, o portão iria ceder, e eles deveriam vedar o espaço com seus corpos vivos.

Então, uma nova nota adentrou o clamor do combate. Era uma trombeta, soando estridente do navio. Nos vaus reais, uma figura abanava os braços e gesticulava selvagemente.

Aquele som adentrou os ouvidos de Strom, mesmo enquanto ele usava sua força no aríete balouçante. Empregando os músculos poderosos, ele resistiu ao vagalhão de outros braços, firmando as pernas para deter o aríete em seu balanço para trás. Virou a cabeça, o suor pingando do rosto.

- Esperem! – ele rugiu – Esperem, malditos! Escutem!

No silêncio que se seguiu àquele bramido de boi, o clangor da trombeta foi claramente ouvido, assim como uma voz que gritava algo ininteligível para as pessoas dentro da paliçada.

Mas Strom entendeu, pois sua voz se ergueu novamente em comando blasfemo. O aríete foi abandonado, e o mantelete começou a recuar do portão, tão rapidamente quanto avançara.

- Veja! – gritou Tina, em sua janela, pulando em impetuosa empolgação – Estão correndo! Todos eles! Estão correndo para a praia! Veja! Abandonaram o escudo para longe do alcance! Estão pulando para dentro dos botes e remando para o navio! Oh, milady, nós ganhamos?

- Acho que não! – Belesa olhava fixamente para o mar – Olhe!

Ela afastou as cortinas para um lado e se inclinou na janela. Sua voz clara e jovem se ergueu acima dos gritos empolgados dos defensores; eles viraram as cabeças na direção em que ela apontou. Lançaram um grito intenso, ao verem outro navio contornar majestosamente a ponta sul. Mesmo enquanto olhavam, ele desdobrou a dourada bandeira real de Zingara.

Os piratas de Strom estavam se amontoando nos lados de sua nau e levantando âncora. Antes que o estranho houvesse avançado meio caminho na baía, o Mão Vermelha estava desaparecendo ao redor da ponta do chifre norte.


3) A Vinda do Homem Negro

- Para fora, rápido! – disse bruscamente o conde, puxando violentamente as trancas do portão – Destruam esse mantelete, antes que estes estranhos possam desembarcar!

- Mas Strom fugiu – advertiu Galbro –, e o outro navio é zíngaro.

- Faça como eu mando. – rugiu Valenso – Nem todos os meus inimigos são estrangeiros! Saiam, cães! Trinta de vocês, com machados, e façam uma boa lenha com aquele mantelete. Tragam as rodas para dentro da paliçada.

Trinta homens com machados correram para baixo, em direção à praia – homens musculosos, em túnicas sem mangas, seus machados brilhando ao sol. O ar de seu lorde havia sugerido uma possibilidade de perigo naquele navio que chegava, e havia pânico na pressa deles. O estilhaçar das madeiras, sob seus velozes machados, chegava claramente até as pessoas dentro do forte, e os homens com machados estavam correndo de volta pela areia, rolando as grandes rodas de carvalho diante deles, antes que o navio zíngaro ancorasse onde o navio pirata havia estado.

- Por que o conde não abre o portão e desce para encontrá-los? – perguntou Tina – Ele receia que o homem a quem teme possa estar naquele navio?

- O que quer dizer, Tina? – indagou Belesa, inquieta. O conde nunca havia se dignado a dar uma razão para seu auto-exílio. Ele não era o tipo de homem que fugia de um inimigo, embora tivesse muitos. Mas a convicção de Tina era inquietante; quase sobrenatural.

Tina parecia não ter ouvido sua pergunta.

- Os homens com machados estão de volta à paliçada. – ela disse – O portão está fechado e trancado novamente. Os homens ainda mantêm seus lugares ao longo da muralha. Se aquele navio estava perseguindo Strom, por que não foi atrás dele? Mas não é um navio de guerra. É uma nau, como o outro. Veja, um bote está chegando à praia. Estou vendo um homem na proa, envolto num manto escuro.

Após o bote alcançar terra firme, este homem veio subindo calmamente as areias, seguido por outros três. Era um homem alto, magro e vigoroso, vestido em seda negra e aço polido.

- Parados! – rugiu o conde – Negociarei sozinho com o líder de vocês!

O mais alto dos estranhos removeu o capacete e se curvou majestosamente. Seus companheiros pararam, puxando os longos mantos ao redor de si mesmos, e atrás deles, os marujos se curvaram sobre os remos e olharam para a bandeira que ondulava sobre a paliçada.

Ao chegar ao portão, bem ao alcance dos ouvidos:

- Ora! Certamente – ele disse – não deveria haver desconfiança entre cavalheiros nestes mares desolados!

Valenso olhou desconfiado para ele. O estranho era escuro, com um magro rosto de rapina e um fino bigode preto. Um cacho de renda estava dobrado em seu pescoço, e havia renda em seus pulsos.

- Eu lhe conheço. – disse Valenso lentamente – Você é Zarono Negro, o bucaneiro.

Mais uma vez, o estranho se curvou com majestosa elegância.

- E ninguém falharia em reconhecer o falcão vermelho dos Korzettas!

- Parece que esta costa se tornou o ponto de encontro de todos os velhacos dos mares do sul. – rosnou Valenso – O que deseja?

- Ora, vamos, por favor, senhor! – protestou Zarono – Esta é uma acolhida rude para alguém que acabou de lhe prestar um serviço. Não era aquele cão argoseano que estava há pouco tempo trovejando em seu portão? E ele não saltou de volta para o mar, quando me viu contornar o cabo?

- Verdade. – grunhiu o conde, de má vontade – Embora haja pouca diferença entre um pirata e um renegado.

Zarono riu sem ressentimento e torceu rapidamente o bigode.

- Você é áspero no falar, milorde. Mas desejo apenas ancorar em sua baía, para que meus homens procurem caça e água em suas florestas, e talvez, eu próprio beber um copo de vinho à sua mesa.

- Não vejo como posso hospedá-lo. – rosnou Valenso – Mas entenda isto, Zarono: nenhum homem de sua tripulação entra nesta paliçada. Se algum deles se aproximar menos de 30 metros, terá imediatamente uma flecha no estômago. E eu recomendo não causarem dano aos meus jardins ou ao gado nos currais. Três bois serão suficientes como carne fresca, e nada mais. E podemos defender este forte contra seus rufiões, caso você pense o contrário.

- Vocês não o estavam defendendo prosperamente contra Strom. – o bucaneiro salientou, com um sorriso zombeteiro.

- Você não encontrará madeira para fazer manteletes, a não ser que derrube árvores, ou a arranque de seu próprio navio. – assegurou sombriamente o conde – E seus homens não são arqueiros barachos; não são melhores arqueiros que os meus. Além disso, o pouco saque que você acharia neste castelo não valeria o preço.

- Quem está falando de saque e guerra? – protestou Zarono – Não, meus homens estão ansiosos para estirarem as pernas em terra firme, e quase com escorbuto por mastigarem carne de porco salgada. Eu garanto a boa conduta deles. Eles poderiam descer à praia?

Valenso, de má vontade, manifestou satisfação, e Zarono se curvou, ligeiramente sardônico, e se recolheu com um passo tão regular e imponente, como se andasse no polido chão cristalino da corte real de Kordava, onde de fato, a menos que os boatos mentissem, ele outrora havia sido uma figura familiar.

- Não deixe homem algum abandonar a paliçada. – Valenso ordenou a Galbro – Não confio naquele cão renegado. O fato de ele ter expulsado Strom do nosso portão não garante que ele não nos cortaria as gargantas.

Galbro assentiu com a cabeça. Ele era bastante sabedor da inimizade que existia entre os piratas e os bucaneiros zíngaros. Os piratas eram, em sua maioria, marinheiros argoseanos que se tornaram foras-da-lei. À antiga rixa entre Argos e Zingara somava-se, no caso dos flibusteiros, a rivalidade de interesses opostos. Ambas as raças pilhavam navios e cidades costeiras; e pilhavam uma à outra com igual voracidade.

Deste modo, ninguém se retirou da paliçada, enquanto os bucaneiros vinham à praia – homens de rostos escuros, em seda flamejante e aço polido, com faixas amarradas ao redor das cabeças e argolas de ouro nas orelhas. Acamparam na praia, mais de 170 deles, e Valenso notou que Zarono postou sentinelas em ambas as pontas. Não molestaram os jardins, e somente os três bois escolhidos por Valenso, que gritava da paliçada, foram mandados e abatidos. Fogueiras foram acesas na praia, e um barril de cerveja foi trazido à terra e aberto.

Outros barris menores foram enchidos com a água da fonte que jorrava a uma curta distância ao sul do forte, e os homens começaram a se espalhar em direção à floresta, com bestas nas mãos. Vendo isto, Valenso foi levado a gritar para Zarono, que caminhava de um lado a outro do acampamento:

- Não deixe seus homens adentrarem a floresta. Peguem outro boi nos currais, se não tiverem carne suficiente. Se pisarem na floresta, poderão se deparar com os pictos.

“Todas as tribos dos demônios pintados vivem por trás da floresta. Rechaçamos um ataque logo após desembarcarmos; e desde então, seis de meus homens foram assassinados na floresta, num momento ou outro. Há paz entre nós no momento, mas ela pende por um fio. Não se arrisque provocando-os”.

Zarono lançou um olhar sobressaltado à mata ameaçadora, como se esperasse ver hordas de figuras selvagens se escondendo lá. Então, ele se curvou e disse:

- Agradeço-lhe o aviso, milorde.

E gritou para seus homens voltarem, numa voz áspera que contrastava estranhamente com o elegante tom de voz dirigido ao conde.

Se Zarono pudesse penetrar a máscara de folhas, estaria mais apreensivo; se pudesse ter visto a figura sinistra lá escondida, que observava os forasteiros com olhos inescrutáveis – um guerreiro horrendamente pintado, nu exceto por uma longa tanga de pele de corça, com uma pena de tucano pendendo sobre a orelha esquerda.

Quando o anoitecer se aproximou, um fino deslizamento cinza se arrastou para o alto, vindo da linha do mar, e escureceu o céu. O sol se pôs num lamaçal escarlate, tingindo as pontas das ondas negras de sangue. A neblina se arrastou do céu e se enrolou aos pés da floresta, se enroscando ao redor da paliçada em pequenos feixes fumegantes. As fogueiras na praia brilhavam num vermelho fosco através da bruma, e o canto dos bucaneiros parecia amortecido e distante. Eles haviam trazido velhas lonas do navio, e feito com elas abrigos ao longo da costa, onde a carne ainda estava assando, e a cerveja concedida a eles por seu capitão estava distribuída economicamente.

O grande portão estava fechado e trancado. Soldados caminhavam impassíveis nas saliências da paliçada, lança no ombro e gotas de orvalho brilhando em seus gorros de aço. Olhavam inquietos para as fogueiras na praia, miravam mais fixamente em direção à floresta – agora uma vaga linha escura na névoa que se arrastava. O pátio interno estava vazio; um espaço nu e escurecido. Velas brilhavam fracamente através das fendas das cabanas, e a luz brotava das janelas da casa feudal. Havia silêncio, exceto pelo caminhar das sentinelas, o gotejar da água dos telhados e o canto distante dos bucaneiros.

Um fraco eco deste canto adentrava o grande salão, onde Valenso sentava-se para beber vinho, com seu convidado não-solicitado.

- Seus homens se divertem, senhor. – grunhiu o conde.

- Eles estão contentes em sentir outra vez a areia sob seus pés. – respondeu Zarono – Foi uma viagem cansativa... sim, uma longa e severa perseguição.

Ele ergueu gentilmente o copo de vinho para a garota não-receptiva, que se sentava à direita do anfitrião, e bebeu cerimoniosamente.

Criados impassíveis se alinhavam pelas paredes, soldados com lanças e elmos, servos com casacos de cetim. A casa de Valenso nesta terra selvagem era um vago reflexo da corte que possuía em Kordava.

A casa feudal, como ele insistia em chamá-la, era uma maravilha para aquela costa. Cem homens haviam trabalhado noite e dia, durante meses, construindo-a. Seu exterior, com paredes de troncos de árvores, era destituído de ornamentação; mas, por dentro, era uma cópia tão fiel quanto possível do Castelo de Korzetta. Os troncos que compunham a parede do salão eram escondidos por pesadas tapeçarias de seda, trabalhadas a ouro. Vigas do navio, tingidas e polidas, formavam as vigas do teto alto. O chão era coberto por ricos tapetes. A larga escada que subia do salão era igualmente atapetada, e sua sólida balaustrada havia sido outrora um parapeito do galeão.

Uma fogueira, na grande lareira, dissipava a umidade da noite. Velas no grande candelabro de prata, no centro da grande mesa de mogno, iluminavam o salão, lançando longas sombras na escada. O Conde Valenso se sentava na cabeceira daquela mesa, presidindo uma comitiva composta por sua sobrinha, seu convidado pirata Galbro e o capitão da guarda. A pequenez da comitiva realçava as proporções da enorme mesa, onde cinqüenta convidados poderiam se sentar confortavelmente.

- Você seguia Strom? – perguntou Valenso – Você o enxotou para este local tão distante?

- Eu seguia Strom – riu Zarono –, mas ele não estava fugindo de mim. Strom não é homem que foge de qualquer um. Não; ele veio à procura de algo; algo que também desejo.

- O que poderia atrair um pirata ou um bucaneiro a esta costa desolada? – resmungou Valenso, olhando para o conteúdo borbulhante de seu copo de vinho.

- O que poderia atrair um conde de Kordava? – retrucou Zarono, e uma luz ávida brilhou por um momento em seus olhos.

- A corrupção de uma corte real pode enojar a um homem de honra. – comentou Valenso.

- Os Korzettas de honra suportaram a corrupção dela com tranqüilidade, por muitas gerações. – disse Zarono, sem cerimônia – Milorde, satisfaça minha curiosidade: por que vendeu suas terras, encheu seu galeão com mobílias de seu castelo e viajou pelo horizonte, sem o conhecimento do rei e dos nobres de Zingara? E por que se instalou aqui, quando sua espada e seu nome poderiam cavar um lugar para você em qualquer terra civilizada?

Valenso manuseou distraidamente a corrente dourada em seu pescoço.

- Por que deixei Zingara – ele disse –, é assunto meu. Mas foi o azar que me deixou encalhado aqui. Eu havia trazido toda a minha gente para a terra firme, e muitas das mobílias que você mencionou, para construir habitação temporária. Mas meu navio, ancorado lá fora na baía, foi lançado contra os rochedos da ponta norte e destroçado por uma súbita tempestade que veio do oeste. Tais tempestades são bastante comuns em certas épocas do ano. Depois daquilo, não havia nada para se fazer, exceto ficar e fazer o melhor que pudesse.

- Então, você retornaria à civilização se pudesse?

- Não para Kordava. Mas talvez para alguma região distante... para Vendhya ou Khitai...

- Você não acha este lugar tedioso, milady? – perguntou Zarono, pela primeira vez se dirigindo diretamente a Belesa.

A ânsia de ver um novo rosto e ouvir uma nova voz havia trazido a jovem para o grande salão, nesta noite. Mas agora, ela desejaria ter permanecido no quarto de dormir, com Tina. Era inconfundível o significado do olhar que Zarono lançou para ela. Sua fala era decorosa e formal; sua expressão, serena e respeitosa. Mas não passava de uma máscara, através da qual se vislumbrava o espírito violento e sinistro do homem. Ele não conseguia afastar o ardente desejo dos olhos, quando mirava a aristocrática beleza jovem, em seu vestido de gola baixa e seu cinto cravejado de jóias.

- Há pouca diversão aqui. – ela respondeu em voz baixa.

- Se você tivesse um navio – Zarono perguntou abruptamente –, abandonaria esta instalação?

- Talvez. – admitiu o conde.

- Tenho um navio. – disse Zarono – Se pudéssemos chegar a um acordo...

- Que tipo de acordo? – Valenso ergueu a cabeça, para olhar desconfiado para seu convidado.

- Uma partilha por igual. – disse Zarono, pondo a mão sobre a mesa, com os dedos bem abertos. O gesto lembrava curiosamente uma grande aranha. Mas os dedos palpitavam com uma curiosa tensão, e os olhos do bucaneiro brilhavam com uma nova luz.

- Partilhar o quê? – Valenso o fitou, em evidente perplexidade – O ouro que eu trouxe comigo afundou em meu navio; e, ao contrário das pranchas quebradas, ele não foi lançado à costa.

- Não é isso! – Zarono gesticulou impacientemente – Vamos ser francos, milorde. Consegue fingir que foi o azar que lhe fez desembarcar neste determinado ponto, com mil milhas de costa para serem escolhidas?

- Não tenho necessidade de fingir. – respondeu Valenso friamente – O capitão de meu navio era Zingelito, outrora um bucaneiro. Ele havia navegado nesta costa e me persuadido a desembarcar aqui, me dizendo ter uma razão que ele mais tarde revelaria. Mas ele nunca divulgou este motivo, porque no dia seguinte ao nosso desembarque, ele desapareceu dentro da floresta, e seu corpo decapitado foi achado mais tarde por um grupo de caçadores. Obviamente, foi emboscado e morto pelos pictos.

Zarono olhou fixamente para Valenso por um intervalo de tempo.

- Bom – disse ele, finalmente –, eu acredito em você, milorde. Um Korzetta não tem habilidade para mentir, apesar dos seus demais talentos. E lhe farei uma proposta. Admito que, quando ancorei na baía, eu tinha outros planos em mente. Supondo que você já houvesse obtido o tesouro, eu pretendia tomar estrategicamente este forte e cortar todas as suas gargantas. Mas as circunstâncias me fizeram mudar de idéia... – ele dirigiu um olhar para Belesa, cujo rosto mudou de cor e ergueu a cabeça, indignada.

- Tenho um navio para lhe tirar do exílio – disse o bucaneiro –, com sua família e os dependentes que você escolher. Os restantes podem se sustentar sozinhos.

Os criados ao longo das paredes lançaram olhares apreensivos de esguelha, uns para os outros. Zarono prosseguiu, brutalmente cínico demais para dissimular suas intenções.

- Mas primeiro você deve me ajudar a obter o tesouro, pelo qual naveguei mil milhas.

- Que tesouro, em nome de Mitra? – reclamou o conde furiosamente – Você agora está falando igual àquele cão do Strom.

- Já ouviu falar em Tranicos O Sanguinário, o maior dos piratas barachos? – perguntou Zarono.

- Quem não ouviu? Foi ele quem assaltou a ilha do castelo do exilado príncipe Tothmekri, da Stygia, passou as pessoas no fio da espada e levou o tesouro que o príncipe havia trazido consigo, quando fugira de Khemi.

- Sim! E a história daquele tesouro levou os homens da Irmandade Vermelha a se aglomerarem feito abutres atrás de carniça: piratas, bucaneiros e até mesmo os corsários negros do Sul. Temendo ser traído por seus capitães, ele fugiu para o norte num navio, e desapareceu do conhecimento dos homens. Isso foi há quase cem anos.

“Mas a história insiste que um homem sobreviveu àquela última viagem, e retornou às Barachas, apenas para ser capturado por um navio de guerra zíngaro. Antes de ser enforcado, ele contou sua história e desenhou um mapa com seu próprio sangue, num pergaminho, que contrabandeara de alguma forma, longe do alcance de seu captor. Esta foi a história que ele contou: Tranicos viajara para muito além dos caminhos de navegação, até chegar a uma baía numa costa desolada, e lá ancorou. Desembarcou, levando seu tesouro e onze de seus capitães mais confiáveis que o haviam acompanhado em seu navio. Seguindo-lhe as ordens, o navio partiu, para retornar dentro de uma semana e buscarem o almirante dele, e seus capitães. Nesse meio tempo, Tranicos pretendeu esconder o tesouro em algum lugar nos arredores da baía. O navio retornou no tempo marcado, mas não havia sinal de Tranicos e seus onze capitães, exceto a tosca residência que eles haviam construído na praia.

“Esta havia sido demolida, e havia rastros de pés nus ao redor dela, mas nenhum sinal de luta. Nem havia lá qualquer sinal do tesouro, nem algum indício que mostrasse onde ele estava escondido. Os piratas mergulharam na floresta para procurarem por seu chefe e os capitães dele, mas foram atacados pelos selvagens pictos e mandados de volta ao navio. Desesperadamente, içaram âncora e fugiram navegando, mas antes que se aproximassem das Barachas, uma terrível tempestade fez o navio naufragar, e somente um homem sobreviveu.

“Esta é história do Tesouro de Tranicos, ao qual os homens têm procurado em vão por quase um século. Sabe-se que o mapa existe, mas seu paradeiro continua sendo um mistério.

“Só tive um único vislumbre daquele mapa. Strom e Zingelito estavam comigo, e um nemédio que navegava com os barachos. Estávamos observando-o na choupana de uma certa cidade portuária zíngara, na qual nos escondíamos, disfarçados. Alguém derrubou o candeeiro e alguém uivou no escuro; e, quando acendemos a luz novamente, o velho sovina que possuía o mapa estava morto com um punhal no coração, o mapa havia desaparecido, e os vigias noturnos desciam ruidosamente a rua com suas lanças, para investigarem o grito. Nos dispersamos, e cada um seguiu seu próprio caminho.

“Durante os anos posteriores, Strom e eu ficamos de olho um no outro, um achando que o outro tinha o mapa. Bom, não sei no que resultou, mas recentemente me veio a notícia de que Strom havia partido para o norte, e então eu o segui. Você viu o fim daquela perseguição.

“Tive apenas um vislumbre do mapa, quando ele estava na mesa do velho sovina, e não sei dizer nada sobre ele. Mas os atos de Strom mostram que ele sabe ser esta a baía onde Tranicos ancorou. Acredito que esconderam o tesouro em algum lugar nessa floresta e, ao retornarem, foram atacados e mortos pelos pictos. Os pictos não conseguiram o tesouro. Homens têm subido e descido um pouco esta costa, sem saber nada do tesouro, e nenhum ornamento de ouro ou jóia rara foi visto entre os bens das tribos costeiras.

“Esta é a minha proposta: vamos unir nossas forças. Strom está em algum lugar ao alcance, mantendo distância. Ele fugiu porque temia ser pego entre nós dois, mas irá voltar. Mas, aliados, nós podemos rir dele. Nós podemos trabalhar fora do forte, deixando homens suficientes aqui para defendê-lo se ele o atacar. Acredito que o tesouro esteja escondido por perto. Doze homens não conseguiriam carregá-lo para longe. Vamos encontrá-lo, colocá-lo em meu navio e viajar para algum porto estrangeiro onde eu possa encobrir meu passado com ouro. Estou cansado desta vida. Quero voltar para uma terra civilizada e viver como um nobre, com riquezas, escravos e um castelo... e uma esposa de sangue nobre”.

- Como? – indagou o conde, com os olhos semicerrados de suspeita.

- Dê-me sua sobrinha como minha esposa. – demandou o bucaneiro, sem cerimônias.

Belesa protestou abruptamente e ficou de pé. Valenso também se levantou, lívido, os dedos se juntando convulsivamente ao redor do copo de vinho, como se ele pretendesse lançá-lo em seu convidado. Zarono não se moveu; continuou sentado, com um braço sobre a mesa e os dedos curvados como garras. Seus olhos ardiam discretamente de paixão e com uma profunda ameaça.

- Como ousa?! – exclamou Valenso.

- Você parece esquecer que caiu de sua alta condição, Conde Valenso. – rosnou Zarono – Você não está na corte kordava, milorde. Nesta costa desolada, a nobreza é medida pelo poder dos homens e das armas. E lá estou. Estranhos caminham pelo Castelo Korzetta, e a fortuna Korzetta está no fundo do mar. Você morrerá aqui, como um exilado, a menos que eu lhe conceda o uso de meu navio.

“Você não terá motivo para se arrepender da união de nossas famílias. Com um novo nome e uma nova fortuna, descobrirá que Zarono Negro pode tomar o lugar dele entre os aristocratas do mundo, e ser um genro do qual nem mesmo um Korzetta precisa ter vergonha”.

- Você é louco para pensar nisso! – exclamou violentamente o conde – Você... o que há?

Um tropel de pés calçados em chinelos suaves, deslizando suavemente, distraiu sua atenção. Tina chegou apressadamente ao salão, hesitou quando os olhos do conde se fixaram furiosamente nela, fez uma profunda mesura e caminhou de lado ao redor da mesa até enfiar suas mãos pequenas entre os dedos de Belesa. Ela ofegava levemente, seus chinelos estavam molhados e o cabelo loiro emplastrado na cabeça.

- Tina! – exclamou Belesa, apreensiva – Onde você esteve? Pensei que estivesse no seu quarto há horas.

- Eu estava – respondeu a criança, ofegante –, mas perdi meu colar de coral, que você me deu... – Ela o levantou; uma bugiganga sem importância, mas valorizada mais do que suas outras posses, pois havia sido o primeiro presente de Belesa para ela – Eu tinha medo de você não me deixar ir, caso soubesse... a esposa de um soldado me ajudou, do lado de fora da paliçada, e voltamos... por favor, milady, não me faça contar quem era ela, porque prometi não fazê-lo. Encontrei meu colar próximo à poça onde tomei banho esta manhã. Por favor, me castigue, se eu errei.

- Tina! – suspirou Belesa, abraçando a criança – Não vou lhe castigar. Mas você não deveria ter ido para o lado de fora da paliçada, com aqueles bucaneiros acampados na praia, e sempre uma possibilidade dos pictos estarem se escondendo ao redor. Deixe eu lhe levar para seu quarto e trocar essas roupas molhadas...

- Sim, milady – murmurou Tina –, mas primeiro deixe-me contar pra você sobre o homem negro...

- O quê? – A surpreendente interrupção foi um grito que explodiu dos lábios de Valenso. Seu copo de vinho caiu ruidosamente ao chão, enquanto ele segurava a mesa com ambas as mãos. Se um raio o tivesse atingido, o porte do senhor do castelo não teria sido alterado de forma mais aguda e aterradora. Seu rosto estava lívido, e seus olhos quase saltando de sua cabeça.

- O que disse? – ele ofegou, olhando furiosa e selvagemente para a criança que se encolheu para trás, encostando-se em Belesa e desconcertada – O que você disse, menina?

- Um homem negro, milorde. – ela gaguejou, enquanto Belesa, Zarono e os criados o fitavam, pasmados – Quando desci à poça para pegar meu colar, eu o vi. Havia um estranho gemido no vento, e o mar choramingava feito uma coisa com medo, e então ele veio. Eu estava com medo, e me escondi atrás de uma baixa saliência de areia. Ele veio do mar, num estranho bote negro, com fogo azul tremulando por todo o seu redor, embora não houvesse tocha. Ele puxou seu bote até as areias sob a ponta sul, e caminhou em direção à floresta, parecendo um gigante na bruma... um homem grande e alto, negro como um kushita...

Valenso cambaleou como se tivesse recebido um golpe mortal. Apertou a própria garganta, quebrando a corrente dourada em sua violência. Com a careta de um louco, ele cambaleou sobre a mesa e, com um grito agudo, arrancou a criança dos braços de Belesa.

- Sua pequena vadia. – ele arfou – Está mentindo! Você me ouviu resmungar em meu sono, e disse esta mentira para me atormentar! Diga que está mentindo, senão lhe arranco a pele das costas!

- Tio! – gritou Belesa, em ultrajado assombro, tentando soltar Tina dele – Está louco? O que há com você?

Com um rosnado, ele puxou-lhe a mão do braço e a fez girar, trêmula, para os braços de Galbro, que a recebeu com um olhar de soslaio, o qual fez pouco esforço para disfarçar.

- Piedade, milorde! – soluçou Tina – Eu não menti!

- Eu disse que você mentiu! – rugiu Valenso – Gebbrelo!

O impassível criado agarrou a menina trêmula e despiu-a com um puxão violento e brutal, que arrancou-lhe as roupas sumárias do corpo. Girando, ele puxou-lhe os braços delgados acima dos seus ombros, erguendo-lhe bem acima do chão o corpo que se contorcia.

- Tio! – guinchou Belesa, se contorcendo em vão no aperto lascivo de Galbro – Você está louco! Você não pode... oh, você não pode!...

A voz ficou presa na garganta dela, quando Valenso pegou um chicote para cavalos, com o cabo cravejado de jóias, e o desceu sobre o frágil corpo da criança, com uma força cruel que deixou um vergão vermelho em suas costas nuas.

Belesa gemeu, nauseada com o tormento no grito estridente de Tina. O mundo ficou subitamente louco. Como num pesadelo, ela viu os rostos impassíveis dos soldados e criados, rostos de animais, rostos de bois, que não refletiam piedade nem simpatia. O rosto levemente zombeteiro de Zarono era parte do pesadelo. Nada naquela névoa escarlate era real, exceto o desnudo corpo branco de Tina, marcado com rubros vergões cruzados, dos ombros aos joelhos; nenhum som era real, exceto os agudos gritos de agonia da criança, e os ofegos de Valenso, enquanto ele chicoteava com os olhos arregalados de um louco, gritando de forma estridente:

- Você mente! Você mente! Maldita seja, você mente! Admita sua culpa, ou esfolarei seu corpo teimoso! Ele não pode ter me seguido aqui...

- Oh, tenha piedade, milorde! – gritava a menina, se contorcendo em vão nas musculosas costas do servente; desesperada demais pelo medo e dor para ter a prudência de se salvar mentindo. O sangue escorria em pingos escarlates por suas coxas trêmulas – Eu o vi! Não estou mentindo! Clemência! Por favor! Ahhhh!

- Seu imbecil! Imbecil! – gritou Belesa, quase de lado – Não vê que ela está dizendo a verdade? Ah, seu animal! Animal! Animal!

Subitamente, certo fragmento de sanidade pareceu retornar ao cérebro do Conde Valenso Korzetta. Deixando o chicote cair, ele cambaleou para trás e se esbarrou na mesa, agarrando cegamente a beirada da mesma. Ele tremeu como se estivesse febril. Seu cabelo estava emplastrado por toda a testa, em fios molhados, e o suor pingava de sua fisionomia pálida, que estava igual a uma esculpida máscara de Medo. Tina, solta por Gebbrelo, deslizou até o chão numa pilha choramingante. Belesa se desvencilhou de Galbro, correu soluçando até ela e caiu de joelhos, colhendo a lastimosa criança abandonada nos braços. Ela lançou um olhar terrível ao tio, derramando sobre ele os vasos cheios da sua ira – mas ele não a estava olhando. Ele parecia ter esquecido tanto ela quanto sua vítima. Atordoada pela incredulidade, ela o ouviu dizer ao bucaneiro:

- Aceito sua oferta, Zarono. Em nome de Mitra, vamos encontrar este maldito tesouro e partiremos desta costa amaldiçoada!

Diante disto, o fogo de sua fúria decaiu em cinzas aflitas. Num silêncio atordoado, ela ergueu a criança soluçante nos braços e carregou-a, subindo a escada. Um olhar para trás mostrou Valenso se agachando, mais do que se sentando, à mesa e engolindo vinho sofregamente, numa enorme taça à qual agarrava com as mãos trêmulas, enquanto Zarono se erguia sobre ele feito um sombrio pássaro de rapina – perplexo com o rumo dos acontecimentos, mas rápido em tirar vantagem da chocante mudança que acontecera com o conde. Estava conversando numa voz baixa e resoluta, e Valenso balançava a cabeça em mudo acordo, como se mal prestasse atenção no que estava sendo dito. Galbro estava atrás das sombras, o queixo entre o indicador e o polegar; e os criados ao longo das paredes olhavam furtivamente uns aos outros, perplexos com o colapso de seu senhor.

Lá em cima, em seu quarto, Belesa deitou a menina semi-desmaiada na cama e se sentou para lavar e aplicar suaves ungüentos nos vergões e cortes de sua pele tenra. Tina se entregou, em completa submissão, às mãos de sua senhora, gemendo fracamente. Belesa sentia como se seu mundo tivesse caído ao redor de seus ouvidos. Estava nauseada e perplexa, extremamente agitada, os nervos palpitando por causa do brutal sobressalto do qual fora testemunha. O medo e o ódio por seu tio lhe cresceram na alma. Ela nunca o amara; ele era rude e aparentemente desprovido de afeição natural, ganancioso e avarento. Mas ela o considerava justo e destemido. Uma reviravolta de sentimentos a sacudiu, ao lembrar dos olhos arregalados e rosto pálido. Foi algum medo terrível que havia despertado aquele frenesi; e, por causa deste medo, Valenso havia sido brutal com a única criatura a quem ela amava e tratava com carinho; por causa daquele medo, ele a estava vendendo, sua sobrinha, para um infame fora-da-lei. O que havia por trás daquela loucura? Quem era o homem negro que Tina havia visto?

A criança murmurou, num semi-delírio:

- Eu não menti, milady! Não menti mesmo! Era um homem negro, num bote negro que ardia como fogo azul na água! Um homem alto, escuro como um negro e envolto numa capa preta! Tive medo quando o vi, e meu sangue gelou. Ele deixou seu bote na areia e entrou na floresta. Por que o conde me chicoteou por tê-lo visto?

- Silêncio, Tina. – disse Belesa, suavemente – Fique quieta. A dor logo vai passar.

A porta se abriu atrás dela, e ela girou rapidamente, agarrando uma adaga cravejada de jóias. O conde parou na porta, e a pele dela se arrepiou ao vê-lo. Ele parecia anos mais velho; seu rosto estava cinzento e contraído, e seus olhos estavam arregalados de uma maneira que despertava medo no peito dela. Ela nunca esteve perto dele; agora, se sentia como se um abismo os separasse. Não era o tio dela que estava ali, mas um estranho que vinha ameaçá-la.

Ela ergueu a adaga.

- Se você tocá-la novamente – ela sussurrou, com os lábios secos –, eu juro diante de Mitra que afundarei esta lâmina em seu peito.

Ele não prestou atenção a ela.

- Coloquei uma forte guarda ao redor da casa feudal. – ele disse – Zarono trará seus homens para dentro da paliçada amanhã. Ele não zarpará até encontrar o tesouro. Quando ele achá-lo, navegaremos imediatamente para algum porto que ainda não foi escolhido.

- E você me venderá para ele? – ela sussurrou – Em nome de Mitra...

Ele cravou nela um olhar sombrio, no qual todas as considerações – exceto o seu próprio interesse pessoal – haviam sido dispersadas. Ela se encolheu diante disso, vendo nisso a desvairada crueldade que possuiu o homem, em seu medo misterioso.

- Você vai fazer o que eu mandar. – ele logo disse, com não mais sentimento humano em sua voz do que o bater da pedra no aço. E, virando-se, ele deixou o quarto. Cega por um súbito ataque de horror, Belesa caiu desmaiada ao lado da cama onde Tina estava deitada.


4) Soa um Tambor Negro
Belesa nunca soube por quanto tempo ficou oprimida e sem sentidos. Sua primeira percepção foi a dos braços de Tina ao seu redor e do soluço da criança em seu ouvido. Mecanicamente, ela se endireitou e pôs a menina entre seus braços; e se sentou lá, com os olhos secos e mirando invisivelmente a vela que tremulava. Não havia ruído no castelo. As canções dos bucaneiros na praia haviam parado. De forma cega e quase impessoal, ela reavaliou seu problema.

Valenso estava louco, desvairado pela história do misterioso homem negro. Era para escapar deste forasteiro que ele desejava abandonar o estabelecimento e fugir com Zarono. Isso era óbvio. Igualmente óbvio era o fato de que ele estava pronto para sacrificá-la, em troca de uma oportunidade para escapar. Na escuridão espiritual que lhe cercava, ela não viu brilho de luz. Os serventes eram insensíveis ou friamente brutos; suas mulheres, estúpidas e apáticas. Ela estava completamente desamparada.

Tina ergueu-lhe o rosto manchado de lágrimas, como se estivesse ouvindo o apelo de alguma voz interna. O entendimento que a criança tinha dos pensamentos mais íntimos de Belesa era quase sobrenatural, assim como seu reconhecimento do inexorável rumo do Destino e da única alternativa deixada para o fraco.

- Temos que ir, milady! – ela sussurrou – Zarono não lhe terá. Vamos para bem longe floresta adentro. Devemos ir até onde não pudermos mais, e então cairmos e morrermos juntas.

A trágica força que é o último refúgio do fraco adentrou a alma de Belesa. Era a única escapatória das sombras, que estavam se fechando sobre ela desde o dia em que haviam fugido de Zingara.

- Nós iremos, criança.

Ela se levantou e estava procurando por um manto, quando uma exclamação de Tina a sobressaltou. A menina estava de pé, um dedo pressionado aos lábios, os olhos arregalados e brilhando de terror.

- O que é, Tina? – A expressão de medo na criança induziu Belesa a entoar sua voz num sussurro, e uma apreensão sem nome fervilhou sobre ela.

- Alguém lá fora, no salão. – sussurrou Tina, agarrando-lhe convulsivamente o braço – Ele parou na nossa porta, e logo seguiu, em direção ao quarto do conde, na outra extremidade.

- Seus ouvidos são mais agudos que os meus. – murmurou Belesa – Mas não há nada de estranho nisso. Era talvez o próprio conde, ou Galbro.

Ela se moveu para abrir a porta, mas Tina lançou desvairadamente os braços ao redor de seu pescoço, e Belesa lhe sentiu o pulsar desenfreado do coração.

- Não, não, milady! Não abra a porta! Não sei por que, mas sinto que alguma coisa maligna está se escondendo perto de nós!

Impressionada, Belesa a afagou de forma tranqüilizante, e esticou uma das mãos em direção ao disco de ouro, que disfarçava o pequeno buraco no centro da porta.

- Ele está voltando! – disse a garota, tremendo – Estou ouvindo-o!

Belesa também ouviu algo – um curioso e furtivo caminhar que, ela percebeu com um calafrio de medo sem nome, não era o passo de ninguém a quem conhecesse. Nem era o passo de Zarono, ou de qualquer homem calçado. Poderia ser o bucaneiro, deslizando ao longo do saguão, com os pés descalços e furtivos, para matar seu anfitrião enquanto este dormia? Ela se lembrou dos soldados, que estariam de guarda lá embaixo. Se o bucaneiro tivesse permanecido na casa feudal à noite, um homem armado seria posto diante da porta de seu quarto. Mas, quem seria essa pessoa furtiva ao longo do corredor? Ninguém dormia no andar superior, a não ser ela, Tina e o conde, exceto Galbro.

Com um movimento rápido, ela apagou a vela, de modo que não brilhasse através do buraco na porta, e empurrou o disco de ouro para o lado. Todas as luzes estavam lá fora, no salão, o qual era comumente iluminado por velas. Alguém estava se movendo pelo corredor escurecido. Ela sentiu mais do que viu um vulto indistinto, passando por sua porta, mas não conseguiu perceber nada de sua forma, exceto que ela era humana. Mas uma onda fria de terror caiu sobre ela; então, se agachou emudecida, incapaz de soltar o grito que congelou atrás de seus lábios. Não era um terror como aquele que seu tio agora lhe causava, ou medo como o que sentia por Zarono, ou mesmo pela floresta que pairava. Era um terror cego e irracional, que punha uma mão gelada em sua alma e lhe congelava a língua no céu da boca.

A figura passou pelo topo da escada, onde ficou momentaneamente delineada contra a fraca incandescência que vinha de baixo; e, ao vislumbre daquela indistinta imagem negra contra o vermelho, ela quase desmaiou.

Ela se agachou ali, na escuridão, esperando o tumulto, o qual anunciaria que os soldados no grande salão haviam visto o intruso. Mas a casa feudal continuou em silêncio; em algum lugar, um vento gemeu estridente. Era tudo.

As mãos de Belesa estavam molhadas de suor, quando ela tateou para reacender a vela. Ainda estava abalada de horror, embora não conseguisse determinar o que havia naquela figura negra, destacada contra a incandescência vermelha, que despertara esta repugnância desvairada em sua alma. Ele era humano na forma, mas o contorno era extremamente estranho – anormal –, embora ela não pudesse definir claramente essa anormalidade. Mas ela sabia que não era um ser humano o que tinha visto, e sabia que aquela visão lhe roubara toda a resolução recém-adquirida. Ela estava desmoralizada, incapaz de agir.

A vela brilhava, delineando o rosto branco de Tina na incandescência amarela.

- Era o homem negro! – sussurrou Tina – Eu sei! Meu sangue gelou, como na hora em que eu o vi na praia. Há soldados no andar de baixo; por que eles não o viram? Devemos ir e informar o conde?

Belesa sacudiu a cabeça. Ela não queria que se repetisse a cena que se seguira à primeira menção de Tina sobre o homem negro. De qualquer forma, ela não ousava se aventurar em direção àquele corredor escurecido.

- Não devemos adentrar a floresta! – disse Tina, horrorizada – Ele estaria escondido lá...

Belesa não perguntou à menina como ela sabia que o homem negro estaria na floresta; era o esconderijo razoável para qualquer coisa má – homem ou demônio. E ela sabia que Tina estava certa: elas não ousariam deixar o forte agora. Sua decisão, que não havia vacilado diante da perspectiva da morte certa, se desfez diante do pensamento de atravessar algumas florestas sombrias, com aquela negra criatura cambaleante à solta entre elas. Sem saber o que fazer, ela se sentou e afundou o rosto nas mãos.

Tina dormiu logo depois, na cama, choramingando ocasionalmente em seu sono. Lágrimas brilhavam em seus longos cílios. Ela movia o corpo dolorido de forma inquieta, em seu sono agitado. Ao se aproximar a aurora, Belesa estava consciente de um atributo sufocante na atmosfera. Ela ouviu um baixo ribombar de trovão, em algum lugar fora da direção do mar. Apagando a vela, que havia queimado até seu encaixe, foi até uma janela, na qual podia ver tanto o oceano quanto uma faixa da floresta atrás do forte.

A bruma havia desaparecido, mas uma massa escura saía do mar e se erguia do horizonte. Um relâmpago saía dela, palpitando, e o trovão baixo rosnava. Um ribombar veio das florestas escuras, em resposta. Sobressaltada, ela se virou e olhou para a floresta: uma melancólica trincheira negra. Uma estranha cadência rítmica lhe chegou aos ouvidos – uma monótona reverberação, que não era o ribombar de um tambor picto.

- O tambor! – soluçou Tina, abrindo e fechando espasmodicamente os dedos em seu sono – O homem negro... batendo um tambor negro... nas florestas negras! Oh, salvem-nos...

Belesa estremeceu. Ao longo do horizonte leste, corria uma fina linha branca que anunciava o amanhecer. Mas aquela nuvem negra, na orla ocidental, se contorcia e encapelava, engrossando e se expandindo. Ela arregalava os olhos, assombrada, pois tempestades eram praticamente desconhecidas naquela costa àquela época do ano, e ela nunca tinha visto uma nuvem como aquela.

Vinha fluindo para cima sobre a orla do mundo, em grandes massas agitadas de negrume, riscadas com fogo. Rolava e se encapelava com o vento em seu bojo. Seu trovejar fez com que o ar vibrasse. E outro som se misturava terrivelmente com as reverberações do trovão – a voz do vento, que corria antes de sua chegada. O horizonte escuro era rasgado e abalado nos clarões relampejantes; no mar distante, ela viu as ondas de topo branco correrem diante do vento. Ouviu seu rugido monótono, aumentando de volume à medida que se arrastavam em direção ao litoral. Mas nenhum vento se movia na terra. O ar estava quente e parado. Havia uma sensação de irrealidade ao redor do contraste: lá fora, vento, trovão e caos se arrastando da terra; mas aqui, uma sufocante quietude. Em algum lugar abaixo dela, um postigo se fechou estrondosamente, assustando no tenso silêncio, e a voz de uma mulher se ergueu, aguda de sobressalto. Mas quase todas as pessoas do forte pareciam dormir, inconscientes do vendaval que se aproximava.

Ela percebeu que ainda ouvia aquela misteriosa e monótona batida de tambor, e olhou fixamente em direção à floresta negra, com a pele arrepiada. Não conseguia ver nada, mas algum instinto obscuro, ou intuição, a levou a imaginar uma figura negra e horrenda se acocorando sob galhos negros e entoando um encantamento sem nome, que soava feito um tambor...

Desesperadamente, ela se livrou da convicção vampiresca, e olhou em direção ao mar, enquanto a chama de um relâmpago dividia todo o céu. Perfilados contra seu clarão, ela viu os mastros do navio de Zarono; viu as tendas dos bucaneiros na praia, as elevações de areia da ponta sul e os rochedos da ponta norte tão claramente como sob o sol do meio-dia. Cada vez mais alto se erguia o rugido do vento, e agora a casa feudal estava acordada. Pés caminhavam apressados pela escada, e a voz de Zarono gritava, aguçada pelo medo.

Portas batiam e Valenso respondia a ele, gritando para ser ouvido acima do rugido dos elementos.

- Por que não me avisou que haveria uma tempestade, vinda do oeste? – urrou o bucaneiro – Se as âncoras não segurassem...

- Nunca veio tempestade do oeste antes, nesta época do ano! – guinchou Valenso, saindo apressadamente de seu quarto, com sua roupa de dormir, o rosto pálido e o cabelo se arrepiando – Isto é obra de... – Suas palavras foram afogadas, enquanto ele subia loucamente a escada que levava à torre de vigia, seguido pelo bucaneiro que praguejava.

Belesa se curvava em sua janela, atemorizada e ensurdecida. O vento se erguia cada vez mais sonoro, até abafar todos os outros sons – todos, exceto aquele enlouquecido som grave, que agora se elevava num canto inumano de triunfo. Rugiu em direção à costa, arrastando diante de si uma espumante e longa crista branca de uma légua – e então, todo o inferno e destruição foram lançados naquela costa. A chuva caiu em torrentes, varrendo as praias num frenesi cego. O vento batia feito uma trovoada, fazendo as vigas do forte estremecerem. A rebentação rugiu sobre a areia, afogando os carvões das fogueiras que os homens do mar haviam feito. No clarão do relâmpago, Belesa viu, através da cortina de chuva cortante, as tendas dos bucaneiros serem rasgadas em tiras e arrastadas pelas águas; viu os próprios homens cambaleando em direção ao forte, quase derrubados à areia pela fúria da torrente e do vendaval.

E, delineado contra o clarão azul, ela viu o navio de Zarono, arrancado de seu ancoradouro e lançado de ponta-cabeça contra os penhascos denteados que se salientavam para recebê-lo...


5) Um Homem da Selva

A tempestade havia esgotado sua fúria. A aurora se erguia livre, num claro céu azul e sem chuva. Enquanto o sol se levantava com um brilho de ouro fresco, pássaros de cores brilhantes se erguiam, num coro volumoso, das árvores nas quais folhas largas, com gotas de água, brilhavam como diamantes, estremecendo na suave brisa matinal.

Num pequeno curso d’água, que serpenteava sobre a areia, escondido por uma orla de árvores e moitas, um homem se curvava para lavar as mãos e rosto. Ele fazia suas abluções à maneira de sua raça, grunhindo luxuriosamente e chapinhando como um búfalo. Mas, em meio a essas pancadas na água, ele levantou subitamente a cabeça, seu cabelo claro pingando e a água correndo em fios pelos ombros musculosos. Agachou-se para escutar, por uma fração de segundo; logo estava de pé e olhando para dentro, espada na mão, tudo em um só movimento. Então, ele se congelou, olhando ferozmente com a boca aberta.

Um homem tão grande quanto ele caminhava em sua direção sobre a areia, sem se preocupar em ser furtivo; e os olhos do pirata se arregalaram, enquanto fitava-lhe as calças justas de seda, as botas de cano alto, o casaco de aba larga e o chapéu de cem anos atrás. Havia um largo sabre de abordagem na mão do forasteiro, e um propósito inconfundível em sua aproximação.

O pirata ficou pálido, enquanto o reconhecimento lhe brilhava nos olhos.

- Você! – exclamou, incrédulo – Por Mitra! Você!

Pragas escorreram de seus lábios, enquanto erguia o sabre. Os pássaros se ergueram das árvores, numa saraivada flamejante, quando o estrondo do aço lhes interrompeu o canto. Faíscas azuis voavam das lâminas cortantes, e a areia rangia e era moída sob os triturantes calcanhares das botas. Então, o entrechocar do aço terminou sob o rangido de um corte, e um homem caiu de joelhos com um arquejo sufocado. O cabo da espada lhe caiu da mão frouxa, e ele deslizou de corpo inteiro sobre a areia, que se avermelhou com seu sangue. Com um esforço moribundo, ele remexeu o cinto e puxou algo do mesmo, tentando levá-lo à boca, e em seguida se enrijeceu convulsivamente e amoleceu.

O vencedor curvou-se, e implacavelmente separou os dedos enrijecidos do objeto que eles amarrotaram em seu desesperado aperto.


Zarono e Valenso estavam na praia, olhando para a madeira flutuante que seus homens estavam recolhendo – vergas, pedaços de mastros, pranchas quebradas. A tempestade batera tão selvagemente o navio de Zarono contra os baixos rochedos, que muito do que foi salvo era madeira estilhaçada. A pouca distância deles se encontrava Belesa, ouvindo-lhes a conversa e com um braço ao redor de Tina. A garota estava pálida e apática, indiferente a qualquer Destino reservado a ela. Escutava o que os homens diziam, mas com pouco interesse. Estava esmagada pela compreensão de que ela não era mais que um peão no jogo, não importava qual fosse – fosse para ter uma vida infeliz, prolongada naquela costa desolada, ou um retorno, realizado de alguma forma, a alguma terra civilizada.

Zarono praguejou rancorosamente, mas Valenso parecia atordoado.

- Esta não é a época do ano para tempestade vindas do oeste. – murmurou, mirando com olhos perturbados os homens que arrastaram os destroços até a praia – Não foi o acaso que trouxe aquela tempestade das profundezas para estilhaçar o navio no qual eu pretendia fugir. Fugir? Estou capturado, como um rato numa ratoeira. Não, somos todos ratos numa ratoeira...

- Não sei do que está falando. – rosnou Zarono, puxando malevolamente o bigode – Sou incapaz de lhe entender, desde que aquela vadia loira lhe perturbou com a história desvairada de homens negros saindo do mar. Mas tenho a certeza de que não vou passar minha vida nesta costa amaldiçoada. Dez de meus homens foram para o inferno neste navio, mas ainda tenho mais de 160. Você tem 100. Há ferramentas em seu forte, e muitas árvores naquela floresta lá. Construiremos um navio. Colocarei homens para derrubarem árvores, assim que tirarmos estes restos do alcance das ondas.

- Levará meses. – murmurou Valenso.

- Bom, há outra forma melhor de empregarmos nosso tempo? Estamos aqui... e, se não fizermos um navio, nunca sairemos. Teremos de equipar algum tipo de serraria, mas ainda não achei nada que me impedisse. Espero que essa tempestade tenha esmagado Strom em pedaços... aquele cão argoseano! Enquanto construirmos o navio, caçaremos a pilhagem do velho Tranicos.

Nós nunca completaremos o navio. – disse Valenso sombriamente.

- Você teme os pictos? Temos homens suficientes para resistir a eles.

- Não falo dos pictos. Falo do homem negro.

Zarono se voltou para ele, zangado:

- Você fala sério? Quem é este maldito homem negro?

- Maldito mesmo. – disse Valenso, olhando fixamente para o mar – Uma sombra de meu próprio passado ensangüentado, erguida para me perseguir até o inferno. Por causa dele, fugi de Zingara, esperando que ele perdesse meu rastro no grande oceano. Mas eu deveria saber que ele finalmente me farejaria.

- Se tal homem veio à praia, deve estar escondido na floresta. – rosnou Zarono – Vamos esquadrinhar a selva e descobri-lo.

Valenso riu rudemente.

- Procure por uma sombra, empurrada por uma nuvem que cobre a lua; tateie na escuridão por uma cobra; siga uma névoa que sai do pântano à meia-noite.

Zarono lhe dirigiu um olhar vago, obviamente duvidando da sua sanidade.

- Quem é este homem? Você não está sendo claro.

- A sombra de minhas próprias e loucas crueldade e ambição; um horror, vindo de eras perdidas; nenhum homem de carne e sangue mortais, mas...

- Vela à vista! – berrou a sentinela na ponta norte.

Zarono girou, e sua voz cortou o vento.

- Você conhece?

- Sim! – a resposta veio fracamente – É o Mão Vermelha!

Zarono praguejou feito um selvagem.

- Strom! O diabo leve seu dono! Como ele conseguiu navegar naquele vendaval? – A voz do bucaneiro se ergueu a um grito que se alastrou pela praia – De volta ao forte, seus cães!

Diante do Mão Vermelha, de aparência um pouco batida e abrindo caminho ao redor da ponta, a praia estava desprovida de vida humana, a paliçada encrespada de cabeças com elmos e faixas. Os bucaneiros aceitaram a aliança, com a fácil adaptabilidade dos aventureiros; e os homens de confiança, com a apatia dos servos.

Zarono arreganhou os dentes, quando uma lancha se dirigiu ociosamente para a praia, e ele avistou o cabelo claro de seu rival na proa. O bote chegou à terra firme, e Strom caminhou sozinho em direção ao forte.

A certa distância, ele parou e gritou num berro bovino de claro alcance, na manhã calma:

- Ô do forte! Quero conferenciar!

- Bom, por que diabos não vem? – rosnou Zarono.

- Na última vez que me aproximei sob uma bandeira de trégua, uma flecha se quebrou em meu peito! – rugiu o pirata – Quero uma promessa de que isso não acontecerá novamente!

- Você tem minha promessa! – gritou sardonicamente Zarono.

- Dane-se a sua promessa, seu cão zíngaro! Quero a palavra de Valenso.

Havia ainda certo grau de dignidade no conde. Também havia uma borda de autoridade em sua voz, quando respondeu.

- Venha, mas mantenha seus homens lá atrás. Você não será flechado.

- É o bastante para mim. – disse Strom instantaneamente – Não importa as ofensas de um Korzetta; uma vez que sua palavra é dada, você pode confiar nele.

Ele caminhou para a frente e parou sob o portão, rindo do semblante obscurecido de ódio que Zarono lhe estocava.

- Bem, Zarono – ele escarneceu –, você está um navio mais escasso que na última vez que o vi! Mas vocês, zíngaros, nunca foram marinheiros.

- Como salvou seu navio, seu cão-de-sarjeta messântio? – rosnou o bucaneiro.

- Há uma enseada, algumas milhas ao norte, protegida por um braço de terra de alta elevação, que quebrou a força do temporal. – respondeu Strom – Eu estava ancorado atrás dele. Minhas âncoras se arrastaram, mas me mantiveram longe do litoral.

Zarono franziu sombriamente a testa. Valenso não disse nada. Ele não sabia daquela enseada. Havia feito pouca exploração de seu território. Medo dos pictos e falta de curiosidade o haviam mantido – e a seus homens – próximo ao forte. Os zíngaros não eram, por natureza, nem exploradores nem colonizadores.

- Venho para negociar. – disse Strom, tranquilamente.

- Não temos nada para negociar com você, exceto golpes de espada. – rosnou Zarono.

- Eu penso de outra forma. – sorriu Strom, com seus lábios finos – Você revelou seus planos, quando assassinou Galacus, meu primeiro-imediato, e o roubou. Até esta manhã, eu achava que Valenso tivesse o tesouro de Tranicos. Mas, se um de vocês o tivesse, não teria se dado ao trabalho de me seguir e matar meu imediato para conseguir o mapa.

- O mapa? – exclamou Zarono, enrijecendo.

- Ora, não finja! – riu Strom, embora a fúria lhe ardesse azul nos olhos – Eu sei que você o tem. Pictos não usam botas!

- Mas... – começou o conde, perplexo, mas ficou em silêncio quando Zarono o cutucou.

- E, se tivermos o mapa – disse Zarono –, que negociação você tem, que nós possamos precisar?

- Deixe-me entrar no forte. – sugeriu Strom – Aí, nós podemos conversar.

Ele não era tão óbvio, quando olhou para os homens que observavam ao longo do muro, mas seus dois ouvintes entenderam. E os homens também. Strom tinha um navio. Aquele fato iria figurar em qualquer negócio, ou luta. Mas ele não carregaria todos, independente de quem o comandasse; independente de quem zarpasse nele, alguns seriam deixados para trás. Uma onda de tensa especulação correu pela multidão silenciosa, na paliçada.

- Seus homens vão ficar onde estão. – avisou Zarono, apontando tanto o bote na praia quanto o navio ancorado no lado de fora da baía.

- Sim. Mas não pense que pode me capturar e me manter como refém. – Ele riu sombriamente – Quero a palavra de Valenso, de que terei permissão para deixar o forte com vida e ileso, dentro de uma hora, independente de chegarmos ou não a um acordo.

- Você tem minha garantia. – respondeu o conde.

- Tudo bem, então. Abra o portão, e vamos conversar com franqueza.

O portão se abriu e fechou, os líderes sumiram de vista, e os homens comuns de ambos os grupos reassumiram a silenciosa análise que faziam uns dos outros: os homens da paliçada e os que se acocoravam ao lado do bote, com uma grande extensão de areia entre eles; e, atrás de uma faixa de água azul, a nau, com chapéus de aço brilhando ao longo de todo o parapeito.

Na escada larga, acima do grande salão, Belesa e Tina se agachavam, ignoradas pelos homens abaixo. Estes estavam sentados ao redor da grande mesa: Valenso, Galbro, Zarono e Strom. Mas, para eles, o salão estava vazio.

Strom tragava vinho e colocava a taça vazia sobre a mesa.

A sinceridade, sugerida por suas fisionomias francas, era desmentida pelas luzes dançantes de crueldade e traição em seus olhos grandes. Mas ele falava com franqueza suficiente.

- Todos nós queremos o tesouro, que o velho Tranicos escondeu em algum lugar próximo a esta baía. – ele disse abruptamente – Cada um tem o que os outros precisam. Valenso tem trabalhadores, suprimentos e uma paliçada para nos proteger dos pictos. Você, Zarono, tem meu mapa. Eu tenho um navio.

- O que eu gostaria de saber – comentou Zarono – é isto: se você tinha aquele mapa todos estes anos, por que não foi logo atrás da pilhagem?

- Eu não o tinha. Foi o cão do Zingelito, que esfaqueou o velho sovina no escuro e roubou o mapa. Mas ele não tinha navio nem tripulação, e demorou mais de um ano para consegui-los. Quando foi atrás do tesouro, os pictos lhe impediram, e seus homens se amotinaram, fazendo-o navegar de volta a Zingara. Um deles roubou-lhe o mapa, e me vendeu recentemente.

- É por isso que Zingelito reconheceu a baía. – murmurou Valenso.

- Aquele cão lhe trouxe para cá, conde? Eu devia ter imaginado. Onde ele está?

- No inferno, sem dúvida, já que ele um dia foi bucaneiro. Os pictos mataram-no, evidentemente enquanto ele estava procurando pelo tesouro na floresta.

- Bom! – aprovou Strom, com sinceridade – Bem, eu não sei como você descobriu que meu imediato estava levando o mapa. Eu confiava nele, e os homens confiavam mais nele do que em mim, de modo que eu o deixei guardá-lo. Mas, nesta manhã, ele se aventurou em terra com alguns outros, se separou deles, e o encontramos morto com um golpe de espada, perto da praia, e o mapa sumiu. Os homens logo me acusaram de tê-lo matado, mas mostrei aos idiotas as pegadas deixadas por seu matador e provei a eles que meus pés não as deixariam. E eu sabia que não era ninguém de minha tripulação, porque nenhum deles usava botas que fizessem aqueles tipos de pegadas. E pictos absolutamente não usam botas. Desse modo, só pode ter sido um zíngaro.

“Bem, você tem o mapa, mas não adquiriu o tesouro. Se você o tivesse, não me deixaria adentrar a paliçada. Eu tenho você encurralado neste forte. Você não pode sair para procurar pelo tesouro, e mesmo que o fizesse, não tem navio para ir embora.

“Agora, eis a minha proposta: Zarono, me dê o mapa. E você, Valenso, me dê carne fresca e outros suprimentos. Meus homens estão quase com escorbuto, após a longa viagem. Em troca, levarei três homens seus, Lady Belesa e a menina dela, e lhes desembarcarei próximos a algum porto zíngaro... ou desembarcarei Zarono perto de algum ponto-de-encontro de bucaneiros, vez que alguma armadilha sem dúvida o espera em Zingara. E, para firmar meu negócio, darei a cada um de vocês uma parte da divisão do tesouro”.

O bucaneiro puxou meditativamente o bigode. Ele sabia que Strom não manteria nenhum pacto, quando feito. Zarono nem sequer considerou a possibilidade de concordar com sua proposta. Mas recusar rudemente seria forçar a questão para um entrechocar de armas. Usou seu cérebro ágil, num plano para passar a perna no pirata. Ele queria o navio de Strom tão ansiosamente quanto desejava o tesouro perdido.

- O que nos impediria de lhe manter prisioneiro, e obrigar seus homens a nos dar seu navio em troca de você? – ele perguntou.

Strom riu diante dele.

- Pensa que sou algum idiota? Meus homens têm ordens de levantar âncoras e partir daqui, caso eu não reapareça em uma hora, ou se eles suspeitarem de traição. Eles não lhe dariam o navio, se você me esfolasse vivo na praia. Além disso, tenho a palavra do conde.

- Minha promessa não é ninharia. – disse sombriamente Valenso – Chega de ameaças, Zarono.

Zarono não respondeu; seu pensamento estava totalmente mergulhado no problema em tomar posse do navio de Strom, e em continuar a negociação sem trair o fato de que não tinha o mapa. Ele se perguntava quem, em nome de Mitra, tinha o maldito mapa.

- Deixe-me levar meus homens comigo em seu navio, quando embarcarmos. – ele disse – Não posso abandonar meus fiéis seguidores...

Strom riu.

- Por que não pede meu sabre, para cortar minha garganta com ele? Desista de seus fiéis... bah! Você abandonaria seu irmão ao diabo, se pudesse ganhar algo com isso. Não! Você não levará homens suficientes a bordo, para ter chance de se amotinar e levar meu barco.

- Nos dê um dia para refletirmos a respeito. – insistiu Zarono.

O punho pesado de Strom bateu com força sobre a mesa, fazendo o vinho dançar nos copos.

- Não, por Mitra! Dê a minha resposta agora!

Zarono estava de pé, com sua fúria negra lhe submergindo a astúcia.

- Seu cão baracho! Vou lhe dar sua resposta... em suas tripas...

Lançou o manto para um lado e agarrou o punho da espada. Strom se levantou com um urro, sua cadeira se espatifando para trás, no chão. Valenso ergueu-se de um pulo, esticando os braços entre os dois, enquanto eles se olhavam reciprocamente pela borda, com as mandíbulas salientadas e fechadas, lâminas meio desembainhadas e os rostos contraídos.

- Senhores, chega! Zarono, ele tem minha palavra...

- Demônios imundos mastiguem sua palavra! – rosnou Zarono.

- Afaste-se de nós, milorde! – rosnou o pirata, sua voz engrossada pela ânsia de matar – Sua palavra era a de que eu não deveria ser tratado traiçoeiramente. Não será considerada violação de sua promessa, se este cão e eu cruzarmos espadas numa luta justa.

- Bem falado, Strom!

Era uma voz profunda e poderosa atrás deles, vibrante em sombrio divertimento. No alto da escada, Belesa se ergueu, com uma exclamação involuntária.

Um homem saía, a passos largos, das cortinas que cobriam a porta de um quarto, e avançava em direção à mesa, sem pressa ou hesitação. Instantaneamente, ele dominou o grupo, e todos sentiram o lugar subitamente carregado por uma atmosfera nova e dinâmica.

O forasteiro era tão alto quanto ambos os flibusteiros, e mais poderosamente constituído que qualquer um, embora, apesar de todo o seu tamanho, se movesse com a flexibilidade de uma pantera sobre suas botas altas e deslumbrantes. Suas coxas estavam envolvidas em calças justas de seda branca; seu casaco, de aba larga e cor azul-celeste, aberto para mostrar uma camisa branca de seda com a gola aberta e a faixa escarlate que lhe envolvia o cinto. Havia botões prateados, em forma de bolotas, no casaco, e este era adornado com punhos trabalhados a ouro nas mangas e nos bolsos, e uma gola de cetim. Um chapéu envernizado completava um vestuário em desuso há quase um século. Um pesado sabre lhe pendia do quadril.

- Conan! – exclamaram juntos os flibusteiros, e Valenso e Galbro prenderam a respiração diante daquele nome.

- Quem mais? – O gigante caminhava em direção à mesa, rindo sarcasticamente diante do assombro deles.

- O que... o que faz aqui? – gaguejou o senescal – Como vem aqui, sem ser convidado nem anunciado?

- Subi a paliçada no lado leste, enquanto vocês, tolos, estavam discutindo no portão. – Conan respondeu – Todos os homens no forte estavam esticando o pescoço para oeste. Adentrei a casa feudal, enquanto Strom estava entrando no portão. Fiquei naquele quarto lá, desde então, ouvindo às escondidas.

- Pensei que estivesse morto. – disse Zarono, lentamente – Três anos atrás, o casco despedaçado de seu navio foi visto próximo a uma costa de recifes, e nunca mais se ouviu falar de você em alto-mar.

- Não me afoguei com minha tripulação. – respondeu Conan – Seria preciso um oceano maior que esse para me afogar.

No alto da escada, Tina apertava Belesa em sua agitação, e olhava através do corrimão, com os olhos bem arregalados.

- Conan! Milady, é Conan! Veja! Oh, veja!

Belesa estava olhando. Era como encontrar uma figura lendária em carne e osso. Quem, de todos os povos do mar, não ouvira as histórias selvagens e sangrentas, ditas a respeito de Conan, o pirata selvagem que fora uma vez um capitão dos piratas barachos e um dos maiores flagelos do mar? Umas vinte baladas celebravam suas proezas ferozes e audaciosas. O homem não podia ser ignorado. Irresistivelmente, ele adentrava a cena de forma majestosa, para formar outro elemento dominante na complicada trama. E, em meio à sua assustada fascinação, o instinto feminino de Belesa sugeriu a especulação sobre a atitude de Conan em relação a ela... seria como a brutal indiferença de Strom, ou o desejo violento de Zarono?

Valenso estava se recuperando do choque, de encontrar um forasteiro dentro do próprio salão. Ele sabia que Conan era um cimério, nascido e criado nos ermos do norte distante, e portanto não estava exposto às limitações físicas que controlavam homens civilizados. Não era tão estranho ele ter sido capaz de entrar no forte sem ser detectado, mas Valenso se amedrontou diante do pensamento de que outros bárbaros pudessem reproduzir aquela façanha – os escuros e silenciosos pictos, por exemplo.

- O que você quer aqui? – ele indagou – Veio do mar?

- Vim da floresta. – O cimério moveu bruscamente a cabeça para leste.

- Estava vivendo com pictos? – Valenso perguntou friamente.

Uma ira momentânea palpitou azul nos olhos do gigante.

- Mesmo um zíngaro deveria saber que nunca houve paz entre pictos e cimérios, e nunca haverá. – ele retrucou, com uma praga – Nossa rixa é mais velha que o mundo. Se você tivesse dito isso para um de meus irmãos mais selvagens, já estaria com a cabeça rachada. Mas vivi entre vocês, civilizados, por tempo suficiente para entender sua ignorância e falta habitual de cortesia... a grosseria que indaga a ocupação de um homem que aparece à sua porta, vindo de mil milhas de selva. Não importa.

Ele se voltou para os dois flibusteiros, que olhavam mal-humorados para ele.

- Pelo que ouvi – ele citou –, concluí que há alguma discórdia sobre um mapa!

- Não é nada de sua conta. – rosnou Strom.

- É isto? – Conan sorriu maliciosamente, e puxou do bolso um objeto amarrotado; um pedaço quadrado de pergaminho, marcado com linhas escarlates.

Strom arregalou impetuosamente os olhos, empalidecendo.

- Meu mapa! – ele exclamou – Onde você conseguiu?

- De seu imediato, Galacus, quando o matei. – respondeu Conan, com deleite sombrio.

- Seu cão! – rugiu Strom, se voltando para Zarono – Você nunca teve o mapa! Você mentiu...

- Eu não disse que o tinha. – rosnou Zarono – Você se iludiu. Não seja idiota. Conan está sozinho. Se ele tivesse uma tripulação, já teria cortado nossas gargantas. Tomaremos o mapa dele.

- Vocês nunca o terão! – Conan riu ferozmente.

Os dois homens pularam em direção a ele, praguejando. Andando de marcha a ré, ele amassou o pergaminho e o arremessou dentro dos carvões incandescentes da lareira. Com um berro incoerente, Strom arremeteu atrás dele, para se deparar com um golpe na orelha, que o deixou estendido e semi-inconsciente no chão. Zarono sacou a espada, mas antes que pudesse estocá-la, o sabre de Conan arrancou-a de sua mão com um golpe.

Zarono cambaleou contra a mesa, com todo o inferno nos olhos. Strom se levantou lentamente, os olhos vidrados e o sangue pingando da orelha machucada. Conan se inclinou levemente sobre a mesa, o sabre estendido e tocando naquele momento o peito do Conde Valenso.

- Não grite por seus soldados, conde. – disse suavemente o cimério – Nenhum ruído de você... nem de você também, cara de cão!

Seu nome era Galbro, e ele não demonstrou intenção de lhe desafiar a ira.

- O mapa virou cinzas, e seria inútil derramar sangue. Sentem-se, todos vocês.

Strom hesitou, fez um gesto frustrado ao cabo da espada, depois encolheu os ombros e caiu sombriamente numa cadeira. Os outros o seguiram adequadamente. Conan continuou de pé diante da mesa, enquanto seus inimigos miravam-no com os olhos amargos de ódio.

- Vocês estavam negociando. – ele disse – Isso é tudo o que eu vim fazer.

- E o que você tem para negociar? – zombou Zarono.

- O tesouro de Tranicos!

- O quê? – Todos os quatro homens se levantaram, inclinando-se em sua direção.

- Sentem-se! – ele rugiu, batendo fortemente sua larga lâmina na mesa. Eles recuaram, tensos e pálidos de agitação.

Ele sorriu em grande satisfação, com a sensação que suas palavras haviam causado.

- Sim, eu o encontrei antes de adquirir o mapa. É por isso que o queimei. Não precisei dele. E agora, ninguém irá encontrá-lo, a menos que eu mostre onde está.

Eles o olhavam, com homicídio nos olhos.

- Está mentindo. – disse Zarono, sem convicção – Você disse que veio da floresta, embora diga que não estava vivendo com os pictos. Todos sabem que esta região é uma selva, habitada apenas por selvagens. Os povoados mais próximos da civilização são os assentamentos aquilonianos no Rio Trovão, centenas de milhas a leste.

- Foi de lá que eu vim. – respondeu Conan, imperturbavelmente – Creio que sou o primeiro homem branco a cruzar as Selvas Pictas. Cruzei o Rio Trovão para seguir um bando de incursores que estava pilhando a fronteira. Eu os segui até as profundezas dos sertões e matei seu líder, mas fui derrubado sem sentidos pela pedra de uma funda, durante a luta, e os cães me capturaram vivo. Eram homens do Clã do Lobo, mas eles me deram ao clã dos Águias em troca do chefe deles, que os Águias haviam capturado. Os Águias me carregaram por quase mil e seiscentos quilômetros na direção oeste, para me queimarem na aldeia de seu líder, mas eu matei o chefe-de-guerra deles e mais uns três ou quatro, numa noite, e fugi.

“Não pude voltar. Estavam atrás de mim, e continuavam me enxotando para oeste. Há poucos dias, me livrei deles, e por Crom, o lugar onde me refugiei era justamente o esconderijo do tesouro do velho Tranicos. Encontrei tudo: arcas com vestimentas e armas... onde achei estas roupas e esta lâmina... pilhas de moedas, gemas e ornamentos dourados; e, no meio de tudo isso, as jóias de Tothmekri, brilhando como a luz congelada das estrelas! E o velho Tranicos e seus onze capitães, sentados ao redor de uma mesa de ébano e olhando para ela, como estiveram olhando por cem anos!”.

- O quê?

- Sim! – ele riu – Tranicos morreu em meio ao seu tesouro, e todos com ele! Seus corpos não estavam decompostos nem enrugados. Estavam sentados lá, com suas botas altas, camisas com abas e chapéus envernizados, com seus copos de vinho nas mãos rígidas, exatamente como ficaram durante um século!

- Não é coisa do acaso! – murmurou Strom, inquieto, mas Zarono rosnou: – De que serve isso? É o tesouro que queremos. Prossiga, Conan.

Conan se sentou à mesa, encheu um copo de vinho e o bebeu em grandes goles, antes de responder.

- O primeiro vinho que bebi desde que abandonei Conawaga, por Crom! Os malditos Águias me caçavam tão de perto pela floresta, que eu mal tinha tempo para comer as nozes e raízes que achava. Às vezes, eu pegava rãs e as comia cruas, pois eu não ousava acender uma fogueira.

Seus ouvintes impacientes o informaram, praguejando, que não estavam interessados em suas aventuras antes do achado do tesouro.

Ele sorriu asperamente e continuou:

- Bem, depois de me deparar com o tesouro escondido, me deitei e descansei uns poucos dias, fiz armadilhas para pegar coelhos e deixei meus ferimentos se curarem. Vi fumaça no céu ocidental, mas pensei que fosse alguma aldeia picta na praia. Eu estava perto, mas enquanto isso ocorria, a pilhagem estava oculta num lugar que os pictos evitam. Se alguém me espionasse, eles não iriam se mostrar.

“Noite passada, parti na direção oeste, pretendendo encontrar a praia, algumas milhas a norte do ponto onde eu tinha visto a fumaça. Eu não estava longe do litoral, quando caiu a tempestade. Me abriguei sob uma rocha, e esperei até que fosse embora. Depois, subi uma árvore para procurar por pictos, e de lá eu vi sua nau, Strom, e seus homens vindo ao litoral. Eu estava me dirigindo ao seu acampamento na praia, quando encontrei Galacus. Enfiei uma espada nele, porque havia uma velha rixa entre nós. Eu nunca saberia que ele tinha um mapa, se não tivesse tentado comê-lo antes de morrer.

“Eu o reconheci, claro, e estava ponderando sobre o uso que poderia fazer dele, quando o restante dos seus cães chegou e achou o corpo. Eu estava deitado num matagal, a menos de onze metros de distância, enquanto vocês discutiam com seus homens sobre o assunto. Julguei que o momento não era adequado para me mostrar”.

Ele riu diante da raiva e humilhação, reveladas no rosto de Strom.

- Bom, enquanto eu me escondia lá, ouvindo sua conversa, percebi o sentido da situação, e soube, pelas coisas que você deixou escapar, que Zarono e Valenso estavam a poucas milhas ao sul da praia. Assim, quando ouvi você dizer que Zarono devia ter sido o matador e tomado o mapa, e que você pretendia ir negociar com ele, buscando uma oportunidade de matá-lo e consegui-lo de volta...

- Cão! – rosnou Zarono.

Strom estava pálido, mas riu desoladamente:

- Acha que eu jogaria limpo com um cão traiçoeiro feito você? Prossiga, Conan.

O cimério sorriu. Era óbvio que ele estava deliberadamente atiçando as chamas de ódio entre os dois homens.

- Depois disso, nada de mais. Saí diretamente de dentro da floresta, enquanto você contornava a costa, e achei o forte antes de você. Sua suposição, de que a tempestade destruiu o navio de Zarono, foi boa... mas, nesse caso, você conhecia a configuração desta baía.

“Bom, eis a história. Tenho o tesouro, Strom tem um navio, Valenso tem suprimentos. Por Crom, Zarono, não sei como você se encaixa no plano, mas para evitar conflito, incluirei você. Minha proposta é muito simples.

“Dividiremos o tesouro em quatro partes. Strom e eu zarparemos, com nossas partes a bordo do Mão Vermelha. Você e Valenso pegam as suas, e continuam lordes das selvas, ou constroem um navio com troncos de árvores, se desejarem”.

Valenso recuou e Zarono praguejou, enquanto Strom sorria silenciosamente.

- Você é tolo o bastante para ir à bordo do Mão Vermelha, sozinho com Strom? – rosnou Zarono – Ele cortará sua garganta, antes que você se afaste muito da terra!

Conan riu, com prazer evidente:

- Isto é como o problema da ovelha, do lobo e do repolho. – admitiu – Como convencê-los a atravessar o rio, sem que devorem uns aos outros?

- E isso apela para seu senso cimério de humor. – queixou-se Zarono.

- Não vou ficar aqui! – gritou Valenso, com um brilho selvagem nos olhos escuros – Com ou sem tesouro, eu devo partir!

Conan o mirou, com os olhos semicerrados em especulação.

- Bem, então – ele disse –, sobre este plano: nós dividiremos a pilhagem como sugeri. Então, Strom zarpa com Zarono, Valenso e os membros da casa do conde que ele escolher, me deixando no comando do forte e do restante dos homens de Valenso, e de todos os de Zarono. Construirei meu próprio navio.

Zarono parecia levemente nauseado.

- Tenho a opção de permanecer aqui, exilado, ou abandonar minha tripulação e ir sozinho para o Mão Vermelha, para ter minha garganta cortada?

A risada de Conan ressoou borrascosa pelo salão, e ele bateu com alegria nas costas de Zarono, ignorando a morte negra no olhar feroz do bucaneiro.

- É isto, Zarono! – disse ele – Fique aqui, enquanto eu e Strom zarpamos, ou zarpe com Strom, deixando seus homens comigo.

- Prefiro levar Zarono. – disse Strom, com franqueza – Você voltaria meus próprios homens contra mim, Conan, e cortaria minha garganta antes que eu pudesse alcançar as Barachas.

O suor pingava do rosto lívido de Zarono.

- Nem eu, nem o conde, nem sua sobrinha alcançaremos a terra vivos, se embarcarmos com esse demônio. – ele disse – Vocês estão todos sob meu poder neste salão. Meus homens o cercam. O que me impede de liquidá-los?

- Nada... – admitiu Conan alegremente – Exceto pelo fato de que, se você fizer isso, os homens de Strom irão zarpar e lhes deixar abandonados nesta costa, onde os pictos irão em breve cortar todas as suas gargantas; o fato de que, comigo morto, vocês nunca acharão o tesouro; e o fato de que racharei seu crânio até o queixo, se você tentar chamar seus homens.

Conan riu enquanto falava, como se estivesse em alguma situação cômica, mas mesmo Belesa sentiu que ele falava sério. Seu sabre estava sobre os joelhos, e a espada de Zarono estava sob a mesa, fora do alcance do bucaneiro. Galbro não era um lutador, e Valenso parecia incapaz de decidir ou agir.

- Sim! – disse Strom, com uma praga – Nós dois não seríamos presa fácil para você. Estou disposto a concordar com a proposta de Conan. O que diz, Valenso?

- Eu tenho que deixar a costa! – sussurrou Valenso, olhando para o vazio – Tenho que me apressar... tenho que ir... ir para longe... rápido!

Strom franziu a sobrancelha, intrigado com o estranho comportamento do conde, e se voltou para Zarono, com um sorriso maldoso: – E você, Zarono?

- O que posso dizer? – rosnou Zarono – Deixe-me levar meus três capitães e 40 homens a bordo do Mão Vermelha, e o negócio está feito.

- Os capitães e 30 homens!

- Muito bem.

- Feito!

Não houve aperto de mãos, nem ingestão protocolar de vinho para selar o pacto. Os dois capitães olharam ferozmente um para o outro, feito lobos famintos. O conde puxou o bigode com uma mão trêmula, absorto em seus próprios pensamentos sombrios. Conan se espreguiçou feito um grande gato, bebeu vinho e sorriu satisfeito na reunião, mas era o sorriso sinistro de um tigre à espreita. Belesa sentiu os propósitos homicidas que reinavam ali e as intenções traiçoeiras que dominavam a mente de cada homem. Nenhum deles tinha qualquer intenção de cumprir sua parte no trato, exceto talvez por Valenso. Cada um dos flibusteiros pretendia possuir tanto o navio quanto o tesouro inteiro. Nem ficaram satisfeitos com menos. Mas como? O que se passava na mente astuta de cada um? Belesa se sentiu oprimida e sufocada pela atmosfera de ódio e traição. O cimério, apesar de sua violenta sinceridade, não era menos astuto que os outros... e era até mais feroz. Seu domínio da situação não era apenas físico – embora seus ombros enormes e membros sólidos parecessem grandes demais, mesmo para o salão vasto. Havia uma vitalidade férrea ao redor do homem, que obscurecia até mesmo o sólido vigor dos outros piratas.

- Leve-nos ao tesouro! – demandou Zarono.

- Espere um pouco. – respondeu Conan – Vamos deixar nossas forças igualmente equilibradas, de modo que um não possa tirar vantagem dos outros. Faremos da seguinte forma: os homens de Strom desembarcarão, com exceção de meia dúzia, mais ou menos, e acamparão na praia. Os homens de Zarono sairão do forte, e também acamparão na costa, dentro do alcance visual deles. Portanto, cada tripulação pode verificar a outra, para ver que ninguém virá atrás de nós, que vamos atrás do tesouro, para nos emboscar. Os que ficarão a bordo do Mão Vermelha o levarão para o centro da baía, fora do alcance de ambos os grupos. Os homens de Valenso permanecerão no forte, mas deixarão o portão aberto. Virá conosco, conde?

- Ir para dentro daquela floresta? – Valenso estremeceu e puxou o manto em volta dos ombros – Nem por todo o ouro de Tranicos!

- Tudo bem. Serão necessários cerca de 30 homens, para carregar o espólio. Pegaremos quinze de cada tripulação e começaremos o mais breve possível.

Belesa, intensamente alerta para cada ângulo do drama que se desenrolava lá, sob ela, viu Zarono e Strom lançaram olhares furtivos um para o outro, e depois baixarem seus olhares tão rápido quanto erguiam os copos, para esconderem a negra intenção em seus olhos. Belesa viu a fraqueza fatal no plano de Conan, e se perguntou como ele conseguia não notá-la. Talvez ele confiasse demais e arrogantemente na própria maestria pessoal. Mas ela sabia que ele jamais sairia vivo daquela floresta. Uma vez de posse daquele tesouro, os outros formariam uma aliança entre velhacos, longa o bastante para se livrarem do homem que ambos odiavam. Estremeceu, fitando morbidamente o homem que ela sabia estar condenado; era estranho ver aquele poderoso lutador sentado ali, rindo e bebendo vinho a longos tragos, em pleno vigor e força, e saber que ele já estava condenado a uma morte sangrenta.

Toda a situação estava prenhe de presságios obscuros e agourentos. Zarono enganaria e mataria Strom se pudesse, e ela sabia que Strom já havia marcado Zarono para morrer e, sem dúvida, ao seu tio e também a ela. Se Zarono ganhasse a luta final de sagacidades, suas vidas estariam a salvo – mas, olhando para o bucaneiro, enquanto ele se sentava lá, mastigando o bigode, com todo o mal inflexível de sua natureza se mostrando nu em seu rosto moreno, ela não conseguiu decidir o que era mais detestável: a morte ou Zarono.

- Qual a distância? – indagou Strom.

- Se partirmos dentro de uma hora, podemos voltar antes da meia-noite. – respondeu Conan. Ele esvaziou o copo, se levantou, ajustou o cinto e olhou para o conde.

- Valenso – ele disse –, você é louco, para matar um picto em sua pintura de caça?

Valenso se sobressaltou.

- O que quer dizer?

- Quer dizer que não sabe que seus homens mataram um caçador picto na floresta, noite passada?

O conde sacudiu a cabeça.

- Nenhum dos meus esteve na floresta, noite passada.

- Bem, alguém esteve. – grunhiu o cimério, mexendo num bolso – Eu vi a cabeça dele, pregada numa árvore, perto do limite da floresta. Ele não estava pintado para a guerra. Não achei nenhuma pegada de botas, de modo que julguei que ela foi pregada antes da tempestade. Mas havia muitos outros sinais... rastros de mocassim no chão molhado. Pictos estiveram lá e viram aquela cabeça. Eram homens de outro clã, do contrário a teriam tirado de lá. Se eles estiverem em paz com o clã ao qual o morto pertencia, irão até sua aldeia para contar à sua tribo.

- Talvez o tenham matado. – sugeriu Valenso.

- Não. Mas eles sabem quem o matou, pela mesma razão que eu sei. Esta corrente estava amarrada ao redor do coto do pescoço cortado. Você deveria estar completamente louco, para identificar seu trabalho desse jeito.

Ele puxou algo para a frente e lançou na mesa, diante do conde, o qual se ergueu, cambaleando e chocado, enquanto a mão se lançava à própria garganta. Era a corrente de ouro que ele costumava usar ao redor do pescoço.

- Reconheci o selo Korzetta. – disse Conan – A presença dessa corrente mostraria, a qualquer picto, que aquilo foi obra de um estrangeiro.

Valenso não respondeu. Ficou olhando a corrente, como se fosse uma serpente venenosa.

Conan o olhou com a testa franzida, e mirou interrogativamente os outros. Zarono fez um gesto rápido, para mostrar que o conde não estava totalmente bom da cabeça.

Conan embainhou o sabre e pôs o chapéu envernizado.

- Tudo bem. Vamos.

Os capitães engoliram seu vinho e se levantaram, pegando os cabos de suas espadas. Zarono pôs a mão no braço de Valenso e o sacudiu levemente. O conde se sobressaltou e olhou ao redor, e logo os seguiu, como que atordoado, a corrente lhe pendendo dos dedos. Mas, nem todos deixaram o salão.

Belesa e Tina, esquecidas na escada e espreitando entre os balaústres, viram Galbro ficar para trás dos outros, se demorando até a pesada porta se fechar atrás deles. Então, ele se apressou até a lareira e mexeu cuidadosamente nos carvões quentes, porém apagados. Caiu de joelhos e fitou algo bem de perto, por um longo intervalo. Logo, se ergueu e, com um ar furtivo, saiu do salão por uma outra porta.

- O que será que Galbro viu no fogo? – sussurrou Tina.

Belesa sacudiu a cabeça e logo, seguindo os impulsos de sua curiosidade, levantou-se e desceu para o salão vazio. No instante seguinte, estava ajoelhada onde o senescal se ajoelhara, e viu o que ele vira.

Eram os restos queimados do mapa que Conan lançara dentro da fogueira. Estava a ponto de se esmigalhar a um simples toque, mas linhas vagas e trechos de escrita ainda eram discerníveis sobre ele. Ela não conseguia ler a escrita, mas conseguia perceber os contornos do que parecia ser a figura de uma colina – ou um penhasco –, cercada por marcas que obviamente representavam árvores densas. Não conseguiu deduzir nada, mas, pela atitude de Galbro, acreditou que ele a reconheceu como o retrato de alguma cena, ou característica topográfica que lhe era familiar. Ela sabia que o senescal havia adentrado a terra mais do que qualquer outro homem do estabelecimento.


6) A Pilhagem dos Mortos

Belesa desceu a escada e parou ao ver o Conde Valenso sentado à mesa, mexendo na corrente quebrada em suas mãos. Ela o olhava sem amor, e com mais do que pequeno medo. A mudança que ocorrera nele foi aterradora; parecia trancado num mundo sombrio exclusivamente seu, com um medo que fustigou todas as características humanas para fora dele.

A fortaleza se encontrava estranhamente quieta, no calor do meio-dia que se seguira à tempestade do amanhecer. As vozes das pessoas dentro da paliçada soavam baixas e abafadas. A mesma quietude sonolenta reinava na praia lá fora, onde as tripulações rivais estavam em suspeita armada, separadas por poucas centenas de metros de areia nua. Lá no meio da baía, o Mão Vermelha estava ancorado, com um punhado de homens à sua bordo, prontos para arrebatá-lo para longe da vista, ao mais leve sinal de traição. A nau era o trunfo de Strom, sua melhor garantia contra a trapaça de seus sócios.

Conan havia planejado astutamente para eliminar as chances de evitar uma cilada na floresta, vinda de qualquer um dos grupos. Mas, até onde Belesa podia enxergar, ele havia falhado totalmente em se proteger contra a traição de seus companheiros. Havia desaparecido floresta adentro, guiando os dois capitães e seus trinta homens, e a jovem zíngara estava certa de que não mais o veria vivo.

Logo, ela falou, e sua voz estava fatigada e áspera aos seus próprios ouvidos.

- O bárbaro levou os dois capitães para dentro da floresta. Quando tiverem o ouro nas mãos, eles irão matá-lo. Mas, quando voltarem com o tesouro, o que acontecerá? Iremos à bordo do navio? Podemos confiar em Strom?

Valenso sacudiu a cabeça distraidamente.

- Strom mataria a todos nós por nossas partes do espólio. Mas Zarono me sussurrou as suas intenções secretamente. Não embarcaremos no Mão Vermelha, se não formos donos dele. Zarono se encarregará de que a noite surpreenda a expedição para o tesouro, de modo que sejam forçados a acamparem na floresta. Encontraremos um meio de matar Strom e seus homens enquanto dormem. Então, os bucaneiros avançarão furtivamente até a praia. Logo antes do amanhecer, mandarei secretamente alguns dos meus pescadores saírem do forte, para nadarem até o navio e se apoderarem dele. Strom nunca pensou nisso, nem Conan. Zarono e seus homens sairão da floresta e, com seus bucaneiros acampados na praia, cairão sobre os piratas na escuridão, enquanto lidero meus soldados desde o forte, para completar a derrota. Sem seu capitão, eles estarão desmoralizados e, superados em número, serão presa fácil para Zarono e eu. Depois, partiremos no navio de Zarono, com todo o tesouro.

- E quanto a mim? – ela perguntou, com os lábios secos.

- Já lhe prometi a Zarono. – ele respondeu asperamente – Se não fosse por minha promessa, ele não nos levaria.

- Nunca irei me casar com ele. – ela disse, sem saber o que fazer.

- Você irá. – ele respondeu sombriamente e sem o menor toque de simpatia. Ergueu a corrente, de modo a refletir a luz do sol, que adentrava obliquamente uma janela – Deve ter caído na areia. – ele murmurou – Ele esteve tão perto... na praia...

- Você não a deixou cair na praia. – disse Belesa, numa voz tão desprovida de piedade quanto a dele próprio; a alma dela parecia ter se tornado pedra – Você o arrancou do pescoço acidentalmente, na noite passada, neste salão, quando chicoteou Tina. Eu o vi, brilhando no chão, antes de deixar o salão.

Ele olhou para cima, o rosto acinzentado por um medo terrível.

Ela riu amargamente, sentindo a pergunta muda nos olhos dilatados dele.

- Sim! O homem negro! Ele esteve aqui! Neste salão! Deve ter encontrado a corrente no chão. Os guardas não o viram. Mas ele esteve diante de sua porta na noite passada. Eu o vi, andando pelo saguão superior.

Por um instante, ela achou que ele cairia morto de puro terror. Ele caiu para trás em sua cadeira, a corrente escapulindo de seus dedos flácidos e caindo com um tinido sobre a mesa.

- Na casa feudal! – ele sussurrou – Pensei que flechas, trancas e guardas armados pudessem mantê-lo distante... como fui idiota! Não posso me proteger dele mais do que escapar! Na minha porta! Na minha porta! – O pensamento o esmagava de horror – Por que ele não entrou? – ele gritou em voz estridente, puxando a renda sobre a gola, como se a mesma o estrangulasse – Por que ele não pôs um fim nisto? Eu havia sonhado que acordava em meu quarto escuro, para vê-lo se acocorar sobre mim, com o fogo azul do inferno ondulando ao redor de sua cabeça com chifres! Por que...

O ataque passou, deixando-o fraco e trêmulo.

- Entendo! – ele ofegou – Ele está brincando comigo, como um gato com um rato. Ter me matado na noite passada, em meu quarto, seria fácil demais, piedoso demais. De modo que destruiu o navio no qual eu poderia ter escapado dele, matou aquele picto miserável e deixou minha corrente nele, para os selvagens acharem que eu o havia matado... eles tinham visto aquela corrente em meu pescoço várias vezes.

“Mas, por quê? Que perversidade engenhosa ele tem em mente, que propósito diabólico ao qual nenhuma mente humana pode alcançar ou entender?”.

- Quem é este homem negro? – perguntou Belesa, com um medo frio se arrastando ao longo da espinha.

- Um demônio libertado por minha ambição e cobiça, para me atormentar por toda a eternidade! – ele sussurrou. Estirou seus dedos longos e magros sobre a mesa diante dele, e fitou-a com olhos cavernosos e estranhamente luminosos, que pareciam não vê-la, mas olharem através dela, e para bem distante, até algum destino obscuro.

- Na minha juventude, tive um inimigo na corte. – disse, como se falando mais para si mesmo do que para ela – Um homem poderoso, que estava entre eu e minha ambição. Em minha ânsia por riqueza e poder, procurei ajuda do povo das artes negras... um mago negro, que, a meu pedido, invocou um demônio dos golfos externos da existência e forneceu a ele a forma de um homem. Ele subjugou e matou meu inimigo; obtive grandeza e poder, e ninguém conseguia se opor a mim. Mas pensei em trapacear meu demônio, do preço que um mortal deve pagar a quem chama o povo negro para fazerem o que lhes ordena.

“Através de suas artes negras, o feiticeiro enganou o vagabundo desalmado da escuridão, e o aprisionou no inferno, onde uivaria em vão... imaginei que por toda a eternidade. Mas, como o feiticeiro tinha dado ao demônio a forma de um homem, ele nunca conseguiu quebrar o elo que o ligava ao mundo material; nunca totalmente próximo aos corredores cósmicos, pelos quais havia ganhado acesso a este planeta.

“Um ano atrás, em Kordava, me veio a notícia de que o mago, agora um homem idoso, havia sido assassinado em seu castelo, com marcas de dedos demoníacos na garganta. Então, soube que a criatura negra havia escapado do inferno onde o mago o aprisionara, e que ele procuraria vingança contra mim. Numa noite, vi seu rosto demoníaco me olhando furtivamente, das sombras no salão de meu castelo...

“Não era seu corpo material, mas seu espírito, mandado para me atormentar... seu espírito, que não conseguiria me seguir pelas águas expostas ao vento. Antes que ele conseguisse alcançar Kordava em carne e osso, embarquei para colocar vastos mares entre eu e ele. Ele tem suas limitações. Para me seguir pelos mares, ele deve permanecer em seu corpo humano de carne. Mas aquela carne não é carne humana. Ele pode ser morto, eu acho, por fogo, embora o feiticeiro que o invocou não tivesse poderes para matá-lo... sejam quais forem os limites impostos aos poderes dos bruxos.

“Mas a criatura negra é astuta demais para ser capturada ou morta. Quando se esconde, homem nenhum consegue achá-lo. Move-se furtivamente feito uma sombra pela noite, indiferente a flechas ou grades. Ele cega os olhos dos guardas com o sono. Pode invocar tempestades, e comandar as serpentes das profundezas e os demônios da noite. Eu esperava ter afogado meu rastro nas ondulantes desolações azuis... Mas ele encontrou, para reclamar sua penalidade sombria”.

Os estranhos olhos se iluminaram palidamente, como se ele olhasse além das paredes atapetadas, para horizontes distantes e invisíveis.

- Vou enganá-lo novamente. – ele sussurrou – Deixe-o adiar o ataque esta noite... ao amanhecer, estarei com um navio sob meus calcanhares, e mais uma vez colocarei um oceano entre mim e sua vingança.


- Fogo do inferno!

Conan parou bruscamente, olhando para cima. Atrás dele, os marujos pararam – duas massas compactas deles, com arcos nas mãos e suspeita em suas atitudes. Estavam seguindo uma velha trilha, feita por caçadores pictos e que levava diretamente para leste; e, embora houvessem avançado menos de 30 metros, a praia não estava mais visível.

- O que é? – indagou Strom, desconfiado – Por que estamos parando?

- Está cego? Olhe para lá!

Do galho grosso de uma árvore que pendia sobre a trilha, uma cabeça arreganhava os dentes para eles, que estavam abaixo – um escuro rosto pintado, emoldurado em abundante cabelo negro, no qual uma pena de tucano pendia sobre a orelha esquerda.

- Peguei essa cabeça e a escondi nas moitas. – rosnou Conan, esquadrinhando estreitamente as árvores ao redor deles – Que idiota poderia tê-la pregado novamente aqui? É como se alguém estivesse tentando fazer o pior, para atrair os pictos para o assentamento.

Os homens olharam sombriamente uns para os outros, um novo elemento de suspeita somado ao já fervilhante caldeirão.

Conan escalou a árvore, pegou a cabeça e a levou para dentro das moitas, onde lançou-a dentro de um rio e a viu afundar.

- Os pictos, cujas pegadas estão ao redor desta árvore, não eram Tucanos. – ele rosnou, voltando pela mata espessa – Já naveguei por estas costas o suficiente para saber alguma coisa sobre as tribos marinhas. Se interpretei corretamente as marcas de seus mocassins, eram Cormorões. Espero que estejam em guerra contra os Tucanos. Se estiverem em paz, irão diretamente para a aldeia dos Tucanos, e haverá problemas. Não sei qual a distância daquela aldeia... mas assim que souberem deste assassinato, virão pela floresta como lobos famintos. Esse é o pior insulto possível para um picto... matar um homem que não está pintado para a guerra, e fincar sua cabeça no alto de uma árvore para que os abutres a comam. Coisas malditas e esquisitas estão acontecendo ao longo desta costa. Mas isso sempre acontece, quando homens civilizados adentram a selva. Eles são infernalmente loucos. Vamos.

Homens desembainhavam as lâminas e tiravam as flechas das aljavas à medida que adentravam a floresta. Homens do mar, acostumados às vastidões ondulantes de água verde, estavam pouco à vontade com as verdes e misteriosas muralhas de árvores e trepadeiras que os cercavam. A trilha serpenteava e se retorcia, até muitos deles perderem rapidamente o senso de direção, e já não sabiam sequer para que lado ficava a praia.

Conan estava desconfortável por outra razão. Continuou examinando a trilha atentamente, e por fim grunhiu:

- Alguém passou recentemente por aqui... não mais do que uma hora à nossa frente. Alguém com botas, sem experiência com a floresta. Será que foi ele o idiota que encontrou a cabeça do picto e a fincou novamente, naquela árvore? Não, não poderia ter sido ele. Não encontrei suas pegadas sob a árvore. Mas quem foi? Não achei nenhum rastro aqui, exceto aquele dos pictos, que eu já tinha visto. E quem é este camarada que se apressou à nossa frente? Algum de vocês, bastardos, mandou um homem à frente de nós, por qualquer motivo?

Tanto Strom quanto Zarono negaram ruidosamente qualquer ato desse tipo, olhando um para o outro com descrença mútua. Nenhum homem conseguia enxergar os sinais. Conan apontou: as marcas indistintas que ele viu, na trilha sem capim e bem batida, eram invisíveis para os olhos destreinados deles.

Conan apressou o passo, e eles se apressaram atrás dele, com novos tições de suspeita somados ao fogo latente de desconfiança. Dali a pouco, a vereda se desviou para norte, e Conan a abandonou, começando a atravessar seu caminho por entre as densas árvores numa direção sudeste. Strom lançou um olhar furtivo e inquieto para Zarono. Aquilo podia obrigar a uma mudança em seus planos. A algumas dezenas de metros da trilha, ambos estavam irremediavelmente perdidos e convencidos das suas faltas de habilidade em acharem o caminho de volta à vereda. Estavam estremecidos pelo medo de que, apesar de tudo, o cimério tivesse uma força sob seu comando, e os estivesse levando para uma emboscada.

Esta suspeita aumentou à medida que avançavam, e ela havia quase alcançado proporções aterradoras, quando saíram das árvores densas e viram, logo à frente deles, um penhasco desolado que se sobressaía do chão da floresta. Uma trilha pouco visível, que saía de entre as árvores na direção leste, seguia entre um agrupamento de matacões e serpenteava para o alto, numa escada de plataformas de pedra, até uma saliência achatada perto do cume. Conan parou – uma figura bizarra em sua roupa pirata.

- Esta trilha é a que eu segui, correndo dos pictos Águias. – ele disse – Ela sobe para uma caverna, atrás daquela saliência. Naquela gruta estão os corpos de Tranicos e seus capitães, e o tesouro que ele saqueou de Tothmekri. Mas só uma palavra, antes de subirmos atrás dele: se me matarem aqui, vocês nunca acharão o caminho de volta à trilha que seguimos desde a praia. Eu conheço vocês, marinheiros. Estão indefesos na floresta densa. Claro que a praia fica exatamente a oeste, mas se tiverem que abrir caminho pela mata emaranhada, levará horas... talvez dias. E não creio que esta floresta será muito segura para homens brancos, quando os Tucanos souberem do caçador deles.

Ele riu diante dos sorrisos medonhos e sem graça, com o qual lhe acolheram o reconhecimento de suas intenções quanto a ele. E ele também entendeu o pensamento que passou pela mente de cada um: deixar o bárbaro proteger o tesouro para eles, e levá-los de volta à trilha para a praia, antes que eles o matassem.

- Todos vocês fiquem aqui, exceto Strom e Zarono. – disse Conan – Nós três bastamos para carregarmos o tesouro da caverna.

Strom sorriu sem alegria.

- Subir sozinho, com você e Zarono? Pensa que sou idiota? Pelo menos um homem virá comigo! – E ele escolheu seu contramestre, um gigante musculoso, de rosto severo, nu até o largo cinto de couro, com argolas de ouro nas orelhas e uma faixa vermelha amarrada ao redor da cabeça.

- E meu carrasco vem comigo! – rosnou Zarono. Ele chamou um pirata magro, com um rosto que parecia uma caveira coberta por um pergaminho, e que carregava uma grande cimitarra desembainhada sobre o ombro ossudo.

Conan encolheu os ombros:

- Muito bem. Sigam-me.

Estavam próximos a seus calcanhares, enquanto ele subia, a passos largos, a trilha serpenteante e galgava a saliência. Eles se aglomeravam próximos a ele, enquanto ele passava pela fenda na parede que ficava atrás, e respiraram com cobiça entre os dentes, quando ele chamou-lhes a atenção para as arcas cobertas de ferro, em ambos os lados da curta caverna em forma de túnel.

- Um rico carregamento aqui. – ele disse, despreocupadamente – Sedas, rendas, roupagens, ornamentos, armas... a pilhagem dos mares do sul. Mas o verdadeiro tesouro está depois dessa porta.

A pesada porta estava parcialmente aberta. Conan franziu a sobrancelha. Ele se lembrava de ter fechado aquela porta antes de deixar aquela caverna. Mas não disse nada a respeito para seus companheiros ansiosos, enquanto a abria para deixá-los olharem.

Eles olhavam para dentro de uma grande caverna, iluminada por um brilho azul, que reluzia através de uma névoa fumegante em forma de bruma. Uma grande mesa de ébano se encontrava no meio da caverna; e, numa cadeira entalhada, com recosto alto e braços largos, que possivelmente esteve outrora no castelo de algum barão zíngaro, sentava-se uma figura gigante, fabulosa e fantástica – lá estava Tranicos, a grande cabeça afundada no peito, uma mão forte ainda agarrando um copo, cravejado de jóias, no qual o vinho ainda brilhava; Tranicos, em seu chapéu envernizado, seu casaco bordado a ouro, com botões adornados de jóias que cintilavam na chama azul, as botas reluzentes, e a correia trabalhada a ouro, que sustentava uma espada, com cabo adornado de jóias, numa bainha dourada.

E, ao longo da beirada, todos com o queixo repousando no peito adornado de renda, sentavam-se os onze capitães. O fogo azul tremulava estranhamente sobre eles e seu almirante, enquanto fluía da enorme jóia no pequeno pedestal de marfim, refletindo lampejos de fogo congelado da pilha de gemas fantasticamente lapidadas, que brilhavam diante do lugar de Tranicos – a pilhagem de Khemi, as jóias de Tothmekri! As pedras, cujo valor era maior que a de todas as jóias conhecidas no mundo, colocadas juntas!

Os rostos de Zarono e Strom ficaram pálidos no brilho azul; sobre seus ombros, seus homens abriam a boca, embasbacados.

- Entrem e levem-nas. – convidou Conan, se virando de lado, e Zarono e Strom se apinharam avidamente atrás dele, quase empurrando um ao outro em sua pressa. Seus seguidores estavam pisando-lhes os calcanhares. Zarono escancarou a porta abruptamente; e parou no meio de um passo na soleira, ao ver uma figura no chão, anteriormente escondida da visão pela porta parcialmente coberta. Era um homem, deitado de bruços e contorcido, a cabeça puxada para trás entre os ombros, o rosto branco contorcido num sorriso de agonia mortal e agarrando a própria garganta com os dedos curvados.

- Galbro! – exclamou Zarono – Morto! O que... – Com súbita desconfiança, enfiou a cabeça pela soleira, dentro da névoa azulada que preenchia a gruta interna. E gritou, sufocado: – Há morte na fumaça!

Mesmo enquanto ele gritava, Conan arremessou seu peso contra os quatro homens aglomerados no vão da porta, mandando-os, cambaleantes – mas não de ponta-cabeça –, para dentro da caverna brumosa, como havia planejado. Eles estavam recuando diante da visão do homem morto e da descoberta da cilada; e seu violento empurrão, embora os tivesse desequilibrado, não surtiu o efeito que ele desejava. Strom e Zarono se estatelaram de joelhos sobre a soleira, o contramestre tropeçou nas pernas deles, e o carrasco carambolou contra a parede. Antes que Conan pudesse dar prosseguimento à sua implacável intenção, de lançar os homens caídos para dentro da caverna e segurar a porta contra eles até que a névoa venenosa cumprisse seu trabalho mortífero, ele teve que se virar e defender-se contra o ataque espumante do executor, que foi o primeiro a recuperar o equilíbrio e o entendimento.

O bucaneiro perdeu um tremendo golpe, com sua espada de decapitador, quando o cimério se esquivou e a grande lâmina bateu com força na parede de pedra, lançando fagulhas azuis. No instante seguinte, sua cabeça de rosto de caveira rolava no chão da caverna, sob o golpe do sabre de Conan.

Nas frações de segundo que esta rápida ação tomou, o contramestre se ergueu e caiu sobre os golpes cadentes do cimério, com um sabre que esmagaria um homem menor. Sabre encontrou sabre, com um retinir de aço que era ensurdecedor na caverna estreita. Os dois capitães recuaram da soleira, com ânsia de vômito e arfando, com as faces roxas e muito sufocadas para gritarem, e Conan redobrou os esforços, numa tentativa de se desfazer do antagonista e se livrar dos rivais, antes que eles pudessem se recuperar dos efeitos do veneno. O contramestre pingava sangue a cada passo, e foi jogado para trás diante do ataque feroz; e começou a berrar desesperadamente pelos companheiros. Mas antes que Conan pudesse dar o golpe final, os dois chefes – ofegantes, mas sanguinários – alcançaram-no com as espadas nas mãos, grasnando por seus homens.

O cimério saltou para trás e pulou para fora, sobre a saliência. Ele se sentia páreo para todos os três, embora todos fossem espadachins famosos; mas não queria ser pego pelas tripulações, que viriam atacando caminho acima, ao som do combate.

Estes, no entanto, não vinham com tanta rapidez quanto ele esperava. Estavam perplexos com os ruídos e gritos abafados que saíam da caverna acima deles, mas nenhum ousava subir o caminho, por medo de uma espada nas costas. Cada bando encarava tensamente o outro, agarrando suas armas, mas incapazes de decidir; e, quando viram o cimério saltar sobre a saliência, ainda hesitavam. Enquanto eles permaneciam com as flechas apontadas, ele subiu correndo as reentrâncias, num nicho localizado na rocha próxima à fenda, e se lançou de bruços no cume do penhasco, fora da vista deles.

Os capitães saíram pela saliência, rugindo e brandindo suas espadas, e seus homens, vendo que seus líderes não estavam cruzando espadas, pararam de ameaçar uns aos outros e abriram a boca, perplexos.

- Cão! – gritou Zarono – Você planejava nos envenenar! Traidor!

Conan zombou deles, lá no alto.

- Bem, o que esperavam? Vocês dois estavam planejando cortar minha garganta, assim que eu lhes conseguisse a pilhagem. Se não fosse por aquele idiota do Galbro, eu teria pego vocês quatro e explicado a seus homens como vocês se lançaram distraidamente às suas condenações.

- E com todos nós mortos, teria tomado meu navio e toda a pilhagem também! – espumou Strom.

- Sim! E o direito de escolha de cada tripulação! Esperava durante meses voltar para alto-mar, e esta era uma boa oportunidade!

“Foram as pegadas de Galbro que eu vi na vereda. Pergunto-me como o imbecil soube desta caverna, ou como ele esperava arrastar a pilhagem sozinho”.

- Se não víssemos aquele corpo, teríamos andado direto para aquela armadilha mortal. – murmurou Zarono, com o rosto moreno ainda lívido – Aquela fumaça azul parecia dedos invisíveis, esmagando minha garganta.

- O que farão? – seu algoz invisível gritou sarcasticamente.

- O que faremos? – Zarono perguntou a Strom – A caverna do tesouro é cheia daquela bruma venenosa, embora, por alguma razão, ela não saia da soleira.

- Vocês não conseguirão obter o tesouro. – Conan os assegurou com satisfação, do alto de seu ninho de águia – Aquela fumaça estrangulará vocês. Ela quase me pegou, quando entrei lá. Escutem, e eu lhes contarei uma história que os pictos falam em suas cabanas, quando as fogueiras ardem pouco! Certa vez, há muito tempo, doze homens desconhecidos vieram do mar, acharam uma caverna e abarrotaram-na com ouro e jóias. Mas um xamã picto fez mágica, e a terra tremeu, a fumaça saiu da terra e os estrangulou onde se sentavam para tomar vinho. A fumaça, que era do fogo do inferno, ficou aprisionada dentro da caverna pela magia do feiticeiro. A história foi contada de tribo para tribo, e todos os clãs evitavam o lugar amaldiçoado.

“Quando me arrastei para dentro de lá, para escapar dos pictos Águias, percebi que a velha lenda era verdadeira, e se referia ao velho Tranicos e seus homens. Um terremoto quebrou o chão rochoso da caverna, enquanto ele e seus capitães se sentavam para beber vinho, e deixou a bruma sair das profundezas da terra... sem dúvida, sair do inferno, como dizem os pictos. A morte guarda o tesouro do velho Tranicos!”.

- Tragam os homens cá para cima! – espumou Strom – Subiremos e o derrubaremos!

- Não seja idiota. – rosnou Zarono – Você acha que qualquer homem na terra conseguiria subir aqueles degraus, ao alcance da espada dele? Traremos os homens cá para cima, bem aqui, para emplumá-lo com flechas, se ele ousar aparecer. Mas ainda conseguiremos aquelas gemas. Ele tem algum plano de obter a pilhagem, ou não teria trazido 30 homens para carregá-la de volta. Se ele pode consegui-la, nós também podemos. Vamos curvar uma lâmina para fazer um gancho, amarrá-lo a uma corda, arremessá-la ao redor da perna daquela mesa, e então arrastá-la até a porta.

- Bem pensado, Zarono! – veio do alto a voz zombeteira de Conan – Exatamente o que eu havia planejado. Mas como vocês encontrarão o caminho de volta à trilha para a praia? Escurecerá bem antes que alcancem a praia, se tiverem de tomar o caminho através das árvores, e eu lhes seguirei e matarei um por um na escuridão.

- Ele não está se vangloriando à toa. – murmurou Strom – Ele pode se mover e atacar no escuro, tão súbita e silenciosamente quanto um fantasma. Se ele nos caçar na volta, pela floresta, poucos de nós viveremos para alcançar a praia.

- Então, o mataremos aqui. – rangeu Zarono – Alguns de nós atiram nele, enquanto o resto sobe o penhasco. Se ele não for atingido por flechas, alguns de nós o alcançaremos com espadas. Ouça! Do que ele ri?

- De ouvir mortos fazendo planos. – veio a voz impiedosamente divertida de Conan.

- Não dê ouvidos a ele. – disse Zarono, franzindo a testa; e, erguendo a voz, gritou para que os homens abaixo se juntassem a ele e a Strom na saliência.

Os marujos subiram a trilha enviesada, e um deles começou a gritar uma pergunta. Simultaneamente, soou um zumbido como o de uma abelha enfurecida, terminando numa pancada surda. O bucaneiro arfou, e o sangue lhe jorrou da boca aberta. Caiu de joelhos, agarrando a flecha negra que lhe vibrava no peito. Um grito de alarme se ergueu de seus companheiros.

- O que está havendo? – gritou Strom.

- Pictos! – berrou um pirata, erguendo o arco e atirando cegamente. Ao seu lado, um homem gemeu e caiu com uma flecha atravessada na garganta.

- Abriguem-se, seus idiotas! – guinchou Zarono. De sua posição vantajosa, ele avistou figuras pintadas se movendo nas moitas. Um dos homens na trilha serpenteante caiu para trás, moribundo. O restante se arrastou apressadamente para baixo, por entre as rochas ao redor da base do penhasco. Abrigaram-se desajeitadamente, nada habituados a este tipo de luta. Flechas voaram de arbustos, se estilhaçando nos matacões. Os homens na saliência foram todos derrubados.

- Estamos numa cilada! – O rosto de Strom estava pálido. Bastante destemido sobre um convés, esta luta silenciosa e selvagem lhe abalou os nervos impiedosos.

- Conan disse que eles temiam este penhasco. – disse Zarono – Quando cair a noite, os homens deverão subir aqui. Vamos nos manter no penhasco. Os pictos não nos atacarão.

- Sim! – zombou Conan, acima deles – Eles não subirão o penhasco para lhes pegarem, é verdade. Simplesmente o cercarão e manterão vocês aí, até todos morrerem de sede e fome.

- Ele fala a verdade. – disse Zarono, sem saber o que fazer – O que faremos?

- Faremos uma trégua com ele. – murmurou Strom – Se algum homem pode nos tirar deste aperto, é ele. Tempo suficiente para cortar a garganta dele depois. – Erguendo a voz, ele gritou: – Conan, vamos esquecer nossa rixa por enquanto. Você está neste aperto tanto quanto nós. Desça e nos ajude a sair disso.

- Como você imagina isso? – retorquiu o cimério – Só preciso esperar até escurecer, descer o outro lado deste penhasco e sumir na floresta. Posso me arrastar pela linha que os pictos lançaram ao redor desta colina, e retornar ao forte para relatar que todos vocês foram mortos pelos selvagens... o que, dentro em pouco, será verdade!

Zarono e Strom olharam um para o outro em pálido silêncio.

- Mas não farei isso! – Conan rugiu – Não que eu tenha algum amor por vocês, cães; mas porque um homem branco não abandona homens brancos, mesmo inimigos seus, para serem trucidados por pictos.

A cabeça, de emaranhados cabelos negros, do cimério, apareceu sobre o alto do penhasco.

- Agora, escutem bem: há apenas um pequeno grupo aqui embaixo. Eu os vi se esgueirando pelo matagal, quando ri, agora há pouco. De qualquer forma, se houvesse muitos deles, todos os homens ao pé do penhasco já estariam mortos. Acho que há um bando de jovens com pés ligeiros, mandados à frente do grupo de guerra, para nos eliminar, vindos da praia. Estou certo de que um grande bando de guerreiros está vindo, de algum lugar, em nossa direção.

“Eles puseram um cordão ao longo do lado oeste do penhasco, mas não acho que haja algum no lado leste. Vou descer por aquele lado, entrar na floresta e darei um jeito atrás deles. Enquanto isso, vocês descem a trilha e se juntam aos seus homens entre as rochas. Digam a eles para atirarem as flechas e puxarem as espadas. Quando me ouvirem gritar, corram pelas árvores do lado oeste da clareira”.

- E o tesouro?

- Pro inferno com o tesouro! Teremos sorte, se sairmos daqui com nossas cabeças sobre os ombros.

A cabeça de cabeleira negra sumiu. Eles ficaram atentos a ruídos, que indicassem que Conan havia descido pela quase perpendicular parede leste e estivesse abrindo seu caminho lá embaixo, mas não ouviram nada. Nem havia qualquer som na floresta. Flechas não mais se espatifaram nas rochas onde os marujos estavam escondidos. Mas todos sabiam que ferozes olhos negros estavam observando, com paciência assassina.

Cautelosamente, Strom, Zarono e o contramestre começaram a descer a trilha serpenteante. Estavam no meio da descida, quando as flechas negras começaram a sussurrar ao redor deles. O contramestre gemeu e desabou flácido pela inclinação, atingido no coração. Flechas se estilhaçaram nos capacetes e couraças dos chefes, enquanto eles se lançavam em pressa desvairada para baixo da trilha íngreme. Alcançaram a base, engatinhando apressadamente, e ficaram ofegando entre os matacões, praguejando sem fôlego.

- É mais alguma trapaça de Conan? – perguntou Zarono, praguejando.

- Podemos confiar nele, nesse assunto. – afirmou Strom – Estes bárbaros vivem por seus próprios e particulares códigos de honra, e Conan jamais abandonaria homens de sua própria cor, para serem trucidados por pessoas de outra raça. Ele nos socorrerá dos pictos, mesmo que ele próprio planeje nos assassinar... Ouça!

Um grito de congelar o sangue apunhalou o silêncio. Vinha da floresta a oeste, e simultaneamente um objeto saiu das árvores, descrevendo um arco, bateu no chão e rolou quicando em direção às rochas – uma cabeça humana decepada, o horrendamente pintado rosto congelado numa careta de morte.

- O sinal de Conan! – rugiu Strom, e os flibusteiros desesperados se ergueram, como uma onda, das rochas e correram de ponta-cabeça em direção à floresta.

Flechas zumbiram para fora das moitas, mas seu vôo foi apressado e errático – apenas três homens caíram. Então, os selvagens homens do mar mergulharam na orla das folhagens, e caíram sobre as desnudas figuras pintadas que se erguiam de dentro da escuridão diante deles. Foi um instante assassino de esforço ofegante e feroz, corpo-a-corpo, sabres abatendo machados de guerra, pés calçados pisando corpos nus, e logo pés descalços estavam avançando pelas moitas, em fuga precipitada, enquanto os sobreviventes daquela breve matança abandonavam a refrega, deixando sete figuras imóveis e pintadas estendidas sobre as folhas ensangüentadas que se alastravam pelo chão. Mais para trás, nos matagais, soava um bater e levantar; logo parou, e Conan caminhou até ser visto; seu chapéu envernizado se fora, o casaco estava rasgado e o sabre pingava em sua mão.

- E agora? – arfou Zarono. Ele sabia que o ataque fora bem-sucedido, só porque a ofensiva inesperada de Conan na retaguarda dos pictos havia desmoralizado os homens pintados e evitado que eles caíssem diante da investida. Mas estourou entre pragas, quando Conan atravessou o sabre num bucaneiro, que se contorcia no chão, com o quadril despedaçado.

- Não podemos levá-lo conosco. – grunhiu Conan – Não seria nenhuma bondade deixá-lo para ser levado vivo pelos pictos. Vamos!

Aglomeraram-se próximos aos seus calcanhares, enquanto ele caminhava apressadamente pelas árvores. Sozinhos, eles teriam suado e andado às cegas pelos matagais durante horas, até encontrarem a trilha para a praia – isso se conseguissem achá-la. O cimério os guiava tão infalivelmente quanto se ele seguisse um caminho resplandecente, e os piratas gritaram com alívio histérico quando adentraram repentinamente a trilha que seguia para oeste.

- Idiota! – Conan bateu uma das mãos no ombro de um pirata que começou a sair correndo, e o arremessou para trás, entre os companheiros – Vai explodir seu coração e cair daqui a novecentos metros. Estamos a milhas da praia. Caminhe moderadamente. Podemos correr na última milha. Guarde um pouco de seu fôlego para ela. Agora, vamos.

Começou a andar pela trilha, num passo devagar e firme; os marinheiros seguiram-no, ajustando seu passo ao dele.

O sol estava tocando as ondas do oceano ocidental. Tina estava na janela da qual Belesa havia olhado a tempestade.

- O sol poente transforma o oceano em sangue. – ela disse – A vela da nau é uma pinta branca nas águas vermelhas. A floresta já está escurecida com as sombras que se agrupam.

- E quanto aos marinheiros na praia? – perguntou Belesa apaticamente. Ela estava deitada numa cama, os olhos fechados e as mãos entrelaçadas atrás da cabeça.

- Ambos os acampamentos estão preparando seus jantares. – disse Tina – Estão recolhendo madeira e fazendo fogueiras. Posso ouvi-los gritando uns para os outros... O que é aquilo?

A súbita ansiedade no tom da garota deixou Belesa ereta sobre a cama. Tina agarrou a soleira da janela, com o rosto branco.

- Escute! Um uivo, lá fora, como muitos lobos!

- Lobos? – Belesa se ergueu de um pulo, com o medo se apoderando de seu coração – Lobos não caçam em bandos nesta época do ano...

- Oh, veja! – guinchou a menina, apontando – Homens estão correndo para fora da floresta!

Num instante, Belesa estava ao lado dela, mirando com olhos arregalados as figuras, pequenas à distância, fluindo da floresta.

- Os marujos! – ela arfou – De mãos vazias! Eu vejo Zarono... Strom...

- Onde está Conan? – sussurrou a menina.

Belesa sacudiu a cabeça.

- Ouça! Oh, escute! – choramingou a criança, agarrando-se a ela – Os pictos!

Todos no forte podiam ouvir agora – um vasto ulular de louca exultação e sede de sangue, vindo das profundezas da floresta escura.

Aquele som incitava os homens ofegantes a cambalearem em direção à paliçada.

- Depressa! – arfou Strom, seu rosto uma máscara contraída de esforço esgotado – Estão quase em nossos calcanhares. Meu navio...

- Está distante demais para alcançarmos. – ofegou Zarono – Dirija-se para a paliçada. Veja, os homens acampados na praia já nos viram! – Ele abanou os braços, numa mímica sem fôlego, mas os homens na praia entenderam, e reconheceram o significado daquele uivo selvagem, que se erguia a um triunfante crescendo. Os marujos abandonaram suas fogueiras e panelas de cozinhar, e fugiram para o portão da paliçada. Estavam correndo através dele, quando os fugitivos da floresta contornaram o canto sul e cambalearam para dentro do portão... uma turba arfante e desvairada, semi-morta de exaustão. O portão foi batido com pressa frenética, e os marinheiros começaram a subir o alto da muralha, para se juntarem aos soldados que já estavam lá.

Belesa confrontou Zarono:

- Onde está Conan?

O bucaneiro moveu bruscamente um polegar em direção à floresta enegrecida; seu peito arfava e o suor lhe escorria pelo rosto.

- Seus batedores estavam em nossos calcanhares, antes que alcançássemos a praia. Ele parou para matar alguns, e nos dar tempo de fugir.

Saiu cambaleando, para tomar seu lugar no alto da muralha, onde Strom já havia subido. Valenso estava lá: uma figura sombria e envolta num manto, estranhamente silenciosa e distante. Parecia um homem enfeitiçado.

- Olhem! – ganiu um pirata, acima do uivo ensurdecedor da horda ainda invisível.

Um homem saía da floresta e corria rapidamente pela faixa aberta.

- Conan!

Zarono sorriu como um lobo.

- Estamos seguros nesta paliçada; sabemos onde está o tesouro. Não há razão para não emplumá-lo com flechas agora.

- Não! – Strom agarrou-lhe o braço – Vamos precisar de sua espada! Olhe!

Atrás do cimério de pés ligeiros, uma horda selvagem irrompia da floresta, uivando enquanto corria – pictos nus, centenas e centenas deles. Suas flechas choviam ao redor do cimério. Mais umas poucas passadas, e Conan alcançou o muro leste da paliçada com um pulo alto, agarrou as pontas dos troncos e se ergueu para dentro, com o sabre nos dentes. Flechas se abateram venenosamente, dentro dos troncos onde seu corpo havia estado há pouco. Seu casaco resplandecente se fora, e sua camisa de seda branca estava rasgada e ensangüentada.

- Detenham-nos! – ele rugiu, enquanto seus pés tocavam o chão interno – Se eles subirem o muro, estaremos perdidos!

Piratas, bucaneiros e soldados responderam imediatamente, e uma chuva de flechas e setas de cabeças quadradas adentrou a horda próxima.

Conan viu Belesa, com Tina se agarrando à mão dela, e sua linguagem foi pitoresca.

- Pra dentro da casa feudal! – ele ordenou, finalmente – Suas setas vão voar por cima do muro... Eu não disse? – Quando uma flecha negra se cravou na terra, aos pés de Belesa e vibrou como a cabeça de uma serpente, Conan pegou um arco longo e pulou até o alto do muro – Alguns de vocês, companheiros, preparem tochas! – ele rugiu, acima da gritaria crescente da batalha – Não podemos enfrentá-los no escuro!

O sol havia se posto numa agitação de sangue. Lá fora, na baía, os homens a bordo da nau haviam cortado a corrente da âncora, e o Mão Vermelha se afastava rapidamente no horizonte escarlate.


7) Homens da Floresta
A noite havia caído, mas as tochas tremulavam de um lado a outro da praia, transformando o louco cenário num medonho apocalipse. Desnudos homens pintados apinhavam a praia; como ondas, eles vinham de encontro à paliçada, com os dentes à mostra e os olhos chamejantes lampejando ao fulgor das tochas enfiadas sobre o muro. Penas de tucanos ondulavam em cabeleiras negras, assim como as plumas dos cormorões e dos falcões do mar. Uns poucos guerreiros, os mais selvagens e bárbaros de todos, usavam dentes de tubarão entrelaçados nas madeixas revoltas. As tribos litorâneas haviam se reunido, vindas de todas as direções da costa, para livrarem sua região dos invasores de pele branca.

Corriam como uma onda contra a paliçada, lançando uma tempestade de flechas diante deles, lutando dentro do alcance das setas e dardos que lhes penetrava a aglomeração, vindas da estacada. Às vezes, chegavam tão perto do muro, que atacavam o portão com seus machados de guerra e enfiavam suas lanças nas seteiras. Mas toda hora, a maré recuava sem subir a paliçada, deixando seu amontoado de mortos. Neste tipo de luta, os flibusteiros estavam no auge de sua bravura; suas setas e dardos abriam buracos na horda que atacava, seus sabres cortavam e derrubavam os selvagens das paliçadas que eles tentavam escalar.

Mesmo assim, várias e várias vezes, os homens da floresta voltavam ao ataque, com toda a ferocidade teimosa que fora instigada em seus corações furiosos.

- Parecem cães loucos! – arfou Zarono, cortando, num golpe descendente, as mãos escuras que agarravam as pontas da paliçada e os rostos escuros que rosnavam para cima, em direção a ele.

- Se conseguirmos manter o forte até o amanhecer, eles perderão o ânimo. – grunhiu Conan, abrindo um crânio emplumado com precisão profissional – Eles não vão manter um longo cerco. Vejam, eles estão recuando.

O ataque diminuiu, e os homens na muralha sacudiram o suor dos rostos, contaram seus mortos e agarraram vigorosamente os cabos, escorregadios de sangue, de suas espadas. Como lobos sedentos de sangue, abandonando de má-vontade uma presa encurralada, os pictos fugiram para além do anel de tochas. Só os cadáveres permaneceram diante da paliçada.

- Eles foram embora? – Strom lançou para trás as madeixas molhadas e claras. O sabre em seu punho estava arranhado e vermelho, e o musculoso braço nu salpicado de sangue.

- Ainda estão lá fora. – Conan acenou com a cabeça em direção às trevas mais externas, que envolviam o círculo de tochas, cuja luz se fazia mais intensa. Ele vislumbrou movimentos nas sombras: o cintilar de olhos e o brilho fosco do aço.

- Eles se retiraram por enquanto. – disse – Ponham sentinelas no muro, e deixem o resto comer e beber. Já é mais de meia-noite. Lutamos durante horas, sem muito intervalo.

Os chefes desceram trepando as saliências, gritando por seus homens das muralhas. Uma sentinela foi postada no meio de cada muro – leste, oeste, norte e sul –, e um grupo de soldados foi deixado no portão. Os pictos, para alcançarem o muro, teriam que atacar passando por um espaço largo e iluminado por tochas, e os defensores poderiam retomar seus lugares bem antes que os atacantes alcançassem a paliçada.

- Onde está Valenso? – indagou Conan, mastigando um grande pedaço de carne, quando ficou ao lado da fogueira que os homens haviam construído no centro do pátio. Piratas, bucaneiros e homens de confiança se misturavam uns aos outros, devorando a carne e a cerveja que as mulheres lhes traziam, e deixando que lhes enfaixassem os ferimentos.

- Desapareceu há uma hora. – grunhiu Strom – Ele estava lutando no muro, ao meu lado, quando de repente parou de forma brusca e arregalou os olhos em direção às trevas, como se visse um fantasma. “Veja!”, ele grasnou. “O demônio negro! Eu o vejo! Lá fora, na noite!”. Bem, eu podia jurar que vi uma figura se movendo entre as sombras, alta demais para um picto. Mas foi só um vislumbre, e já tinha ido embora. Mas Valenso pulou para baixo da plataforma e cambaleou para dentro da casa feudal, como um homem mortalmente ferido. Não o vi, desde então.

- Ele provavelmente viu um demônio da floresta. – disse Conan, tranqüilamente – Os pictos dizem que esta costa está cheia deles. Tenho mais medo é de flechas incendiárias. Os pictos são capazes de começarem a atirá-las a qualquer momento. O que é isso? Parecia um grito por socorro!


Quando a luta se acalmou, Belesa e Tina haviam se movido cautelosamente até sua janela, da qual foram afastadas pelo perigo de flechas voadoras. Silenciosamente, observaram os homens reunidos ao redor da fogueira.

- Não há homens suficientes na paliçada. – disse Tina.

Apesar da náusea, diante da visão dos cadáveres espalhados ao redor da paliçada, Belesa foi levada a rir.

- Você acha que sabe mais sobre guerras e cercos do que os flibusteiros? – ela censurou gentilmente.

- Deveria haver mais homens nos muros. – insistiu a criança, trêmula – Suponha que o homem negro tenha voltado!

Belesa estremeceu ao pensar.

- Tenho medo. – murmurou Tina – Espero que Zarono e Strom sejam mortos.

- E Conan não? – perguntou Belesa, curiosa.

- Conan não nos faria mal. – disse a criança, sem hesitar – Ele vive de acordo com seu código de honra bárbaro, mas eles são homens que perderam toda a honra.

- Você é muito sábia para sua idade, Tina. – disse Belesa, com o vago desconforto que a precocidade da menina freqüentemente lhe causava.

- Olhe! – Tina se empertigou – A sentinela se foi da muralha sul! Eu a vi na saliência, há um momento atrás; agora desapareceu.

De sua janela, as pontas da paliçada do muro sul só eram visíveis sobre os tetos inclinados de uma fileira de cabanas, que ficavam paralelas àquela muralha em quase toda a sua extensão. Uma espécie de corredor a céu aberto, com uns três metros de largura, era emoldurado pela estacada e pelos fundos das cabanas, que eram construídas numa sólida fileira. Estas cabanas eram ocupadas pelos servos.

- Para onde a sentinela poderia ter ido? – sussurrou Tina, apreensiva.

Belesa estava observando uma extremidade da fila de cabanas, a qual não ficava longe de uma porta lateral da casa feudal. Era capaz de jurar que viu uma figura sombria deslizar de trás das cabanas, e desaparecer na porta. Aquela era a sentinela desaparecida? Por que havia abandonado o muro, e por que deveria se mover tão furtiva e sutilmente para dentro da casa feudal? Ela não acreditou que tivesse visto a sentinela, e um medo sem nome lhe congelou o sangue.

- Onde está o conde, Tina? – ela perguntou.

- No grande salão, milady. Sentado sozinho à mesa, envolvido em seu manto e bebendo vinho, com um rosto cinza como a morte.

- Vá e conte a ele o que nós vimos. Continuarei observando desta janela, para que os pictos não se aproximem do muro desguarnecido.

Tina saiu correndo. Belesa ouviu-lhe os pés calçados com chinelos correrem a passos miúdos, ao longo do corredor, e descerem a escada. Então, abrupta e terrivelmente, ressoou lá um grito de medo, tão penetrante que o coração de Belesa quase parou com o choque. Já estava fora do quarto e atravessando apressadamente o corredor, antes de perceber que os membros se moviam. Ela desceu correndo a escada – e parou, como se tivesse virado pedra.

Ela não gritou como Tina. Era incapaz de fazer qualquer barulho ou movimento. Viu Tina e estava consciente de pequenas mãos agarrando-a freneticamente. Mas estas eram as únicas realidades sensatas, numa cena de pesadelo negro, loucura e morte, dominada pela sombra monstruosa e antropomórfica que estendia braços medonhos contra um clarão sinistro e semelhante ao fogo do inferno.


Lá fora, na paliçada, Strom sacudiu a cabeça diante da pergunta de Conan:

- Não ouvi nada.

- Eu ouvi! – os instintos selvagens de Conan estavam despertados; ele estava tenso, os olhos chamejantes – Veio da muralha sul, atrás daquelas cabanas!

Puxando o sabre, ele se dirigiu para a paliçada. Do pátio, o muro ao sul e a sentinela posta ali não estavam visíveis, estando escondidos atrás das cabanas. Strom seguia, impressionado pelo jeito do cimério.

Na entrada do espaço aberto, entre as cabanas e o muro, Conan parou, desconfiado. O espaço era mal iluminado por tochas, que luziam em ambos os cantos da estacada. E, quase no meio do caminho daquele corredor natural, uma forma caída se esparramava no chão.

- Bracus! – praguejou Strom, correndo para a frente e se apoiando sobre um joelho ao lado da figura – Por Mitra, sua garganta foi cortada de orelha a orelha!

Conan varreu o espaço com um olhar rápido, encontrando-o vazio, exceto por ele próprio, Strom e o homem morto. Olhou atentamente através de uma seteira. Nenhum homem vivo se movia dentro do círculo de tochas acesas, do lado de fora do forte.

- Quem poderia ter feito isto? – ele se perguntou.

- Zarono! – Strom se ergueu de um pulo, cuspindo fúria como um gato selvagem, seu cabelo eriçado e o rosto convulsionado – Ele havia instalado seus ladrões para apunhalar meus homens pelas costas! Ele planeja se livrar de mim traiçoeiramente! Diabos! Estou sendo atacado por dentro e por fora!

- Espere! – Conan estendeu a mão, para impedir – Não creio que Zarono...

Mas o enlouquecido pirata se moveu bruscamente e correu ao redor do final da fila de cabanas, exalando blasfêmias. Conan correu atrás dele, praguejando. Strom se dirigiu diretamente à fogueira, na qual a silhueta alta e magra de Zarono estava visível, enquanto o chefe bucaneiro bebia um odre de cerveja.

Seu espanto foi total, quando o odre lhe foi derrubado violentamente da mão, esparramando-lhe a couraça com espuma, e girou bruscamente para encarar o rosto, distorcido de raiva, do capitão pirata.

- Seu cão assassino! – rugiu Strom – Vai matar meus homens pelas minhas costas, enquanto eles lutam por sua pele imunda tanto quanto pela minha?

Conan corria em direção a eles e, em todos os lugares, os homens pararam de comer e beber, para olharem espantados.

- O que quer dizer? – disse Zarono, confuso.

- Você instalou seus homens para esfaquear os meus em seus postos! – gritou o enlouquecido baracho.

- Está mentindo! – O ódio latente explodiu numa chama repentina. Com um uivo incoerente, Strom levantou o sabre e o brandiu em direção à cabeça do bucaneiro. Zarono recebeu o golpe no blindado braço esquerdo, e fagulhas voaram enquanto ele cambaleava para trás, puxando para fora a própria espada.

Logo, os capitães estavam lutando feito loucos, suas lâminas chamejando e brilhando à luz da fogueira. Suas tripulações reagiram instantânea e cegamente. Um rugido intenso se ergueu, enquanto piratas e bucaneiros puxavam suas espadas e caíam uns sobre os outros. Os homens deixados nos muros abandonaram seus postos e pularam para dentro da paliçada, com as lâminas em punho. Num instante, o pátio era um terreno de batalha, onde emaranhados e enraivecidos grupos de homens golpeavam e matavam num cego frenesi. Alguns dos soldados e servos foram arrastados para dentro da luta, e os soldados no portão se voltaram e olharam pasmados, esquecendo o inimigo que se escondia do lado de fora.

Tudo aconteceu tão rápido – fúrias latentes explodindo em repentina batalha –, que os homens estavam lutando por todo o pátio, antes que Conan pudesse alcançar os enlouquecidos chefes. Ignorando suas espadas, ele os apartou com tal violência que cambalearam para trás, e Zarono tropeçou e caiu de ponta-cabeça.

- Malditos idiotas, querem desperdiçar todas as nossas vidas?

Strom estava espumando de loucura, e Zarono berrando por ajuda. Um bucaneiro correu até Conan por trás, dirigindo-lhe um golpe à cabeça. O cimério deu meia-volta e lhe agarrou o braço, detendo-lhe o golpe no ar.

- Vejam, seus imbecis! – rugiu, apontando com sua espada.

Algo em seu tom prendeu a atenção da turba enlouquecida pela batalha; homens ficaram congelados em seus lugares, com as espadas erguidas, Zarono apoiado num joelho, e viraram as cabeças para olharem. Conan estava apontando para um soldado no alto da muralha. O homem estava cambaleando, as armas rasgando o ar, asfixiado enquanto tentava gritar. Súbito, ele caiu de ponta-cabeça ao chão, e todos viram a flecha negra entre seus ombros.

Um grito de alarme se ergueu do pátio. Logo após o grito, veio um clamor de gritos, de congelar o sangue, e o despedaçante impacto de machados no portão. Flechas flamejantes voavam por cima do muro e batiam em troncos, e finos feixes de fumaça azul se encaracolavam para o alto. Logo, de trás das cabanas que se enfileiravam na muralha sul, vieram figuras rápidas e furtivas, correndo pelo pátio.

- Os pictos entraram! – rugiu Conan.

Um tumulto seguiu seu grito. Os flibusteiros pararam com sua rixa, alguns se voltaram para enfrentar os selvagens, e outros para pular até o muro. Selvagens corriam de trás das cabanas, e se moviam em grande número sobre o pátio; seus machados se moviam rapidamente contra os sabres dos marujos.

Zarono se esforçava para levantar-se, quando um selvagem pintado se lançou sobre ele por trás e arrebentou-lhe os miolos com um machado de guerra.

Conan, com um grupo de marujos atrás de si, lutava contra os pictos dentro da paliçada; e Strom, com a maioria de seus homens, subia até as saliências, cortando as figuras escuras que já se aglomeravam sobre o muro. Os pictos, que haviam se movido cautelosamente, sem serem vistos, e cercado o forte enquanto os defensores estavam lutando entre si, atacavam por todos os lados. Os soldados de Valenso estavam apinhados no portão, tentando segurá-lo contra a multidão uivante de demônios exultantes.

Cada vez mais selvagens fluíam por trás das cabanas, tendo escalado a desprotegida muralha sul. Strom e seus piratas foram empurrados dos outros lados da paliçada, e num instante o recinto estava apinhado de guerreiros nus. Eles varreram os defensores feito lobos; a batalha se transformou em redemoinhos de figuras pintadas rolando ao redor de pequenos grupos de homens brancos desesperados. Pictos, marinheiros e homens de confiança caíam espalhados pela terra, onde eram pisados por pés desatentos. Valentes lambuzados de sangue mergulhavam uivando nas cabanas; e os berros, que emergiam de dentro, onde mulheres e crianças morriam sob os machados vermelhos, erguiam-se acima do estrépito da batalha. Os soldados abandonaram o portão, quando ouviram os gritos lamentosos; e, num instante, os pictos haviam quebrado-o, e estavam correndo para dentro da paliçada àquele ponto também. As cabanas começaram a pegar fogo.

- Alcancem a casa feudal! – rugiu Conan, e doze homens correram atrás dele, enquanto este cortava caminho implacavelmente por entre a alcatéia rosnante.

Strom estava ao seu lado, brandindo o sabre vermelho como um mangual.

- Não podemos defender a casa feudal. – grunhiu o pirata.

- Por que não? – Conan estava muito ocupado, em seu trabalho sangrento, para olhar.

- Porque... uh! – Uma faca, numa mão escura, penetrou fundo nas costas do baracho – O diabo lhe devore, bastardo! – Strom se voltou, cambaleante, e partiu a cabeça do selvagem até os dentes. O pirata oscilou e caiu de joelhos, o sangue lhe escorrendo dos lábios.

- A casa feudal está queimando! – ele grasnou e desabou sobre a areia.

Conan deu uma rápida olhada ao redor de si. Os homens que o haviam seguido estavam todos caídos no próprio sangue. O picto, que expirava convulsivamente sob os pés do cimério, era o último do grupo que havia lhe barrado o caminho. Por todo o seu redor, a batalha se rodopiava e encapelava, mas no momento, estava sozinho. Não estava longe da muralha sul. Uns poucos passos, e poderia pular até a saliência e se perder na noite. Mas se lembrou das jovens indefesas na casa feudal – da qual, agora, a fumaça estava rolando em massas ondulantes. Correu em direção ao castelo.

Um chefe emplumado saiu rodando da porta, erguendo um machado de guerra, e atrás do cimério que corria, fileiras de valentes com pés ligeiros convergiam até ele. Ele não deteve sua corrida. Seu sabre, numa curva descendente, encontrou e desviou o machado, e partiu o crânio de quem o empunhava. Um instante depois, Conan atravessava a porta, e a havia batido e trancado contra os machados que lascavam a madeira.

O grande salão estava cheio de feixes flutuantes de fumaça, através dos quais ele tateava, meio cego. Em algum lugar, uma mulher choramingava – pequenos, cativantes e histéricos soluços, de abalarem os nervos. Ele emergiu de uma nuvem de fumaça e parou repentinamente de caminhar, olhando fixamente para o salão. Estava fosco e sombrio com a fumaça flutuante; o candelabro de prata estava destruído, as velas apagadas. A única iluminação era uma incandescência medonha, vinda da grande lareira, e a parede na qual a mesma se encontrava, onde as chamas lambiam, do chão ardente às esfumaçadas vigas do telhado.

E, delineada contra aquele clarão medonho, Conan viu uma forma humana, oscilando devagar na extremidade de uma corda. O rosto morto voltava-se para ele à medida que o corpo oscilava, e estava distorcido além de todo o reconhecimento. Mas Conan sabia que era o Conde Valenso, enforcado na própria viga do teto.

Contudo, havia algo mais no salão. Conan o viu através da fumaça – uma negra figura monstruosa, delineada contra a luz infernal do fogo. Aquele contorno era vagamente humano; mas a sombra lançada na parede em brasa não era nada humana.

- Crom! – murmurou Conan, horrorizado, paralisado pela percepção de que estava diante de um monstro contra o qual sua espada era impotente. Viu Belesa e Tina, agarradas aos braços uns das outras, agachando-se no pé da escada.

O monstro negro se ergueu, avultando gigantescamente contra o fogo, os grandes braços se abrindo largamente; um rosto indistinto olhava malevolamente através da fumaça; semi-humano, demoníaco, completamente terrível – Conan vislumbrou os chifres próximos um ao outro, a boca aberta, as orelhas pontiagudas –, ele movia-se pesadamente em sua direção, através da fumaça, e uma velha lembrança despertou desesperadamente. Perto do cimério havia um sólido banco de prata, com adornos entalhados – outrora parte do esplendor do castelo Korzetta. Conan o agarrou e ergueu acima da cabeça.

- Prata e fogo! – ele rugiu, numa voz como o bater do vento, e o arremessou com toda a força de seus músculos de ferro.

Ele se espatifou bem no grande peito negro – 45 quilos de prata, voando com terrível velocidade. Nem mesmo a criatura negra pôde resistir a tamanho projétil. Foi derrubada – arremessada para trás e de ponta-cabeça para dentro da lareira aberta, que era uma urrante boca de fogo. Um grito horrível sacudiu o salão; o grito de uma coisa não-terrena, subitamente agarrada por morte terrena. O revestimento da lareira se quebrou, e pedras caíram da grande chaminé, deixando semi-ocultos os negros membros que se retorciam, e aos quais as chamas devoravam com fúria elementar. Vigas em chamas desabaram do teto e ribombaram sobre as pedras, e todo o amontoado foi envolvido por uma urrante explosão de fogo.

Chamas desciam rapidamente a escada, quando Conan a alcançou. Ele segurou a frágil criança sob um braço e arrastou Belesa em pé. Através do crepitar e estalar do fogo, soou o estilhaçar da porta sob os machados de guerra.

Ele olhou ao redor, avistou uma porta do lado oposto ao patamar da escada e correu através dela, carregando Tina e meio arrastando Belesa, que parecia atordoada. Quando adentraram a sala, um eco atrás deles anunciou que o teto estava caindo no salão. Através de uma asfixiante parede de fumaça, Conan viu uma porta aberta e externa, do outro lado da câmara. Enquanto arrastava as duas através dela, ele a viu cair com as dobradiças quebradas, a fechadura e o ferrolho quebrados e estilhados como se por alguma força espantosa.

- O homem negro entrou por esta porta! – Belesa soluçou histericamente – Eu o vi... mas eu não sabia...

Saíram no pátio iluminado pela fogueira, a pouca distância da fileira de cabanas que se alinhava à muralha sul. Um picto se escondia próximo à porta, com os olhos vermelhos na luz do fogo e o machado erguido. Colocando a garota, que estava em seu braço, para longe do golpe, Conan enfiou o sabre no peito do selvagem, e depois, arrastando Belesa em pé, correu para a muralha sul, carregando ambas as garotas.

O pátio estava cheio de revoltas nuvens de fumaça, que encobriam parcialmente o trabalho sangrento feito lá; mas os fugitivos tinham sido vistos. Figuras nuas, negras contra o fulgor embotado, saltitavam para fora da fumaça, brandindo machados reluzentes.

Eles ainda estavam metros atrás dele, quando Conan mergulhou no espaço entre as cabanas e o muro. No outro extremo do corredor, ele viu outras formas uivantes, correndo para acabar com ele. Parando rapidamente, lançou Belesa até a saliência e pulou atrás dela. Erguendo-a sobre a paliçada, ele a desceu para a areia do lado de fora, e desceu Tina após ela. Um machado arremessado se espatifou dentro de um tronco, à altura de seu ombro, e logo ele também estava sobre o muro, erguendo suas atordoadas e indefesas protegidas. Quando os pictos alcançaram o muro, o espaço diante da paliçada estava vazio, exceto pelos mortos.


8) Um Pirata Volta ao Mar

O amanhecer coloria as águas foscas com um tom rosa-escuro. Do outro lado das águas coloridas, uma mancha branca crescia, além da névoa – uma vela, que parecia estar dependurada no céu de pérola. Num cabo cheio de moitas, Conan o cimério segurava um manto esfarrapado sobre uma fogueira de madeira verde. À medida que manipulava o manto, nuvens de fumaça se erguiam para o céu, palpitavam contra a aurora e desapareciam.

Belesa se acocorou próxima a ele, com um braço ao redor de Tina.

- Acha que eles irão ver e entender?

- Irão ver, sim. – ele a assegurou – Ficaram espionando esta costa a noite inteira, esperando avistar alguns sobreviventes. Estão assustados. Há apenas meia dúzia deles, e nenhum consegue navegar bem o bastante para ir daqui até as Ilhas Barachas. Eles entenderão meus sinais; é o código pirata. Estou dizendo a eles que os capitães estão mortos com todos os marujos, e para virem em direção à costa e nos levarem a bordo. Eles sabem que eu consigo navegar, e estarão contentes em embarcar sob meu comando. Sou o único capitão vivo.

- Mas, e se os pictos virem a fumaça? – Ela estremeceu, olhando para trás, acima das areias e moitas brumosas, para onde, milhas ao norte, uma coluna de fumaça se encontrava de pé no ar parado.

- É improvável que a vejam. Depois que escondi vocês na floresta, me esgueirei de volta e os vi arrastando barris de vinho e cerveja para fora dos armazéns. Muitos deles já estavam cambaleando. Neste momento, eles estarão caídos aqui e ali, bêbados demais para se mexerem. Se eu tivesse cem homens, poderia acabar com a horda inteira. Veja! Lá vai um sinal de fumaça do Mão Vermelha! Isso significa que estão vindo nos buscar!

Conan apagou a fogueira, devolveu o manto a Belesa e se espreguiçou como um grande gato preguiçoso. Belesa o observava com admiração. Seu ar imperturbado não era fingido; a noite de fogo, sangue e matança, e a posterior fuga pela floresta negra, não lhe abalaram os nervos. Estava calmo, como se tivesse passado a noite em festa e folia. Belesa não o temia; sentia-se mais segura do que havia se sentido, desde que desembarcara naquela costa selvagem. Ele não era como os flibusteiros – homens civilizados, que haviam rejeitado todos os critérios de honra, e viviam sem nenhuma. Conan, por sua vez, vivia de acordo com o código de seu povo, o qual era bárbaro e sanguinário, mas que pelo menos mantinha seus próprios e peculiares critérios de honra.

- Você acha que ele está morto? – ela perguntou, com aparente irrelevância.

Ele não a perguntou a quem se referia.

- Acredito que sim. Prata e fogo são mortais para maus espíritos, e ele recebeu uma boa dose de ambos.

Ninguém voltou a falar nesse assunto. O pensamento de Belesa evitava invocar a cena, quando uma figura negra adentrara sorrateiramente o grande salão, e uma vingança há muito adiada fora horrivelmente consumada.

- O que vai fazer, quando voltar para Zingara? – Conan perguntou.

Ela sacudiu a cabeça, sem saber o que fazer:

- Não sei. Não tenho dinheiro nem amigos. Não fui ensinada a ganhar minha vida. Talvez fosse melhor se uma daquelas flechas atingisse meu coração.

- Não diga isso, milady! – implorou Tina – Trabalharei por nós duas!

Conan puxou uma pequena bolsa de couro de dentro do cinto.

- Não consegui as jóias de Tothmekri. – ele resmungou – Mas aqui estão algumas quinquilharias que achei no baú, onde peguei as roupas que estou usando. – Espalhou um punhado de rubis flamejantes na palma da mão – Valem, por si só, uma fortuna. – Ele os despejou de volta à bolsa e entregou a ela.

- Mas eu não posso levar estes... – ela começou.

- Claro que irá levá-los. Eu poderia tanto abandoná-la para que os pictos lhe escalpelassem, quanto levá-la de volta a Zingara para morrer de fome. – disse ele – Sei o que é ser pobre numa terra hiboriana. Em minha terra, às vezes, há fome; mas as pessoas têm fome apenas quando não há absolutamente nenhuma comida. Mas, em países civilizados, já vi pessoas fartas de gula, enquanto outras passavam fome. Sim, já vi homens caírem e morrerem de fome, encostados nas paredes de lojas e armazéns abarrotados de comida.

“Às vezes, eu tinha fome também, mas aí eu pegava o que queria na ponta da espada. Mas você não pode fazer isso. Por isso, leve estes rubis. Você pode vendê-los e comprar um castelo, escravos e belas roupas; e com eles, não será difícil conseguir um marido, porque todos os homens civilizados desejam esposas com estas posses”.

- Mas, e quanto a você?

Conan sorriu e apontou o Mão Vermelha, que se movia rapidamente em direção à costa.

- Um navio e uma tripulação são tudo o que quero. Assim que colocar o pé naquele convés, terei um navio; e assim que alcançar as Barachas, terei uma tripulação. Os rapazes da Irmandade Vermelha estão ansiosos para navegarem comigo, porque eu sempre os levo para ótimas pilhagens. E, assim que eu puser você e a menina em terra firme, na costa zíngara, mostrarei aos cães um pouco de pilhagem! Não, não, obrigado! O que é um punhado de jóias para mim, quando todo o saque dos mares do sul estará ao meu alcance?




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.


Fonte: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2003%20-%20The%20Conquering%20Sword%20of%20Conan%20-%20FF.txt
Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2003%20-%20
The%20Conquering%20Sword%20of%20Conan%20-%20FF.txt
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