por Robert E. Howard
Originalmente publicado em 1987.
Tradução de Fernando Neeser de Aragão
Fui à Caverna de Dagon para matar Richard Brent. Percorri as escuras avenidas, criadas pelas enormes árvores, e meu humor se encaixava perfeitamente com a primitiva severidade do cenário. O caminho para a Caverna de Dagon é sempre escuro, pois os enormes galhos e folhas espessas escondem o sol, e agora as sombras da minha própria alma faziam as demais parecerem mais lúgubres que o normal.
Não muito longe, ouvi o lento bater das ondas contra os altos escarpados, mas o mar em si estava fora de vista, encoberto pelo denso bosque de carvalhos. A escuridão e a lúgubre nudez do que me cercava oprimiram minha alma entristecida, enquanto eu passava sob os velhos galhos... ao sair numa pequena clareira e ver a boca da antiga caverna diante de mim. Me detive, examinando o exterior da caverna e as penumbrosas extensões de carvalhos silenciosos.
O homem que eu odiava não havia chegado antes de mim! Eu tinha tempo de levar adiante meu propósito inflexível. Por um instante, minha decisão fraquejou e logo, como uma onda, me submergiu o perfume de Eleanor Bland, uma visão de ondulantes cabelos dourados e profundos olhos cinzas, tão mutáveis e místicos quanto o mar. Apertei os punhos até os nós dos dedos embranquecerem, e instintivamente toquei o curto revólver de aspecto maligno, cujo peso deformava o bolso de meu agasalho.
Se não fosse Richard Brent, eu estaria certo de já ter conquistado aquela mulher, cujo desejo por ela fazia de minhas horas de vigília um tormento e de meu sono uma tortura. A quem ela amava? Não dizia, nem creio que soubesse. Que um de nós se fosse, eu pensava, e ela se voltaria para o outro. E eu iria simplificar as coisas para ela... e para mim mesmo. Por acaso, eu havia escutado meu loiro rival inglês comentar que pretendia ir à solitária Caverna de Dagon para se divertir explorando-a... sozinho.
Não sou um criminoso por natureza. Nasci e fui criado num país duro e vivi a maior parte de minha vida nas ásperas orlas do mundo, onde um homem pegava o que queria, se pudesse, e a clemência era uma virtude pouco conhecida. Mas, um tormento que me dilacerava dia e noite, era o que havia me impelido a tirar a vida de Richard Brent. Tenho vivido dura e violentamente. Quando o amor me dominou, ele também era feroz e violento. Talvez eu não estivesse completamente sensato em meu amor por Eleanor Bland e meu ódio por Richard Brent. Em quaisquer outras circunstâncias, eu teria prazer em chamá-lo de amigo... um jovem excelente, enérgico e sobressalente em tudo, forte e de olhos inteligentes. Mas se interpunha no caminho de meu desejo e devia morrer.
Adentrei a penumbra da caverna e parei. Nunca antes havia visitado a Caverna de Dagon, mas um vago sentimento de confusa familiaridade me perturbava, ao contemplar a grande abóbada do teto, as lisas paredes de pedra e o chão poeirento. Encolhi os ombros, incapaz de localizar a sensação fugidia; indubitavelmente, evocava a semelhança com as cavernas do país montanhoso do sudoeste americano, onde eu havia nascido e passado minha infância.
E, contudo, eu sabia que nunca tinha visto uma caverna como esta, cujo aspecto regular dera razões a mitos de que não era uma caverna natural, mas que havia sido escavada na rocha sólida, há eras, pelas mãos diminutas do misterioso Povo Pequeno, os seres pré-históricos da lenda inglesa. Naquelas paragens, todo espaço era uma fonte de folclore antigo.
O povo do país era predominantemente celta; aqui nunca prevaleceram os invasores saxões, e as lendas se estendiam em direção ao passado, nessa planície longamente colonizada, a uma distância maior que em nenhum outro lugar da Inglaterra... antes da chegada dos saxões, sim, e incrivelmente mais além dessa era distante, antes mesmo da chegada dos romanos, até aqueles dias inconcebivelmente antigos, quando os nativos bretões guerreavam com os piratas irlandeses de cabelos negros.
O Povo Pequeno, é claro, tinha sua parte na lenda. Esta dizia que a caverna foi uma de suas últimas fortalezas contra os conquistadores celtas, e sugeria túneis perdidos, derrubados ou bloqueados há tempos, conectando a caverna com uma rede de corredores subterrâneos que percorriam todas as colunas. Com essas meditações casuais, disputando preguiçosamente o meu pensamento com especulações mais sinistras, atravessei a câmara externa da caverna e entrei num túnel estreito, o qual, eu sabia por descrições anteriores, entrava em contato com um compartimento maior.
O túnel estava escuro, mas não o bastante para não distinguir os vagos e semi-apagados perfis de misteriosos desenhos nos muros de pedra. Me arrisquei a acender minha lanterna elétrica e examiná-los mais de perto. Mesmo confusos, me repeliu seu caráter anormal e repugnante. Certamente, nenhum homem, feito tal e como o conhecemos, rabiscou aquelas grotescas obscenidades.
O Povo Pequeno... me pergunto se os antropólogos estavam certos em sua teoria sobre uma atarracada raça aborígene mongolóide, muito baixa na escala evolutiva para ser, a duras penas, humana, possuindo contudo uma diferenciada, embora repulsiva, cultura própria. Haviam desaparecido diante das raças invasoras, dizia a teoria, formando a base das lendas arianas dos trolls, elfos, anões e bruxas. Vivendo em grutas desde o princípio, tais aborígenes haviam se retirado cada vez mais para o interior das cavernas das colinas, ante os conquistadores, desaparecendo finalmente por completo, embora o folclore ainda fantasiasse sobre seus descendentes, ainda morando nos abismos perdidos sob as colinas, como detestáveis sobreviventes de uma era consumida.
Apaguei a lanterna e percorri o túnel para chegar a uma espécie de soleira que parecia simétrica demais para ter sido obra da natureza. Eu contemplava uma vasta caverna na penumbra, a um nível pouco mais baixo que o da câmara externa, e novamente me estremeceu um estranho sentimento de distante familiaridade. Uma fila curta de degraus levava, do túnel ao solo da caverna... degraus diminutos, demasiadamente pequenos para pés humanos normais, entalhados na pedra sólida. As bordas estavam muito desgastadas, como que por eras de uso. Comecei a descer... e meu pé escorregou de repente. Eu soube instintivamente o que aconteceria – tudo era parte daquela estranha sensação de familiaridade –, mas não consegui me segurar. Caí de cabeça pelos degraus e bati no chão de pedra com um choque que me deixou sem sentidos...
Minha consciência voltou lentamente, com um latejar na cabeça e uma sensação de perplexidade. Levei uma das mãos à cabeça e encontrei-a empastada de sangue. Havia levado um golpe ou havia caído, mas de tal modo me fora arrebatada a consciência, que minha mente se encontrava absolutamente em branco. Onde eu estava, quem era, eu não sabia. Olhei ao meu redor, pestanejando na tênue luz, e vi que me encontrava numa vasta e poeirenta caverna. Eu estava ao pé de uma curta fila de degraus, que levavam até uma espécie de túnel. Atordoado, passei a mão por minha rala cabeleira negra e meus olhos vagaram por meus enormes membros nus e meu poderoso tronco. Vestia, percebi distraidamente, uma espécie de tanga, de cujo cinto pendia uma bainha vazia e, nos pés, usava sandálias de couro.
Então, vi um objeto caído a meus pés, me agachei e peguei-o. Era uma pesada espada de ferro, com a larga lâmina manchada de escuro. Meus dedos se encaixaram instintivamente em seu cabo, com a familiaridade do longo uso. Então lembrei repentinamente e ri, ao pensar que uma queda de cabeça pudesse fazer de mim, Conan dos salteadores, um absoluto imbecil. Sim, tudo me voltava agora. Havia sido uma incursão contra os bretões, cujas costas varríamos continuamente com a tocha e a espada, desde a ilha chamada Eire-ann. Nós, os celtas de cabelos negros, havíamos desembarcado repentinamente numa aldeia costeira, em nossas largas e baixas embarcações, e, no subseqüente furacão da batalha, os bretões haviam finalmente abandonado sua obstinada resistência e se retirado – guerreiros, mulheres e crianças – às sombras profundas dos carvalhais, onde raramente ousávamos segui-los.
Mas eu havia lhes seguido, pois havia uma moça inimiga, à qual desejava com ardente paixão, uma jovem criatura grácil e esbelta, com ondulantes cabelos dourados e profundos olhos cinzas, tão mutáveis e místicos como o mar. Seu nome era Tamera... eu bem o sabia, pois entre as raças havia tanto comércio quanto guerra, e eu havia estado nas aldeias dos bretões como visitante pacifico, nos raros períodos de trégua.
Vi seu alvo corpo seminu aparecendo como um brilho entre as árvores, enquanto corria com a rapidez de uma cerva, e eu a segui, ofegando pela ferocidade de meu desejo. Sob as sombras escuras dos carvalhos retorcidos, ela fugiu, comigo perseguindo-a, enquanto atrás de nós, à distância, morriam os gritos da matança e o entrechocar das espadas. Depois corremos em silêncio, exceto por sua rápida e fatigada respiração, e, quando emergimos numa pequena clareira diante de uma caverna de entrada sombria, eu estava tão perto dela que agarrei uma de suas flutuantes tranças douradas com minha poderosa mão. Ela caiu com um gemido desesperado e, naquele mesmo instante, um grito respondeu seu chamado e me virei rapidamente, para defrontar-me com um robusto jovem bretão, que apareceu de um salto por entre as árvores, com os olhos iluminados de desespero.
- Vertorix! – gemeu a garota, com sua voz interrompida por um soluço.
Uma ira ainda mais feroz se ergueu em meu íntimo, pois eu sabia que o rapaz era seu amante.
- Corra para a floresta, Tamera! – gritou ele.
Saltou sobre mim como uma pantera, com seu machado de bronze girando como uma roda veloz sobre sua cabeça. E então ressoou o clamor da luta e o laborioso ofegar do combate.
O bretão era tão alto quanto eu, mas o que eu tinha de corpulento, ele tinha de esbelto. A vantagem do puro poder muscular era minha, e logo ele ficou na defensiva, lutando desesperadamente para deter meus pesados golpes com seu machado. Martelando sua guarda como um ferreiro na bigorna, lhe acossei implacavelmente, empurrando-o inexoravelmente diante de mim. Seu peito subia e descia, sua respiração emergia em difíceis ofegos, seu sangue pingava do couro cabeludo, do peito e da coxa onde minha lâmina sibilante havia errado por pouco o alvo. Redobrei meus golpes, e ele se inclinou e cambaleou sob eles como uma pequena árvore sob uma tormenta. Ouvi a garota gritar:
- Vertorix! Vertorix! A caverna! Para a caverna!
Vi seu rosto empalidecer por um medo maior que o causado por minha espada e seus cortes.
- Aí não! – ofegou o bretão – É melhor uma morte limpa! Em nome de Il-marenin, garota, corra para a floresta e se salve!
- Não vou lhe abandonar! – gritou – A caverna é nossa única oportunidade!
Eu a vi passar junto a nós como um relâmpago, uma fugidia fumaceira branca, e desaparecer na caverna. Com um grito desesperado, o jovem lançou um golpe desesperado e selvagem que quase fendeu meu crânio. Enquanto eu cambaleava pelo golpe que com dificuldade aparei, ele saltou afastando-se, adentrou a caverna atrás da moça e sumiu nas trevas.
Com um grito enlouquecido, que invocava todos os meus inexoráveis deuses gaélicos, saltei temerariamente atrás deles; sem parar pra pensar se o bretão espreitava próximo à entrada para me partir as têmporas, eu me lançava para dentro. Mas uma rápida olhada me mostrou a estância vazia e um vislumbre de brancura desaparecendo através de uma escura soleira no muro de trás.
Corri cruzando a caverna e parei repentinamente, quando um machado surgiu das trevas da entrada e assobiou perigosamente, próximo à minha cabeleira negra. Recuei de imediato. Agora, a vantagem era de Vertorix, que permanecia na estreita boca do corredor, onde eu dificilmente poderia chegar a ele sem me expor ao golpe devastador de seu machado.
Quase espumava de fúria, e a visão de uma delgada forma branca entre as sombras profundas me deixou agitado. Ataquei selvagem, porém cautelosamente, lançando estocadas venenosas ao meu inimigo e me afastando de seus golpes. Desejava atraí-lo a um ataque aberto, evitá-lo e transpassá-lo antes que pudesse recuperar o equilíbrio. Em campo aberto, poderia derrotá-lo por pura força e potência de golpes, mas aqui, eu só podia usar a ponta e isso em desvantagem; sempre preferi o fio. Mas eu era teimoso; se não podia acabar com ele de uma estocada, tampouco ele ou a moça podiam fugir enquanto eu os mantivesse aprisionados no túnel.
Deve ter sido o conhecimento deste fato o que precipitou a ação da garota, pois ela disse algo a Vertorix sobre buscar um caminho que levava ao exterior e, embora ele tenha lançado um grito feroz, proibindo-a de se aventurar na escuridão, ela deu a volta e correu velozmente pelo túnel, para desaparecer na penumbra. Minha ira cresceu até extremidades assombrosas e, em minha ansiedade de matar meu inimigo antes que ela encontrasse um meio de fuga, quase o deixei rachar minha cabeça.
Então a caverna ressoou com um grito terrível, e Vertorix gritou como um homem ferido de morte, o rosto acinzentado na penumbra. Girou sem pensar, como se houvesse esquecido de mim e de minha espada, e se lançou correndo pelo túnel como um louco, gritando o nome de Tamera. De muito longe, como das entranhas da terra, eu pareci ouvir seu grito de resposta, misturado a um estranho clamor sibilante que me eletrizou com um terror inominável, porém instintivo. Então se fez o silêncio, quebrado apenas pelos gritos frenéticos de Vertorix, afastando-se cada vez mais para o interior da terra.
Após me recuperar, saltei ao túnel e corri atrás do bretão, tão temerariamente quanto ele havia corrido atrás da garota. E, embora eu fosse um saqueador com as mãos ensangüentadas, ferir meu rival pelas costas ocupava minha mente muito menos que descobrir qual horrível criatura segurava Tamera em suas garras.
Enquanto corria, percebi, sem prestar muita atenção, que os lados do túnel estavam riscados com imagens monstruosas, e de repente percebi, estremecido, que esta devia ser a temida Caverna dos Filhos da Noite, cujas histórias haviam cruzado o estreito mar para ressoarem horrivelmente nos ouvidos dos gaélicos. Tamera devia ter muito medo de mim, para impulsioná-la à caverna que seu povo detestava e na qual, dizia-se, espreitavam os sobreviventes daquela horrenda raça que habitou o país antes da chegada dos pictos e dos bretões, e que fugiram deles para as ignotas cavernas das colinas.
Diante de mim, o túnel se abria numa espaçosa câmara, e vi a forma branca de Vertorix vislumbrar-se na penumbra e sumir no que parecia ser a entrada de um corredor oposto à boca do túnel que acabava de atravessar. Imediatamente, soou um breve e feroz alarido, e o estrondo de um forte golpe, misturado aos gritos histéricos de uma jovem e uma mistura incoerente de sibilos de serpente, que fizeram meu cabelo arrepiar. E, naquele instante, me lancei para fora do túnel, correndo a toda velocidade, e me dei conta, tarde demais, que o solo da caverna se encontrava a vários pés abaixo do nível do túnel. Meus pés, lançados à correria, escorregaram pelos diminutos degraus e me espatifei terrivelmente no chão de pedra.
Me levantei na penumbra, esfregando minha cabeça dolorida, tudo isto me voltou e observei temerosamente a vasta estância, em direção ao negro e críptico corredor onde Tamera e seu amante haviam desaparecido, e sobre o qual jazia um manto de silêncio. Agarrando minha espada, cruzei precavidamente a enorme caverna silenciosa e dei uma olhada no corredor. Meus olhos não encontraram mais do que uma escuridão mais densa. Entrei, lutando para enxergar nas trevas, e no mesmo instante em que meu pé escorregava numa grande mancha do solo de pedra, o duro e acre odor de sangue recém-derramado penetrou em meu nariz. Alguém ou algo havia morrido aqui, ou o jovem bretão ou seu desconhecido atacante.
Permaneci ali, indeciso, com todos os medos sobrenaturais, herdados dos gaélicos, se erguendo em minha alma primitiva. Eu poderia dar a volta e sair daqueles malditos labirintos para a luz clara do sol, e descer ao mar limpo, onde meus camaradas, sem dúvida, me aguardavam impacientemente, após a derrota dos bretões. Por que arriscar minha vida nessas lúgubres tocas de rato? Me devorava a curiosidade em saber que tipo de seres habitavam a Caverna e quem eram chamados de Filhos da Noite pelos bretões, mas foi meu amor pela moça de cabeleira loira o que me impeliu a descer aquele túnel escuro... E eu a amava, a meu modo, e seria bom com ela e leva-la-ia a meu lar, na ilha.
Caminhei pelo corredor, sem fazer barulho e com a lâmina preparada. Não tinha nem idéia sobre que espécie de criaturas eram os Filhos da Noite, mas os relatos dos bretões lhes concediam uma natureza claramente inumana.
A escuridão se fechou ao meu redor, à medida que eu avançava, até que me vi caminhando nas trevas mais absolutas. Minha mão esquerda encontrou às cegas uma soleira estranhamente talhada, e naquele momento algo sibilou feito uma víbora ao meu lado e me feriu ferozmente a coxa. Devolvi selvagemente o golpe, senti que minha lâmina encontrou o alvo, e algo caiu a meus pés e morreu. Que criatura eu matara na escuridão, não sei, mas devia ser humana, ao menos em parte, pois o corte em minha coxa havia sido feito por alguma espécie de lâmina, e não com presas ou garras. E suei de horror, pois bem sabem os deuses que a voz sibilante da Coisa não se assemelhava a nenhuma das linguagens humanas que eu havia escutado.
E agora, na escuridão diante de mim, ouvi o ruído, misturado com horríveis deslizamentos, como se um grande número de criaturas reptilianas se aproximasse. Adentrei rapidamente a entrada que minha mão havia tateado, e quase caí novamente de cabeça, pois, ao invés de levar a outro corredor no mesmo nível, a entrada dava numa fila de degraus para anões, sobre a qual cambaleei violentamente.
Recuperando o equilíbrio, avancei cautelosamente, me agarrando aos lados para me apoiar. Eu parecia descer até as próprias entranhas da terra, mas não me atrevi a voltar. De repente, bem lá embaixo, percebi uma luz débil e fantasmagórica. Continuei andando, sem muita escolha, e cheguei a um ponto em que a descida se abria em outra grande câmara abobadada; e recuei, assombrado.
No centro da câmara, erguia-se um lúgubre altar negro; havia sido friccionado com uma espécie de fósforo, de modo que brilhava suavemente, iluminando parcialmente a sombria caverna. Imperando atrás, sobre um pedestal de crânios humanos, estava um objeto negro e críptico, esculpido com misteriosos hieróglifos. A Pedra Negra! A velha, velha Pedra, diante da qual – segundo diziam os bretões – os Filhos da Noite se ajoelhavam em horripilante adoração, e cuja origem se perdia nas escuras neblinas de um passado horrivelmente distante. Uma vez, dizia a lenda, havia se erguido naquele austero círculo de monólitos chamado Stonehenge, antes que seus devotos fossem varridos como lixo pelos arcos pictos.
Mas não lhe dei mais do que uma olhada fugidia e estremecida. Duas figuras jaziam, amarradas com cordas de couro cru, sobre o resplandecente altar negro. Uma era Tamera, a outra era Vertorix, manchado de sangue e com o cabelo revolto. Seu machado de bronze, manchado de sangue seco, jazia próximo ao altar. E, diante da Pedra brilhante, se escondia o horror. Embora eu nunca tivesse visto nenhum desses grotescos aborígenes, reconheci a criatura pelo que era e me estremeci. Era um homem, de certo modo, mas tão abaixo na escala vital, que sua distorcida humanidade era mais horrível que sua bestialidade.
De pé, não chegava a um metro e meio. Seu corpo era magro e disforme, sua cabeça desproporcionalmente grande. Sua lisa e emaranhada cabeleira caía sobre um rosto quadrado e inumano, com lábios flácidos e convulsos, que deixavam à mostra presas amareladas, fossas nasais grandes e achatadas, e grandes olhos oblíquos de cor amarela. Eu sabia que a criatura era capaz de enxergar na escuridão tão bem quanto um gato. Séculos espreitando em cavernas escuras, deram à raça atributos terríveis e inumanos. Mas o traço mais repulsivo era sua pele: escamosa, amarela e manchada, como o couro de uma serpente. Uma tanga, feita de pele de cobra, cingia-lhe as coxas finas, e suas mãos de gancho agarravam uma curta lança com ponta de pedra e um martelo de pederneira polida, com aspecto sinistro.
Ele contemplava seus cativos com tão grande satisfação que, evidentemente, não ouvira minha descida cautelosa. Enquanto hesitava nas sombras do corredor, escutei acima de mim um suave e sinistro rastejar que me gelou o sangue nas veias. Os Filhos se arrastavam atrás de mim pelo corredor, e eu estava pego. Vi outras entradas se abrindo na estância e agi, percebendo que uma aliança com Vertorix era nossa única esperança. Embora fôssemos inimigos, éramos homens, feitos à mesma imagem, capturados por aquelas indescritíveis monstruosidades.
Quando saí do corredor, o Horror diante do altar levantou repentinamente a cabeça e me olhou. E, enquanto se levantava, eu saltei e ele caiu, jorrando sangue, quando minha pesada espada atravessou seu coração reptiliano. Mas, mesmo enquanto morria, lançou um odioso uivo que ressoou até as alturas do corredor. Com uma pressa desesperada, cortei as ataduras de Vertorix e coloquei-o de pé. E me virei para Tamera, que, em tão desesperada urgência, não se separou de mim, mas me mirou com olhos suplicantes e dilatados de terror. Vertorix não desperdiçou tempo com palavras, vendo que a sorte nos tornara aliados. Ele pegou de volta seu machado, enquanto eu libertava a moça.
- Não podemos subir pelo corredor – explicou rapidamente –; já que, em seguida, teríamos todo o bando sobre nós. Eles capturaram Tamera, enquanto buscava uma saída e me superaram pela vantagem numérica quando a segui. Nos arrastaram para cá e todos se foram, com exceção deste... levando notícias do sacrifício a todos os poços, sem dúvida. Só Il-marenin sabe quantos de meu povo, roubados na noite, foram mortos neste altar. Temos que tentar a sorte num desses túneis... todos levam ao inferno! Sigam-me!
Pegando a mão de Tamera, ele correu velozmente ao túnel mais próximo e eu lhes segui. Um olhar em direção à estância, antes que a curva do corredor a escondesse da vista, me mostrou uma horda repulsiva saindo do corredor onde eu havia estado. O túnel subia abruptamente e, de repente, vimos um raio de luz cinza. Mas, no instante seguinte, nossos gritos de esperança se tornaram maldições de amarga decepção. De fato, a luz do dia se filtrava por uma fenda na abóbada do teto, mas longe, muito distante de nosso alcance. Atrás de nós, o bando gritou sua alegria. E eu parei.
- Salvem-se se puderem. – grunhi – Lhes darei batalha aqui. Eles podem ver no escuro, e eu não. Aqui, ao menos, posso vê-los. Vão!
Mas Vertorix também parou.
- De pouco serve que nos cacem como ratazanas até a morte. Não há escapatória. Vamos enfrentar nosso destino como homens.
Tamera gritou, retorcendo as mãos, mas se agarrou a seu amante.
- Fique atrás de mim, com a jovem. – grunhi – Quando eu cair, esmague-lhe o cérebro com seu machado para que não voltem a pegá-la viva. Então, venda a sua vida tão caro quanto puder, pois não há ninguém para nos vingar.
Seus olhos agudos sustentaram meu olhar.
- Adoramos deuses distintos, saqueador – ele disse –, mas todos os deuses amam os homens valentes. Talvez voltemos a nos encontrar, além das Trevas.
- Olá e adeus, bretão! – grunhi, enquanto nossas mãos direitas se uniam num férreo aperto.
- Olá e adeus, celta! – ele respondeu.
E me voltei, exatamente quando uma horda espantosa varria o túnel e irrompia à tênue luz: um pesadelo voador, de cabeleiras emaranhadas e flutuantes, lábios que espumavam e olhos flamejantes. Lançando meu trovejante grito de guerra, saltei contra eles, minha espada cantou e uma cabeça saltou dos ombros, sobre um chafariz de sangue. Lançaram-se sobre mim. Lutei como uma fera enlouquecida e, a cada golpe, atravessei carne e ossos, e o sangue salpicava tudo, como uma chuva escarlate.
Então, ao mesmo tempo em que entravam e eu caía sob o simples peso numérico, um grito feroz atravessou o tumulto, e o machado de Vertorix cantou acima de mim, derramando sangue e miolos como água. A pressão diminuiu e me ergui cambaleante, pisoteando os corpos que se retorciam debaixo de mim.
- Uma escada atrás de nós! – gritava o bretão – Meio escondida num ângulo na parede! Deve levar à luz do dia! Para cima, em nome de Il-marenin!
Assim recuamos, lutando a cada palmo do caminho. Eles lutaram feito demônios sedentos de sangue, subindo nos corpos dos mortos para nos esfaquear, lançando gritos. A cada passo, derramávamos nosso sangue, quando alcançamos a borda do poço no qual Tamera havia nos antecedido.
Uivando como demônios, os Filhos saltaram pra nos arrastarem pra baixo. O poço não estava tão iluminado quanto o corredor e ficou mais escuro à medida que subíamos, mas nossos inimigos só podiam chegar a nós pela frente. Pelos deuses, nós os matamos até a escada ficar abarrotada de corpos mutilados, e os Filhos espumavam como lobos enfurecidos! Então, abandonaram repentinamente a contenda e desceram correndo pelos degraus.
- O que significa isto? – ofegou Vertorix, limpando o sangue e o suor de seus olhos.
- Pelo poço, depressa! – eu disse – Eles pretendem subir por alguma outra escada e nos atacar de cima!
Assim, subimos correndo por aqueles malditos degraus, escorregando e tropeçando, e quando ultrapassávamos um negro túnel que dava no poço, ouvimos nas profundezas um temível uivo. Um instante depois, emergimos do poço num sinuoso corredor, tenuemente iluminado por uma vaga luz grisalha que se filtrava do alto, e, em algum lugar das entranhas da terra, eu parecia ouvir o trovejar de uma torrente de água. Nos dirigimos ao corredor e, enquanto o fazíamos, um grande peso se estatelou em minhas costas, derrubando-me de bruços, e uma marreta golpeou mais de uma vez a minha cabeça, enviando silenciosos relâmpagos de agonia vermelha por todo meu cérebro. Com uma torção vulcânica, tirei meu atacante de cima, coloquei-o sob mim e destrocei-lhe a garganta com minhas mãos nuas. E seus dentes se fecharam em meu braço, enquanto morria.
Me ergui, cambaleante, e vi que Tamera e Vertorix haviam desaparecido. Eu estava um pouco atrás deles, e haviam se distanciado, correndo, ignorando o demônio que havia saltado sobre meus ombros. Sem dúvida, pensaram que eu continuava seguindo-os de perto. Dei uma dúzia de passos e parei. O corredor se bifurcava e eu não sabia que rota meus companheiros haviam tomado. Virei ao acaso pela ramificação da esquerda e penetrei, tropeçando na penumbra. Me encontrava debilitado pela fadiga e pela perda de sangue, tonto e enfermo pelos golpes que recebera. Só o pensamento em Tamera me mantinha tenazmente em pé. Finalmente, escutei com clareza o som de uma torrente invisível.
Que eu não estava a grande profundidade, era evidente pela tênue luz que se filtrava de algum lugar nas alturas; e, por um momento, achei que ia me deparar com outra escada. Mas, quando o fiz, parei, tomado de negro desespero; em vez de ir pro alto, me levava para baixo. Em algum lugar, às minhas costas, ouvi debilmente os uivos do bando e me dirigi pra baixo, me afundando na mais completa escuridão. Eu havia abandonado toda esperança de fuga e só esperava encontrar Tamera – se ela e seu amante não haviam encontrado um modo de fugir – e morrer com ela. O trovejar da corrente de água se encontrava agora sobre minha cabeça, e o túnel era lamacento e úmido. Gotas de líquido caíam em minha cabeça e percebi que estava passando sob o rio.
Então, me deparei novamente com degraus talhados na pedra, e estes me levavam para cima. Subi por eles tão depressa quanto me permitia a crescente rigidez de meus ferimentos. E eu recebera tormento suficiente para matar um homem comum. Subi mais e mais, e de repente a luz do sol surgiu de uma rachadura na rocha sólida. Me vi sob o resplendor do sol. Eu estava de pé sobre uma cornija muito acima das águas torrenciais de um rio que corria a uma velocidade surpreendente entre altos escarpados. A cornija onde eu me encontrava estava próxima ao alto do escarpado; a salvação estava ao meu alcance. Mas vacilei, e tamanho era meu amor pela garota de cabelos dourados, que eu estava disposto a voltar para os túneis negros e atravessá-los com a louca esperança de encontrá-la. Então, senti um calafrio.
Através do rio, vi outra rachadura do escarpado que estava diante de mim, com uma cornija similar àquela onde eu me encontrava, porém mais longa. Em tempos mais antigos, não duvidei, alguma espécie de ponte primitiva ligava as duas cornijas... possivelmente, antes que fosse escavado o túnel sob o leito do rio. Enquanto olhava, duas figuras emergiram a essa outra cornija... uma cheia de talhos, manchada de poeira, mancando e agarrando um machado ensangüentado; a outra, esbelta, branca e juvenil.
Vertorix e Tamera! Haviam tomado a outra ramificação do corredor na bifurcação, e evidentemente haviam seguido as janelas do túnel, para subirem como haviam feito, exceto que eu havia tomado a direção esquerda e passado livremente sob o rio. E agora vi que se encontravam numa armadilha. Naquele lado, os escarpados se erguiam uns 15 metros a mais que do meu lado do rio, e eram tão inclinados que dificilmente uma aranha conseguiria subi-los. Só havia dois modos de fugir da cornija: voltar pelos túneis lotados de demônios, ou se jogar de cabeça ao rio que corria loucamente nas profundezas.
Vi Vertorix contemplar as escarpas inclinadas, olhar logo abaixo e sacudir a cabeça em desespero. Tamera envolveu-lhe o pescoço com os braços, e embora o impulso do rio não me deixasse ouvir suas vozes, eu os vi sorrirem ao mesmo tempo em que se colocavam na beirada da cornija. E, da fenda, surgiu um enxame, uma repugnante turba, como répteis sujos que emergem retorcendo-se da escuridão, e ficaram imóveis, pestanejando sob a luz do sol como as criaturas noturnas que eram. Apertei o cabo de minha espada, sob a agonia de minha impotência, até que o sangue pingou sob minhas unhas. Por que o bando não seguira a mim, ao invés de meus companheiros?
Os Filhos vacilaram um instante, enquanto os dois bretões encaravam-nos, e então, com uma gargalhada, Vertorix arremessou seu machado à distância no rio impetuoso e, dando meia-volta, abraçou Tamera pela última vez. Juntos, saltaram e, abraçados uma ao outro, se precipitaram para baixo, bateram nas águas loucamente espumantes que pareciam saltar para recebê-los, e desapareceram. E o rio selvagem continuou fluindo como um monstro cego e insensato, retumbando entre os escarpados ressoantes.
Por um momento, permaneci atônito, e logo girei como um homem em sonhos, agarrei a borda do escarpado acima de mim e, cansadamente, me icei por cima dele, e me coloquei de pé sobre os escarpados, ouvindo como num tênue sonho o rugido do rio, bem lá embaixo.
Cambaleei, agarrando assombrado a minha cabeça pulsante, sobre a qual cicatrizavam as crostas de sangue. Contemplei furiosamente o que me rodeava. Havia subido os escarpados... não, pelo trovão de Crom, eu ainda estava na caverna! Estendi a mão em direção à minha espada...
As névoas se dissiparam e, tonto, examinei os arredores, me orientando no tempo e no espaço. Estava ao pé dos degraus pelos quais caíra. Eu, que havia sido Conan, o saqueador, era John O´Brien. Todo aquele grotesco interlúdio era um sonho? Poderia um simples sonho ser tão vívido? Mesmo em sonhos, sabemos freqüentemente que estamos sonhando, mas Conan O Saqueador não tinha conhecimento de nenhuma outra existência. Mais ainda, ele lembrava de sua própria vida passada como o faz um homem vivo, embora na mente a se despertar de John O´Brien, essa recordação se apagasse entre a poeira e a névoa. Mas, as aventuras de Conan na Caverna dos Filhos permaneciam claramente delineadas na mente de John O´Brien.
Dei uma olhada, através da penumbrosa estância, em direção à entrada do túnel, dentro do qual Vertorix havia seguido a garota. Mas olhei em vão, vendo apenas o nu e vazio muro da caverna. Cruzei a estância, acendi minha lanterna – milagrosamente intacta em minha queda – e tateei ao longo do muro.
Ah! Me sobressaltei, como que por um choque elétrico! Exatamente onde deveria estar a entrada, meus dedos detectaram uma diferença no material, uma seção que era mais áspera que o resto da parede. Estava convencido de que era uma construção relativamente moderna; o túnel havia sido fechado.
Empurrei-a, usando toda minha força, e me pareceu que essa seção estava a ponto de ceder. Recuei e, inspirando profundamente, lancei todo o meu peso contra ela, amparado por toda a força de meus gigantescos músculos. A parede, quebradiça e arruinada, cedeu com um estrondo ensurdecedor e me catapultei através de uma chuva de pedra e argamassa que caía.
Deixando escapar um grito agudo, fiquei de pé. Estava num túnel, e não podia me equivocar desta vez sobre a sensação de familiaridade. Aqui, Vertorix havia caído pela primeira vez sob os Filhos, enquanto eles levavam Tamera, e aqui, onde eu me encontrava agora, o solo havia sido banhado de sangue.
Caminhei pelo corredor, como um homem em transe. Logo, eu chegaria à soleira à esquerda... certo, ali estava, o portal estranhamente talhado, na boca do qual havia matado a criatura invisível que surgiu da escuridão atrás de mim. Estremeci por um instante. Seria possível que os restos daquela raça suja continuassem espreitando horrivelmente nestas remotas cavernas?
Girei pela soleira, e minha lanterna iluminou um longo corredor descendente, com minúsculos degraus cortados na pedra sólida. Por estes degraus, Conan o Salteador havia descido às cegas e por estes degraus desci eu, John O´Brien, com lembranças daquela outra vida enchendo meu cérebro de vagos fantasmas. Nenhuma luz brilhava diante de mim, mas cheguei à grande estância penumbrosa que havia conhecido antes, e me estremeci ao ver o inexorável altar negro se delinear sob o brilho de minha lanterna. Agora, nenhuma figura se retorcia nele, nenhum horror escondido se deliciava diante dele. Tampouco a pirâmide de crânios sustentava a Pedra Negra, ante a qual raças desconhecidas haviam se curvado antes que o Egito surgisse da aurora do tempo. Só um monte de pó jazia espalhado, onde os crânios haviam mantido a coisa infernal no alto. Não, isso não havia sido um sonho: eu era John O´Brien, mas havia sido Conan dos Saqueadores nessa outra vida, e aquele terrível interlúdio fora um breve episódio de realidade que eu havia revivido.
Adentrei o túnel pelo qual havíamos fugido, lançando um raio de luz, e vi o feixe de luz acinzentada descendo do alto... que nem naquela outra era perdida. Aqui, o bretão e eu, Conan, havíamos sido encurralados. Afastei os olhos da velha rachadura, nas alturas do teto abobadado, e procurei a escada. Aí estava, meio oculta por uma esquina na parede. Subi, lembrando o quão duramente eu e Vertorix havíamos galgado-a, tantas eras antes, com a horda sibilando e espumando em nossos calcanhares. Me descobri tenso de medo, enquanto me aproximava da escura e bocejante entrada, através da qual o bando havia tentado interromper nossa passagem. Eu havia apagado a luz quando entrei no corredor inferior, tenuemente iluminado, e agora contemplava o poço de escuridão que se abria sobre a escada. E, com um grito, recuei, quase escorregando nos degraus desgastados. Suando na penumbra, liguei a lanterna e dirigi seu raio à críptica abertura, com o revólver na mão.
Vi apenas os lados nus e arredondados de um pequeno túnel, e ri nervosamente. Minha imaginação estava se debandando; eu poderia jurar que horrendos olhos amarelos me lançavam uma terrível mirada na escuridão, e que algo rastejante havia deslizado pelo túnel. Eu era um tolo em deixar que tais imaginações me perturbassem. Os Filhos haviam desaparecido destas cavernas há um longo tempo; uma raça detestável e carente de nome, mais próxima à serpente que ao homem, havia desaparecido há séculos no esquecimento do qual saíra arrastando-se, nos negros amanheceres da terra.
Saí do poço para o corredor serpenteante que, como eu lembrava anteriormente, era mais luminoso. Aqui, uma coisa que espreitava havia saltado das sombras às minhas costas, enquanto meus companheiros, sem saberem, continuaram correndo. Que homem tão enorme havia sido Conan, para poder continuar após ferimentos tão selvagens! Sim, os homens eram de ferro naquela era.
Cheguei ao lugar onde o túnel se bifurcava e, como antes, tomei a ramificação da esquerda e cheguei ao poço que descia. Desci, prestando atenção ao rugido do rio, mas sem escutá-lo. Mais uma vez, a escuridão se fechou sobre o poço, me forçando a recorrer novamente à minha lanterna elétrica, a fim de não afundar e cair em direção à morte. Oh, eu, John O´Brien, não sou mesmo tão firme no caminhar quanto era eu, Conan O Saqueador; não, nem tampouco possuo sua potência e velocidade, dignas de um tigre!
Não demorei em chegar ao úmido nível inferior, e senti de novo a umidade que indicava minha posição sob o leito do rio, mas ainda não conseguia ouvir o fluxo da água. E sabia com certeza que, fosse qual fosse o poderoso rio que se precipitava rugindo em direção ao mar naqueles tempos antigos, hoje não existia tal curso d´água entre as colinas. Parei, passado a luz pelos arredores. Eu estava num vasto túnel, de teto não muito alto, porém amplo. Outros túneis menores se ramificavam a partir dele, e me perguntei pelas ramificações que aparentemente perfuravam as colinas.
Não consigo descrever o lúgubre e tenebroso efeito daqueles corredores escuros de teto baixo, bem no fundo da terra. Sobre todos eles pendia um avassalador sentimento de inexplicável antiguidade. Por que o Povo Pequeno havia talhado essas criptas misteriosas, e em qual era obscura? Foram estas cavernas seu último refúgio contra as marés invasoras da humanidade, ou seus castelos desde tempos imemoriais? Sacudi a cabeça, desorientado; a bestialidade dos Filhos havia contemplado-a e, contudo, de alguma forma haviam sido capazes de escavar estes túneis e estâncias, que poderiam assombrar os engenheiros modernos. Mesmo supondo que tivessem completado um trabalho iniciado pela natureza, continuava sendo uma obra portentosa para uma raça de anões aborígenes.
Então, notei com um sobressalto, que eu estava mais tempo nestes túneis tenebrosos do que desejava, e comecei a procurar os degraus pelos quais Conan havia subido. Encontrei-os e, enquanto os seguia, respirei fundo novamente, aliviado diante do súbito brilho da luz diurna que encheu o poço. Apareci na cornija, agora desgastada até não ser mais que um relevo na face do escarpado. E vi o grande rio, que havia rugido como um monstro aprisionado entre as escarpadas paredes de seu estreito desfiladeiro, encolhido com o passar das eras, até não ser mais que um pequeno regato, bem abaixo de mim, escorrendo num pequeno fio silencioso, entre as pedras, em seu caminho para o mar.
Sim, a superfície da terra muda: os rios crescem ou encolhem, as montanhas se erguem e caem, os lagos secam, os continentes se alteram; mas, sob a terra, a obra de mãos perdidas e misteriosas dorme, imune ao passar do Tempo. Sua obra, sim, mas o que houve das mãos que erigiram essa obra? Acaso elas também espreitavam sob o seio das colinas?
Quanto tempo fiquei ali, perdido em vagas especulações, não o sei; mas repentinamente, contemplando a outra cornija, arruinada e gasta pela intempérie, me escondi na entrada atrás de mim. Duas figuras surgiram na cornija e lancei um ofego de surpresa, ao ver que eram Richard Brent e Eleanor Bland. Agora lembrei por que eu tinha vindo à caverna, e minha mão buscou instintivamente o revólver em meu bolso. Eles não me viram. Mas eu podia vê-los e também ouvi-los claramente, já que nenhum rio trovejava entre as cornijas.
- Ah, Eleanor – dizia Brent –, me alegro que tenha decidido vir comigo. Quem acreditaria que havia algo nessas histórias de velhas sobre túneis ocultos que surgiam da caverna? Me pergunto, como caiu aquele pedaço de parede? Pensei ter ouvido um estrondo, exatamente quando entramos na caverna exterior. Acha que havia algum mendigo na caverna, antes de chegarmos, e que a quebrou?
- Não sei. – ela respondeu – Lembro... oh, não sei! É quase como se eu houvesse estado aqui antes, ou tivesse sonhado com isso. Me pareço lembrar debilmente, como num pesadelo distante, de correr, correr, correr interminavelmente através desses corredores escuros, com criaturas horrendas me perseguindo.
- Eu estava ali? – perguntou Brent, brincando.
- Sim, e John também. – ela respondeu – Mas você não era Richard Brent, e John não era John O´Brien. Não, e eu tampouco era Eleanor Bland. Oh, é tão vago e distante que não consigo descrevê-lo de jeito nenhum! É confuso, terrível e cheio de névoas.
- Eu entendo um pouco. – ele disse inesperadamente – Desde que chegamos ao lugar onde a parede havia caído, revelando o velho túnel, tive uma sensação de familiaridade com o lugar. Havia horror, perigo e batalha... e amor, também.
Aproximou-se da beirada para olhar o desfiladeiro, e Eleanor lançou um grito repentino, agarrando-lhe num abraço convulsivo.
- Não, Richard, não! Me abrace, me abrace forte!
Ele a tomou em seus braços.
- Eleanor, querida, o que está havendo?
- Nada. – ela disse titubeando, mas se agarrou mais a ele, e vi que ela estava tremendo – Só uma sensação estranha... uma onda de tontura e medo, como se eu estivesse caindo de uma grande altura. Não se aproxime da beirada, Dick; me assusta.
- Não iria fazê-lo, querida. – respondeu, fazendo-a vir em sua direção, e continuou vacilante: – Eleanor, há algo que eu queria lhe perguntar há muito tempo... bom, eu não sei dizer as coisas de maneira elegante. Eu te amo, Eleanor; sempre te amei. Isso você sabe. Mas, se você não me ama, eu sairei do seu caminho e não lhe incomodarei mais. Por favor, limite-se a dizer uma coisa ou outra, porque não consigo mais agüentar. Sou eu ou o americano?
- Você, Dick. – respondeu ela, ocultando seu rosto no ombro dele – Sempre foi você, embora eu não o soubesse. Tenho muita estima por John O´Brien. Eu não sabia qual dos dois amava realmente. Mas hoje, enquanto cruzávamos esses túneis e subíamos esses temíveis degraus, e agora mesmo, quando por alguma estranha razão pensei estarmos caindo da cornija, me dei conta de que era a ti que eu amava... de que sempre te amei, em mais vidas que esta. Sempre!
Seus lábios se encontraram e vi sua cabeleira dourada se ocultar em seu ombro. Eu tinha os lábios ressecados e o coração frio, mas minha alma se encontrava em paz. Pertenciam um ao outro. Eras antes, viveram e amaram, e, por causa desse amor, sofreram e morreram. E eu, Conan, havia levado-os a essa morte.
Vi-os se voltarem em direção à fenda, se abraçando, e então, ouvi Tamera – digo, Eleanor – lançar um grito, e vi os dois recuarem. E da fenda surgiu algo horrível que se retorcia, uma coisa repugnante que fazia a mente vacilar e piscava sob a luz clara do sol. Sim, eu a conhecia de antigamente... vestígio de uma época esquecida, vinha contorcendo sua horrorosa forma desde a escuridão da terra e o pacto perdido para reclamar o seu.
Vi o que três mil anos de retrocesso podem fazer a uma raça que já era horrenda no princípio, e me estremeci. E, instintivamente, soube que em todo o mundo, era o único de sua espécie, um monstro que continuou vivendo. Só Deus sabe quantos séculos, vegetando no lamaçal de suas úmidas tocas subterrâneas. Antes que os Filhos houvessem desaparecido, a raça deve ter perdido toda a aparência humana, vivendo, como o faziam, a vida do réptil. Essa coisa se parecia mais com uma serpente gigante do que com qualquer outra coisa, mas tinha pernas abortadas e braços tortuosos com garras em gancho. Se arrastava sobre o ventre, retorcendo seus lábios para desnudar dentes afiados, que acreditei pingarem veneno. Sibilou ao levantar sua horripilante cabeça num pescoço horrorosamente longo, enquanto seus olhos amarelos e rasgados brilhavam com todo o horror produzido nos negros túneis sob a terra.
Sabia que esses olhos haviam me contemplado, flamejantes, do escuro túnel que se abria sob a escada. Por alguma razão, a criatura havia fugido de mim, possivelmente porque temia minha luz e era lógico supor que era a única que permanecia nas cavernas, pois, do contrário, eu teria sido sua presa na escuridão. Exceto por ela, os túneis podiam ser atravessados com segurança.
A criatura reptiliana se arrastou em direção aos humanos encurralados na cornija. Brent havia empurrado Eleanor para trás dele e ficou ali, o rosto acinzentado, para protegê-la o melhor que pudesse. E dei graças em silêncio por eu, John O´Brien, poder pagar a dívida que eu, Conan O Saqueador, tinha há muito tempo com esses amantes.
O monstro se ergueu e Brent, com fria coragem, saltou para enfrentá-lo com as mãos nuas. Apontando rapidamente, disparei uma vez. O tiro ressoou como um estalo fatídico entre os enormes acantilados, e o Horror, com um grito pesadamente humano, cambaleou violentamente, balançou e caiu de cabeça, retorcendo-se e dando nós, como uma píton ferida, caindo da cornija e despencando nas rochas embaixo.