(por Robert E. Howard)
Prefácio:
“Como posso suportar o jugo do trabalho e suar sob a ronda dos dias, enquanto em minha alma soam constantemente os tambores de Pictdom?”
Há uma fixação em mim, que tem me deixado perplexo até o momento atual. Não estou tentando dar um significado misterioso ou esotérico, mas o fato é que não consigo explicá-la nem entendê-la. Se trata de meu interesse pelo povo que, em honra da brevidade, é designado sempre como os pictos. Sou consciente, é claro, de que meu uso deste termo pode ser questionado. O povo, conhecido na história como picto, é nomeado diferentemente como celtas, aborígines e até germanos. Algumas autoridades defendem que chegaram à Britânia (Grã-Bretanha) depois dos britânios e logo antes da chegada dos gaélicos. Os “pictos bárbaros de Galloway”, que aparecem amplamente na lenda e nos inícios da história escocesa, eram, sem dúvida alguma, de uma raça bem miscigenada – com toda probabilidade, predominantemente celta, às vezes galesa e gaélica – e falavam uma espécie de Galês bastardeado, adulterado com elementos gaélicos e aborígines, em cuja deformação posterior deu-se, assim mesmo, uma considerável mistura de Alemão e escandinavo.
Provavelmente o termo “picto” se aplicava, particularmente, apenas à tribo nômade celta que se estabeleceu em Galloway e presumivelmente conquistou e foi absorvida pela população aborígine. Mas, para mim, “picto” deve referir-se sempre aos pequenos e escuros aborígines mediterrâneos da Britânia. Isto não é estranho, dado que, quando li pela primeira vez sobre estes aborígines, eles eram mencionados como pictos. O estranho é meu incansável interesse por eles. Li sobre eles pela primeira vez nas histórias da Escócia; meras referências, freqüentemente desaprovadoras. Entenda-se, minhas leituras de infância eram dispersas e esquemáticas, devido ao fato de que vivia no campo, onde tais livros eram escassos. Eu era um entusiasta da história escocesa, toda a que podia obter, e sentia um parentesco com os homens dos clãs, vestidos com seus saiotes, devido ao sangue escocês em minhas próprias veias. Nas breves e condensadas histórias que lia, os pictos eram mal mencionados em suas guerras e derrotas com os escoceses. Ou na história inglesa, como a causa dos britânios chamarem os saxões. A descrição mais completa que li, nessa época, era uma breve delimitação de um historiador inglês, segundo a qual os pictos eram selvagens bestiais que viviam em choças de barro. O único indício que obtive sobre eles, de um ponto de vista lendário, vinha de uma descrição de Rob Roy, o qual, mencionando a longitude anormal de seus próprios braços, se comparava aos pictos, comentando brevemente sua aparência robusta e simiesca. Pode-se ver que tudo o que li nessa época não estava projetado exatamente para inspirar admiração por tal raça.
Logo, quando tinha uns doze anos, passei um breve tempo em Nova Orleans e descobri, em uma biblioteca da Rua Canal, um livro que detalhava o percurso da história inglesa, desde os tempos pré-históricos até – creio – a conquista normanda. Estava escrito para estudantes e narrado num estilo interessante e romântico, provavelmente com muitas imprecisões históricas. Mas ali eu soube, pela primeira vez, do pequeno povo escuro que habitou inicialmente a Inglaterra, e ao qual se mencionava como pictos. Sempre senti um estranho interesse pelo termo e pelo povo, e naquele momento me absorvi estudando-os. O escritor pintava os aborígines sob uma luz não mais admirativa que os demais historiadores, cujas obras havia lido. Seus pictos eram astutos, furtivos, nada guerreiros e totalmente inferiores às raças que os seguiram. E, contudo, senti uma intensa simpatia por esse povo, e desde aquele momento, os adotei como um meio de contato com épocas antigas. Transformei-os numa forte raça de bárbaros guerreiros, lhes dei uma honorável história de glórias passadas e criei para eles um grande rei, Bran Mak Morn.
Devo admitir que minha imaginação era bem mais fraca quando chegou o momento de nomear tal personagem, que parecia haver nascido já adulto em minha mente. Muitos reis nas crônicas pictas têm nomes gaélicos, mas para ser coerente com minha versão fictícia da raça picta, seu grande rei devia ter um nome mais de acordo com sua antiguidade não-ariana. Chamei-o de Bran, por causa de outro personagem histórico favorito meu, o gaulês Brennus, que saqueou Roma, e Mak Morn, devido ao famoso herói irlandês Gol Mac Morn. Mudei a grafia de Mac para dar-lhe uma aparência não-gaélica, já que o alfabeto gaélico não contém o “k”, usando-se, simplesmente, “c” para dar o som de “k”. Assim, enquanto Bran Mac Morn significa, em gaélico, “O Corvo, Filho de Morn”, Bran Mak Morn não tem significado gaélico, mas sim um próprio, picto e antigo, com raízes nos sombrios labirintos da antiguidade; a semelhança gráfica e sonora com o termo gaélico é simples coincidência.
Bran Mak Morn não mudou com os anos; continua exatamente como quando surgiu, já adulto, em minha mente: um homem de estatura mediana, parecido com uma pantera, com inescrutáveis olhos negros, cabelo negro e pele morena. Ao ler sobre os pictos, tomei mentalmente o partido deles, em oposição aos invasores celtas e teutões, a quem sabia serem de aspecto idêntico ao meu, e, na verdade, meus antepassados. Meu interesse, especialmente no início de minha adolescência, por esse estranho povo neolítico, era tão agudo que eu não estava feliz com minha aparência nórdica e se, ao crescer, eu me transformasse no tipo de homem que desejava ser desde menino, eu seria baixo, robusto, com membros grossos e nodosos, olhos como contas negras, testa estreita e fugidia, mandíbula pesada, e uma lisa e áspera cabeleira negra... minha concepção de um típico picto. Não consigo relacionar esse capricho com uma admiração a alguma pessoa desse tipo; era o resultado de meu interesse na raça mediterrânea, que foi a primeira a habitar a Inglaterra.
Meu interesse nos pictos estava sempre misturado a uma pitada de fantasia, isto é, nunca senti com eles a identificação realista que sentia pelos irlandeses e escoceses das Terras Altas. Não é que fosse menos vívida; mas quando se tratava de escrever sobre eles, continuava sendo através de olhos estranhos. Assim, a minha primeira história de Bran Mak Morn (Homens das Sombras), eu narrei do ponto de vista de um mercenário godo no exército romano; num longo poema narrativo que nunca completei, e no qual pus pela primeira vez Bran numa obra (manuscrito perdido), contei através de um centurião romano no Muro; em “A Raça Perdida”, a figura central era um britânico e, em “Reis da Noite”, um príncipe gaélico. Somente em minha última história de Bran, “Vermes da Terra”, olhei através dos olhos de um picto, e falei com a língua de um picto!
“Reis da Noite” trata dos esforços de Roma em subjugar o selvagem povo da Caledônia. Os personagens e ações são fictícios, mas o período e o curso geral dos acontecimentos são históricos. Como se sabe, os romanos nunca conseguiram estender suas fronteiras muito além do Muro e, após várias campanhas fracassadas, se retiraram ao sul do mesmo. Sua derrota cumpriu-se mediante um esforço unitário, tal como o que é aqui refletido: uma aliança temporária entre elementos gauleses, galeses, aborígines e possivelmente teutônicos. Tenho uma idéia bastante definida de que uma lenta infiltração de colonos germânicos havia começado no leste da Caledônia, muito antes da inundação geral que submergiu os países latinizados.
Em “Vermes da Terra”, voltei novamente à eterna luta de Bran contra Roma. Mal consigo pensar nele sob outro aspecto. Às vezes penso que Bran é meramente símbolo de meu próprio antagonismo ante o império, um antagonismo não tão fácil de entender, assim como meu favoritismo diante dos pictos. Talvez se trate de outra explicação para este último; vi pela primeira vez o nome “pictos” em mapas, e o nome sempre estava fora dos vastos limites do Império Romano. Este fato despertou meu intenso interesse; era muito significativo em si mesmo. O simples fato sugeria guerras terríveis – ataques selvagens e feroz resistência –, valentia, heroísmo e ferocidade. Eu era inimigo de Roma por instinto; nada mais natural que me aliar instintivamente a seus inimigos, especialmente quando estes haviam resistido, com êxito, a todas as tentativas de subjugação. Quando, em meus sonhos – não devaneios, mas sonhos autênticos –, lutava contra as legiões blindadas de Roma e recuava, ferido e derrotado, saltava em minha mente – como uma invasão de outro mundo nascido artificialmente do futuro – a imagem de um mapa, percorrido pelo amplo império de Roma, e sempre além da fronteira, fora das linhas de subjugação, a críptica frase “pictos e escoceses”. E sempre se erguia em minha mente o mesmo pensamento para conceder-me novas forças: entre os pictos, eu podia achar refúgio, a salvo de meus inimigos, de onde poderia curar minhas feridas e renovar minhas forças para as guerras.
Algum dia, tentarei escrever um relato que tenha a extensão de uma novela e trate dessa época nebulosa. Permitindo-me as licenças que um novelista histórico pode se conceder, pretendo desenvolver um argumento semelhante a este: a lenta queda da influência romana na Inglaterra e a invasão de nômades teutônicos, vindos do Leste. Estes, após desembarcarem na costa oriental da Caledônia, pressionam lentamente para oeste, até entrarem em violento conflito com os mais antigos assentamentos gaélicos no oeste. Através das ruínas do antigo reino pré-ariano dos pictos, há muito tempo pegas entre inimigos implacáveis, estas tribos guerreiras se enfrentam até a morte, apenas para se voltarem contra um inimigo comum: os conquistadores saxões. Pretendo que a história seja de nações e reis mais que de indivíduos. Sem dúvida, nunca a escreverei.
A Raça Perdida
Originalmente publicado em janeiro/ 1927
Cororuc examinou o que lhe cercava e apressou o passo. Não era covarde, mas não gostava do lugar. Altas árvores se erguiam ao seu redor, com seus galhos taciturnos bloqueando a luz do sol. O escuro caminho entrava e saía entre eles, às vezes rodeando a beirada de um precipício, de onde Cororuc podia contemplar as copas das árvores lá embaixo. Ocasionalmente, através de uma clareira no bosque, podia ver à distância as formidáveis montanhas, que deixavam pressentir as cordilheiras muito mais distantes, a oeste, que compunham as montanhas da Cornualha.
Nessas montanhas, se acreditava que vivia à espreita o chefe dos bandidos, Buruc o Cruel, para cair sobre as vítimas que passassem por aquele caminho. Cororuc apertou sua lança e aumentou as passadas. Sua pressa não se devia apenas à ameaça dos foragidos, mas também ao fato de querer estar novamente em sua terra natal. Havia estado numa missão secreta entre as tribos selvagens de Cornish; e, embora tenha obtido certo êxito, estava impaciente por se encontrar fora de seu inóspito país. Fora uma viagem longa e exaustiva, e ele ainda teria que atravessar toda a Inglaterra. Lançou um olhar de repulsa aos seus arredores. Sentia saudade dos simpáticos bosques aos quais estava acostumado, com seus cervos fugidios e pássaros gorjeantes. Ansiava pelo alto escarpado branco, de onde o mar azul rugia alegremente. O bosque que estava cruzando parecia desabitado. Não havia pássaros nem animais; e tampouco ele vira algum sinal de moradias humanas.
Seus companheiros ainda permaneciam na selvagem corte do rei de Cornish, desfrutando de sua rústica hospitalidade, sem nenhuma pressa de partir. Mas Cororuc não estava satisfeito. Por isso, deixou-os continuarem suas extravagâncias e partiu só.
Era esplêndida a postura de Cororuc. Media um metro e oitenta; tinha uma constituição forte, porém esbelta, e era, com seus olhos cinzas, um bretão puro, embora não fosse um celta puro – já que sua longa cabeleira amarela revelava, nele como em toda sua raça, um vestígio de belga.
Ia vestido com peles de cervo habilmente costuradas, pois os celtas ainda não haviam desenvolvido o áspero tecido que mais tarde criariam; e a maioria de sua raça preferia couro de cervo.
Estava armado com um grande arco de madeira, feito sem nenhuma arte especial, mas uma arma eficiente; uma espada de bronze, com bainha de pele de gamo, uma longa adaga de bronze e um pequeno escudo redondo, debrumado com uma faixa de bronze e coberto com duro couro de búfalo. Um tosco elmo de bronze cobria sua cabeça. Em seus braços e rosto se distinguiam símbolos confusos, pintados com erva pastel.
Seu rosto jovem pertencia ao tipo mais elevado de bretão: desembaraçado e retilíneo, com a bravia e prática determinação do nórdico misturando-se com a indomável coragem e a sonhadora habilidade artística do celta.
Assim caminhava Cororuc pela senda do bosque, precavidamente, disposto a fugir ou lutar, mas preferindo não ter que fazer nenhuma das duas coisas.
O caminho se afastava do barranco, desaparecendo ao redor de uma grande árvore. E, do outro lado da árvore, Cororuc ouviu sons de luta. Deslizando-se cautelosamente para diante, e se perguntando se ele veria algum dos elfos e anões que dizia-se povoarem as florestas, espreitou ao redor da grande árvore.
A alguns metros de distância, ele viu um estranho quadro. Um grande lobo estava apoiado numa árvore, encurralado, e o sangue lhe brotava dos ferimentos em suas costas. Diante dele, preparando-se para saltar, o guerreiro viu uma grande pantera. Cororuc se perguntou qual o motivo da luta. Os senhores do bosque não costumavam se enfrentar em combate. E os rugidos do felino deixavam-no perplexo. Selvagens e sedentos de sangue, continham, contudo, um estranho tom de medo; e a fera parecia vacilar diante do salto.
Por que Cororuc escolheu tomar partido do lobo, nem ele mesmo conseguiria dizer. Sem dúvida, foi apenas o temerário cavalheirismo de seu lado celta, uma admiração ante a impávida atitude contra seu mais poderoso inimigo. Seja como for, Cororuc, esquecendo totalmente o arco e escolhendo o curso de ação mais temerário, desembainhou a espada e saltou diante da pantera. Mas não teve oportunidade de usá-la. A pantera, cuja valentia já parecia um tanto quebrada, lançou um grito rangente de surpresa e desapareceu por entre as árvores, com tanta rapidez que Cororuc se perguntou se havia visto realmente uma pantera. Ele se virou para o lobo, se perguntando se este saltaria sobre ele. Ele estava mirando-o, meio encolhido; afastou-se lentamente da árvore e, ainda olhando-o, retrocedeu uns poucos passos, e logo se virou e partiu, arrastando estranhamente as patas. Enquanto o guerreiro lhe observava desaparecer no bosque, uma misteriosa sensação o invadiu; ele tinha visto muitos lobos, havia caçado-os e fora caçado por eles, mas nunca antes tinha visto um lobo semelhante.
Ele hesitou e logo partiu cautelosamente atrás do animal, seguindo as pegadas claramente marcadas no marga macio. Não se apressou, contentando-se meramente em seguir o rastro. Depois de uma curta distância, ele parou subitamente, e os pêlos de sua nuca se arrepiaram. Só havia marcas das patas traseiras: o lobo caminhava erguido.
Olhou a seu redor. Não se ouvia nada; o bosque continuava silencioso. Sentiu o impulso de dar a volta e pôr toda a distância possível entre ele e o mistério, mas sua curiosidade celta não o permitia. Seguiu o rastro. E este desapareceu por completo. Debaixo de uma grande árvore, as pegadas desapareciam. Cororuc sentiu um suor frio na testa. Que tipo de lugar era aquele bosque? Estava ele sendo conduzido à perdição e sendo iludido por algum monstro inumano e sobrenatural das matas, que buscava capturá-lo numa armadilha? Recuou, com a espada erguida: sua coragem o impedia de correr, mas sentia grande vontade de fazê-lo. E assim, ele voltou à árvore onde vira pela primeira vez o lobo. O caminho que seguira se afastava da árvore em outra direção, e Cororuc o tomou, quase correndo, em sua pressa de sair das proximidades de um lobo que andava sobre duas patas e logo desaparecia no ar.
O caminho fazia curvas cada vez mais entediantes, aparecendo e desaparecendo em apenas uma dúzia de passos, mas isso era bom para Cororuc, pois assim ele pôde ouvir as vozes dos homens que vinham pela vereda antes que eles o vissem. Ele subiu uma grande árvore que se estendia sobre o caminho e comprimiu-se contra o grande tronco, ao longo de um galho.
Três homens vinham, pela senda da floresta.
Um deles era um total homenzarrão, de mais de um metro e noventa de altura, com uma longa barba vermelha e uma espessa mata de cabelos ruivos. Em contraste, seus olhos eram como contas negras. Ia vestido com peles de cervo, e armado com uma grande espada.
Dos outros dois, um era um canalha alto e magro, e de aspecto maligno, com um olho só, e um outro, um homenzinho magro, cujos olhos eram espantosamente tortos.
Cororuc os conhecia, pelas descrições feitas pelos homens de Cornish entre maldições, e, em sua ânsia de obter uma melhor visão do assassino mais perverso da Inglaterra, escorregou do galho da árvore e caiu ao chão, bem no meio deles.
Num instante, ele ficou de pé, com a espada desembainhada. Não podia esperar piedade, pois sabia que o ruivo era Buruc o Cruel, o flagelo da Cornualha.
O chefe dos bandidos praguejou terrivelmente e desembainhou subitamente sua grande espada. Evitou a furiosa estocada do bretão com um ágil salto para trás, e começou a luta. Buruc lançou-se de frente contra o guerreiro, lutando para matá-lo de um só golpe, enquanto o vilão caolho e magro girava a seu redor, tentando colocar-se atrás dele. O menor dos homens havia se retirado para a orla do bosque. A sutil arte da esgrima era desconhecida para estes primeiros espadachins. Tentava-se cortar, esfaquear e apunhalar, pondo todo o peso do braço atrás de cada golpe. Os terríveis golpes que se abatiam em seu escudo derrubaram Cororuc ao solo, e o vilão caolho se apressou em acabar com ele. Cororuc girou sobre si mesmo sem levantar-se, cortou as pernas do bandido por trás e o apunhalou enquanto caía, lançando-se depois para um lado e se levantando a tempo de evitar a espada de Buruc. Então, erguendo seu escudo para deter a espada do bandido no ar, desviou-a e girou a sua com toda a força. A cabeça de Buruc voou de seus ombros.
Então, Cororuc deu meia-volta e viu o bandido magro fugir no bosque. Correu atrás dele, mas o homem havia desaparecido entre as árvores. Sabia que era inútil tentar persegui-lo, de modo que deu a volta e correu pela senda. Não sabia se havia mais bandidos nessa direção, mas sabia que, se esperava sair do bosque de alguma forma, tinha que fazê-lo rapidamente. Sem dúvida, o malfeitor que fugia alertaria os demais bandidos, e eles logo estariam vasculhando os bosques à sua procura.
Após correr certa distância pelo caminho, e não vendo sinais de inimigo algum, ele parou e subiu até os galhos superiores de uma grande árvore que se erguia por cima de suas congêneres.
Por todos os lados, um oceano de folhas parecia rodeá-lo. A oeste, pôde ver as colinas que ele havia evitado. Ao norte, à distância, se erguiam outras colinas. Ao sul corria o bosque, como um mar ininterrupto. Mas, na direção leste, à distância, conseguia distinguir penosamente a linha que marcava o final do bosque, nas planícies férteis. Milhas e milhas além – não sabia quantas –, no entanto, significavam uma viagem mais agradável, aldeias de homens, gente de sua própria raça. Se surpreendeu em ser capaz de enxergar tão longe, mas a árvore onde se encontrava era uma gigante entre as de sua espécie.
Antes de começar a descer, ele olhou os arredores. Conseguia ver a linha debilmente marcada da vereda que havia seguido, rumo ao leste, e podia distinguir outras sendas que levavam a ela ou que se afastavam. Então, um brilho chamou-lhe a atenção. Fixou o olhar numa clareira a certa distância pelo caminho, e viu um grupo de homens entrar e desaparecer. Aqui e ali, em cada vereda, captou vislumbres de apetrechos que brilhavam, e a ondulação da folhagem. Assim, pois, o vilão vesgo já havia alertado os bandidos... Estavam por todos os lados; ele se encontrava virtualmente cercado.
Uns gritos selvagens, que chegavam de além da vereda, lhe sobressaltaram. Já haviam estendido uma corda ao redor do local do combate, e descoberto sua fuga... Se ele não tivesse fugido rapidamente, o teriam pegado. Ele estava fora da corda, mas os bandidos lhe cercavam por todos os lados. Saiu velozmente da árvore e adentrou o bosque.
Então, começou a mais emocionante caçada na qual Cororuc havia embarcado, pois ele era a presa, e os caçadores eram homens. Escapulindo, deslizando-se de um arbusto a outro e de árvore em árvore, ora correndo velozmente, ora se escondendo na espessura, Cororuc fugia, sempre para o leste, não se atrevendo a recuar para não ser obrigado a penetrar novamente na floresta. Às vezes, se via forçado a desviar seu caminho; de fato, raramente fugia em linha reta, embora sempre desse um jeito de se aproximar do leste.
Às vezes, se escondia entre os arbustos ou se pendurava sobre algum galho frondoso, e viu os bandidos passarem tão perto dele que poderia tocá-los. Uma ou duas vezes, eles o viram, e ele escapou, saltando sobre troncos e arbustos, entrando e saindo como uma flecha por entre as árvores; e sempre os evitava.
Foi numa dessas precipitadas escapatórias, quando percebeu que havia entrado num desfiladeiro de pequenas colinas, as quais ele não havia percebido, e olhando por cima do ombro, viu que seus perseguidores haviam parado, ainda tendo-o à vista. Sem parar para refletir sobre uma coisa tão estranha, contornou rapidamente um grande penhasco, sentiu seu pé tropeçar numa trepadeira, e caiu. Ao mesmo tempo, algo golpeou a cabeça do jovem, deixando-o inconsciente.
Quando Cororuc recobrou os sentidos, descobriu que estava com os pés e mãos amarrados. Estava sendo transportado por um terreno cheio de buracos. Examinou o que lhe cercava. Estava sendo carregado nos ombros por homens, mas homens como jamais vira antes. O mais alto mal chegava a um metro e vinte, e eram de compleição escassa e pele muito morena. Tinham olhos negros, e a maioria deles se inclinava para a frente, como resultado de toda uma vida se escondendo e espreitando furtivamente em todas as direções. Iam armados com pequenos arcos, flechas, lanças e punhais, todos bem afiados, mas não de bronze rusticamente trabalhado, e sim de sílex e obsidiana do mais fino feitio. Se vestiam com peles – de coelho e outros pequenos animais – magnificamente costuradas, e uma espécie de pano áspero; e muitos estavam tatuados da cabeça aos pés, com ocre e erva pastel. Eram talvez uns vinte, ao todo. Que tipo de homens eles eram? Cororuc nunca tinha visto outros iguais.
Desciam por um barranco, com escarpados de ambos os lados. Chegaram facilmente ao que parecia uma parede nua, onde o barranco parecia chegar a um fim abrupto. Lá, a uma palavra do que parecia estar no comando, desceram o bretão e, agarrando um grande penhasco, correram-no para um lado. Surgiu uma pequena caverna, que parecia desaparecer na terra; logo, os estranhos homens pegaram novamente o bretão e avançaram.
O cabelo de Cororuc se arrepiou diante da idéia de ser levado àquela caverna de aspecto lúgubre. Que tipo de homens eles eram? Em toda a Britânia e Alba, na Cornualha ou na Irlanda, Cororuc nunca tinha visto homens parecidos. Homens pequenos, quase anões, que viviam na terra. Um suor frio apareceu na testa do jovem. Com certeza, eram os anões malévolos dos quais o povo de Cornish havia falado, que viviam em suas cavernas durante o dia e saíam pela noite, para roubar e queimar – até matando, se houvesse oportunidade! Mesmo hoje, vocês ouvirão falar deles, se viajarem à Cornualha.
Os homens – ou elfos, se o eram – levaram-no ao interior da caverna, enquanto outros entravam. Por um momento, tudo era escuridão; e logo, começaram a brilhar as tochas à distância. A um grito, moveram-se para a frente. Outros homens das cavernas avançaram, portando tochas.
Cororuc olhou a seu redor. As tochas espalhavam uma vaga claridade sobre a cena. Às vezes, um muro ou outro da caverna aparecia por um instante, e o bretão era confusamente consciente de que estavam cobertos por pinturas, toscamente desenhadas, mas com certa habilidade que sua própria raça não conseguia igualar. No entanto, o teto permanecia sempre invisível. Cororuc sabia que a caverna, aparentemente pequena, dera lugar a uma gruta de tamanho surpreendente. O estranho povo se movia através da vaga luz das tochas, indo e vindo silenciosamente, como sombras de um passado nebuloso.
Ele sentiu afrouxarem as cordas ou correias que mantinham seus pés amarrados. Puseram-no em pé.
- Caminhe em linha reta para a frente. – disse uma voz, falando a linguagem de sua própria raça, e sentiu a ponta de uma lança tocar-lhe a nuca.
E caminhou para a frente, sentindo o roçar de suas sandálias no chão de pedra da caverna, até chegarem a um lugar onde o chão se inclinava para cima. A encosta era inclinada; e a pedra, tão escorregadia que Cororuc não conseguiria subi-la só. Mas seus captores o empurraram e puxaram, e ele viu que as longas cordas pendiam de algum lugar no alto.
Os estranhos homens agarraram-nas e, pondo os pés contra a ladeira escorregadia, subiram velozmente. Quando seus pés encontraram novamente terreno plano, a gruta fez uma curva e Cororuc entrou numa cena, iluminada pelo fogo, que o surpreendeu.
A gruta desembocava numa caverna tão vasta que era quase inacreditável. Os potentes muros se erguiam até um grande teto abobadado que desaparecia na escuridão. O chão estava nivelado, e através dele fluía um rio, um rio subterrâneo. Ele nascia sob um muro para desaparecer silenciosamente sob o outro. Uma arqueada ponte de pedra, aparentemente de origem natural, passava pela correnteza.
Ao longo dos muros da caverna, que era quase circular, havia grutas menores, e diante de cada uma delas, ardia uma fogueira. Mais para o alto, havia outras grutas, dispostas regularmente, fileira sobre fileira. Com toda certeza, tal cidade não poderia ter sido construída por seres humanos.
Entrando e saindo das grutas, pelo chão nivelado da caverna principal, as pessoas trabalhavam com afinco no que pareciam ser suas tarefas cotidianas. Os homens conversavam em grupo e consertavam armas; alguns pescavam no rio. As mulheres alimentavam as fogueiras e preparavam roupas. A julgar por suas atividades, poderia tratar-se de qualquer aldeia da Britânia. Mas tudo pareceu estranhamente irreal a Cororuc: o lugar estranho; o povo pequeno e silencioso, ocupado em suas tarefas, o rio fluindo através de tudo.
Então, eles viram o prisioneiro e se agruparam a seu redor. Não houve nada de gritaria, de maus tratos e das indignidades que os selvagens usualmente amontoam sobre seus prisioneiros, enquanto os pequenos homens se aproximavam de Cororuc, contemplando-o silenciosamente com olhares lupinos e malévolos. O guerreiro estremeceu.
Mas seus captores abriram caminho entre a multidão, conduzindo o bretão diante deles. Próximos à margem do rio, eles pararam e se afastaram dele.
Duas grandes fogueiras estouravam e tremeluziam diante dele, e havia algo entre elas. Focalizou o olhar e finalmente distinguiu o objeto. Uma grande poltrona de pedra, feito um trono; e, sentado nela, um homem de idade avançada, com uma longa barba branca, silencioso, imóvel, mas com olhos negros que brilhavam como os de um lobo.
O ancião estava vestido com uma roupa longa e ondulante de uma só peça. Uma mão semelhante a uma garra, de dedos ossudos e retorcidos, e unhas como as de um falcão, descansava no assento junto a ele. A outra mão estava escondida entre as roupas.
A luz do fogo dançava e tremeluzia; ora o velho se destacava claramente – com seu nariz de gancho e semelhante a um bico de ave, e sua longa barba em vívido destaque –, ora parecia se afastar até ficar invisível ao olhar do bretão, exceto por seus olhos reluzentes.
- Fale, bretão! – As palavras surgiram de repente, fortes e claras, sem nenhum sinal de velhice – Fale! O que tem a dizer?
Cororuc, pego de surpresa, gaguejou e disse:
- Eu... eu... Que tipo de homens vocês são? Por que me aprisionaram? Vocês são elfos?
- Somos pictos. – foi a áspera resposta.
- Pictos!
Cororuc ouvira, dos bretões gaélicos, relatos sobre esse antigo povo: alguns diziam que eles ainda se escondiam nas colinas de Siluria, mas...
- Lutei contra pictos na Caledônia – contestou o bretão –; são baixos, mas musculosos e disformes. Não se parecem em nada com vocês!
- Não são pictos verdadeiros. – ele replicou asperamente – Olhe ao seu redor, bretão. – ele fez um gesto com o braço – Você está vendo os restos de uma raça que desaparece; uma raça que, em outras épocas, governou a Inglaterra de um mar a outro.
O bretão olhou, assombrado.
- Escute, bretão. – continuou a voz – Escute, bárbaro, enquanto lhe conto a história da raça perdida.
A luz do fogo piscava e dançava, lançando vagos reflexos nos imponentes muros e na veloz correnteza.
A voz do ancião ressoou através da enorme caverna:
- Nosso povo veio do sul. Além das ilhas, além do mar interior. Além das montanhas coroadas de neve, onde alguns permaneceram, para conterem qualquer inimigo que pudesse nos seguir. Descemos para as planícies férteis. Nos espalhamos por toda a terra. Ficamos ricos e prósperos. Então, dois reis se rebelaram no país, e o vencedor expulsou o vencido. De modo que muitos de nós fizemos barcos e zarpamos para os distantes escarpados que faiscavam radiantes sob o sol. Encontramos uma terra abundante com planícies férteis. Encontramos uma raça de bárbaros ruivos, que moravam em grutas. Poderosos gigantes, de corpos grandes e mentes pequenas.
“Construímos nossas choças de vime. Aramos o solo. Limpamos a floresta. Lançamos os gigantes ruivos de volta ao bosque. Cada vez mais para longe os levamos, até que eles por fim fugiram para as montanhas do oeste e do norte. Éramos ricos. Éramos prósperos.
“Então... – sua voz se encheu de fúria e ódio, até parecer reverberar através da caverna – Então, chegaram os celtas. Das ilhas do oeste, vieram em suas embarcações toscas. Desembarcaram no oeste, mas não estavam satisfeitos com o oeste. Avançaram para o leste e tomaram as planícies férteis. Lutamos. Eles eram muito fortes. Eram guerreiros ferozes e estavam armados com bronze, enquanto nós só tínhamos armas de sílex.
“Fomos expulsos. Nos escravizaram. Nos lançaram ao bosque. Alguns de nós fugimos para as montanhas do oeste. Muitos fugiram para as montanhas do norte. Lá, eles se misturaram com os gigantes ruivos que havíamos expulsado há tanto tempo atrás, e se transformaram numa raça de anões monstruosos, perdendo todas as artes da paz e ganhando só a habilidade de combater.
“Mas, alguns de nós juramos que nunca deixaríamos a terra pela qual havíamos lutado. Mas os celtas nos empurraram. Eram muitos, e muitos vieram. Imediatamente, fugimos para as cavernas, barrancos e grutas. Nós, que havíamos morado sempre em cabanas que deixavam entrar tanta luz, que sempre havíamos arado o solo, aprendemos a viver como animais, em grutas onde a luz do sol jamais entrou. Algumas, nós encontramos, e esta é a maior; algumas nós fizemos.
“Você, bretão... – a voz se transformou num grasnido, e um longo braço se estendeu, acusando – Você e sua raça fizeram de uma nação livre e próspera uma raça de ratazanas! Nós, que nunca fugimos, que vivíamos ao ar livre, sob a luz do sol, perto do mar de onde vinham os mercadores, temos que fugir como animais perseguidos e nos esconder como toupeiras! Mas à noite... Ah, nos vingamos! Rastejamos de nossos esconderijos, barrancos e cavernas, com tocha e punhal! Veja, bretão!”.
E, seguindo o gesto, Cororuc viu um poste circular, de algum tipo de madeira muito dura, fincado num buraco no chão de pedra, perto da margem. Ao redor do buraco, o chão estava carbonizado como que por antigas fogueiras.
Cororuc olhou, sem entender. Na verdade, pouco entendia de tudo o que acontecia. Não estava certo de que aquela gente fosse humana. Havia ouvido falar tanto deles quanto do “povo pequeno”... Histórias sobre seus atos, seu ódio pela raça humana e sua maldade eram revividas por ele como uma torrente. Ignorava estar contemplando um dos mistérios das eras. Que as histórias que os velhos gaélicos contavam, já distorcidas, sobre os pictos, ficariam ainda mais distorcidas de uma era para a outra, para resultarem nas histórias dos elfos, anões, trolls e fadas, primeiro aceitas e logo totalmente rechaçadas pela raça humana, da mesma forma que os neandertais originaram as histórias de duendes e ogros. Mas Cororuc nada sabia disso, e nada lhe importava; e o ancião estava falando de novo:
- Lá, lá, bretão! – exultava, apontando para o poste – Lá, você pagará! Um pagamento pequeno pela dívida que sua raça tem com a minha, mas até o limite de seu alcance.
A alegria do ancião seria demoníaca, se não fosse por certo propósito elevado em seu rosto. Era sincero. Acreditava que estava apenas tomando sua vingança justa; e se assemelhava a algum grande patriota, lutando por uma causa poderosa e perdida.
- Mas eu sou bretão! – gaguejou Cororuc – Não foi meu povo quem exilou a sua raça! Eram gaélicos, da Irlanda. Sou um bretão, e minha raça chegou da Gália há apenas cem anos. Conquistamos os gaélicos e os expulsamos para Erin, Gales e Caledônia, do mesmo modo que eles expulsaram a sua raça.
- Não importa! – o ancião chefe havia se levantado – Um celta é um celta. Bretão ou gaélico, não há diferença. Se não fossem os gaélicos, teriam sido os bretões. Cada celta que cai em nossas mãos deve pagar, seja guerreiro ou mulher, criança ou rei. Peguem-no e amarrem-no ao poste.
Num instante, Cororuc foi atado ao poste, e viu, horrorizado, que os pictos amontoavam lenha junto a seus pés.
- E quando houver ardido o suficiente, bretão – disse o ancião –, esta adaga, que bebeu o sangue de uma centena de bretões, saciará a sede no seu.
- Mas nunca fiz mal a um picto! – ofegou Cororuc, lutando contra suas amarras.
- Você está pagando, não pelo que fez, mas pelo que sua raça fez. – respondeu secamente o ancião – Lembro bem do que fizeram os celtas quando desembarcaram pela primeira vez na Inglaterra... os uivos dos degolados, os gritos das moças violadas, a fumaça das aldeias queimando, o saque...
Cororuc sentiu arrepiarem os cabelos da nuca. Quando os celtas desembarcaram pela primeira vez na Inglaterra! Isso foi há mais de quinhentos anos!
E sua curiosidade celta não lhe permitiu calar-se, nem mesmo no poste, com os pictos se preparando para acenderem a lenha empilhada a seu redor.
- Você não pode se lembrar disso. Foi há eras.
O ancião o olhou sombriamente.
- E eu tenho eras de idade. Em minha juventude, fui caçador de bruxas, e uma velha me amaldiçoou enquanto se retorcia na estaca. Ela disse que eu viveria até que a última criança da raça picta houvesse desaparecido. Que eu veria a nação outrora poderosa afundar no esquecimento; e então, só então, deveria segui-la. Pois ela me impôs a maldição da vida eterna.
Sua voz se ergueu até preencher a caverna.
- Mas a maldição não era nada. As palavras não podem causar mal, não podem fazer nada a um homem. Eu vivo. Eu vi ir e vir uma centena de gerações, e mais outra centena. O que é o tempo? O sol nasce e se põe, e outro dia caiu no esquecimento. Os homens vigiam o sol e arrumam suas vidas segundo ele. A cada momento, se aliam ao tempo. Contam os minutos que os levam à corrida em direção à eternidade. O homem sobreviveu aos séculos quando começou a contar o tempo. O tempo é obra do homem. A eternidade é a obra dos deuses. Nesta caverna, não existe o tempo. Não há estrelas, não há sol. Dentro, está a eternidade, fora está o tempo. Não contamos o tempo. Nada marca o passar das horas. Os jovens saem. Vêem o sol, as estrelas. Contam o tempo. E entram. Eu era um jovem quando entrei nesta caverna. Nunca a abandonei. Tal como vocês contam o tempo, eu posso ter ficado aqui por um milênio, ou uma hora. Quando não está cingida pelo tempo, a alma, a mente... chame como quiser... pode conquistar o corpo. E os homens sábios de minha raça, em minha juventude, sabiam mais que os do mundo exterior nunca aprenderão. Quando sinto que meu corpo começa a se debilitar, tomo a poção que, em todo mundo, só eu conheço. Ela não dá a imortalidade, pois isso é obra só da mente; mas reconstrói o corpo. A raça dos pictos desaparece; desaparecem como a neve na montanha. E, quando o último houver partido, essa adaga me libertará do mundo.
E, com uma brusca mudança de tom, acrescentou:
- Coloquem a lenha!
A mente de Cororuc dava voltas. Não entendia em absoluto o que acabava de ouvir. Estava certo de que enlouquecia, e o que viu um minuto depois o confirmou.
Em meio à multidão, surgiu um lobo, e ele percebeu que era o lobo que havia salvado da pantera, perto do barranco no bosque!
Era estranho, o distante e antigo que parecia... Sim, era o mesmo lobo. Aquele mesmo passo estranho e rasteiro. Então, a criatura se levantou e levou as patas dianteiras em direção à cabeça. De que horror sem nome se tratava?
Logo, a cabeça do lobo caiu para trás, revelando o rosto de um homem. O rosto de um picto: um dos primeiros “homens-lobo”. O homem saiu da pele do lobo e avançou, dizendo algo. Um picto, que começava a acender a lenha junto aos pés do bretão, afastou a tocha e vacilou.
O lobo-picto deu um passo adiante e começou a falar com o chefe, usando o celta, evidentemente em benefício do prisioneiro (Cororuc estava surpreso em ouvir tantos falarem sua língua, sem parar pra pensar em sua relativa simplicidade e na habilidade dos pictos).
- O que é isto? – perguntou o picto que havia atuado como lobo – Um homem que não deveria vai ser queimado!
- Como? – exclamou ferozmente o ancião, agarrando a longa barba – Quem é você para ser contra um costume antigo como as eras?
- Me encontrei com uma pantera – respondeu o outro –, e este bretão arriscou sua vida para salvar a minha. Um picto mostrará ingratidão?
E enquanto o ancião vacilava, evidentemente impelido tanto por sua fanática sede de vingança quanto por seu igualmente feroz orgulho racial, o picto se manifestou repentinamente numa selvagem oratória, em sua própria língua. Por fim, o velho assentiu.
- Um picto sempre paga suas dívidas. – ele disse, com impressionante grandeza – Um picto nunca esquece. Desamarrem-no. Nenhum celta dirá jamais que um picto demonstrou ingratidão.
Cororuc foi libertado e, enquanto, atordoado, tentava gaguejar seu agradecimento, o chefe fez um gesto desdenhoso.
- Um picto jamais esquece um inimigo, e sempre lembra de um ato de amizade. – respondeu.
- Venha. – murmurou seu amigo picto, puxando o braço de Cororuc.
Ele o conduziu a uma gruta que se afastava da caverna principal. Enquanto caminhavam, Cororuc olhou para trás, e viu o chefe ancião sentado em seu trono de pedra, com os olhos reluzentes enquanto parecia contemplar de novo as glórias perdidas da antiguidade. De cada lado, as fogueiras estouravam e tremeluziam. Uma imagem de grandeza, o rei de uma raça perdida.
Cada vez mais para a frente, o guia conduziu Cororuc. Finalmente saíram, e o bretão viu sobre ele as estrelas do céu.
- Por esse lugar, há uma aldeia de sua tribo – disse o picto, apontando –, onde será bem-vindo, até que queira recomeçar sua viagem.
E deu presentes ao celta: lhe deu roupas de pano e pele de cervo finamente trabalhadas, cintos de contas, um magnífico arco de chifre com pontas de obsidiana habilmente trabalhadas. Lhe deu comida. Suas próprias armas lhe foram devolvidas.
- Um momento. – disse o bretão, quando o picto virou as costas para partir – Segui suas pegadas no bosque. Desapareceram.
Havia uma interrogação.
- Saltei para os galhos das árvores. Se você tivesse olhado para cima, teria me visto. Se, em alguma ocasião, quiser um amigo, o encontrará em Berula, chefe dos pictos albanos.
Ele deu meia volta e desapareceu. E Cororuc caminhou sob a luz da lua, em direção à aldeia celta.
Tradução do prefácio: Regina Anneys.
Tradução do conto: Fernando Neeser de Aragão.
Digitação: Edilene Brito da Cruz.
Revisão: Fernando Neeser de Aragão.
Fontes: www.ebooket.net e http://gutenberg.net.au/ebooks06/0608001h.html
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