Derrotas nas Estepes

Introdução:


O conto a seguir situa-se, cronologicamente, entre os eventos narrados no poema “A Cripta” (ESC 34) e na aventura “A Lâmina de Fogo” (ESC 17/ Conan – Espada e Magia 5). Na aventura que segue, busquei desenvolver as seguintes referências:

1 - “Conan navega e saqueia ao longo do Mar Vilayet, desembarcando na ilha de Djafur, a sudeste de Aghrapur, e tornando-a sede de seu reino pirata. Olívia vai embora dali, depois que Conan encontra Philiope” (sinopse de “Conan da Irmandade Vermelha” / conto inédito em quadrinhos e no Brasil, situado entre os eventos da ESC 4 e CS 10);

2 - “Capturada por saqueadores de Jehungir Agha, ela [Octávia] tinha esperança de que Conan, então com os kozakis nas estepes hirkanianas, a visse e a comprasse. De fato, o bárbaro adquiriu a posse da garota em Xapur, uma ilha do Mar Vilayet, mas isto se deu graças à vontade e entusiástica interferência de Olívia” (Correntes e Grilhões/ ESC 22);

3 - “Eram homens de todas as nações, sobreviventes do bando dos kozakis que Conan tinha chefiado para o sul e que tinham fugido das estepes ao redor do Mar Vilayet quando o rei Yezdigerd, de Turan, reunira todo o seu exército para destruir a confederação de bandidos, numa batalha sem trégua” (Conan – Espada e Magia 5, pág. 72).

Neste conto, inseri, também, os seguintes personagens: o Rei Yezdigerd, de Turan (este, assim como Conan, dispensa apresentações); Olívia de Ophir (ESC 4), Octávia da Nemédia e o conselheiro Ghaznavi (ESC 9), Codrus e Hattusas (ESC 17/ Conan – Espada e Magia 5) e Alondra da Coríntia (ESC 22).

O shemita Haddami foi criado por mim; não há referências a ele na saga do personagem Conan. Os demais personagens, aos quais faço apenas ligeiras referências, são Jehungir Agha e Khosatral Khel (ESC 9), assim como Shah Amurath (ESC 4) e Kobad Shah (ESC 17/ Conan – Espada e Magia 5).

Como nem os contos, nem os quadrinhos citam o paradeiro de alguns personagens desta história, me senti à vontade para fazê-lo.






Derrotas nas Estepes

(por Fernando Neeser de Aragão - fernando.neeser2@bol.com.br)


1)

É noite nos pântanos juncosos que cercam o litoral do Mar Vilayet. Mesmo naquele final de outono, faz pouco frio naquela área, de clima quase tropical. A lua está alta, enquanto, a cavalo, um homem agigantado cruza suas águas lodosas, levando uma jovem loira adormecida à sua frente. O homem veste uma camisa e uma tanga de pele de animal, com placas metálicas, sobre o musculoso corpo moreno; um par de botas de couro, com acabamento dourado, sob grevas com entalhes de cabeça de bode à altura dos joelhos; e, sob o capacete com chifres metálicos, os cabelos ainda curtos oscilam ao sabor da brisa e os seus olhos azuis faíscam infatigáveis. Ele era Conan da Ciméria, chefe dos kozaks, pela segunda vez em menos de dois anos.

A jovem loira, que dormia atravessada sobre o cavalo, embalada pelo trote deste, estava seminua; mas o grosso manto de pele do seu homem resguardava-a do frio noturno, ao qual aquela ex-nobre e ex-escrava não estava acostumada, mesmo depois de ter dormido uma tórrida noite, no acampamento, com seu novo – e carinhoso – dono, às margens do Rio Zaporoska. Ela era Octávia da Nemédia, dos longos cachos dourados, dos olhos e pele claros, do corpo esguio e largos quadris bem delineados, e dos firmes seios fartos: uma rainha kozak!

De repente, o cavalo pára, assustado. Por mais que o Bárbaro fustigue sua montaria, ela não sai do lugar. Então, ele vê o que causou pavor ao animal, e os negros cabelos de Conan eriçam – até a adormecida Octávia acorda sobressaltada com a energia maligna, emanada pela estranha aparição diante deles.

- Conan! Foram eles que me raptaram e levaram-me à cripta! – grita, assustada, a recém-despertada Octávia.

Eram três homens altos e encapuzados, com longas túnicas brancas, a ostentarem, na parte frontal destas, o desenho de uma enorme coruja. Desembainhando sua nova espada, tirada da Cripta – uma afiada arma reta, de duas lâminas, ao estilo hiboriano, como ele prefere –, o líder kozak salta da montaria, ao mesmo tempo em que os três estranhos, ainda em silêncio, inclinam as cabeças e fundem-se num só. Então, a nova entidade fala, com sua voz alcançando as mentes do assustado casal:

- Pensa que a sua mulher iria se livrar tão facilmente do nosso culto, bárbaro ignorante? Fomos invocados por alguns mortos-vivos da Cripta, antes que você os matasse. Ela será sacrificada ao Deus-Coruja, para que a nossa religião se fortaleça... e ai de quem interferir!

Embora sinta pavor por magia, Conan, o matador de inúmeros monstros e feiticeiros em seus anos de andança pelo mundo “civilizado” – e, mais recentemente, o matador do ressuscitado Khosatral Khel, em Xapur, e dos mortos-vivos na cripta do baixo Zaporoska –, não se deixou levar pelo medo, mesmo quando aquele estranho homem cresceu gigantescamente, a ponto de rasgar a própria toga, enquanto se transformava em uma estranha e monstruosa coruja de mais de três metros de altura, olhos vermelhos, enormes dentes afiados pelo bico e, ao invés de asas, dois longos braços com poderosas garras.

Sem hesitar, Conan investe contra a alva criatura monstruosa, buscando desviá-la de Octávia – a qual, de tão aterrorizada, ficara paralisada e incapaz de usar seu cavalo para fugir até o acampamento. Brandindo sua espada contra aquela cria do Inferno, o bárbaro descobre que esta é quase tão invulnerável ao aço comum, quanto o gigante que derrotara em Xapur, há menos de duas semanas. A lâmina treme ao bater entre as penas do monstro, abrindo apenas um pequeno arranhão na pele deste. Um segundo ataque faz a espada quebrar-se no peito do demônio-coruja, arrancando-lhe um pouco mais de sangue. Seria aquela espada, por ter saído de uma cripta, encantada a ponto de matar aquela criatura levemente ferida? A pergunta, por um instante, ecoou na mente do hetman cimério, embora a pavorosa criatura não demonstrasse a menor dor.

Então, com um golpe de um de seus braços disformes, o monstro arrebatou Conan para um lado, fazendo homem, elmo e espada caírem no pântano, separados um do outro. A criatura avança contra o bárbaro caído, mas ele se esquiva, ao mesmo tempo em que desata, do cinto, seu enorme machado de duas lâminas. Com um salto felino e o assustador brado cimério, o kozak arremete seu machado contra a testa da monstruosidade, despedaçando a lâmina do mesmo e rachando-lhe o cabo, sem, no entanto, fazer o menor arranhão em sua enorme cabeça. Como contra-golpe, a criatura arremete suas garras contra o peito de Conan, mas este se esquiva como um lobo, perdendo apenas a camisa de pele com placas metálicas, ao invés dos músculos peitorais, costelas e coração que o monstro pretendia arrancar.

Naquele momento, uma seta assobia, cortando o ar e alojando-se no rubro olho direito do monstro, fazendo-o escancarar o bico com dentes e, pela primeira vez, gritar em agonia, num uivo que lembra o pio de uma coruja, embora num som disforme e muito mais alto. Sem se perguntar de onde veio a flecha, o bárbaro seminu puxa um punhal de seu cinto e crava-o profundamente no olho esquerdo da criatura. Com um uivo quase humano de agonia mortal, a criatura cai sobre os charcos juncosos e, ao morrer, transforma-se em três homens encapuzados, com cabeças abertas, olhos vazados e peitos abertos. Antes que Conan pudesse traçar algum plano para destruí-lo, o culto estava desfeito.

Ao se virar para ver quem atirou a flecha, o aliviado bárbaro se surpreende ao ver, montada a cavalo e ainda com uma balestra na mão, a também kozak Olívia de Ophir, uma bela jovem de pele clara e olhos escuros, com longos cabelos negros e roupas de seda branca.

- Olívia! – sorri o cimério, desconcertado. – Não sabia que você já tinha voltado.

- Fui avisada, no acampamento, de que você tinha ido buscar Octávia, da cripta onde ela fora aprisionada, meu Conan. – responde a ophiriana, num tom que mistura paixão pelo bárbaro e, ao mesmo tempo, suspeita, diante do constrangimento dele.

- Quem é ela? – pergunta Octávia a Conan.

- A amada dele... – responde Olívia, antes que o cimério pense em mentir – Ou, pelo menos, fui, até há pouco.

Espantada, Octávia – que já partilhara o leito com o cimério por duas vezes, uma após cada resgate – mira os olhos azuis do bárbaro do norte.

- Eu... iria contar pra você. – responde o hetman, com outro sorriso sem jeito, dirigindo-se a Octávia.

- Como “contou” àquela ruiva coríntia, que você havia voltado para mim, antes de abandoná-la, quando eu finalmente lhe perdoei por ter, tempos atrás, me trocado por Philiope? – retruca Olívia.

Suspirando profundamente, Conan apanha seu capacete do raso charco onde caíra e, após enxugá-lo, coloca-o na cabeça e diz:

- Não acham melhor conversarmos em minha tenda? Por Crom, já enfrentamos uma cria do Inferno e acho mais seguro voltarmos ao acampamento, antes que apareça outra.


2)

Naquela mesma noite, no palácio real de Khawarizm, um homem de meia-idade, cabeça raspada e barba grisalha, vestindo suntuosos trajes de seda, escuta o incomum barrido de várias trombetas, típicas dos maiores exércitos turanianos, e dirige-se ao portão – do qual Jehungir Agha, lorde daquela cidade, saíra há algumas semanas para emboscar Conan. É o conselheiro Ghaznavi, que, ao sair do portão do palácio, avista dúzias de cavaleiros, usando coletes, armas e escudos de aço; trajes e mantos de seda sobre as amaduras, bem como esvoaçantes turbantes, também de seda, sob elmos dourados. Todos convergem até o portão do palácio, onde o conselheiro se encontra.

À frente deles, cavalga um homem alto, moreno como todos ali presentes, e com roupas semelhantes às dos militares, embora mais luxuosas. A seda de seus ricos trajes recobre a malha de aço em seus poderosos tronco e pernas; apenas seus musculosos braços morenos, que tão habilmente manejam seu cavalo puro-sangue, estão descobertos. Uma barba negra e cerrada, sob o nariz aquilino, disfarça-lhe a saliência do queixo, cobrindo parte do seu inconfundível rosto régio e duro, com negros olhos levemente puxados, faiscando com frieza e autoridade, e uma cicatriz diagonal, que não deixa dúvidas de quem ele era. É o dono de todo o litoral oeste e sudeste do Mar Vilayet, herdeiro, conquistador e criador de um império ainda em expansão: o Rei Yezdigerd, de Turan!

Ao vê-lo, o surpreso Ghaznavi se ajoelha e curva-se, servilmente.

- Majestade! – diz o conselheiro, erguendo-se em seguida – A que devo a honra de tal visita? Fico a imaginar que Sua Majestade veio me informar sobre o sucesso da armadilha que preparamos para Conan, em Xapur... e creio que o lorde desta cidade esteja entre vocês, com a cabeça daquele porco kozak nas mãos...

- Muito me admira que as notícias cheguem mais rápido a Aghrapur do que a Khawarizm, que fica bem mais perto de Xapur... – rosna Yezdigerd – Jehungir Agha está morto naquela ilha maldita, e aquele verme bárbaro continua vivo, graças aos planos idiotas de um conselheiro incompetente! Certamente, aqueles bandidos, que o cimério lidera nas estepes, devem ter impedido que as notícias chegassem até aqui. Mas os soldados, que fugiram da ilha de Xapur, nos enviaram as mensagens, através de pombos-correios.

- T-tenha calma, ó Majestade, ó rei entre reis... – gagueja Ghaznavi ao exaltado imperador – já estou planejando... o que Vossa Majestade acha de reunirmos os melhores exércitos de Turan, para darem cabo dos kozaks e seu líder?

- Eu já planejei isso, antes de vir pra cá, seu imbecil! – brada o rei Yezdigerd, calando-se em seguida para, então, abrir um sorriso maligno: – Acho que, além de um novo lorde, esta cidade precisa de um novo conselheiro... Guardas! Vocês sabem o que fazer com este velho inútil...

Dois de seus oficiais cercam o assustado conselheiro, enquanto dois soldados o amarram. Enquanto este implora ao imperador, um de seus soldados sorri perversamente e diz a Yezdigerd:

- Será um prazer enforcá-lo, Majestade.

- Forca? – diz o cruel imperador de Turan, quase rindo – Seria uma morte muito rápida. Amanhã, pela manhã, Ghaznavi ouvirá a nomeação dos novos lorde e conselheiro de Khawarizm, pendurado nestes portões, com os pés e mãos decepados...

Com um sorriso tão maligno quanto o do imperador, os militares se apressam em cumprir-lhe as ordens. O que a perda de sangue e a inanição não fizerem a Ghaznavi, os abutres certamente farão...

- Depois da nomeação, atacaremos e esmagaremos os kozaks, e traremos a cabeça de Conan na ponta desta lança! – acrescenta Yezdigerd, erguendo a bandeira do Império de Turan.


3)

É meia-noite no acampamento kozak, às margens do Zaporoska. As fogueiras foram quase todas apagadas, enquanto, um a um, os membros do Povo Livre iam se recolhendo às suas respectivas tendas. Ao redor do acampamento, homens armados, que dormiam durante o dia e eram membros daquele grupo de saqueadores, faziam seus turnos de vigia.

Somente dois guardavam a tenda do líder. A distância dos guardas não permitia a eles ouvir nada que acontecesse no interior da tenda, a não ser que alguém batesse palmas, para chamar um dos vigias, ou, por algum motivo, guinchasse. Mas, o recém-chegado hetman e suas duas mulheres guardavam o silêncio, enquanto Olívia, outrora companheira de pirataria do cimério no Vilayet e, quase dois anos depois, uma rainha kozak, sente-se rejeitada por Conan, ao saber que este mantinha relações sexuais, tanto com ela, quanto com Octávia. Mas, ao mesmo tempo, identifica-se com a loira de olhos claros a seu lado: Olívia era princesa de Ophir, antes de cair nas garras do asqueroso Shah Amurath; Octávia, por sua vez, era filha de um nobre nemédio, antes de ser escravizada pelo belo, mas não menos canalha Jehungir Agha. Em épocas diferentes, embora em lugares relativamente próximos, ambas foram salvas de seus terríveis senhores pelo mesmo homem, que agora senta-se diante delas; o primeiro homem com quem ambas tiveram relações sexuais prazerosas. Esta identificação faz Olívia se pegar admirando os cachos dourados e olhos azuis da jovem ao seu lado, e assustar-se, com um sentimento de culpa, ao se imaginar colada, pele com pele, àquela bela loira que está sentada no mesmo estrado de peles que ela. Então, o bárbaro do Norte interrompe-lhe o devaneio, ao quebrar o silêncio:

- Por Crom, Olívia! Não foi você mesma que permitiu e aprovou minha idéia de ir buscar Octávia, em Xapur? – fala ele.

- Sim, Conan... eu permiti e aprovei sua idéia por duas razões. A primeira é que, como ex-princesa e ex-escrava, eu nunca admiti que mulher nenhuma sofresse o que sofri nas mãos dos turanianos. A segunda é que eu não sabia que você se sentiu atraído por ela. Lembre-se que, depois que você me trocou por Philiope e eu fui embora de Djafur, os hirkanianos me escravizaram novamente; engravidei de um deles, e meu filho, aos seis meses, morreu assassinado por uma flecha perdida, numa batalha. – diz Olívia, com os olhos melancólicos, puxando a abertura de sua camisa de seda branca e mostrando o busto alvo que, embora ainda belo, era agora maior e menos firme do que quando a ophiriana abandonara o então pirata Conan – E estes seios de mãe não me deixam mentir! Depois que você me livrou do meu novo dono, há pouco tempo atrás, eu lhe perdoei por ter me traído com a tal Philiope; e até mesmo por voltar pra mim antes de ter rompido com Alondra, deixando-a depois na companhia de um dos seus homens. Mas, esta nova traição, eu não admito!

Octávia, por sua vez, não deixa de admirar o discurso da “rival”, bem como a exuberante beleza dos seios da mesma, os quais, um pouquinho maiores que os dela e não tão firmes, são um pouco diferentes dos que possui. Aliás, a escuridão noturna dos olhos e cabelos da ophiriana, em contraste com os da nemédia, aumentam a sua admiração pela ex-princesa. Octávia também não deixa de admirar a nobreza da alma daquela mulher ao seu lado, e também se identifica com Olívia, ao notar as semelhanças entre a sua história e a dela, ao mesmo tempo em que sente algo familiar e agradável percorrer-lhe a espinha e entranhas. Embora em menor intensidade, a loira percebe em si mesma um sentimento por Olívia, o qual, até então, ela só tinha por Conan.

Se as duas hiborianas tivessem brigado uma com a outra, Conan saberia apaziguá-las. Nestas circunstâncias, entretanto, o cimério pensa em sorrir e pedir para que elas parem com aquilo que ele julga ser uma cena de ciúme. Mas, no momento seguinte, negros olhos ophirianos cruzam-se com olhos azuis nemédios, e suas respectivas donas sentem crescer, dentro delas, a empatia e o sentimento latente de mútua atração física. Então, concluindo seu discurso, Olívia se dirige a Conan, com firmeza:

- Agora é com você. Ou eu ou ela, cimério! Você decide.

O silêncio do bárbaro e um longo suspiro de indecisão deste, são a única resposta às palavras inquiridoras da rainha kozak ophiriana. Diante disto, Olívia e Octávia se entreolham novamente e, deixando o desejo crescente vencer-lhes todos os medos e falsos pudores, elas acariciam recíproca e lentamente os ombros, até ficarem abraçadas, frente a frente. Diante dos olhos espantados do cimério, ambas acariciam a cabeleira uma da outra e, lentamente, aproximam seus rostos até encostarem seus narizes. Então, numa onda crescente e cada vez mais arrebatadora de desejo, Olívia e Octávia cerram os olhos e sentem seus lábios se tocarem lentamente, até que, não mais resistindo à enorme atração mútua que descobriram, as duas ex-nobres e ex-escravas trocam um longo, molhado e ardoroso beijo na boca, diante dos arregalados olhos azuis do hetman.

Então, após dois longos minutos de estalos e atritos entre línguas e lábios, as duas hiborianas olham para Conan, e Octávia rompe o silêncio:

- Você não decidiu... então nós decidimos. Agora, faça conosco o que achar melhor. Mas, aconteça o que acontecer, isso não diminuirá meu sentimento por esta mulher, nem o dela por mim... E, ao contrário de você, seremos fiéis uma à outra. – disse a loira.

Ainda espantado, o bárbaro lembra que em suas muitas andanças pelos bordéis de Shadizar, em Zamora, ele ouvira falar em práticas como esta. Todavia, era a primeira vez que ele via isso pessoalmente.

- Ninguém será punido por isto. – responde ele, finalmente – Eu já estou pagando por não ter sido sincero com nenhuma de vocês. No amor, são os Deuses que decidem, e não os homens. – responde ele, com um suspiro de resignação.

Batendo palmas, o cimério pede a um de seus guardas para chamar o jovem Haddami, um dos seus maiores homens de confiança. Quando este chega, Conan conta ao rapaz toda a história ocorrida e, então, diz a ele:

- Amanhã, você se disfarçará de mercador e elas fingirão ser suas escravas, até vocês chegarem à cidade nemédia de Thalia. Espero que este dinheiro lhes sirva para a longa viagem e para uma boa moradia lá. – acrescenta o chefe kozak, entregando ao musculoso jovem shemita uma quantia equivalente a quase metade da própria fortuna pessoal. O suficiente para uma vida luxuosa na cidade hiboriana para onde vão.

Conan poderia, indefinidamente, esconder este inusitado enlace de todos os seus colegas de saque. Mas, ele não sabe bem por que, algum instinto bárbaro lhe diz que aquele acampamento não é mais seguro para as duas mulheres de quem ainda gosta – embora não mais como parceiras.

- Pela manhã, escolherei os melhores cavalos do acampamento, para que vocês possam partir – acrescenta o hetman ao shemita de cabelos e barbas negro-azulados, dando-lhe permissão para se retirar da tenda.

Então, enquanto Conan deita-se no seu estrado-cama e vira o corpo para dormir, as duas jovens hiborianas se entreolham e sorriem, surpresas e satisfeitas. Após trocarem outro beijo, ainda mais longo e ardente, Octávia – ainda seminua desde que Conan a resgatara da Cripta – e Olívia – que não cobrira os seios desde que os desnudara, durante o pequeno sermão a Conan – trocam novos beijos, agora nos pescoços cor-de-marfim. Os suspiros de Olívia aumentam, quando esta sente Octávia afundar o rosto entre seus seios fartos, os quais a nemédia suga com mais intensidade do que beijara-lhe a boca. Ainda mais excitada, a ophiriana tira do peito o belo rosto de Octávia e, imitando-a, retribui-lhe as carícias. A seguir, longos gemidos de prazer invadem a tenda, enquanto, em seu leito, o fatigado cimério se deixa levar pelo sono. Se algum dos vigias que guardam a tenda pudesse ouvir-lhe os sons internos, seria capaz de jurar que seu chefe estava satisfazendo as duas mulheres, ao mesmo tempo.


4)

O sol estava nascendo, quando Octávia e Olívia, guiadas pelo belo shemita Haddami, partiram do acampamento. Ainda com a lembrança das duas hiborianas na mente, Conan manda seus homens levantarem acampamento para outra parte do Rio Zaporoska, por questões de segurança, sem esquecer as últimas palavras da loira nemédia: “Eu e Olívia, apesar de tudo, lhe agradecemos por você ter salvado nossas vidas mais de uma vez, e, acima de tudo, por ter sido compreensivo conosco”.

Os dias se tornam semanas, enquanto o “mercador” Haddami e suas belas “escravas” cruzam as estepes turanianas – com Octávia e Olívia vestindo véus na cabeça e rosto, para não serem reconhecidas –, atravessam Zamora e Coríntia, até chegarem à fronteira da Nemédia.

* * *

Enquanto isso, Conan lidera um ataque a uma caravana que passa pelo sul de Turan, surpreso em encontrar uma, tão próxima das estepes e do Mar Vilayet.

Ao se aproximar com seus homens, porém, o hetman percebe, tarde demais, o erro que cometera. Não eram simples mercadores, mas soldados turanianos disfarçados. Enfrentando-os, Conan e seus homens conseguem matar metade dos militares de Yezdigerd, com pequenas baixas entre os kozaks. Ao dar meia-volta, todavia, o cimério vê vários exércitos turanianos, com a bandeira daquele temível império, cercando-os. Então, soltando o seu estridente grito de guerra cimério, o bárbaro e seus homens abrem caminho por entre aquela muralha humana que os cerca, abrindo peitos e ventres, e decepando mãos e cabeças, em seu caminho de volta ao acampamento kozak.

Lá chegando, Conan encontra metade das tendas pegando fogo e seus homens resistindo bravamente ao ataque de um exército turaniano, ainda maior do que aquele que tentara cercá-los, alguns quilômetros atrás.

- Codrus! Hattusas! Comigo, kozaks! – grita o cimério, chamando seus homens de maior confiança, bem como a todos os seus comandados. A chegada do líder reanima os guerreiros do Povo Livre, fazendo-os resistir ainda mais bravamente àqueles impiedosos cavaleiros imperiais, vestidos com malhas de aço, roupas de seda e capacetes de ouro.

Então, o líder dos kozaks vê um pequeno e esguio homem, de pele morena, cavalgar em sua direção. É o zamoriano Hattusas, um dos homens de confiança do bárbaro e velho amigo deste, desde os tempos de roubos, em Shadizar e Arenium. Enquanto o hiboriano Codrus também cavalga em direção a Conan, talhando dois turanianos no caminho, Hattusas fala ao cimério:

- Fui informado de que navios hirkanianos, de Onagrul, Dimmorz e Makkalet, estão atacando as embarcações dos nossos amigos piratas, no Mar Vilayet!

- Vamos ver se conseguimos ajudá-los. – respondeu o bárbaro, chamando Codrus para lutar a seu lado – Mas, primeiro, teremos que ajudar os kozaks que estão sendo atacados, para podermos liderá-los até o norte, rumo às praias.

Todavia, para cada turaniano morto, morre um membro do Povo Livre – flechado, trespassado por uma lança e talhado ou decepado por um sabre hirkaniano. E Conan se vê incapaz de levar seus comandados às praias ao norte. A batalha dura o dia inteiro. Em meio a ela, a bela ruiva Alondra da Coríntia – ex-companheira de Conan – e seu amante kothiano percebem que a vitória dos turanianos é só uma questão de tempo e, a uma distância segura, fustigam seu cavalo, longe do alcance visual das hostes de Yezdigerd, e fogem, com destino à regenerada cidade de Akhlat, em Shem, da qual o cimério falara a eles, numa noite ao redor da fogueira. Mesmo sabendo que o bárbaro já escapara de situações mais perigosas, a ruiva coríntia não deixa de rezar a Mitra e Asura, em seu íntimo, pelo bem-estar do líder dos kozaks.

Enquanto rasga e perfura os capacetes, armaduras, ossos e carnes dos turanianos, com sua cimitarra ensangüentada, o bárbaro do Norte percebe, juntamente com Codrus e Hattusas, que a barreira turaniana está maior ao norte, impossibilitando totalmente a chegada dos kozaks às praias do mar interno. Enquanto isso, as baixas continuam iguais entre turanianos e kozaks, mantendo a superioridade numérica dos primeiros sobre os últimos. As barracas dos salteadores das estepes não deixaram de ser incendiadas pelos exércitos do rei de Turan, restando apenas uma ou duas intactas.

Por toda a parte, o ofegante Conan e seus poucos homens restantes só viam, além da fumaça, homens caídos, com miolos espalhados pelo chão, peitos abertos e intestinos de fora, membros e cabeças separados de seus corpos... o sangue tingia grande parte do chão das estepes. Nas praias distantes, os navios piratas queimavam diante dos ataques das embarcações de velas púrpuras, mandadas pelo imperador Yezdigerd, enquanto os sobreviventes dos derrotados lobos-do-mar do Vilayet fugiam para as ainda autônomas províncias do litoral norte da Hirkânia. Abrindo um caminho sangrento por entre os turanianos que o cercavam e desviando-se das flechas a eles endereçadas, os últimos membros do Povo Livre fogem a cavalo para o sul, liderados pelo agigantado hetman bronzeado, de faiscantes olhos azuis e cabelos negros, com roupas e espada rubras de sangue turaniano.


5)

Dias depois, muitas léguas a oeste, na cidade nemédia de Thalia, o ex-kozak Haddami compra uma luxuosa e bem guarnecida mansão, para ele e as duas hiborianas que, durante a longa viagem, fingiram ser suas escravas. Agora, nesta casa de dois pavimentos – o inferior, com um quarto para ele, e o superior com outro, para dar privacidade a Octávia e Olívia –, este tipo de disfarce será descartado.

Após algumas semanas, o jovem moreno – que, como todo bom shemita, sabe administrar seu dinheiro –, apesar da grande amizade com as duas ex-mulheres de Conan – que agora reencontraram a si próprias, como amantes uma da outra –, começa a se sentir solitário e “sobrando”. Em vista disso, Haddami compra, num mercado de escravos daquela cidade, uma belíssima kushita cor-de-ébano, levada àquele mercado por escravistas de sua terra natal, a fim de lhe aquecer as noites solitárias.

* * *

Enquanto isso, no abandonado campo de batalha, no qual se tornara o último acampamento dos kozaks nas estepes, uma tropa de elite turaniana passa em revista os mortos da grande batalha, ocorrida dias antes. À frente da tropa, em luxuosas roupas de seda a cobrirem-lhe a armadura de cota-de-malha no musculoso corpo moreno, ninguém menos que o imperador Yezdigerd, de Turan, olha, um a um, os rostos dos kozaks mortos. A revista dura o dia inteiro e a metade do seguinte, mas Yezdigerd não encontra, dentre os mortos, o rosto daquele bárbaro que, além de ter sido uma pedra no sapato de seu falecido pai, o rei Yildiz – e no seu também –, fora o responsável pela cicatriz deixada em seu rosto, anos atrás, durante o Cerco de Makkalet.

Mas, algum dia, Yezdigerd jura silenciosamente, ele fará aquele cimério pagar aquela cicatriz em seu rosto, bem como as perdas, ocasionadas pelos inúmeros saques a caravanas e cidades turanianas, tanto nas estepes, quanto nos desertos entre os zuagires.

* * *

Após terem evitado as patrulhas remanescentes, o cimério de calças e camisa esfarrapadas conduz seu bando para o sul, rumo aos desertos que sucedem as estepes.

- Para onde agora, chefe? – pergunta Codrus ao bárbaro.

- Ao Iranistão, caro amigo. Turan está quente demais para nós. Quando moleque, ouvi falar em Kobad Shah, que ainda governa aquele país. Naquela época, dois iranistaneses quase me mataram por causa de suas lealdades a Kobad. Um rei que inspira tal sentimento, de forma tão intensa, deve ser um homem de alma bastante nobre... – e, abrindo um largo sorriso de otimismo: – E um rei daqueles não há de negar ajuda a quem queira trabalhar para ele!

Por trás do sorriso cor-de-marfim, todavia, o líder bárbaro se indaga, silenciosamente, qual fora a sua pior derrota: a do mar, onde vários de seus piratas foram destroçados e esmagados; a das estepes, onde perdeu centenas de comandados e amigos... ou a da cama, onde perdeu duas mulheres que ele, tão cedo, não esquecerá. E ninguém, nem mesmo os Deuses, saberá responder.
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