O Mistério do Oeste Desconhecido

(por Dale Rippke)


Este capítulo dos Mistérios da Era Hiboriana apresenta um mistério particularmente interessante. A Era Hiboriana de Robert E. Howard se desenrolava numa versão pouco disfarçada dos continentes eurasiático e africano modernos. As aventuras de Conan por si mesmas jamais mencionam a possibilidade de um continente “americano”. Ele entretanto existia, mas é preciso se debruçar sobre os contos “não-conanescos” de Howard para descobrir sua história.


Na verdade, há apenas duas alusões a esta terra ocidental no que diz respeito aos contos de Conan: uma breve menção no ensaio “A Era Hiboriana”, e outra, numa carta escrita a P. Schuyler Miller em 1936. Estas duas alusões apenas mencionam a existência deste continente.

“A Era Hiboriana” conta que a Era Thuriana termina em uma grande catástrofe mundial chamada O Grande Cataclismo, e que as “Ilhas Pictas se ergueram para formar os picos montanhosos de um novo continente” e “os habitantes das Ilhas Pictas foram destruídos” na catástrofe.

Na carta ao Sr. Miller, Howard evoca o destino final de seu personagem Conan, e menciona que o cimério “até visitou um continente sem nome no hemisfério oeste, e vagou entre as ilhas adjacentes”. Os indícios que permitem constatar este continente parecem bem fracos. Não há muita coisa a se ter certeza. Será mesmo?

Os contos de Conan formam apenas uma pequena parte da produção literária de Howard. Talvez possam existir outras alusões à América pré-histórica em suas demais obras. Para um leitor pouco familiarizado com os contos de Howard, isto poderia representar uma tarefa enfadonha, mas felizmente (ou infelizmente), sou obcecado o suficiente pelo mundo imaginário de Howard para conhecer ao menos duas boas fontes de informação entre seus trabalhos. A primeira é uma aventura de Bran Mak Morn, “Homens das Sombras”, e a outra um conto de James Allison, “Mercadores de Valhalla”.

“Homens das Sombras” é a estória de um mercenário nórdico, capturado durante uma emboscada por um bando de saqueadores pictos. Ele se torna um peão, numa luta pelo poder entre o chefe picto Bran Mak Morn e um ancião chamado Picto. O mago perde o combate e conta a história das origens da raça picta, origens que remontam ao nosso “continente sem nome”. Na verdade, ela remonta mesmo às brumas da Era Thuriana.

Esta primeira raça de homens verdadeiros nasce sobre um pequeno continente setentrional, nas vastas planícies férteis (antigo Alaska). Esta raça terminou se deslocando uns 1600 km para o sul, ao longo de uma cadeia de centenas de ilhas ensolaradas, e finalmente se estabelecendo nas ilhas meridionais. Aparentemente, várias destas ilhas eram bastante vastas, pois as tribos ocupavam apenas as regiões ocidentais, deixando as florestas do leste e do sul para os animais ferozes e os homens-macacos que as habitavam. Trata-se na verdade de um relato da origem da raça picta, mesmo que o velho xamã, recontando a história, só se referisse a ela como a Raça Sem Nome.

Durante milhares de anos, a Raça Sem Nome ergueu uma grande civilização pastoril nestas ilhas meridionais, até que sua tranqüilidade foi ameaçada pelas investidas costeiras trazidas pelos Homens do Mar, semi-humanos vindos da longínqua terra da Lemúria, a oeste. Esses ataques foram finalmente rechaçados, embora se repetissem esporadicamente pelos séculos seguintes. A civilização insular tornou-se mais forte, e conseqüentemente, mais competente. Este período corresponde exatamente à Era Thuriana do Rei Kull.

Mas, um dia, a era de ouro terminou. Um terremoto mundial provocou a elevação das ilhas e a formação da cadeia de montanhas ocidentais de um grande continente setentrional. A terra da Lemúria desapareceu sob as ondas, deixando apenas uma grande ilha montanhosa, rodeada por numerosas ilhas pequenas. O terremoto e as erupções vulcânicas resultaram em ameaça ao progresso da raça rumo à civilização, e mergulharam o mundo na Idade da Pedra. Este terremoto seria mais tarde conhecido pelo nome de Grande Cataclismo.

A antiga residência insular deles tornou-se uma desolação seca e desértica, a Tribo Sem Nome migrou para o Leste, empurrando os homens-macacos (Neandertais) à sua frente, até atingir as vastas planícies opulentas do centro do continente. Lá viveram durante séculos, até que as grandes geleiras glaciais desceram do norte, forçando-os a migrarem para o sul. Este período corresponde provavelmente ao espaço de quinhentos anos entre o Grande Cataclismo e o Segundo Cataclismo. Observem que a Era Glacial deste continente começou por volta de 6000 anos antes da Europa da Era Hiboriana (*). Provavelmente, o Pólo Norte de então se encontrava nos arredores da Baía de Hudson.

Ao longo dos milênios seguintes, a tribo empurrou os homens-macacos sobreviventes para o distante sul do continente. Terminaram por atacar os homens-macacos numa grande guerra, e conseguiram exilá-los para a extremidade meridional deste continente além-mar, em direção aos reinos negros da proto-África. Como nenhuma geleira ameaçava o continente meridional, a Tribo Sem Nome se instala, mesmo o terreno sendo pantanoso e infestado de serpentes.

Durante a estadia da Tribo Sem Nome no sul, os lemurianos descobriram e colonizaram certas regiões do continente setentrional, e a faixa estreita de terra que o liga ao continente do sul. Os lemurianos haviam se tornado, geneticamente falando, verdadeiros homens e foram conseqüentemente chamados de Segunda Raça pela Tribo Sem Nome. Os lemurianos tinham uma curiosa arquitetura, que modificou-se com os países do sul, em oposição às ciências da agricultura e do artesanato. Terminaram esquecendo suas origens orientais e tornaram-se conhecidos sob o nome de Império Tolteca.

A Era Glacial terminou atingindo a Europa da Era Hiboriana, e as migrações dos nórdicos começaram logo em seguida. Nesta mesma época, a Tribo Sem Nome decidiu migrar mais uma vez, e chegou ao mar em direção à Atlântida. Depois de uma guerra de curta duração, eles exilaram uma raça de artistas gigantes, à qual deram o nome de Terceira Raça (Cro-Magnons), e que se espalhou pela Europa.

Durante sua breve estadia na Atlântida, a Tribo Sem Nome foi vítima de uma guerra civil devastadora, e o acampamento derrotado deixou a ilha. Um velho mago do acampamento derrotado lançou uma maldição sobre a terra da Atlântida: nenhum barco poderia jamais deixar a ilha, e nenhum barco poderia jamais atracar nela. Os perdedores foram de ilha em ilha até a África, seguiram pelas orlas do Mar Médio e chegaram à Europa, onde terminamos por conhecê-los com o nome de pictos.

Eis a história oral dos pictos, tal qual fornecida pelo mago Picto na obra “Homens das Sombras”. Surgem algumas contradições com “A Era Hiboriana”, mas acho que podemos facilmente explicá-las.

“A Era Hiboriana” afirma que os homens das Ilhas Pictas foram totalmente dizimados, ao passo que “Homens das Sombras” sustenta que eles sobreviveram. Acho que o motivo é uma simples diferença de perspectiva. “A Era Hiboriana” apresenta uma história do ramo europeu da raça picta. Eles não poderiam ter conhecido os sobreviventes das Ilhas Pictas, pois não tiveram contato com estes últimos. De fato, nós os consideramos desaparecidos. Sua história confirma esta hipótese. “A Era Hiboriana” afirma igualmente que a Atlântida desapareceu sob as ondas, e eis que ela aparece na tradição oral dos pictos. A Atlântida foi destruída durante o Grande Cataclismo. Pelo que sei, acho que ela teve a mesma sorte de Mu e da Lemúria nos escritos de Howard. Era uma pequena massa continental, que foi inteiramente submersa, com exceção dos seus picos mais elevados, que se tornaram ilhas. Lin Carter e Sprague DeCamp devem ter achado esta hipótese plausível, pois na sua obra “Conan das Ilhas”, a nação insular de Antillia forma os vestígios da Atlântida perdida.

Sendo assim, a Atlântida teria ressurgido das ondas, na Era Hiboriana? É provável que as ilhas compostas por estes picos montanhosos se alargassem um pouco, pois o nível da água do mar era 200 metros mais baixo na época da Era Glacial (logo após a queda da Era Hiboriana). A Atlântida não teria sido uma massa continental, mas um arquipélago de tamanho reduzido.

Podemos encontrar um bom argumento neste sentido, no conto “Os Deuses de Bal-Sagoth”, que descreve um império insular sem nome, de um povo de pele morena (vestígios da Tribo Sem Nome?), que sofreu inundações no fim da Era Glacial, e foi pouco depois conquistado por uma raça de pele avermelhada, vinda do continente. Assim, parece que a Atlântida ressuscitou por algum tempo (até desaparecer completamente sob as ondas, perto da Era Glacial)!

A segunda história a mostrar o Oeste desconhecido é “Mercadores de Valhalla”. Ela se desenrola no final da Era Hiboriana, porém antes da chegada da Era Glacial em Nordheim (**). Neste relato, uma tribo aesir percorre o mundo na direção leste. Eles atravessam um braço gelado (o Estreito de Behring); visitam extensas planícies cobertas de neve, onde vivem homens comedores de gordura, e em seguida vão em direção ao sul, através de montanhas, florestas, desertos e planícies. Finalmente, os aesires chegam aos rios que desembocam num mar tranqüilo (o Golfo do México), perto de uma cidade ciclópica de torres negras: a cidade lemuriana de Khemu.

Em determinada época, as cidades lemurianas “haviam coberto o golfo sobre o qual dominava Khemu. Mas algumas foram engolidas pelo mar, outras tinham sido destruídas por guerras civis, e assim havia quase mil anos que Khemu reinava sozinha, em sua solitária majestade”. O povo de Khemu não é de puro sangue lemuriano, mas uma raça de súditos.

O único contato dos lemurianos se deu com um grupo de canibais de pele pintada, vindo das ilhas do sul. São selvagens de pele morena, recém-chegados às ilhas desde “esse longínquo continente [Atlântida?], de onde sua raça havia se originado”. O povo pintado faz comércio “com âmbar cinza, cocos, dentes de baleia e corais das ilhas, bem como mogno, peles de leopardo, ouro virgem, presas de elefantes e cobre originário de alguma nação tropical ao sul (o Povo Sem Nome?)”.

No final da história, Khemu é destruída por um maremoto, e levada ao fundo do golfo. É interessante notar que não há contradição alguma entre esta narrativa, e o que nós sabemos da história hiboriana conforme “A Era Hiboriana” e “Homens das Sombras”. Howard dominava bem seu assunto...

Assim sendo, nós sabemos como era o “Oeste Desconhecido” do mundo imaginário de Howard. Ele se compunha de dois continentes ao norte e ao sul, ligados por uma língua de terra central, de forma similar à América moderna (mesmo que sua forma continue desconhecida). Um certo número de ilhas se encontrava nas proximidades da língua de terra e, mais distante a oeste, se encontrava o arquipélago ressurgido da inundação da Atlântida (as Antilhas?).

O continente setentrional era, na sua maior parte, inabitável, devido às glaciações, embora uma raça súdita dos lemurianos tenha tentado, sem grande sucesso, erguer um império na costa meridional.

A presença lemuriana na língua de terra central durou muito mais tempo, e originou o Império Tolteca. As ilhas adjacentes foram colonizadas pelos refugiados atlantes, sendo que a própria Atlântida originou uma raça de artistas gigantes.

O continente meridional parece ter atingido um surpreendente nível de civilização durante a Era Hiboriana. É provavelmente lá que se desenvolveu a nação de Mayapan, mencionada nos textos apócrifos (***).

A pré-história humana segundo Robert E. Howard é simplesmente bem mais coerente do que a maioria das pessoas possa pensar. Ele detalha tudo o que escreve, e demonstra que tinha uma visão totalmente clara do mundo. E isto nos dá uma ajuda preciosa nas nossas viagens através de sua imaginação.





(*) – Segundo Dale Rippke, o espaço transcorrido entre o Grande Cataclismo e a Era de Conan foi de 6500 ou 5500 anos. Neste artigo, nota-se que Rippke estabeleceu um espaço de tempo de 6000 anos . Contudo, de acordo com outros textos howardianos, é mais provável que este espaço de tempo tenha sido de dezenas de milênios (Nota do Revisor).


Tradução: Madalena Sallenave.

Revisão: Fernando Neeser de Aragão (fernando_arag@yahoo.com.br e fernando.neeser2@bol.com.br).
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