Contos: Vingança na Ciméria

por Fernando Neeser de Aragão
em 07/10/2004
Introdução

Alguns conanmaníacos mais atentos irão perceber que a seguinte história se passa logo após os eventos narrados em CB 9, e logo antes da aventura "Lágrimas Escarlates" (CB 59). E, além disso, notarão que omiti os eventos ocorridos entre as CBs 56 e 58. Tive dois bons motivos:

1) Na aventura "Os Mortos da Noite Viva" (CB 56), Conan e Hobb são atacados por um hiperbóreo, cujo bastão mágico o Cimério só viria a conhecer (bem como à função do mesmo) aos 58 anos, graças ao seu filho Conn, de 12 - portanto três décadas mais tarde (ver Rei Conan no 1, nos dois últimos quadrinhos da pág. 35).

Obs.: Laynnen, o amigo de Conan, apareceu na CB 9; Hobb, na 55; e as armas, capazes de acabarem com os mortos-vivos, foram mencionadas por Conan na CB 56 - onde os nomes "Haloga" e "Louhi" (apresentados, respectivamente, em ESC 21 e RC 1) também aparecem.

2) Ao final de "A Estrela de Khorala" (ESC 27) - onde Conan está com 31 anos (ver, em CR 4, "Das Crônicas da Nemédia, A Carreira de Conan", onde também fica evidente que a aventura citada é posterior a "As Negras Noites de Zamboula" - ESC 8) -, o Bárbaro fala, à ex-rainha Marala, que está indo à Ciméria para visitar "uma velha". Esta "velha", ao que parece, só pode ser a "velha mãe" de Conan, a qual este último ainda pensava estar viva. Deste modo, a aventura "Ciméria" (ESC 61) situa-se após os eventos quadrinizados em "A Estrela de Khorala" (ESC 27), e não anteriormente ao encontro de Conan com o nemédio Amalric e a khorajana Yasmela, como mostrado erroneamente em CB 57 e na Cronologia da CB 53.

No conto a seguir, procurei preencher - da forma mais fiel possível a Robert E. Howard, L. Sprague De Camp e Lin Carter, bem como à aventura 'Ciméria' (ESC 61) - o espaço deixado pelas aventuras contraditórias que omiti, bem como narrar como deve ter sido, com base nos padrões que resolvi seguir, o último encontro de Conan com seus pais, Corin e Gresham.


Vingança na Ciméria

1)

A primavera havia acabado de começar naquele país frio, enevoado e ainda coberto de neve. Por isso mesmo, a barba por fazer já incomodava aquele guerreiro musculoso, de pele bronzeada, olhos azuis e quase dois metros de altura, com vinte e oito anos recém-completados. Aquele homem havia, há pouco tempo, se desapontado com um amigo de infância, por saber que este era um deus. Mas, se os pensamentos daquele jovem cimério estavam voltados para o amigo Laynenn e sua pequena família, nem o indiferente deus Crom sabia.
De qualquer forma, o viajante solitário a caminho da Tribo dos Falcões da Neve, onde nascera, pensava em uma família, sim: a dele próprio, com a qual deixara um amigo hiboriano; um poltrão de nome Hobb, pouco antes de se aventurar no norte da Ciméria. Mal sentindo a lamacenta neve em degelo sob suas botas, o andarilho, de nome Conan - que, a essa altura da vida já fora ladrão, mercenário e pirata, além de ter chefiado tribos e exércitos -, apressou o passo, ao avistar algumas estranhas névoas de fumaça, vindas de sua aldeia - as quais, ele notara, não eram indícios de comida cozida.
Desembainhando sua longa espada roubada, de aço vanir, Conan fica alerta a qualquer ataque. Mas, ao chegar à sua tribo, encontra apenas algumas choupanas queimadas e o choro de algumas mulheres e crianças. Preocupado, ele pergunta pelos pais e por Hobb. Enquanto os procura, Conan revê os filhos adolescentes de alguns amigos - cujos pais, ele via no olhar dos jovens, haviam sido enviados ao reino de Crom, o indiferente deus dos cimérios. Parcialmente aliviado, Conan avista o gordo coríntio ainda assustado, porém vivo.
- Estou aqui, filho. - diz, logo em seguida, uma outra voz familiar. Então, Conan se vira e, num sorriso, abraça o pai, o ferreiro Corin.
Embora o alto e musculoso ferreiro da Tribo dos Falcões da Neve já tivesse pouco mais de cinqüenta anos, seus negros e longos cabelos e barbas possuíam poucos fios brancos, e suas rugas - graças à escassa presença de sol, o qual só aparecia no verão - eram as de um homem de quarenta. Apesar de não ser muito afeito ao sorriso, como a maioria dos cimérios, a presença do filho e a alegria deste em vê-lo vivo, contagiou o ferreiro - e também guerreiro -, fazendo um leve sorriso brotar-lhe dos lábios corados.
Imediatamente após, a quase cinqüentona - mas ainda bela - Gresham, mãe de Conan, abraça convulsivamente o filho, com uma pequena lágrima a descer-lhe de um dos olhos azuis.
- Oh, Conan! Meu filho... por Crom, estamos precisando de sua ajuda! - diz a mulher de longos cabelos castanhos, cujas poucas linhas de expressão, longe de tirar-lhe a beleza, tornaram-na ainda mais atraente aos olhos cinzas do marido.
- Fique calma, mãe. - responde calmamente Conan, para que sua tranqüilidade acalme Gresham um pouco - O que houve? Foram vanires?
- Hiperbóreos, Conan. - responde seu primo Humber, logo atrás dele - Vieram a cavalo, em busca de pilhagem, matando homens e... - num olhar de indignação - ...até algumas mulheres, que eles tentaram levar, mas que lhes opuseram bravas resistências. Graças a Crom, eram poucos e não contavam com a nossa resistência. Só restaram dois, e eles fugiram.
- Para onde? - pergunta Conan, laconicamente.
- Ao Vale Proibido. - responde o primo de Conan, com os olhos cinzas brilhando de medo. Todos os cimérios eram guerreiros que desconheciam o medo da morte, mas que tinham horror ao sobrenatural. Para qualquer um daquela nação bárbara, era preferível ser esquartejado vivo do que ser amaldiçoado. Qualquer um... exceto Conan! Este primeiro filho de Gresham já matara vários monstros e feiticeiros, nos últimos doze anos e meio de andança pelo mundo 'civilizado'.
- Então, me arranjem comida para dois dias, pois é para lá que eu vou! - responde Conan, decidido.
- É um lugar maldito, primo! Não vá, em nome de Mannanan! - retruca Humber.
- Primo... nunca vi nada no mundo que o aço não pudesse cortar - era, talvez, a primeira, mas não seria a última vez que Conan diria isso - Além do mais, minha mãe deixou bem claro que precisa de minha ajuda. E, o mais importante: os inimigos devem morrer. Já estive lá antes... É só um aglomerado de monolitos da Era de Kull...
Conan olha rapidamente a mãe e, embora esta ainda demonstre certa relutância no olhar, o do pai, logo atrás da esposa, é de aprovação, com um leve sorriso. Embora também temesse ir para lá, Corin não o demonstrava. Temia pela alma do filho, mas tinha certa confiança nele. Então, o filho do ferreiro acrescenta:
- E, por Crom, ninguém mata Falcões da Neve sem pagar com a vida! - e, colocando seu elmo, Conan recolhe a provisão solicitada, monta um dos cavalos, ali deixado por um hiperbóreo morto, e segue viagem para o sul.


2)

O dia amanhece no Vale Proibido, quando o líder Ikhtar da Espada acorda e come o desjejum com o parceiro de lutas e saques, Noram da Marreta. Ambos tinham estaturas superiores a dois metros e, como os primeiros hiborianos, tinham a pele branca, olhos cinzas e cabelos castanho-claros.
- Já estamos aqui há quatro dias, Ikhtar. Por quê não pegamos estas armas, espalhadas por esses monumentos, e damos o fora?
- Daqui a pouco, Noram. Não esqueça que ainda sou o líder.
- O novo líder, hein? Nem a magia de Vammatar sobreviveu a uma boa espada do velho Ikhtar...
- É verdade... - lembra este último. Meses atrás, eles trabalhavam para a rainha-feiticeira Vammatar, da fortaleza de Haloga, na sinistra Hiperbórea, onde nasceram. Cansados de receber ordens de uma mulher e sabendo que, mesmo depois de mortos, continuariam obedecendo à bela - porém cruel - rainha, como mortos-vivos, Ikhtar e Noram encontraram, nos subterrâneos de fogo e gelo do castelo, armas capazes de matar até os pútridos zumbis da fortaleza. De posse delas, armaram uma revolta matando todos os mortos-vivos de Haloga e, inclusive, a aparentemente jovem rainha - que, no último suspiro, se desfez em ossos e pó. Todavia, os guerreiros não-mortos os perseguiram, liderados pela idosa - e vingativa - Louhi. Não conseguiram, porém, alcançá-los, uma vez que o número de cavalos da fortaleza era exatamente igual ao de rebeldes.
Seguindo para oeste, eles pilharam algumas tribos aesires em busca de comida e de mulheres para alguns dias de 'diversão' (entenda-se 'estupro'), perdendo alguns homens nas escaramuças; mas não contavam, na Ciméria, com a brava resistência dos Falcões da Neve, que os reduziram a apenas dois.
- E agora, chefe? - pergunta Noram, polindo a armadura de ferro - A Hiperbórea ficou quente demais pra nós; Aesgaard e Ciméria, também... Para onde vamos?
- Ao sul, Noram! Chega de lugares frios! Vamos saquear a Aquilônia, Reino da Fronteira, Nemédia... aonde os ventos de Bori nos levarem.
- Vocês vão é saquear o Arallu, dupla de covardes! - grita uma voz, falando em hiperbóreo com forte sotaque cimério.
Incrédulos, os dois avistam um guerreiro moreno a cavalo, usando um elmo com chifres de touro e com uma longa espada vanir na mão. Logo após a bravata, o cimério desaparece entre os monolitos, os quais ele conhece como a palma da mão.
Montando seus respectivos cavalos, Ikhtar e Noram se separam, a fim de facilitarem a busca. Prevendo isto, o esperto e habilidoso cimério - que conhecera muito mais batalhas e suas táticas 'civilizadas' - cavara, num extremo daquele conjunto de enormes colunas de pedra polida, um fosso, no qual cai o cavalo de Noram, quebrando uma pata. No outro lado, o cavalo de Ikhtar pisara em falso, fazendo uma estaca, com várias pontiagudas cunhas de bronze, penetrar profundamente no peito e pescoço da montaria.
A pé, Noram procurava por algum indício daquele guerreiro moreno, que lhe custara um bom cavalo hiperbóreo. E é com um sorriso no largo rosto, que o gigante da Hiperbórea vê um capacete com chifres de touro, entre dois monolitos, e desce-lhe violentamente a enorme marreta. No mesmo segundo, um ruído atrás de si o faz virar-se, achando que se trata do líder. A descoberta que Noram faz, antes do último suspiro, é de que sua poderosa marretada acionara uma terceira armadilha, deslocando uma rápida - e letal - cunha de aço, que lhe penetrou impiedosamente a armadura e a boca do estômago.
Com a espada na mão direita e um escudo de bronze esverdeado na esquerda, Conan olha, satisfeito, para o cadáver do guerreiro e prepara-se para decapitá-lo. Mas, um brado furioso de guerra, atrás de si, faz o cimério se virar e defender-se do ataque do gigantesco Ikhtar, repelindo-lhe a espada com o escudo e chutando-lhe os testículos - protegidos somente por uma tanga de pele de lobo.
Largando o enorme escudo enferrujado, Conan espera o hiperbóreo recuperar-se para, então, cruzar espadas com ele. Após vários segundos de colisão do aço contra aço, o cimério esquiva-se de um golpe dirigido ao seu pescoço, ao mesmo tempo em que abre um corte horizontal na barriga do gigante, arrancando-lhe meio litro de sangue. Mesmo ferido, Ikhtar ainda brande sua espada, cuja lâmina Conan parte ao meio. Ainda assim, o hiperbóreo tenta atacá-lo novamente e sente a espada de Conan descer-lhe entre o ombro esquerdo e o pescoço, partindo-lhe a clavícula, num novo jato vermelho. Sua espada quebrada só lhe cai da mão, depois que o cimério talha-lhe o ventre e a clavícula pela segunda vez, num último e mortal espirro de sangue.
Então, ainda de espada em punho, Conan desce a lâmina sobre o pescoço de Ikhtar, fazendo, a seguir, o mesmo com Noram. Ocupado em terminar as ciladas que armara, o cimério de bronze não havia escutado toda a conversa dos dois hiperbóreos. Assim, Conan parte de volta à sua aldeia natal, sem sequer desconfiar que, além de vingar a morte de alguns Falcões da Neve, ele também vingara a feiticeira que, apesar de tê-lo aprisionado e tentado matá-lo, doze invernos antes, havia, também, passado uma longa e tórrida noite de amor com o cimério naquela prisão.


3)

Por entre as névoas que, sobretudo pela manhã, cercam a Tribo dos Falcões da Neve, Gresham abre um largo sorriso, ao avistar seu primogênito, agora barbeado, chegando a cavalo. Após trocarem um abraço, ela desabafa:
- Pensei que você nunca mais fosse voltar. Eu já estava preocupada com sua vida e... aqui entre nós, filho... com quem nos livraria daquele gordo vagabundo, de roupa colorida, que só sabe comer e dormir...
Lembrando-se de Hobb, Conan gargalha alto, chamando a atenção de seu pai, que reconhecera a risada, antes de ver o filho. Antes que Corin perguntasse a Conan sobre a missão, o ferreiro - já aliviado em vê-lo vivo e bem - recebe a gratificante resposta: um saco de pele que o filho joga aos seus pés, abrindo-se e revelando um par de cabeças pálidas ensangüentadas.
- São estes, pai? - pergunta Conan.
Um sorriso e um aceno positivo com a cabeça respondem à pergunta do filho do ferreiro, que, desmontando do cavalo, mostra ao pai uma espada partida em dois.
- Parece que o líder roubou uma espada sua. Mas, por Crom! Um metal desse quebrar... além das marcas de uso, deveria ser antiga...
- Lembra de quando lhe falei sobre o Enigma do Aço, filho? - pergunta Corin.
- Claro que sim! Eu era um pirralho, de idade do seu sobrinho Locrin.
- Eu forjei esta espada naquela época...
- Crom! - responde Conan, espantado. - Pena eu não poder forjar a espada de novo...
- Já está pensando em partir, filho? - pergunta Gresham.
- Estou, mãe... - responde Conan, com um olhar distante - A minha vida como ladrão, mercenário e pirata atiçou muito o meu coração inquieto. Puxei muito ao teu sogro, o meu velho avô Drogin! Estou até pensando em me tornar saqueador, nas estepes turanianas... - e, elevando a voz, Conan chamou Hobb, que brincava com o pequeno Locrin, primo de Conan.
Após calorosos abraços, trocados com os pais, parentes e amigos, Conan sobe em sua montaria hiperbórea, ladeado pelo amigo coríntio, também montado.
- Quando eu vier novamente, espero reencontrar Siobhan. Não vejo minha irmã, desde que eu tinha 15 anos! - diz Conan.
- É... diz Corin. Quando voltaste pela primeira vez, há seis anos, ela estava recolhida numa choupana, triste com a invasão vanir que... deixa pra lá! - Corin não quer abrir velhas feridas no coração do filho, que, na época, perdera Malla - E, dias atrás, ela tinha ido buscar lenha para aquecer os aldeões sem teto. Agora... ela deve estar se banhando no lago, com o marido.
Gargalhando, Conan promete voltar à sua aldeia um dia e rever a irmã, bem como à toda a família e amigos. Então, dirigindo suas montarias para o sul, o filho do ferreiro segue com Hobb para as distantes ruínas de Venarium. O que Conan sequer desconfiava era que, quando voltasse à Ciméria, dali a pouco mais de três anos, ele só encontraria, de sua família, a irmã Siobhan e os primos Humber e Locrin.
Mas isto... é uma outra história.

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