Réquiem Rubro

"Aí fica o país e a cidade dos homens da Ciméria.
Estes tateiam continuamente na noite e no nevoeiro, e nunca olha para eles radioso o deus do sol luminoso.
Mas é a terrível noite que envolve os miseráveis humanos."
(Odisséia, Canto décimo primeiro de Homero )


INTRODUÇÃO

A estrofe acima faz parte do poema A Odisséia, uma das epopéias de Homero, poeta grego do século IX a.C., que narra as aventuras de Odisseu – ou Ulisses – em seu retorno para casa. Durante essa viagem, Odisseu passou pelas terras da Ciméria, uma região da Europa da Antiguidade. Segundo Homero, os cimérios habitavam o norte e o nordeste da Grécia (possivelmente a Trácia, atual Romênia). Os gregos chamavam os cimérios de “o povo para o qual o Sol nunca brilha”. Posteriormente, os cimérios foram expulsos para a Ásia Menor pelos citas (século VIII a.C.), destruíram o reino dos frígios e foram derrotados pelos lídios.

Na ficção de Robert E. Howard, o criador de Conan, a Ciméria estava localizada na parte setentrional do continente hiboriano, onde suas colinas cheias de neve e nuvens escuras tornavam a vida bastante feral. A Ciméria era chamada de “terra de trevas e noite eterna” pelos povos hiborianos.

De acordo com Howard os cimérios eram um povo bárbaro, guerreiro e também eram excelentes escaladores, já que não faltavam montanhas em sua terra. Conan, sua maior criação, era oriundo dessa nação bárbara.

O conto a seguir busca dar uma visão mais ampla dos costumes dos cimérios e da geografia de sua nação. Cronologicamente, está situado cerca de nove meses depois dos acontecimentos narrados em O Nascimento de Conan, conto publicado no site Crônicas da Ciméria.

Algumas referências sobre costumes nórdicos, usadas neste conto, foram extraídas e adaptadas do site Valhöll - http://www.valholl.hpg.ig.com.br/ - um belíssimo website sobre os antigos povos nórdicos, que conta com a colaboração do historiador Johnni Langer, que também já teve alguns artigos publicados no Crônicas.

Deixo aqui os agradecimentos especiais a Fernando Neeser de Aragão, que forneceu a idéia original e fez minuciosas observações para este conto.

O Fernando vem traduzindo diversos conto de Howard que estão sendo publicados no Crônicas.

Algumas das observações do Fernando:

“(...) De acordo com o mesmo livro de RPG que chamava de Canach a tribo natal de Conan, qualquer pessoa que assumisse a liderança da mesma (não sei se por herança ou merecimento), passava a ser chamada de Canach. Aparentemente, todas as tribos cimérias tinham esse costume, de chamar o chefe de uma tribo pelo nome da mesma.
Outro costume cimério - este, eu vi num site da Internet - era o fato de uma mulher, ao ficar viúva, casar-se com um dos irmãos do falecido marido, após o luto. Também segundo o site, as tribos cimérias praticavam uma pecuária rudimentar, complementada pela caça e coleta. Talvez a agricultura, mostrada entre os Canachs (ou Falcões da Neve), na ESC 61, tenha sido um avanço tecnológico trazido por Drogin, o avô de Conan, vez que este andara, na juventude, pelos reinos ‘civilizados’ do sul.
Hoje, encontrei na Internet um artigo no qual Dale Rippke faz duras - e, diga-se de passagem, merecidas - críticas ao conto ‘Conan of Venarium’. No artigo, Rippke confirma algo que eu já desconfiava: A mãe de Conan ainda era viva - ou ao menos assim pensava o Bárbaro - quando ele resgatou Marala na versão original de ‘A Estrela de Khorala’. Mas o que me fez ‘cair pra trás’ foi quando eu soube que, na versão literária de ‘Conan e o Deus-Aranha’ (1980), o pai de Conan se chamava Nial, e não Corin, como em SSC 119 (publicada em 1985 nos EUA) (...).”


Lista de Personagens Principais:


Corin – o ferreiro da tribo dos Falcões da Neve e pai de Conan.

Gresham – a mãe de Conan.

Chullain – irmão de Conan e futuro "Aniki", de "Laço de Sangue/Conan Saga 9.

Drogin – o pai de Corin e avô de Conan.

Corum – o pai de Gresham e avô de Conan.

Ernok, o Carniceiro – o líder vanir citado em "Ritual de Sangue"/A Espada Selvagem de Conan 61.

Rion – futuro amigo de Conan em “Bárbaros nos Portões”/Conan, o Aventureiro 1.






RÉQUIEM RUBRO

Por Osvaldo Magalhães – Outubro de 2004

A partir de uma idéia de Fernando Neeser de Aragão

Conan – criado por Robert E. Howard



1. Ciméria, Terra de Trevas e Noite Eterna.

A PLANÍCIE ONDULADA DA AQUILÔNIA, coberta por grama de um verde esmeralda, e salpicada com manchas roxas de arbustos de urze, com suas flores em forma de sino, termina num penhasco, por cima do qual um pequeno riacho desaba em graciosa catarata. Ao longo do riacho, enormes cavernas marinhas se abrem ao pé dos rochedos, enquanto uma cadeia rochosa, lá bem no alto, levanta sinistramente suas paredes pontudas contra o céu emplastado de nuvens.

Daí chega-se à região do Reino da Fronteira e quando se parte da última taverna da última cidade daquela nação pantanosa para o norte, a paisagem muda. As vultosas cadeias de montanhas, com bosques de vegetação enfezada, pinheiros de troncos lenhosos e folhas pontiagudas, e olmos de folhas simples e poucas flores, cones de picos altos e os escassos vales divididos por cumes alterosos, ondulam-se por largos desfiladeiros cobertos por densa floresta.

Um viajante perceberia, claramente, que por todos os lados a floresta espreita: enorme, escura, sinistra. À primeira vista, não parece muito diferente das florestas de madeira de lei das zonas temperadas do norte de Aquilônia, como as de Galparan ou Gunderlândia. Mas logo as diferenças se impõem.

Ali já é a Ciméria.

A maior parte da Ciméria é uma terra um tanto montanhosa, suavemente ondulante, cortada por incontáveis irregulares verdes bosques, separados por montanhas rochosas e com lotes freqüentes de florestas. As trilhas estreitas e sinuosas são ladeadas por sopés de montanhas e vegetação de bosques a uma altura de cinco a sete metros, de forma que um viajante estrangeiro fica com o sentimento claustrofóbico de estar andando através de um túnel interminável.

O mundo vegetal é dominado por enormes e antigas árvores, elevando-se de trinta a mais de cinqüenta metros. Há o caoba; o cedro, de caule grosso, copa larga e folhas verde-escuras; e outras espécies menores como o abeto.

Os cipós dependuram-se por todos os lugares, como dríades desmazeladas. Orquídeas e outros epífitos florescem nos troncos e ramos das árvores. Trepadeiras com rebarbas irritantes dependuram-se acima das trilhas para se enredar nos cabelos de visitantes inoportunos.

As grandes árvores são sustentadas por raízes de esteio que ressaltam dos troncos perto do solo.
Pássaros há em revoada e são eles os mensageiros da chegada do verão. Corvos, pica-paus, corujas brancas e muitas outras espécies menores que fazem a floresta ressoar com seus cantos. E também pode-se ainda admirar às várias espécies de águias e falcões sulcando os céus da Ciméria.

Os cinco grandes mamíferos predadores da Ciméria são o urso, o lobo, o tigre, o lince e a pantera. Mas não é provável que um visitante veja algum deles. Eles o vêem, ouvem ou farejam muito antes que se possa observá-los.

As lebres são muito comuns e podem ser vistas próximas às cabanas. As martas são encontradas próximas aos rios e com uma população estável, enquanto que a dos esquilos varia de acordo com o número de sementes de pinho; e as raposas vermelhas se multiplicam muito rápido, tornando-se uma grande preocupação para suas presas. Outros mamíferos grandes são os alces habitualmente encontrados próximos aos rios. Existem castores, veados e os ratos almiscarados, que se abrigam sob a neve durante o inverno.

Panteras e ursos ocasionalmente se aninham em cavernas arruinadas; sente-se o cheiro específico deles quando se penetra ali. Ao entrar em áreas habitadas por um urso, um cimério anda com o vento às suas costas, para que o animal sinta o seu cheiro, e faz barulho, para que ele saiba da sua presença, pois é muito perigoso surpreendê-lo. Eles usam trilhas como faz o homem, e por isso não é conveniente dormir próximo às mesmas.

Também existem peixes diversos nos rios cimérios, como a truta, por exemplo.

A vegetação é formada basicamente por coníferas. A maior parte da superfície do país está coberta por bosques de pinhos, epiceas, choupos, que proporcionam madeira para a construção de cabanas, e bétulas, de cuja seiva os cimérios fazem um tipo de bebida alcoólica doce e leve.

O solo está constituído por um supedâneo de rochas antigas, basicamente de granito, polidas na época anterior à submersão da Atlântida, cujas montanhas rochosas limitam ao norte com a região dos lagos, coberto com algumas camadas de gelo e neve praticamente apenas durante os meses de inverno e primavera; com exceção, claro, das inúmeras montanhas com seus picos coroados com a neve eterna.

Terra de trevas soturnas e um céu quase sempre cinza, a Ciméria é uma terra de solidão e tristeza, formada pelas partes ao norte de Aquilônia e Reino da Fronteira, fazendo fronteira com a terra dos pictos a oeste; Vanaheim e Asgard ao norte, tendo como fronteira natural as montanhas Eiglophianas; e Hiperbórea, no extremo leste. As temperaturas variam de muito frio no inverno a um clima mais ameno no verão e no outono.

A Ciméria passa três meses no inverno sem que haja claridade natural. Na primavera e outono, aparece a lua; mas o sol, apenas no verão.

A coloração das folhas das árvores no outono da Ciméria varia entre o vermelho, o amarelo, o laranja e o violeta. Esta coloração tem início no fim do outono e continua até meados da primavera, quando então algumas árvores chegam a ter folhas em tons de marrom. É pelo tamanho da noite e não pela temperatura do final do verão que as cores se definem.

A Ciméria – assim como os demais países do Norte – é uma área muito pouco conhecida pelo resto do mundo hiboriano.

Os cimérios são bárbaros altos e fortes, de pele morena e olhos claros. Embora desconheçam o fato, são descendentes diretos dos antigos atlantes, o povo do rei Kull, na época anterior ao grande cataclismo que modificou a face da terra.

Uma imagem tipicamente associada aos cimérios pelos hiborianos são seus hábitos alimentares: comeriam somente carne crua, a qual arrancariam com os dentes. O que não passam de representações fantasiosas, procurando caracterizá-los como criaturas animalescas e brutais. Mas eles usam muitos utensílios de cozinha, como cuias de madeira, tonéis, cestas de vime, panelas e todos os vários tipos de recipientes de cerâmica, demonstrando um sofisticado padrão de cozimento e preparo dos alimentos em sua cultura.

A maior parte dos povoados cimérios é de pequenas tribos, com entre cinqüenta e duzentos habitantes. Nessas tribos, a vida é comunitária, ou seja, todos devem se ajudar mutuamente. O trabalho é dividido de acordo com as especialidades de cada um. Uns fazem lanças e machados com lâminas de sílex, outros são ferreiros – que, por elaborarem armas mais resistentes, são alvos da admiração e respeito de todos os membros de sua aldeia. Outros são pescadores (os povoados sempre se desenvolvem nas proximidades de rios e lagos), outros cuidam dos pequenos rebanhos de gado, uns são artesãos, muito poucos são agricultores, mas a maioria é guerreira.

Nas tribos, as pessoas moram geralmente em grandes choças comunitárias. Geralmente essas choças são habitados pelas famílias. Por exemplo: três irmãos, com suas respectivas esposas, filhos e netos.

O telhado das choças cimérias é recoberto de turfa – um tipo de grama – para proteger os moradores contra o frio. Elas são compostas, muitas vezes, e dependendo do número de moradores, de um único cômodo onde todos dormem, comem e as mulheres costuram... Há uma lareira no centro do cômodo, cuja saída é no meio do telhado; como não há chaminé, a casa fica enfumaçada e os incêndios são freqüentes.

As mulheres têm a função de ajudar os maridos, além de cozinhar e fazer as roupas para toda a família. Quando os maridos se ausentam, caçando ou guerreando, as mulheres se tornam chefes do lar.

Uma mulher ciméria, ao ficar viúva, se quiser, pode casar-se com um dos irmãos do falecido marido, após o luto.

As sociedades cimérias são monogâmicas e o núcleo familiar é como o das sociedades hiborianas, com o homem ocupando o lugar de chefe da casa.

A maioria dos cimérios abomina a agricultura. “Para que cavar sulcos na terra? Para tirar um legume pálido do meio da sujeira e chamá-lo de jantar?” – diria um deles, se interpelado sobre o assunto –. “Crom fez os homens para caçar, como a pantera e o lobo, não para pastar no meio da palha, como os bois e as ovelhas dos civilizados. A caça inculta vigor e coragem ao coração do homem selvagem” – ele completaria.

A alimentação é baseada na caça; mas uma minoria das tribos dispensa algum tempo à agricultura básica – como é o caso da tribo de Conan, os Falcões da Neve, ou Canachs, em seu léxico, que teve a agricultura implantada por Drogin, seu avô paterno, oriundo de uma tribo do sul, mais próxima da civilização.

As semeaduras ocorrem tão logo a primavera começa, pois os grãos precisam ser colhidos no final do verão para que possam ser armazenados para o outono e inverno. Durante o inverno, as principais fontes de alimentos são a carne de gado e das caças que eles obtêm. No verão, o gado é transportado para as montanhas para pastar longe das plantações.


2. Onde Há Fumaça, Há Vanires!

TRÊS HOMENS SAÍRAM DE UMA TRILHA da floresta. Um deles carregava um alce abatido sobre o ombro direito, com a armação espalmada dos grandes chifres pendendo às suas costas. O olhar de um observador divisaria capas de pele de lobo, perneiras de couro de alce, barretes de pele de corça, atados com chifre de alce e presas de urso.

Um chuvisco frio tamborilava das nuvens carregadas. Ao redor deles, surgia um panorama dramático: grandes picos nevados avultavam por cima das nuvens, a mais de três mil metros acima de suas cabeças; precipícios gigantescos de granito de várias cores elevando-se escarpadamente milhares de metros acima das copas escuras das árvores centenárias. Bem acima, as galerias brilhavam através das nuvens. Abaixo dos picos, a densa floresta encobria as escarpas. A chuva gotejava das folhas grudadas às arvores, e as orquídeas floresciam nos gigantescos troncos e nos amplos ramos.

Era fim de outono na Ciméria. Mas não o outono que se conhece nos reinos do sul, e sim um clima mais rigoroso, onde a lua aparece fracamente entre as nuvens escuras e a chuva ocasionalmente substitui a neve.

Os três homens eram Drogin, que carregava o alce, Corum e Rion, este último sendo na verdade um garoto, de pouco mais de dez anos. Todos eram membros da tribo dos Falcões da Neve. Seguiram seu caminho por cima de uma tênue ponte de troncos amarrados com cipós, que se estendiam sobre os espaços entre dois penedos. Tais penedos ressaltavam nas alturas, cobertos de uma densa vegetação. Do outro lado do abismo, atacaram a encosta íngreme. Suando, escorregando, rastejando e escalando, subiram durante uma hora. Ao tentar atingir o topo do cume que subiam penosamente, Corum, que ia à frente, abria caminho à espada através de moitas de algaroba espinhosa, até que quase o havia atingido. As árvores haviam cedido lugar ao capim ou à pedra lisa, a face da pedra sendo praticamente vertical. Uma encosta de uns 65 metros estava à sua frente. Deixando Drogin e Rion para trás, foi até o final da beirada, achando que poderia olhar quase que diretamente para baixo até a floresta silenciosa lá embaixo. Continuou subindo, quando o capim e o solo sob seus pés deslizaram e ele caiu. Por uns seis metros, havia uma inclinação de uns setenta graus e depois uma queda de quase 65 metros, após o que haveria uma batida e a repetição até a copa das árvores. Quando deslizava para baixo da superfície íngreme, estendeu a mão direita, conseguindo segurar uma moita de algaroba que crescia numa fenda a uns dois metros abaixo do ponto de deslizamento. Estava indo tão rápido que ela impulsionou seu braço para cima, e, como o corpo estava girando, o puxou da posição lateral para a de barriga para baixo; o empuxo quase quebrou os ligamentos que seguram as extremidades da clavícula e escápulas juntas. Com isso, o braço perdeu a força, mas havia freado o suficiente para ele ter a chance de segurar um ramo com a mão esquerda. Depois de pender por um ou dois momentos, para dar uma olhadela nas coisas e ter certeza de não fazer nada de errado, começou a se movimentar para cima, e, após alguns minutos, reuniu-se aos dois companheiros que o espreitavam lá do alto.

No fundo do vale, lá embaixo, um rio faiscava timidamente sob o fraco brilho do sol, enquanto descia impetuoso entre rochas e árvores.

A relva nos lados era sucedida por uma mistura de artemísias e arbustos da família do carvalho; lá no alto, dois milhafres circulavam contra o cinza do céu. E o caminho continuava pela beira das montanhas, por uma região selvagem.

Após descerem a encosta do penedo, surgiu-se lhes à frente uma montanha que parecia um navio retido por uma calmaria num estreito de neve e gelo derretendo. Um rio serpenteava entre margens alcantiladas descendo obliquamente de um a outro dos paredões brancos.

Continuaram a andar por algum tempo à sombra da montanha, contornaram um esporão e, finalmente, em um barranco cavado pelas águas, depararam com uma trilha muito íngreme, que ziguezagueava de um lado a outro do barranco.

Quando iam a meio caminho, uma águia passou voando tão perto deles, que sentiram no rosto o vento frio produzido pelo bater das asas.

O homem selvagem é um escravo da superstição. Apesar de toda a sua valentia, esconde-se quando irrompe o trovão e interrompe campanhas de guerra diante do azar prenunciado pelo vôo de certos pássaros. A estranha loucura da futilidade acomete qualquer nativo da Ciméria, quando coisas pequenas como um redemoinho, o canto oco de um pássaro ou o gemido do vento passando por galhos nus transporta suas mentes para o vazio da vida e da falta de sentido da existência. Somente na guerra os cimérios se sentem felizes.

Sendo assim, o trio interpretou o vôo da águia como um mau agouro e aceleraram seu passo.

Os cimérios acreditam que a vida não é vivida do começo ao fim, mas do fim ao começo. Para eles, cada hora já foi vivida antes; aquilo que aprendem estão só recordando, pois já o sabiam antes. Acreditam que na hora da morte – ou do nascimento, em sua visão – um homem tem que estar despido tanto de seus bens quanto de suas responsabilidades para ingressar no limbo cinzento onde habita Crom, seu deus principal. Portanto, a avareza é desconhecida para eles, como também o são a ambição, a sovinice e a inveja. Eles exaltam a vida na floresta, a convivência na tribo e a igualdade de posições, e o rigor pessoal que suas exigências instilam nos corações de todos.

Entre os usos e tradições observados pelos cimérios em sua religião, vale ressaltar que não costumam erguer estátuas, nem templos, nem altares; tratam, ao contrário, de insensatos os povos que assim procedem; porque não acreditam terem os deuses forma humana.

Crom mora em uma montanha inexpugnável e é um deus severo, controlador do destino e juiz da morte. Os cimérios não suplicam nada a Crom, pois consideram que seu deus é lúgubre e odeia os fracos.

Crom, em sua montanha, é rodeado por deuses menores, considerados como sua prole, como é o caso de Lir e seu filho Mannanan; Morrigan, a deusa guerreira, e seus subordinados Badb, que insufla a fúria aos homens na batalha; Nemain, chamado de o Venenoso; e Macha.

O selvagem não vê o mundo como talvez o visse um homem civilizado, ou seja, como uma entidade distinta do céu, governada por leis de causa e efeito. O selvagem não é capaz de conceber uma noção como essa. Aos seus olhos, esta terra não passa de um esboço do Outro Mundo, cuja superfície ele sonda com o ouvido, em busca da aparição de algum deus. Para ele, a existência é o tabuleiro de um jogo; joga os ossos e espera pela revelação.

Ao subirem uma elevação, de onde sabiam, poderiam ver a clareira onde estava encravada a tribo dos Falcões da Neve, depararam-se com uma coluna de fumaça que se desenrolava para as alturas, confundindo-se com as nuvens escuras do céu e os flocos de neve que começavam a cair, substituindo a chuva fraca.

Não havia dúvida: a aldeia estava sob ataque!


3. Sob a Sombra do Machado

GRESHAM, A ESPOSA DO FERREIRO DA TRIBO DOS FALCÕES DA NEVE, caminhava levemente sob esparsos flocos de neve, que caíam suavemente, vindos de um cinzento céu manchado pelo arrebol de fim de dia.

Ela ia por uma azinhaga entre antigos olmos e abetos negros; carregava nas costas uma espécie de trouxa, feita de pele de lobo, que abrigava uma criança com pouco mais de nove meses.

Seus longos cabelos castanhos escorriam por debaixo de uma touca feita de pele de urso; essa touca grossa era presa sob seu queixo branco como o marfim.

Gresham, sem dúvida, era muito bela; e, mesmo após o primeiro filho, seu corpo continuou esbelto e firme. Esse filho era o pequeno Conan, o rebento de Corin. Era uma criança forte e sadia e, como a maioria dos pequenos cimérios, quase nunca chorava. Tinha os cabelos negros como a noite ciméria; os pequenos olhos eram azuis como os de Gresham; seu corpo era robusto, tal qual o de um pequeno felino.

No entanto, Conan não era o primogênito de Corin, já que havia Chullain. Esse foi o primeiro filho de Corin com Ennyah. Porém a mulher morreu durante uma peleja entre a tribo dos Falcões da Neve e a tribo dos Lobos da Neve, um outro clã cimério.

Quando isso aconteceu, Chullain tinha apenas cinco anos. Ele passou algum tempo com os pais de Corin: Drogin e Tanith. Agora, contudo, é Gresham quem cuida do jovem Chullain, de sete anos.

Um bosque de abetos precedia a trilha para a oficina de Corin; e, quando entrou nesse bosque, Gresham sentiu um arrepio. Era uma sensação de perigo e, naquele lusco-fusco que já assomava, Gresham ficou apreensiva. Eram tempos difíceis aqueles. Os cimérios pararam de brigar entre si para dedicar atenção aos inimigos externos. E eles eram muitos: os pictos, que ultimamente vinham atravessando a fronteira e fazendo incursões rápidas e mortais em algumas aldeias cimérias; e os vanires, que se aproveitam para pilhar a fronteira norte.

Mas de todos, eram os pictos que os cimérios mais odiavam.

Um homem civilizado, com suas barrigas e suas coxas magricelas, não duraria uma hora no rigor da Ciméria, porque há um salto quantitativo na filosofia moral quando se cruza o rio Trovão, pois o picto é um empalador. Espeta crânios e pendura a pele de vítimas esfoladas nas árvores. Se você tenta se esconder, é como carne crua para o picto. Ele divisa um esconderijo propício e faz chover flechas no lugar. Ele apunhala o primeiro malandro que tenta sair da toca; esse entrega o resto. Tirar um anel de um dedo não é o estilo do picto. Ele corta a mão inteira e tira o anel com os dentes. É capaz de dar uma machadada na cabeça de alguém para conseguir um brinco, espalhando a polpa para seus cães. Tampouco é possível enganar o picto, escondendo seus bens no traseiro. Ele o corta como uma dona-de-casa faz com um ganso, e enterra o braço até o ombro. Que Mitra ajude aquelas matronas aquilonianas da fronteira que resolverem guardar seus tesouros em outro lugar que não em sua bolsa.

Diante de tantas ameaças e expectativas de batalhas sangrentas, o marido de Gresham, Corin, tem trabalhado mais para fazer muito mais espadas e machados.

Gresham está indo à oficina por dois motivos: levar alimentos ao marido e trazer o pequeno Chullain, que vem ajudando Corin nos últimos dias.

Em sua introspecção, Gresham só percebeu o gigantesco vulto à sua frente quando já era tarde demais.

O homem era um vanir gigantesco, de machado em punho e intenções animalescas no semblante. Avançou sobre Gresham com um grunhido de satisfação. A mulher virou-se e correu, mas teve seu impulso retido quando a mão do vanir segurou a trouxa onde ela carregava o pequeno Conan. A criança não chorou, mas parecia assustada diante daquela visão horrenda e rubra de um guerreiro vanir. Gresham girou nos calcanhares e, com um grito felino e fazendo uso de uma força interior desconhecida, desvencilhou-se do inimigo. Mas um outro vulto postou-se diante dela e ela reconheceu o marido num vislumbre, mas nem por isso diminuiu seu passo.

Ali estava Corin, seu companheiro, seu homem, seu marido e seu amigo, para protegê-la como sempre prometeu. Corin, que por causa de sua profissão de ferreiro, é chamado de Nial pelos outros cimérios da tribo; já que nial é o nome cimério para ferro.

Gresham olhou para o pequeno Conan e seu sorriso patenteou, num clarão branco, uma fileira de dentes de coral. Então se escondeu, com sua cria, entre alguns arbustos e ficou a observar o desenrolar dos acontecimentos.

Corin era um homem de poderosa compleição, peito amplo, ombros largos, maciços e, no entanto, vivo nos seus movimentos, elástico e ágil. O pilar redondo e sólido do pescoço sustentava uma cabeça admiravelmente bem-formada. Os cabelos eram escuros e lisos, feições fortemente pronunciadas. A seu modo vigoroso e enfático, era belo e tinha bem o ar de um soberano civilizado. Por profissão, era ferreiro da aldeia dos Falcões da Neve, e, no intervalo de suas atividades, era caçador.

Suas botas eram feitas de pêlo de urso, e revestidas de pêlo de zibelina aquiloniana e raposa; sobre elas, calças de pele de lobo com o pêlo voltado para o lado de dentro, cobertas por perneiras de pele de alce.

O peito era coberto com uma veste de pele de raposa e velo – certamente roubada em alguma incursão ao sul –, espessa como uma mão, com um sobretudo de pele de urso à prova de umidade, e um capuz forrado de pêlo de marta branca aesir. Sobre o ombro direito, ele usava uma pele de pantera negra, ainda com a cabeça, cujas dobras em suas costas formavam uma bolsa onde ele podia carregar uma trouxa de dormir. Na cabeça, ele usava um barrete aesir, de pele de corça forrado com pele de raposa; suas abas protegiam as orelhas.

O machado ele não levava como os outros cimérios, solto, pendurado ao lado da cintura, mas num estojo de pele de alce forrado com velo, entre as omoplatas.

O escudo de Corin era de pele de urso, da parte mais densa, do alto das costas do animal, com três camadas de espessura, laminado com uma cola feita de tendão de alce e revestido com pele de pantera negra. Quando colocado no braço, era como um pandeiro ao tato, retesado em sua estrutura de freixo, surpreendente forte para algo tão leve.

Em sua mão direita havia uma lança de freixo de três metros com ponta de sílex.

Corin examinou o rosto do vanir, um homem soturno, enfezado, com uma mistura de crueldade e astúcia selvagem nos olhos e na boca. O vanir, chamado Ernok, o Carniceiro, se postou diante dele com seu escudo, mas Corin não lhe deu nenhuma chance. Arremessou a lança com tanta violência que ponta e lança entraram no escudo, passando tão perto da marca fatal que um fragmento de freixo da lança cortou a faixa de couro que amarrava a couraça abaixo das costelas do vanir. O projétil fincou-se na terra como a estaca de um pavilhão. O bojo do escudo foi puxado para cima do vanir, prendendo-o embaixo. Corin fez a volta e se precipitou sobre o vanir por trás. O inimigo só tinha duas opções: gastar instantes preciosos arrancando o escudo ou abandoná-lo e enfrentar desprotegido a investida furiosa de Corin, mas finalmente arrancara seu escudo da terra, e se virou para enfrentá-lo.

Enquanto avançava, Corin tirou o machado do estojo entre suas omoplatas da seguinte maneira: quando a mão direita se elevou, curvando-se para trás, sobre o ombro, para alcançar o ferro amolado, já solto dentro de seu estojo, a mão esquerda contornou a cintura, segurou a parte inferior da arma e empurrou. Em um décimo do tempo que leva para relatar, o machado já está fora de seu estojo e nos dedos guerreiros de seu dono.

Corin atacou.

O vanir com poucos instantes para viver recebeu-o com o escudo, tentando acertá-lo com o arremesso de seu grande machado de guerra. No meio do percurso, o machado acertou a mão direita de Corin que empunhava sua arma, abrindo um talho em seu braço.

Mas Corin não diminuiu a velocidade, avançando em sua direção por toda a extensão que os separava, a fúria acumulada se desencadeando na violência de um urso enfurecido.

Ernok recuou rapidamente, levou a mão à espada na cintura, retirou-a, estava prestes a baixá-la. Um punho que mais parecia um tronco de árvore acertou-o na têmpora esquerda, arrancando-o do chão, jogando-o para trás.

Se sua forma física não fosse tão boa, certamente teria perdido os sentidos. Mas estava em excelente estado físico e era mais jovem do que o cimério. Ao cair, a espada escapuliu de sua mão e deslizou pelo chão coberto de neve e pedras pontiagudas. Levantou-se de mãos vazias, lutando para conter a carga do cimério. Os dois caíram ao chão, braços e pernas entrelaçados, rolando entre as pedras.

Corin procurou usar seu peso e força, o vanir recorreu a sua juventude e agilidade. O vanir é que venceu. Desvencilhando-se das mãos de Corin, correu em direção à espada. Quase conseguiu. A mão já se estava estendendo para o cabo quando Corin voou por cima da neve e segurou-lhe os tornozelos, puxando-os.

Os dois se levantaram ao mesmo tempo, separados por um metro, o cimério entre o vanir e a espada. Ernok atacou com o pé, acertando o homem maior na virilha e fazendo-o dobrar-se de dor. Corin recuperou-se prontamente, ergueu-se e se lançou contra o homem que ameaçara matar sua mulher e seu filho menor.

Ernok deve ter se lembrado de que era inútil gritar por ajuda, afinal eles estavam isolados na floresta. Por isso lutou em silêncio, esmurrando, mordendo, chutando, os dois rolando pela neve já suja pela lama negra revolvida por seus pés, engalfinhados, furiosos. Em algum lugar, no chão, estava a arma que poderia acabar com a luta.

A luta acabou em poucos instantes mais. Corin conseguiu livrar uma mão, agarrou a cabeça do vanir e empurrou-a violentamente contra uma das pedras roxas e pontiagudas. O vanir tentou gritar, mas sua voz esvaiu-se subitamente, até não ser mais que um crocitar ofegante, quase inaudível; sua boca abriu-se; ele fez um esforço desesperado para encher os pulmões de ar. Mas era como se não soubesse mais respirar. Tentou gritar novamente – mas não emitiu som algum; somente o terror dos olhos arregalados revelava o que ele estava sofrendo. Levou as mãos à garganta, depois agitou-as como se tentasse agarrar avidamente o ar – o ar que não podia mais respirar, o ar que para ele cessara de existir.

Corin estava de pé, inclinado sobre ele.

Então o vanir ficou rígido por um momento e depois desabou, inerte. Sob os cabelos, um filete de sangue começou a escorrer, descendo pela testa.

Ofegante de cansaço, Corin levantou e olhou para o homem morto. Foi até onde estava seu machado de guerra de duas lâminas, ergueu-o e seguiu em direção a sua mulher e filho.

O casal não trocou uma palavra sequer, mas Corin não tentou impedir quando Gresham, apoiando o pequeno Conan na trouxa, caminhou até onde estava a espada de Ernok, pegou-a, avançou até o corpo do vanir e decapitou-o, erguendo a cabeça ensangüentada e seguindo, devagar, o marido até a aldeia.


4. A Fúria da Forja

A FLORESTA ESTENDIA-SE, como um vasto lago de obscuridade, para a linha brilhante do céu a oeste. Rubra no horizonte, a luz que ainda restava do sol poente espalhava-se para o alto, passando do alaranjado ao vermelho e a um verde muito pálido. Para o norte, além e acima das árvores, estendiam-se cumes rochosos cobertos de neve.

Naquela paisagem havia uma tribo, com choças e cabanas de variados tamanhos. Mas tanto o interior como o exterior das cabanas cimérias são de troncos de pinheiro cortados, pregados em pranchas verticais. Os intervalos são tradicionalmente preenchidos com argila de rio, não sendo muito diferentes das típicas cabanas de troncos de Asgard ou Vanaheim.

Essas cabanas podem parecer primitivas e do ponto de vista sanitário freqüentemente o são, mas a verdade é que são mais quentes do que as estruturas de pedra ou barro nos inclementes invernos cimérios.

Ali se desenrolava uma luta sangrenta.

Um cimério arremessou uma lança contra um vanir. A ponta acertou o homem no plexo solar, atravessando os pulmões e a espinha e projetando-se três palmos para fora de suas costas. Ele cambaleou para trás, encostando-se numa cabana; antes que sua mão tateante pudesse agarrá-la, o cimério abrira sua barriga desde a altura das virilhas até a garganta. Ele tombou aos pés do cimério, vivo, a boca aberta de horror.

Mais adiante, um vanir segurou uma criança ciméria por trás e a ergueu no ar pelos cabelos. Quando ele ergueu uma adaga para cortar a garganta da criança, um machado, lançado nos ares, rodopiou sobre os ombros da criança, vindo pela frente, e acertou o vanir na junção dos dentes com a mandíbula. A lâmina de ferro penetrou na cabeça do vanir, rasgando a boca e fixando-se na base de seu crânio, entre o maxilar e a espinha cervical. A criança despencou no chão acima dele, que ainda estava vivo, tentando agarrar-lhe o pescoço.

Seu salvador parou diante dela.

Era Drogin.

Drogin tinha 75 anos e dava a impressão de que espancava ursos cinzas por diversão. Em torno de 2,05m de altura – na juventude, eram 2,10m –, o velho cimério cortava corpos ao meio com a facilidade de quem parte um melão ao meio.

Os cabelos brancos caíam até os ombros, e a barba branca por fazer aflorava pelo rosto.

Ele fez um sinal para a criança, que não era outra senão Chullain, seu neto, e disse:

- Pegue meu machado.

O vanir no chão ainda se contorcia, com o machado na cara, enquanto seus braços golpeavam sem que ele os comandasse. Chullain segurou o cabo e puxou. O machado veio com crânio e homem vivo presos nele.

- Coloque o calcanhar no rosto dele – ordenou Drogin.

Chullain obedeceu. O machado saiu.

O vanir tem esta característica: está sempre bêbado, não só quando vai para a batalha, mas durante o conselho também, e ali não confia em nenhum veredicto, a menos que seja feito quando está totalmente bêbado. Além disso, a maneira que eles têm de beber, engolindo rapidamente enormes quantidades, os torna insensíveis não só ao medo, mas também à dor. Dois cimérios se encarregaram de um sujeito desses, que os atacava. Ele usava uma proteção na cabeça feita de chifres de touro, com os pêlos do pescoço e tudo, e sua própria barba oleosa se projetava sob a malha de ferro que cobria o rosto. No total, ele pesava tanto quanto os dois cimérios juntos, mas avançava contra eles com a agilidade de um bode. Um dos cimérios enterrou uma lança de três metros tão fundo em seu lombo, que pôde sentir a ponta encostar na parte posterior da pélvis; colocou todo o seu peso na lança e se esforçou para retirá-la, enquanto seu amigo fazia talhos no braço direito do vanir até o punho e o machado caírem num monte. Ainda assim o monstro atacava, arremessando seu corpo sobre eles com tanta força que derrubou os dois, atirando-os contra o chão. Então um dos cimérios, de joelhos, girou o machado num golpe que cortou o homem de Vanaheim no joelho, como se derrubasse um carvalho. O vanir agarrou, com a mão que lhe restava, a garganta do cimério. A lança ainda estava em suas entranhas quando o outro cimério a arrancou, trazendo junto um pedaço das vestes, um cinturão de couro de touro e a maior parte dos intestinos do sujeito, que se desenrolaram como uma fileira de salsichas. O vanir ainda trovejava, tentando agarrar as partes pudendas do cimério com um coto que jorrava sangue, até que um dos amigos por fim conseguiu cortar a cartilagem de seu pescoço.

Corin surgiu na aldeia. Carregava o machado de guerra preso em um estojo de pele de alce às costas. No antebraço esquerdo, estava o escudo de guerra de pele de urso e pantera negra. Ele tinha duas lanças: a primeira, ele arremessou contra um vanir, atingindo-o no plexo solar com toda a força de seu arremesso, de modo que o homem nem mesmo cambaleou, sendo pregado, como uma tábua sob a marreta do marceneiro, na parede de uma cabana, morto antes que sua boca pudesse arquejar ou que um braço pudesse erguer-se para se proteger. A segunda lança acertou outro vanir no meio da garganta, atravessando a laringe e cortando a coluna que sustenta o peso do crânio, de modo que ele caiu como um saco de pedras, sem vida antes que sua carcaça chegasse ao chão.

Da garganta do cimério subiu aquele grito de guerra que faz a pele se arrepiar, e, agarrando o machado do estojo entre seus ombros, arremessou, enquanto corria, a arma sobre outra presa que fugia a sua frente, a lâmina assobiando e rodopiando até atingir o vanir entre as omoplatas e afundar, fazendo um corte do tamanho de sua mão aberta e se enterrando com a mesma profundidade nas cartilagens e nos ossos. A força do golpe derrubou o inimigo de testa no chão, onde ele bateu e quicou, os braços nem totalmente abertos em agonia, nem estendidos à sua frente para amortecer a queda, mas pendurados flacidamente ao lado do corpo, e escorregou sobre o peito como uma pedra lançada sobre um lago, deslizando, o alto da cabeça na frente, até atravessar a viela estreita entre duas cabanas, morto como um rato e incapaz de se locomover.

A expressão nos olhos de Corin era a de um lobo das montanhas. Era o olhar de um predador. Frio e impiedoso, sem medo. Quem visse aquele olhar teria a sensação semelhante à de estar frente a frente com um urso ou com um leão e ficaria eletrizado, com arrepios percorrendo sua coluna.

Corin foi avançando em meio à matança. Apanhou uma lança caída e deu uma estocada em um vanir, acertando-o abaixo do mamilo direito e atravessando sua espinha. O vanir desabou, cuspindo sangue.

O próximo a enfrentar a investida de Corin, teve seu crânio varado pela lança do cimério, que penetrou com tanta força que atravessou os ossos, da parte da frente à de trás, projetando-se mais de dois palmos para fora.

Em seguida, Corin se viu diante de dois inimigos. Ambos tinham mais de um metro e noventa e lutavam com a lança dos caçadores de javalis, as quais manejavam com a mesma facilidade com que um caçador usa sua faca para eviscerar a caça. O primeiro, Corin derrubou com um arremesso do machado, a lâmina de ferro penetrando em seu ventre na altura do umbigo e rasgando as roupas e o cinturão de guerra para expor seus intestinos. Ele rolou para trás, ainda vivo e urrando de raiva enquanto Corin avançava; tirando o machado de sua barriga, ele o brandiu e decepou sua cabeça.

O segundo vanir arremessou a lança enquanto Corin se virava para atacá-lo pelo lado. O projétil passou a milímetros da cabeça do cimério que se esquivou como uma pantera ao tempo em que apanhou uma clava no chão, que, graças a Crom, alguém perdera, e matou o inimigo com um golpe, destroçando seu crânio.

Um outro vanir surgiu de repente e quase acertou Corin por trás, mas esse deu um giro, quebrando com a clava a parte esquerda do quadril do inimigo, em seguida o fez cair de joelhos debaixo de golpes titânicos, despedaçando-lhe o ombro. O vanir caiu morto, reduzido a uma massa sangrenta.


5. Do Anoitecer ao Amanhecer

OS CIMÉRIOS ATACAVAM. Seu ódio pelos vanires é frio e amargo. Suas lanças e espadas brilhavam na escuridão que se adensava com um clarão de chama fria, tão mortal era a ira das mãos que as empunhavam.

Assim que o bando do inimigo estava apinhado no espaço aberto que era o centro da aldeia, um rugido grave ecoou. Com gritos de guerra, os cimérios mergulharam sobre eles, empunhando seus machados e longas espadas.

Os vanires sentiram, então, a estranha sensação de armadilha. Assim como a raposa quando entende que os cães, de alguma maneira, a colocaram num beco sem saída. Aquele momento de pânico em que a raposa se vira, dentes à mostra, para a batalha com os cães que, certamente, a farão em pedaços.

Então surgiu Gresham, com o pequeno Conan na trouxa às suas costas, e segurando com a mão esquerda, estendida à frente, a cabeça decepada de Ernok, o Carniceiro, o líder dos vanires.

Àquela visão, o pânico tomou conta dos vanires. Muitos já fugiam pelo rio próximo à aldeia para escapar da morte. Atrás deles, em meio aos cadáveres dos vanires, jaziam muitos cimérios que deveriam ter vivido ainda por muitos invernos na floresta.

No instante mesmo em que a maioria dos vanires fugia, Corin sentiu uma presença atrás de si, e quando girou, pronto para matar, quase foi derrubado por um vanir com um machado plantado entre as omoplatas.

Neste instante, as nuvens foram rasgadas pelo vento, e um sol vermelho cortou o leste. Vendo o brilho repentino na paisagem sombria, Corin olhou em volta, e, na hora fria que antecede a alvorada, deu um grito forte; tivera uma visão que fazia seu coração pular: um vulto escuro, grande e majestoso, contra a luminosidade distante.

- Drogin! – gritou ele. – Obrigado, meu pai! – O sorriso de Corin se alargou, deixando à mostra dentes brancos e regulares.

Seu pai avançou até ele. Parecia um touro selvagem, coberto de sangue, os trajes rasgados. Claudicava levemente. Drogin levantou o rosto, os olhos azuis faiscando sob as hirsutas sobrancelhas brancas. Abraçou seu filho, Corin, e lhe disse:

- Assim, chega a neve depois do fogo, e mesmo as batalhas chegam ao fim! – e afastou-se de Corin indo à procura de seus outros parentes.


Fim
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