Homens das Sombras

(por Robert E. Howard)


Da sombria alvorada da Criação, das névoas do Tempo sem tempo,
Nós chegamos, a primeira grande nação a iniciar a ascensão.
Selvagens, sem mestres, ignorantes, tateando através da noite primitiva,
E, contudo, agarrando debilmente o resplendor, o vislumbre da luz vindoura.

Viajando por terras virgens, navegando em mares desconhecidos;
Encerrados no labirinto dos mistérios do mundo,
Lançando nossas balizas de pedra.
Agarrando vagamente a glória, olhando além de nosso entendimento;
Mudando a história das eras erguendo-se em planícies e pântanos.

Vejam como arde imperecível o Fogo Perdido.
Estamos habituados ao mofo das eras.
As nações pisaram nossos ombros, pisoteando-nos no pó.
Somos a primeira das raças,
Unindo o Velho ao Novo...
Veja, onde os espectros do mar nebuloso
Se mesclam com o azul do oceano.

Assim, temos nos mesclado com as eras,
E o vento do mundo remove nossas cinzas.
Desaparecemos das páginas do Tempo.
Nossa lembrança? Vento nos abetos.

Stonehenge, de glória longamente perdida,
Sombria e solitária na noite,
Murmura a velha história de eras,
De como iluminamos a primeira das Luzes.

Falem, ventos noturnos, da criação do homem,
Sussurrem sobre barrancos e pântanos,
A história da primeira grande nação,
Os últimos homens da Idade da Pedra.



Espada enfrentou espada, chocando e resvalando.

- A-a-ailla! A-a-ailla! – subiu um crescente clamor, que surgia de cem gargantas selvagens.

Lançaram-se de todas as partes em nossa direção, cem contra trinta. Nos colocamos costas com costas, os escudos juntos, as lâminas das espadas em guarda. As lâminas haviam avermelhado, e também os capacetes e couraças. Tínhamos uma vantagem: usávamos armaduras, e nossos inimigos não. Mas eles se lançavam com tudo, nus, à contenda, com uma valentia tão feroz quanto se eles estivessem vestidos de aço.

Recuaram por um momento e permaneceram afastados, ofegando pragas; o sangue dos ferimentos de espada desenhava estranhas formas em suas peles pintadas com erva pastel.

Trinta homens! O restante da tropa de quinhentos que tão arrogantemente havia desfilado desde a Muralha de Adriano. Zeus, que plano! Quinhentos homens enviados para abrirem caminho através de uma terra repleta de bárbaros de outra era. Marchando de dia sobre as colinas cobertas de galhos, abrindo a cortes um caminho escarlate através de hordas enlouquecidas pelo sangue, montando um apertado acampamento pela noite, na qual criaturas, que rugiam e balbuciavam, se deslizavam sem serem vistas pelos sentinelas, para matarem com facas silenciosas. Batalha, derramamento de sangue, carnificina. Notícias chegariam ao imperador em seu formoso palácio, entre seus nobres e suas mulheres, de que outra expedição havia desaparecido entre as enevoadas colinas do místico Norte.

Contemplei os homens que eram meus camaradas. Havia romanos de Latinia e que haviam nascido romanos. Havia bretões, germanos e um hibérnio de cabeleira vermelha como a chama. Olhei para os lobos de aspecto humano que nos cercavam. Homens peludos, quase anões, encurvados e de membros nodosos, braços longos e potentes, com grandes mechas de cabelo áspero, que emolduravam frontes curvadas, como as de símios. Pequenos olhos negros que não piscavam reluziam com malévolo desprezo, como olhos de serpente. Mal usavam roupas, e sim pequenos escudos redondos, longas lanças e espadas curtas. Embora alguns deles mal ultrapassassem um metro e cinqüenta de altura, suas costas incrivelmente largas indicavam uma força colossal. E eram tão velozes quanto gatos.

Vieram em tumulto. A espada curta do selvagem se chocou contra a curta espada romana. Lutava-se a distâncias muito curtas, pois os selvagens estavam mais bem adaptados a tal combate, e os romanos treinavam seus soldados no manejo da espada curta. Ali, o escudo romano se encontrava em desvantagem, já que era pesado demais para ser manejado com rapidez, e os selvagens se agachavam, golpeando para o alto.

Permanecíamos costas contra costas, e quando um homem caía, voltávamos a estreitar as fileiras. Cada vez mais para a frente, eles nos empurraram, até que seus rostos, retorcidos em grunhidos, ficaram perto dos nossos, e seu hálito fétido e bestial encheu nossas narinas. Mantivemos a formação como homens de aço. Os brejos, as colinas e o próprio tempo se dissiparam. Os homens deixaram de ser homens e se transformaram em meras máquinas de combate. A confusão da batalha apagou mente e alma. Finta, estocada. Uma lâmina se quebrando num escudo; um rosto bestial grunhindo através da bruma da batalha. Golpeie! O rosto desaparecendo para ser substituído por outro, igualmente bestial.

Anos de cultura romana se apagaram, como a neblina do mar sob o sol. Voltava a ser um selvagem; um homem primitivo da floresta e dos mares. Um homem primitivo enfrentando uma tribo de outra era, feroz em seu ódio tribal, encolerizada pela sede de matança. Como amaldiçoei o pouco comprimento da espada romana que brandia! Uma lança se espatifou contra minha couraça; uma espada se quebrou na cimeira do meu capacete, derrubando-me ao solo. Me ergui, cambaleando e matando a quem me golpeara, com uma feroz estocada para cima. Então, parei repentinamente, com a espada erguida. O silêncio reinava sobre as urzes. Nenhum inimigo se erguia diante de mim. Jaziam num silencioso e ensangüentado grupo, ainda agarrando suas espadas, com os rostos esfaqueados e dilacerados ainda congelados em grunhidos de ódio. E, dos trinta que os haviam enfrentado, restavam cinco: dois romanos, um bretão, o irlandês e eu. A espada e armadura romanas haviam triunfado e, por incrível que parecesse, havíamos matado quase quatro vezes o nosso número em inimigos.

Só podíamos fazer uma coisa: abrir caminho de volta, pela vereda que havíamos tomado na ida, tentando cruzar inúmeras léguas de terra feroz. A cada lado, se erguiam grandes montanhas. A neve coroava seus topos, e o país não era quente. Não tínhamos nem idéia do quanto estávamos distantes ao norte. A marcha não era mais que uma lembrança confusa, em cujas névoas escarlates os dias e as noites se apagavam num panorama vermelho. Tudo o que sabíamos era que, dias antes, os restos do exército romano haviam sido dispersados entre os picos por uma terrível tempestade, sobre cujas potentes asas os selvagens nos haviam atacado em hordas. Os berrantes de guerra haviam soado através de vales e barrancos durante dias, e a meia centena de nós que havia se sustentado lutara a cada passo do caminho, acossada por inimigos uivantes que pareciam surgir em enxames da atmosfera tênue. Agora, reinava o silêncio, e não havia sinal algum dos aborígines. Nos dirigimos para o sul, como animais perseguidos.

Mas, antes de partir, descobri no campo de batalha algo que me sacudiu com feroz alegria. Um aborígene agarrava com sua mão uma grande espada longa, daquelas que se empunham com as duas mãos. Uma espada nórdica, pela mão de Thor! Como os selvagens conseguiram-na, eu não sei. Possivelmente, algum viking de cabeleira amarela havia se lançado contra eles, com um cântico de batalha nos lábios barbudos e a espada girando. Seja como for, a espada estava ali.

O selvagem havia agarrado o cabo tão ferozmente que me vi obrigado a cortar-lhe a mão para obter a espada. Com ela nas mãos, me senti mais ousado. As espadas curtas e os escudos podiam bastar para homens de estatura mediana, mas eram armas insuficientes para um guerreiro que ultrapassava um metro e noventa.

Subimos as montanhas, pela beirada de estreitas escarpas íngremes, e escalando barrancos empinados. Nos arrastamos como insetos pelo lado de um precipício que dominava o céu, de tão gigantescas proporções que parecia reduzir os homens ao simples nada. Subimos por sua crista, quase esmagados pelo forte vento da montanha, que rugia com as vozes dos gigantes. E ali os encontramos, esperando-nos. O bretão caiu atravessado por um lança; se ergueu cambaleante, agarrou quem a havia lançado e juntos se precipitaram pelo abismo, para caírem mais de trezentos metros. Um breve e selvagem turbilhão de fúria, um rodopio de espadas, e a batalha havia terminado. Quatro aborígines jaziam imóveis a nossos pés, e um dos romanos se encolhia, tentando deter o sangue que brotava do coto de seu braço decepado.

Lançamos pelo escarpado aqueles que havíamos matado, e envolvemos o braço do romano com tiras de couro, amarrando-as bem apertado, para que o braço deixasse de sangrar. Depois, iniciamos o caminho mais uma vez.

Cada vez mais para a frente! Os barrancos giravam sobre nós, encostas se inclinavam loucamente. O sol caía na direção oeste. Logo, encolhidos sobre um barranco e escondidos por grandes penhascos, vimos passar um grupo de aborígines sob nós, andando por uma estreita senda que ficava à margem de precipícios e rodeava as montanhas. Quando passaram logo abaixo de nós, o irlandês lançou um grito de alegria selvagem e, saltando do escarpado, caiu entre eles. Lançaram-se sobre ele, uivando como lobos, e sua cabeleira vermelha brilhou sobre as negras cabeleiras deles. O primeiro a se aproximar dele caiu, com o crânio aberto, e o segundo uivou ao ter o braço esquerdo decepado. Com um selvagem grito de guerra, o irlandês afundou sua espada num peito peludo, puxou-a e decepou uma cabeça. Então, lançaram-se sobre ele, como lobos sobre um leão, e um momento depois, sua cabeça foi erguida numa lança. O rosto ainda parecia expressar a alegria do combate.

Passaram longe, sem suspeitarem de nossa presença, e mais uma vez seguimos adiante. Caiu a noite e a lua apareceu, fazendo as montanhas se destacarem como fantasmas imprecisos e lançando sombras estranhas entre os vales. Enquanto caminhávamos, encontramos sinais de marcha e de retirada. Ali, um romano jazendo ao pé de um precipício, um vulto esmagado, talvez com uma longa lança atravessando-o; mais adiante, um corpo decapitado e, mais além, uma cabeça sem corpo. Capacetes partidos e espadas quebradas narravam a muda história de batalhas ferozmente disputadas.

Cambaleamos através da noite, parando ao amanhecer, quando nos escondemos entre os penhascos; e só nos aventuramos a sair novamente quando a noite havia caído. Grupos de aborígines passaram perto, mas não fomos descobertos, embora às vezes fôssemos capazes de tocá-los enquanto passavam.

Começava a amanhecer, quando chegamos a um terreno diferente, uma grande chapada. A cada lado, se erguiam montanhas, menos ao sul, onde a planície parecia se estender a uma longa distância. Deste modo, acreditei que havíamos deixado as montanhas e chegado ao pé das colinas que se estendiam até finalmente se dissolverem nas férteis planícies do sul.

Então, chegamos a um lago e paramos ali. Não havia nenhum sinal do inimigo, nenhuma fumaça no ar. Mas, enquanto estávamos ali parados, o romano que só tinha um braço caiu debruçado e em silêncio, atravessado por um dardo.

Observamos o lago. Nenhum barco ondulava a superfície. Não se via inimigo algum entre os ralos juncos, próximos à margem. Nos viramos, examinando os brejos. E, sem nenhum som, o segundo romano se encolheu e caiu de bruços, com uma curta lança entre os ombros.

Com a espada desembainhada e atônito, vasculhei as silenciosas encostas, em busca de algum sinal do inimigo. O brejo se estendia, vazio, de uma montanha a outra, e, em nenhum lugar, as urzes eram altas o bastante para esconder um homem, nem sequer um caledônio. Nenhuma ondulação perturbava o lago... Então, o que fazia aquele junco balançar, quando os demais estavam imóveis? Me inclinei para a frente, observando a água. Ao lado do junco, uma bolha se ergueu em direção à superfície.

Me inclinei mais para perto, intrigado... Um rosto bestial me olhava com maldade, logo abaixo da superfície do lago! Um instante de assombro... e logo, minha frenética estocada partiu em dois o rosto peludo, desviando bem a tempo o dardo que saltava em direção ao meu peito. As águas do lago se agitaram num turbilhão, e finalmente flutuou à superfície o corpo de um selvagem, com o feixe de dardos ainda em seu cinto; sua mão simiesca ainda agarrava o talo oco através do qual havia respirado. Então, eu soube por que tantos romanos haviam morrido de maneira estranha, junto às margens dos lagos.

Lancei meu escudo para longe e retirei todos os meus apetrechos, menos a espada, a adaga e a armadura. Certa exultação feroz me animava. Era um homem só, em metade de um país selvagem, entre um povo de selvagens, sedentos por meu sangue. Por Thor e Woden, eu lhes ensinaria como morria um nórdico! A cada momento que passava, ficava menos em mim do romano civilizado. Todo o verniz da educação e da civilização caiu de mim, deixando só o homem primitivo, só a alma primordial, feroz e de garras vermelhas.

Uma ira lenta e profunda começou a surgir em mim, junto com um vasto desprezo nórdico por meus inimigos. Eu estava num estado de espírito adequado para me tornar um berserker, um homem-urso. Thor sabe que eu havia lutado bastante, durante a marcha e ao longo da retirada, mas a alma combativa do nórdico havia despertando em meu interior, com suas profundidades místicas, mais fundas que o Mar do Norte. Eu não era um romano. Era um nórdico, um bárbaro de peito peludo e barba amarela. E percorri o brezal tão arrogantemente quanto se fosse a cobertura de meu próprio navio. O que eram os pictos? Anões atrofiados, cujos dias haviam passado. Era estranho que um ódio aterrorizante começasse a me consumir. E, contudo, não era tanto, pois, à medida que eu retrocedia à selvageria, mais primitivos ficavam meus impulsos, e mais feroz ardia o ódio intolerante para com o estrangeiro, aquele primeiro impulso do aborígine primitivo. Mas havia uma razão mais profunda e sinistra lá no fundo de minha mente, embora eu a desconhecesse. Pois os pictos eram homens de outra era; na verdade, era o último povo da Idade da Pedra, a quem os celtas e nórdicos haviam expulsado quando desceram do norte. E, em algum lugar de minha mente, espreitava uma nebulosa lembrança de uma guerra feroz e implacável, travada numa era mais obscura.

E havia também certo temor, não por suas qualidades como lutadores, mas pela bruxaria, da qual todos os povos acreditavam que os pictos eram donos. Eu tinha visto seus cromlechs por toda a Inglaterra, e tinha visto a muralha que haviam construído, não longe de Corinium. Eu sabia que os druidas celtas lhes odiavam com um ódio surpreendente, mesmo para sacerdotes. Nem sequer os druidas podiam, ou queriam, contar como os homens da Idade da Pedra levantaram aquelas imensas barreiras de pedra, ou por qual razão, e a mente do homem comum recuava à explicação usada durante eras: bruxaria. Mais ainda, os próprios pictos acreditavam firmemente que eram feiticeiros, e talvez isso tivesse algo a ver com o assunto.

Comecei a me perguntar por que só quinhentos homens haviam sido enviados àquela louca incursão. Alguns haviam dito que era para capturar um certo sacerdote picto; outros, que buscávamos notícias do chefe picto, um tal de Bran Mak Morn. Mas ninguém o sabia, exceto o oficial no comando, e a cabeça deste estava numa lança picta, em algum lugar distante daquele mar de montanhas e brejos. Dizia-se que ninguém o igualava na luta, fosse com um exército ou solitário. Mas nunca tínhamos visto um guerreiro que parecesse mandar tanto, para justificar a idéia de que era o líder. Pois os selvagens lutavam como lobos, embora com certa disciplina tosca.

Talvez o encontrasse e, se era tão valente quanto diziam, certamente me enfrentaria.
Deixei de me esconder. Mais ainda, entoei uma canção selvagem enquanto caminhava, marcando o ritmo com minha espada. Que os pictos aparecessem quando quisessem. Eu estava pronto para morrer como um guerreiro.

Eu havia coberto muitas milhas, quando dei a volta numa pequena colina e me deparei com várias centenas deles, armados até os dentes. Se esperavam que eu virasse as costas e fugisse, estavam muito enganados. Continuei caminhando em direção a eles, sem alterar minhas passadas nem minha canção. Um deles correu na minha direção, com a cabeça baixa e a ponta da lança para a frente, e lhe recebi com um golpe para baixo, que lhe abriu do ombro esquerdo ao quadril direito. Outro saltou de lado, dirigindo um golpe à minha cabeça; mas me agachei, de modo que o dardo assobiou sobre meu ombro, e lhe abri as entranhas ao me erguer. Então, se lançaram sobre mim, vindos de todos os lados; abri um espaço com um grande golpe, e me coloquei de costas na encosta abrupta, próximo o bastante para evitar que se aproximassem por trás, mas não tanto para não poder brandir minha espada. Se eu desperdiçava mobilidade e força com o movimento de cima pra baixo, compensava-as mais que abundantemente com o poder devastador de meus golpes.

Não era necessário golpear duas vezes nenhum inimigo. Um selvagem bronzeado e barbudo surgiu de um salto, sob minha espada, agachando-se e lançando um golpe para cima. A lâmina da espada se torceu em minha couraça, e lhe deixei inconsciente com um golpe de meu cabo. Os lobos me cercaram, lutando para me alcançarem com suas espadas, e dois caíram com a cabeça partida enquanto tentavam se aproximar. Então um, se esticando sobre os ombros dos demais, cravou uma lança em minha coxa e, com um rugido de fúria, lancei uma selvagem estocada, atravessando-o como a uma ratazana. Antes que eu pudesse recuperar o equilíbrio, uma espada feriu meu braço direito e outra se quebrou em meu capacete. Cambaleei, girei ferozmente para abrir um espaço, e uma lança penetrou em meu ombro direito. Oscilei, caí ao solo e voltei a me levantar. Com um aterrorizante impulso dos ombros, rechacei meus inimigos que arranhavam e apunhalavam, e então, sentindo que as forças se esvaíam de mim com o sangue, lancei um rugido de leão e saltei entre eles, absolutamente berserker. Me lancei entre a multidão, golpeando a torto e a direito, dependendo apenas de minha armadura para me proteger das lâminas que saltavam. Essa batalha não é mais que uma lembrança intensamente vermelha. Pra baixo, pra cima, pra baixo de novo, o braço direito pendente, a espada golpeando na mão esquerda. A cabeça de um homem saltou de seus ombros, um braço desapareceu à altura do cotovelo, e então desabei ao chão, lutando em vão para levantar a espada que pendia fracamente de meu punho.

Num momento, houve uma dúzia de lanças em meu peito, quando alguém lançou os guerreiros para trás, e uma voz falou, como a de um líder:

- Parem! Este homem deve ser poupado.

Vagamente, como através de uma neblina, vi um rosto esbelto e moreno, ao me erguer cambaleante para fazer frente ao que havia falado.

Vi um homem moreno e de cabelos negros, cuja cabeça mal alcançava meu ombro, mas que parecia tão ágil quanto um leopardo. Estava sumariamente vestido, com roupas simples que lhe apertavam o corpo, e sua única arma era uma espada longa e reta. Não se parecia, em aspectos e traços, com os pictos mais do que eu, mas havia no fundo um aparente parentesco com eles.

Tudo isto eu notei confusamente, pois mal conseguia ficar de pé.

- Já lhe vi. – eu disse, como um perdido – Já lhe vi algumas vezes, na primeira linha de combate. Você sempre encabeçava o ataque dos pictos, enquanto seus líderes fugiam do campo. Quem é você?

Então, os guerreiros, o mundo e o céu se dissiparam, e desabei sobre os brezais.

Ouvi confusamente o estranho guerreiro falar:

- Cuidem de seus ferimentos, e lhe dêem comida e bebida.

Eu havia aprendido sua língua, dos pictos que vinham comercializar no Muro.

Percebi que fizeram o que o guerreiro lhes havia mandado, e finalmente recuperei os sentidos, tendo bebido grande quantidade do vinho que os pictos destilam da urze. Depois, exausto, deitei sobre os pântanos e dormi, sem que me importassem nem mesmo todos os selvagens.

Quando acordei, a lua estava alta no céu. Minhas armas e meu capacete haviam desaparecido, e vários pictos armados me vigiavam. Quando me viram acordado, fizeram sinal para que eu lhes seguisse e puseram-se a andar pelo brejo. Finalmente, chegamos a uma alta colina nua, com uma fogueira brilhando no topo. Sentado numa rocha próxima à fogueira, estava o estranho chefe moreno e, junto a ele, como espíritos do Mundo Obscuro, havia um círculo silencioso de guerreiros pictos sentados.

Me levaram perante o chefe, se assim ele o era, e fiquei de pé, contemplando-o sem medo nem desafio. E senti que se tratava de um homem diferente de todos os que já tinha visto. Estive consciente de certa força, certo poder invisível que irradiava do homem e parecia mantê-lo afastado dos homens comuns. Era como se, das alturas do autocontrole, ele baixasse a vista para os homens, pensativo, inexplorável, carregado pelo conhecimento das eras, sombrio pela sabedoria das eras. Sentado ali, com o queixo apoiado na mão, e os olhos escuros e insondáveis cravados em mim:

- Quem é você?

- Um cidadão romano.

- Um soldado romano. Um dos lobos que têm despedaçado o mundo por séculos demais.

Um murmúrio percorreu os guerreiros – fugidio, como o sussurro do vento noturno, e sinistro como o brilho dos caninos de um lobo.

- Tem gente a quem meu povo odeia mais que os romanos. – ele disse – Mas, com toda certeza, você é um romano. E, no entanto, me parece que é mais alto do que eu acreditava serem os romanos. E sua barba? O que a deixou amarela?

Diante de seu tom de sarcasmo, joguei a cabeça para trás e, embora a pele me formigasse ao pensar nas espadas atrás de mim, respondi orgulhosamente:

- Sou nórdico de nascimento.

Uma gritaria selvagem e sedenta de sangue brotou da horda agachada e, num instante, saltaram para a frente. Um único movimento da mão do líder fê-los recuarem, com os olhos ardentes. Seus próprios olhos não haviam parado de se fixar em meu rosto, nem por um momento.

- Minha tribo é estúpida – ele disse –, pois odeiam os nórdicos mais ainda que os romanos. De fato, os nórdicos acossam constantemente nossas costas; mas é a Roma quem deveriam odiar.

- Mas você não é picto!

- Sou mediterrâneo.

- Da Caledônia?

- Do mundo.

- Quem é você?

- Bran Mak Morn.

- O quê?

Eu havia esperado uma monstruosidade, um ser horrendo e disforme, um feroz anão constituído de acordo com o resto de sua raça.

- Você não é como estes.

- Sou como era a raça. – ele respondeu – A linhagem dos chefes manteve seu sangue puro ao longo das eras, percorrendo o mundo em busca de mulheres da Velha Raça.

- Por que sua raça odeia todos os homens? – perguntei, cheio de curiosidade – Se fala de sua ferocidade em todas as nações.

- Por que não iríamos odiar? – Seus olhos escuros se iluminaram repentinamente, com um brilho mais feroz – Pisoteados por cada tribo nômade, expulsos de nossas terras férteis, obrigados a morar nos lugares mais selvagens do mundo, deformados em corpo e em mente... Olhe para mim. Sou como a raça foi outrora. Olhe a seu redor. Uma raça de homens-macacos, nós que fomos o mais elevado tipo de homens do qual o mundo podia se orgulhar.

Tremi de tristeza diante do ódio que vibrava em sua voz profunda e ressonante.

Das fileiras de guerreiros, surgiu uma garota, que se pôs ao lado do líder e se acocorou junto a ele. Uma beleza delgada e tímida, quase uma menina. O rosto de Mak Morn suavizou-se um pouco, enquanto abraçava-lhe o corpo esbelto. Logo, o olhar pensativo voltou a seus olhos escuros.

- Minha irmã, nórdico. – ele disse – Me disseram que um rico mercador de Corinium oferecera mil peças de ouro para quem a levasse.

Meu cabelo se arrepiou, pois pareci sentir uma sinistra nota menor na voz tranqüila do caledônio. A lua se pôs no horizonte ocidental, dando à urze um tom avermelhado, de modo que os pântanos pareciam um mar de sangue sob a luz fantasmagórica.

A voz do líder rompeu o silêncio.

- O mercador enviou um espião para além do Muro. Mandei-lhe sua cabeça.

Me sobressaltei. Um homem se erguia diante de mim. Eu não o tinha visto chegar. Era muito velho e usava apenas uma tanga. Uma barba longa e branca lhe caía até a cintura, e estava cheio de tatuagens, do alto da cabeça até os calcanhares. Seu rosto, semelhante ao couro, estava sulcado por um milhão de rugas, e sua pele era escamosa como a de uma serpente. Sob emaranhadas sobrancelhas brancas, seus olhos grandes e estranhos flamejavam, como se contemplassem visões fantásticas. Os guerreiros se afastaram, inquietos. A moça se encolheu entre os braços de Bran Mak Morn, como que assustada.

- O deus da Guerra cavalga no vento noturno. – disse subitamente o bruxo, em voz alta e fantasmagórica – Os cometas pisam o sangue. Pés estranhos percorrem os caminhos de Alba. Remos estranhos batem no Mar do Norte.

- Empreste-nos sua arte, bruxo. – ordenou imperiosamente Bran Mak Morn.

- Você magoou os velhos deuses, chefe. – respondeu o outro – Os templos da Serpente estão desertos. O deus branco da lua já não se deleita com a carne do homem. Os senhores do ar observam de suas muralhas, e não estão satisfeitos. Há, há! Dizem que um líder se desviou do caminho.

- Basta! – a voz de Bran Mak Morn foi abrupta – O poder da Serpente foi quebrado. Os neófitos já não oferecem mais seres humanos às suas divindades obscuras. Se hei de levantar a nação picta para fora da escuridão do vale da selvageria abismal, não vou tolerar oposição de príncipe ou sacerdote. Guarde bem as minhas palavras, bruxo.

O ancião ergueu os grandes olhos, cheios de uma luz misteriosa, e mirou-me o rosto.

- Vejo um selvagem de cabelo amarelo. – ele sussurrou num tom assustador – Vejo um corpo forte e uma mente forte, dos quais um líder poderia se alimentar.

Uma exclamação impaciente brotou de Mak Morn.

A moça lhe envolveu timidamente com os braços e lhe sussurrou ao ouvido.

- Nos pictos, ainda restam certas doses de humanidade e bondade. – ele disse, e percebi a auto-ironia de seu tom – A jovem me pede para deixá-lo ir em liberdade.

Embora ele falasse em Celta, os guerreiros compreenderam e murmuraram insatisfeitos.

- Não! – exclamou violentamente o bruxo.

A oposição não fez mais do que fortalecer a decisão do chefe. Ele se levantou.

- Eu digo que o nórdico será libertado ao amanhecer.

Um silêncio desaprovador o respondeu.

- Algum de vocês se atreve a sair para o brejo e enfrentar seu aço com o meu? – ele os desafiou.

O bruxo falou:

- Preste atenção, chefe. Vivi mais de cem anos. Vi irem e virem chefes e conquistadores. Combati a magia dos druidas nos bosques da meia-noite. Há longo tempo, você tem zombado de meu poder, homem da Velha Raça, e aqui lhe desafio. Lhe desafio para um combate.

Nenhuma palavra foi pronunciada. Os dois homens avançaram até a luz do fogo, que lançava seu brilho caprichoso entre as sombras.

- Se eu vencer, a Serpente se enroscará de novo, o Gato Montês voltará a rugir e você será meu escravo para sempre. Se você ganhar, minhas artes serão suas, e eu lhe servirei.

O bruxo e o líder se enfrentaram. As flamas roxas da fogueira iluminavam seus rostos. Seus olhos se encontraram e se chocaram. Sim, o combate entre os olhos e as almas atrás deles era tão claro e evidente quanto se estivessem lutando com espadas. Os olhos do bruxo se ampliaram e os do líder se semi-cerraram. Forças aterrorizantes pareciam irradiar de cada um; poderes invisíveis de luta se agitavam ao redor deles. Eu era vagamente consciente de que não se tratava mais do que outra fase numa guerra que durava eras. A batalha entre o Velho e o Novo. Atrás do bruxo, se escondiam milhares de anos de segredos obscuros, mistérios sinistros, terríveis formas nebulosas e monstros semi-ocultos entre as névoas da antiguidade. Atrás do líder, a clara e forte luz do dia que se aproximava, o primeiro lampejo de civilização; a limpa fortaleza de um homem novo, com uma nova e poderosa missão. O bruxo caracterizava a Idade da Pedra; o líder, a civilização que se aproximava. O destino da raça picta dependia, talvez, daquele conflito.

Os dois homens pareciam realizar um aterrorizante esforço. As veias se sobressaíam da testa do líder. Os olhos de ambos ardiam e faiscavam. Então, o bruxo resfolegou. Com um uivo, ele tapou os olhos e desabou no urzal como um saco vazio.

- Basta! – ofegou – Você venceu, chefe.

Ele se levantou, trêmulo e submisso.

As filas tensas e agachadas relaxaram, e voltaram a sentar-se em seus lugares, com os olhos fixos no líder. Mak Morn sacudiu a cabeça, como que para esvaziá-la.

Dirigiu-se ao rochedo e se sentou nele, e a moça lançou os braços no pescoço dele, sussurrando-lhe numa voz suave e cheia de alegria.

- Rápida é a Espada do Picto. – murmurou o bruxo – Forte é o Braço do Picto. Há! Dizem que alguém poderoso se levantou entre os Homens do Ocidente.

“Contempla o velho Fogo da Raça Perdida, Lobo da Urze! Há, há! Dizem que surgiu um líder para conduzir a raça adiante”.

O bruxo se inclinou sobre os rescaldos do fogo que havia se apagado, murmurando em voz baixa.

Removendo os rescaldos, resmungando entre sua barba branca, falou monotonamente, meio cantando, entoando um cântico estranho, de pouco significado ou rima, mas com uma espécie de ritmo selvagem, notavelmente estranho e fantasmagórico:


“Sobre lagos resplandecentes, sonham os velhos deuses;
Espectros percorrem a penumbra.
Os ventos noturnos cantarolam;
a lua fantasmagórica se desliza sobre os confins do oceano”.

“De um pico a outro, gritam as bruxas.
O lobo cinza busca as alturas.
Como uma bainha de ouro,
no ermo distante brilha a luz errante”.


O ancião removeu os rescaldos, fazendo uma pausa de vez em quando para lançar sobre eles algum objeto misterioso, ritmando seus movimentos com seu cântico.


“Deuses do ermo, deuses do lago,
Demônios bestiais do pântano e a samambaia;
Deus branco cavalgando a lua,
Mandíbulas de chacal, com voz de louco;
Deus-serpente, cujos anéis escamosos apertam e sufocam o Universo”.

“Vejam, os Sábios Invisíveis estão sentados;
vejam, as fogueiras do conselho acesas,
vejam como removo as brasas resplandecentes,
como nelas eu lanço a crina de sete potros.
Sete potros de ferraduras douradas,
dos bandos do deus da Aurora.
Agora, em número de um e seis,
arrumo e coloco as estacas mágicas”.

“Madeira aromática trazida de longe,
Da terra da Estrela Matutina.
Cortada dos galhos do sândalo,
De longe trazida sobre os Mares do Leste”.

“Vejam como agora lanço presas de serpente marinha,
plumas da asa de uma gaivota.
Agora lanço o pó mágico;
sombras são os homens, escória a vida”.

“Agora se arrastam as chamas,
ali se avivam;
agora, a confusa fumaceira se ergue,
varrida por um vendaval do oceano longínquo.
Surge a história do distante passado”.


As pequenas chamas vermelhas lambiam os rescaldos, ora saltando para cima, em rápidos jatos de faíscas, ora se dissipando, ora presas nos lenhos lançados à fogueira, com um estalo que ressoou no silêncio. Pequenas nuvens de fumaça começaram a se enroscar numa nuvem redemoinhante e confusa.


“Tênue, tênue brilha a luz das estrelas,
sobre as colinas das urzes, em cima do vale.
Deuses da Velha Terra meditam na noite longínqua,
criaturas da Escuridão cavalgam no vendaval”.

“Agora, enquanto o fogo se apaga,
enquanto a fumaça o envolve,
agora surge aqui, em mística e clara chama.
Prestem atenção novamente
(se os deuses escuros não o proíbem),
escutem a história da Raça Sem Nome”.


A fumaça pairava no alto, girando ao redor do bruxo; seus ferozes olhos amarelos brilhavam como que através de uma densa névoa. Sua voz veio flutuando, como que vinda de espaços distantes, com uma estranha impressão incorpórea. Com uma entoação misteriosa, como se a voz fosse, não a do ancião, mas a de algo separado, algo à parte; como se eras sem corpo, e não a mente do bruxo, falassem através dele.

Raras vezes, eu vi uma cena tão estranha. A escuridão reinava em qualquer parte; mal brilhava uma estrela. Os tentáculos ondulantes das Luzes do Norte erguiam lívidos estandartes no céu sombrio. Negras encostas se afastavam até se confundirem na distância, um penumbroso mar de brejos silenciosos e ondulantes. E, naquela árida e solitária colina, a horda semi-humana se agachava como espectros sombrios de outro mundo; seus rostos bestiais se confundiam com as sombras, tingidos de sangue à medida que a luz do fogo piscava e oscilava. E, diante deles todos, estava Bran Mak Morn, sentado como uma estátua de bronze, seu rosto duramente destacado pela luz das chamas oscilantes. Assim como o rosto misterioso do bruxo, emoldurado pela luz fantasmagórica, com seus enormes e flamejantes olhos amarelos; e sua longa barba, branca como a neve.

- Uma raça poderosa, os homens do Mediterrâneo. – disse o bruxo.

Os selvagens rostos iluminados se inclinaram para a frente. E me descobri pensando que o bruxo tinha razão. Nenhum homem poderia civilizar aqueles selvagens primigênios. Eram indomáveis, inconquistáveis. Lhes era familiar o espírito do selvagem, da Idade da Pedra.

- Mais velha que os picos nevados da Caledônia. – ele prosseguiu.

Os guerreiros se inclinaram de novo para a frente, evidenciando ansiedade e antecipação. Senti que a história continuava intrigando-os, embora indubitavelmente a tivessem ouvido uma centena de vezes, de lábios de uma centena de chefes e anciões.

- Nórdico – ele disse, quebrando repentinamente o fio de seu discurso –, o que há além do Canal Ocidental?

- A ilha da Hibérnia.

- E além?

- As ilhas que os celtas chamam de Aran.

- E além?

- Ora, na verdade não sei. O conhecimento humano pára ali. Nenhum navio cruzou aqueles mares. Os homens instruídos a chamam Thule. O desconhecido, o reino da ilusão, a beirada do mundo.

- Há, há! Esse poderoso oceano ocidental banha as costas de continentes desconhecidos, de ilhas que ninguém imagina.

“Longe, além da grande vastidão das ondas agitadas do Atlântico, jazem dois grandes continentes, tão vastos que o menor engoliria a toda a Europa. Terras gêmeas de imensa antiguidade. Terras de civilização antiga e decadente. Terras nas quais vagavam tribos de homens sábios em todas as artes, enquanto esta terra que chamamos de Europa não era mais que um vasto pântano dominado por répteis, uma floresta úmida conhecida somente pelos macacos.

“Tão enormes eram aqueles continentes, que cingiam o mundo, das neves do norte às neves do sul. E além deles, há um grande oceano, o Mar das Águas Silenciosas [o Oceano Pacífico]. Há muitas ilhas naquele mar, e aquelas ilhas um dia foram os picos das montanhas de uma grande terra... a terra perdida da Lemúria.

“Aqueles continentes são gêmeos, unidos por um estreito pescoço de terra. A costa ocidental do continente do norte é áspera e quebrada. Enormes montanhas se elevam em direção ao céu. Mas aqueles picos foram ilhas no passado, e àquelas ilhas chegou a Tribo Sem Nome, vagando desde o norte, há tantos milênios que um homem se cansaria de contá-los. Mil milhas ao norte e oeste, havia nascido a tribo, lá onde as largas e férteis planícies se encerram, junto aos canais do norte, que separam o continente do norte chamado Ásia”.

- Ásia! – exclamei, assombrado.
O ancião ergueu subitamente a cabeça, irritado, e me contemplou com olhar selvagem. Depois continuou:

- Lá, na confusa desordem do passado, a tribo havia se erguido, da criatura marinha que se arrasta ao macaco, do macaco ao homem-macaco, e do homem-macaco ao selvagem.

“Ainda eram selvagens quando desceram pela costa, ferozes e belicosos.

“Eram hábeis na caça, pois, durante incontáveis séculos, viveram dela. Eram homens de forte constituição, nem altos nem compactos, mas esbeltos e musculosos como leopardos, velozes e potentes. Nenhum povo conseguia enfrentá-los. E eram os Primeiros Homens.

“Continuavam se vestindo com peles de animais, e seus instrumentos de pedra eram toscamente trabalhados. Estabeleceram sua residência nas ilhas ocidentais, as ilhas que jazem sorridentes num mar ensolarado. E lá viveram durante milhares e milhares de anos. Durante séculos nas costas ocidentais. As ilhas do oeste eram maravilhosas, acariciadas por mares ensolarados, ricas e férteis. Lá, a tribo deixou de lado as armas de guerra e se instruiu nas artes da paz. Lá, aprenderam a polir suas ferramentas de pedra. Lá, aprenderam a colher grãos e frutos, a cultivar o solo; e foram felizes, e os deuses da colheita riram. E aprenderam a fiar, a tecer e a construírem cabanas. E ficaram hábeis em trabalhar com pele e com cerâmica.

“No oeste distante, além das ondas errantes, estava a vasta e ignota terra da Lemúria. E dela chegaram frotas de canoas, trazendo estranhos incursores, os semi-humanos Homens do Mar. Talvez tenham brotado de algum estranho monstro marinho, pois tinham escamas feito um tubarão, e conseguiam nadar durante horas sob a água. A tribo sempre os derrotava, mas eles voltavam freqüentemente, pois os renegados da tribo fugiam para a Lemúria. A leste e ao sul, se estendiam, até o horizonte, grandes florestas, povoadas por animais ferozes e homens-macacos.

“Assim, transcorreram os séculos sobre as asas do Tempo. A Tribo Sem Nome ficou cada vez mais forte, mais hábil na guerra e na caça. E, lentamente, os da Lemúria iniciaram sua ascensão.

“Então, um dia, um potente terremoto sacudiu o mundo. O céu se confundiu com o mar, e a terra girou entre os dois. Com o trovão dos deuses em guerra, as ilhas do oeste saltaram para o alto e se ergueram do mar. Havia montanhas na recém-formada costa ocidental do continente do norte, mas a terra da Lemúria afundou sob as ondas, deixando apenas uma grande ilha montanhosa, cercada por muitas ilhas, que haviam sido seus picos mais altos.

“E, sobre a costa ocidental, rugiam e bramiam poderosos vulcões, e o fogo que cuspiram desceu pela costa e apagou todo rastro concebível de civilização. De um fértil vinhedo, a terra se transformou num deserto.

“A tribo fugiu para o leste, empurrando diante dela os homens-macacos, até chegarem a ricas e amplas planícies no oeste distante. Ali viveram durante séculos. Então, desceram do norte os grandes campos de gelo, e a tribo fugiu deles. Seguiu-se então, mil anos de perambulação.

“Fugiram descendo pelo continente do sul, sempre empurrando os homens-fera [Neanderthais] diante deles. E, finalmente, numa grande guerra, lhes expulsaram completamente. Aqueles fugiram para o sul distante e, através das ilhas pantanosas que então se estendiam pelo mar, chegaram até a África, vagando então até a Europa, onde não havia homens, exceto os homens-macacos.

“Então, os lemurianos, a Segunda Raça, chegaram à terra do norte. Haviam subido muito pela escada da vida, e eram uma raça forte e estranha: eram homens robustos e baixos, com olhos estranhos como mares desconhecidos. Pouco conheciam do cultivo ou do artesanato, mas possuíam estranhos conhecimentos de uma curiosa arquitetura e, da Tribo Sem Nome, haviam aprendido a fabricar ferramentas de obsidiana polida, jade e argilita.

“E constantemente os grandes campos de gelo empurravam para o sul, e constantemente a Tribo Sem Nome se movia diante deles. O gelo não chegou ao continente do sul, nem sequer a seus arredores, mas se tratava de uma terra úmida e pantanosa, infestada de serpentes. Logo, fizeram embarcações e navegaram até a terra chamada Atlântida, cingida pelo mar. Os atlantes [Cro-Magnons] eram a Terceira Raça. Fisicamente, eram gigantes, homens de constituição magnífica, que moravam em cavernas e viviam da caça. Não eram hábeis no artesanato, mas eram artistas. Quando não estavam caçando, nem lutando entre si, passavam o tempo pintando e desenhando imagens de homens e animais sobre os muros de suas cavernas. Mas não podiam se igualar em habilidade à Tribo Sem Nome, e foram expulsos. Eles também abriram caminho em direção à Europa, e lá declararam guerra contra os homens-fera, que haviam chegado antes deles.

“Então, houve guerra entre as tribos, e os vencedores expulsaram os vencidos. Entre estes, havia um bruxo muito sábio e muito idoso, o qual lançou uma maldição sobre a Atlântida, afirmando que seria desconhecida para as tribos dos homens. Nenhuma embarcação da Atlântida chegaria a outra costa, nenhuma vela estrangeira avistaria as amplas praias da Atlântida. Cercada por mares não-navegados, a terra permaneceria desconhecida, até que navios com cabeças de serpente descessem dos mares do norte, e quatro exércitos combatessem na Ilha das Névoas Marinhas, e um grande chefe se erguesse entre o povo da Tribo Sem Nome.

“Logo, viajaram até a África, remando de ilha em ilha, e subiram pela costa até chegarem ao Mar do Meio [Mediterrâneo], que jazia como uma jóia entre costas ensolaradas.

“Lá, a tribo morou durante séculos, e ficou forte e poderosa, e dali se espalhou por todo o mundo. Chegaram dos desertos africanos às florestas bálticas, do Nilo até os picos de Alba, plantando suas sementes, apascentando seu gado, tecendo suas roupas. Construíram seus crannogs nos lagos de Alba; ergueram seus templos de pedra nas planícies da Inglaterra. Empurraram os atlantes diante deles e venceram os homens ruivos das renas.

“Então, os celtas chegaram do norte, usando espadas e lanças de bronze. Das terras de penumbra das Grandes Neves, eles chegaram, das costas do distante Mar do Norte. E eram a Quarta Raça. Os pictos fugiram diante deles. Pois eram homens poderosos, altos e fortes, de constituição esbelta, olhos cinzas e cabeleira aloirado-escura. No mundo inteiro, lutaram o celta e o picto, e o celta sempre venceu. Pois, em longas eras de paz, as tribos haviam esquecido as artes da guerra. Tiveram que fugir aos locais selvagens do mundo.

“Assim fugiram os pictos de Alba: para oeste e norte, e lá se miscigenaram com os gigantes ruivos aos quais haviam expulsado das planícies em eras passadas. Não era esse o costume dos pictos, mas de que serve a tradição a um povo que se encontra entre a espada e a parede?

“À medida que as eras passavam, a raça mudou. O povo esbelto e pequeno, de cabeleira negra, ao se misturar com os enormes selvagens de feições toscas e cabeleira avermelhada, formou uma raça estranha e distorcida, retorcida de corpo e alma. Se tornaram ferozes e astutos no combate, mas esqueceram as velhas artes. Foram esquecidos o tear, o moinho e o forno de cerâmica. No entanto, a linhagem dos chefes permaneceu pura. E assim, és tu, Bran Mak Morn, Lobo da Urze”.

Por um momento, reinou o silêncio; o círculo continuava escutando como em sonhos, como se pudesse ouvir o eco da voz do bruxo. O vento noturno passava sussurrando. O fogo pegou num pedaço de lenha e estalou repentinamente, numa vívida labareda, erguendo esbeltos braços avermelhados para agarrar as sombras.

A voz do bruxo continuou sua monótona cantilena:

- A glória da Tribo Sem Nome se dissipou... como a neve que cai no mar; como a fumaça que se ergue no ar. Misturando-se com as eternidades do passado. Desapareceu a glória da Atlântida; se dissipou o obscuro império dos lemurianos. O povo da Idade da Pedra se dissolve como o orvalho congelado sob o sol. Da noite viemos; para a noite nos dirigimos. Tudo é sombra. Somos uma raça de sombras. Nosso dia passou. Os lobos vagam pelos templos do Deus da Lua. Serpentes aquáticas se enroscam entre nossas cidades submersas. O silêncio pesa sobre a Lemúria; uma maldição jaz sobre a Atlântida. Selvagens de pele avermelhada percorrem as terras ocidentais, vagando pelo vale do Rio Ocidental, manchando as muralhas e os templos que os homens da Lemúria construíram em adoração ao Deus do Mar. E, ao sul, o Império Tolteca da Lemúria desmorona. Assim, vão embora as Primeiras Raças. E os homens do Novo Amanhecer ficam poderosos.

O ancião pegou uma estaca ardendo em fogo e, com um movimento incrivelmente rápido, traçou um círculo e um triângulo no ar. E, estranhamente, o símbolo místico pareceu flutuar por um momento no ar, um anel de fogo.

- O círculo sem princípio. – entoou o bruxo – O círculo sem final. A serpente com a cauda na boca, que cinge o universo. E o Três Místico. Início, passividade, final. Criação, preservação, destruição. Destruição, preservação, criação. A Rã, o Ovo e a Serpente. A Serpente, o Ovo e a Rã. E os elementos: Fogo, Ar e Água. E o símbolo laico. O Deus do Fogo ri.

Eu era consciente da profunda, quase feroz, intensidade com que os pictos olhavam o fogo. As chamas saltavam e faiscavam. A fumaça se dissipava no ar, e uma estranha bruma amarela ocupou seu lugar; algo que não era fogo, nem fumaça, nem neblina, e que, contudo, parecia uma mistura dos três. O mundo e o céu pareciam se confundir com as chamas. Deixei de ser um homem, para me transformar em dois Olhos sem corpo.

Então, em algum lugar da neblina amarela, começaram a surgir vagas imagens, se sucedendo e desaparecendo. Senti que o passado transcorria num panorama confuso. Havia um campo de batalha, e de um lado, muitos homens como Bran Mak Morn, mas distantes dele no fato de não estarem acostumados à batalha. Do outro lado, se encontrava uma horda de homens altos e esguios, armados com espada e lanças de bronze. Os gaélicos!

Depois, em outro campo, estava se desenrolando outra batalha, e senti que centenas de anos haviam passado. Mais uma vez, os gaélicos atacavam no combate com suas armas de bronze, mas desta vez eram eles que recuavam, derrotados diante de um exército de enormes guerreiros de cabeleira loira, também armados de bronze. A batalha indicava a chegada dos bretões, que deram seu nome à ilha da Britânia, ou Inglaterra.

Logo, uma estreita fileira de cenas confusas e fugidias, que passavam rápido demais para distingui-las. Davam a impressão de grandes proezas, de acontecimentos importantes, mas só apareciam tênues sombras. Por um instante, surgiu um rosto difícil de distinguir. Um rosto forte, com olhos cinzas como o aço e bigodes amarelos caindo sobre lábios delgados. Senti que se tratava de outro Bran, o celta Brennus, cujas hordas gaulesas haviam saqueado Roma. Depois, em seu lugar, se destacou outro rosto de surpreendente ousadia. O rosto de um jovem, altivo, arrogante, com uma fronte magnífica, mas com linhas de crueldade sensual ao redor da boca. O rosto, ao mesmo tempo, de um semideus e um degenerado.

César!

Uma praia sombria, uma floresta com penumbras. O estrondo da batalha. As legiões derrotando as hordas de Caractacus.

Logo, vagamente, a grande velocidade, passaram as sombras da glória e pompa de Roma. Lá estavam suas legiões voltando em triunfo, conduzindo diante delas centenas de cativos acorrentados. Ali apareciam os corpulentos senadores e nobres em seus luxuosos banhos, seus banquetes e libertinagens. Ali se mostravam os afeminados e preguiçosos mercadores e nobres, recostados indolentemente, saciados de luxo, em Ostia, em Massilia, em Aqua Sulae. Logo, em abrupto contraste, as hordas do mundo externo que se acumulavam. Os nórdicos de olhos ferozes e barbas amarelas; as tribos germânicas de enormes corpanzis; os indomáveis selvagens de cabeleira flamejante, de Gales e Damnônia, e seus aliados, os pictos silúrios. O passado havia desaparecido; o presente e o futuro ocupavam seu lugar!

Depois, um confuso holocausto, no qual se moviam violentamente as nações e os exércitos, e os homens mudavam e desapareciam.

- Roma cai! – disse subitamente a voz ferozmente exultante do bruxo, quebrando o silêncio – O pé do vândalo atormenta o Fórum. Uma horda selvagem desfila pela Via Ápia. Saqueadores de cabeleira amarela violam as Virgens Vestais. E Roma cai!

Um feroz uivo de triunfo se ergueu, esvoaçando na noite.

- Vejo a Inglaterra sob o calcanhar dos invasores nórdicos. Vejo os pictos descendo em tumulto das montanhas. Há rapina, fogo e guerra.

Na névoa ígnea, surgiu o rosto de Bran Mak Morn.

- Saúdem a quem nos levanta! Vejo a nação picta ascendendo em direção à nova luz!


“Lobo nas alturas,
Zombando da noite.
Lentamente, chega a luz
do novo amanhecer de uma nação.
Hordas sombrias se acumulam,
surgindo do passado.
Fama imperecível
avança passo a passo.
Sobre o vale
troveja o vendaval,
levando a história
de uma nação que volta a se erguer.
Voa, lobo e cometa!
Brilhante será sua fama”.


Do leste, chegou timidamente um tênue brilho cinza. Sob a luz fantasmagórica, o rosto de Bran Mak Morn parecia novamente de bronze, inexpressivo, imóvel; olhos escuros que contemplavam o fogo sem pestanejar, vendo ali suas poderosas ambições, seus sonhos de império se dissipando na fumaça.

- Pois o que não podemos conservar pelo combate, nós mantemos graças à astúcia durante anos e séculos incontáveis. Mas as novas raças se erguem como a onda do maremoto, e as Velhas lhes dão lugar. Na penumbrosa montanha de Galloway, a nação lutará sua última e feroz batalha. E quando cair Bran Mak Morn, deste modo se dissipará o Fogo Perdido... para sempre. Pelos séculos, pelas eras.

E, enquanto o bruxo falava, o fogo se transformou numa única grande labareda, que saltou bem para o alto no ar, e se dissipou a meia altura.

Sobre as distantes montanhas do leste, pairava a pálida aurora.





Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Digitação: Edilene Brito da Cruz.

Fonte: http://www.ebooket.net/
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