em 07/10/2004
PESADELO cristalino
1.
Um jato de sangue espirrou quando o bárbaro de bronze desferiu o último golpe contra o peito do gigantesco vanir, manchando de vermelho a neve branca que cobria tudo como um grande tapete natural. O vanir, por sua vez, deixou cair a espada de sua mão trêmula sem pronunciar sequer um murmúrio de dor. Depois levou ambas as mãos até o ferimento que estendia-se de lado a lado em seu peito, como um risco vermelho e gotejante em seu corselete de couro surrado. Seus olhos estavam arregalados de pavor, mas em sua face estava estampado um leve sorriso de glória. Valhalla o esperava. Finalmente ele desabou, primeiramente de joelhos, depois afundando o rosto na neve fria e manchada com seu próprio sangue. Conan olhou em volta, ofegante, e viu que era o único homem que ainda estava de pé. Haviam cerca de dez aesires e treze vanires estendidos no chão. Àquela altura do combate, a neve já havia trocado seu branco pálido por um vermelho quente e vivo.
- É, parece que conseguimos acabar com os invasores! - murmurou o bárbaro para si mesmo, com um leve tom de ironia estampado em sua face.
Faziam cerca de quatro dias que Conan estava trabalhando para um bando de aesires em Aesgaard, e esta fora sua primeira missão. Huggar, o líder aesir do bando, havia recebido a notícia de que um grupo de vanires invadiriam Aesgaard sorrateiramente para assassiná-lo, e mandou alguns de seus homens na frente para surpreenderem os inimigos, não correndo assim nenhum perigo de emboscada.
Conan embainhou sua espada, e, quando começou a voltar para a aldeia da qual viera, um forte vento uivou, dando prelúdio à nevasca que se iniciou naquele mesmo momento. O cimério apertou o passo, mas, à medida que avançava, a nevasca se tornava cada vez mais voraz. A visão estava muito difícil, e os pés de Conan já estavam congelados. Tudo o que ele conseguia pensar naquele momento era em uma cama macia, um odre de vinho e uma companhia feminina para alegrá-lo. Mas a realidade em que se encontrava era totalmente diferente. Ferido, com frio, e vagando sozinho em meio à uma forte nevasca, ele não podia prever qual seria seu futuro. Aliás, ele nem se importava com isso. Quando já tinha o corpo todo adormecido, devido à absurda temperatura em que se encontrava, o jovem bárbaro avistou algo que chamou sua atenção. Ao longe, Conan percebeu uma pequena luminosidade. Tendo a esperança de encontrar ajuda, ele utilizou todas as suas forças para alcançar aquele ponto de luz. À medida que se aproximava, lutando contra o frio e o vento, Conan notou que a luz vinha do pé de uma pequena colina coberta de neve. Ainda faltavam uns trinta metros para o bárbaro alcançar o foco luminoso, e ele já estava começando a parar. Conan sabia que se parasse ali, nunca mais caminharia novamente pelas terras hiborianas. Frente a isto, pediu forças a Crom, e com resistência sobre-humana iniciou novamente sua empreitada. Logo, estava a cinco metros de seu objetivo. A luz vinha da entrada de uma pequena caverna, ao pé da colina. Quando Conan se aproximou, sentiu o calor que aquele lugar emanava, e começou a adentrar a caverna. A medida que Conan dirigia-se para o interior da colina, a luz se intensificava, chegando à um ponto insuportável para os olhos do jovem bárbaro. Ele posicionou o braço em frente ao rosto, de modo a evitar a luz, e seguiu em frente. Depois de alguns passos, a luminosidade começou a diminuir, e Conan começou a enxergar novamente. Quando se deu conta, o cimério viu que já não estava mais na caverna! Conan encontrava-se no interior de um gigantesco palácio natural, todo construído com paredes de cristal e decorado com esmeraldas e outras pedras preciosas. Ele tateou em busca de sua espada, mas, quando foi empunhá-la, seu corpo extremamente fatigado não resistiu: Conan desabou em um sono profundo.
2.
Quando o cimério acordou, encontrou-se deitado em uma confortável cama de formato circular, coberta com a seda mais macia que ele já sentira em toda sua vida. Ele estava despido, e seus ferimentos, totalmente curados. Conan não tinha nem idéia de quantas horas passara dormindo, mas julgava que foram muitas, devido à sua saúde totalmente revigorada. Olhando a sua volta, Conan viu que estava em uma pequena sala, totalmente vazia, a não ser pela cama redonda em que estava deitado. As paredes da sala eram todas construídas de cristal, que irradiavam uma luz fosca e opaca, proporcionando a iluminação do local. Em uma das paredes havia uma porta, que no momento estava fechada. Quando Conan levantou-se, totalmente confuso e assustado, encontrou, ao pé da cama, suas roupas e sua espada. Suas roupas de pele estavam dobradas e limpas, e sua espada já não demonstrava mais o sangue seco arrancado dos vanires. Conan se vestiu rapidamente, e, de espada empunhada, avançou em direção à porta. A porta era feita de algum metal leve, e era ornamentada com diversas pedras preciosas. Mas Conan estava confuso demais para querer furtá-las. Não havia fechadura na porta, apenas uma argola de prata. O cimério preparou-se, e empurrou furtivamente a porta, que não ofereceu nenhuma resistência. Conan avançou pela abertura, e encontrou-se no início de um grande corredor. O bárbaro avançou sorrateiramente, furtivo como uma pantera, até atravessar o corredor cristalino e chegar em um gigantesco aposento circular. O aposento devia possuir um raio de trinta metros, e cerca de uns vinte metros de altura. Em seu teto, diversos cristais pontiagudos projetavam-se como estalactites em uma caverna natural. O aposento estava completamente vazio, à não ser por um pequeno globo de cristal localizado em seu centro, suportado por um pedestal feito de mármore negro. Conan avançou sala adentro, mas sempre cuidadoso e furtivo. Após alguns passos, escutou uma voz grossa e assustadora vindo de sua retaguarda.
- Saudações, Conan da Ciméria! Vejo que já está completamente curado!
Conan virou-se bruscamente, com a espada já preparada para um golpe veloz. A voz que ele escutara vinha de um homem magro e alto, trajado com um manto púrpura de seda que lhe cobria até os pés. Ele não possuía cabelos nem barba, e suas orelhas eram levemente pontiagudas. O homem aparentava possuir uns quarenta anos.
- Quem é você? - grunhiu Conan assustado, ameaçando o homem com sua formidável espada de aço brituniano - Fale, por Ymir, ou te arrancarei as entranhas!
- Sou Arak-Zan, senhor deste castelo de cristal. - respondeu o homem com toda a calma do mundo.
- E como vim parar aqui neste inferno cristalino? - indagou Conan, agora um pouco mais calmo, mas ainda com a espada em riste.
- Bem... - começou o estranho homem chamado Arak-Zan - ... eu estava observando minha esfera de cristal quando vi você, bárbaro, prestes a morrer em meio à uma tempestade de neve, e resolvi ajudá-lo...
- Por qual motivo me ajudaria? - interrompeu o gigante de bronze, com um ar de dúvida estampado no rosto.
- Eu vi também sua formidável luta contra aqueles vanires, e achei que era injusto um guerreiro tão valoroso como você morrer por causa de uma simples nevasca...
Conan não falou nada, e aos poucos foi baixando sua espada.
- Você é um feiticeiro, não? - Indagou Conan, após alguns momentos de hesitação.
- Na verdade, eu sou um... - começou Arak-Zan, depois fazendo uma pequena pausa em sua fala - ... bem, pode-se dizer que sim, que sou um feiticeiro. Certamente sua mente bárbara não entenderia minha real natureza.
- Não me importa o que você seja! Se você mexe com feitiçaria, você é um feiticeiro! - grunhiu Conan, deixando claro sua aversão à magia.
- Não se preocupe, bárbaro, minha magia não é hostil. Agora, me acompanhe. Você deve estar faminto! - disse o "feiticeiro", guiando Conan até um outro aposento.
3.
Conan foi levado à um aposento relativamente grande, portando apenas uma grande mesa de mármore negro no centro. Sobre a mesa, estava posto um banquete invejável à qualquer rei das nações hiborianas! Conan sentou-se na única cadeira existente no recinto, também de mármore negro, e avançou sobre a comida com um apetite voraz. Afinal, faziam cerca de dois dias que ele não comia nada. O cimério estava com tanta fome que nem deu atenção à Arak-Zan, que logo retirou-se da sala sem pronunciar nenhuma palavra.
Após comer uma quantidade suficiente para alimentar três homens comuns, o gigante de bronze se deu por satisfeito, retirando-se da mesa e voltando à sala principal, onde encontrara o "feiticeiro" pela primeira vez. Arak-Zan estava concentrado sobre sua esfera de cristal, que emanava uma luz opaca e sibilante.
- Está satisfeito, bárbaro? - disse ele, sem nem mesmo virar-se para Conan.
- Sim... por Crom, como estou! - grunhiu o cimério, batendo com ambas as mãos na barriga.
- Acabei de ver em minha esfera de cristal que a nevasca que quase o matou, há um dia, já está passando... Presumo que queira voltar para sua terra, não? - questionou Arak-Zan, agora voltando-se para Conan, com um olhar penetrante.
- Acertou em cheio, feiticeiro! Este lugar é muito calmo e monótono, e eu não suportaria passar mais nem uma hora sequer por aqui!!! - respondeu Conan, com uma expressão de tédio estampada no rosto.
- Pois bem... - começou Arak-Zan, enquanto abria com apenas um gesto uma porta onde antes havia somente parede de cristal - ... este é o o caminho para sua terra, Conan da Ciméria! Atravesse a ponte e você encontrará, na outra extremidade, sua passagem de volta para Aesgaard...
- Então, que assim seja! - grunhiu Conan, depois continuando: - Eu nunca agradeci um feiticeiro antes, mas você me salvou da morte certa... Que Crom o perdoe por praticar feitiçaria! - disse o cimério, depois virando as costas para Arak-Zan e atravessando a porta rescém aberta... e perdendo a oportunidade de ver o rosto diabólico de Arak-Zan se contorcendo em um sinistro sorriso de traição...
- Sim, meu jovem bárbaro... Que assim seja!
4.
Quando Conan atravessou a passagem recém aberta, se deparou com um cenário apavorante para sua mente bárbara. Ele estava sobre uma imensa ponte, de cerca de cinco metros de largura por cinquenta metros de comprimento, feita do mais puro cristal existente. E na extremidade oposta à sua, erguia-se um castelo de cristal exatamente igual ao que ele acabara de sair! Olhando para baixo, o cimério só enxergava uma espessa camada de névoa cinzenta. Era como se os dois castelos, unidos pela grande ponte, estivessem flutuando sobre um infinito mar de névoas sombrias! Esta visão aterradora fez o corpo do bárbaro estremecer, e, quando este voltou-se para indagar o feiticeiro sobre tal lugar, a porta por que passara já não existia mais! Conan correu e começou a forçar a parede de cristal, mas parou assim que percebeu que seu esforço era inútil, comparado à grossura da parede. Subitamente, uma voz retumbante ecoou por aquele cenário melancólico, uma voz muito familiar ao gigante de bronze.
- Ó Jannal, meu grande irmão de sangue! Aqui lhe apresento meu campeão! Este é Conan, um bárbaro feroz que encontrei em um distante mundo primitivo, conhecido como Hyboria!
Conan ergueu os olhos em direção àquela voz grossa e determinada, procurando por seu entoante. A voz vinha do alto do castelo em que o bárbaro estivera há poucos momentos atrás, pronunciada por uma figura que permanecia com os dois braços estendidos para o céu, em um patamar a vários metros do solo... a qual Conan distinguiu ser Arak-Zan. O cimério, irado, começou a gritar e amaldiçoar o "feiticeiro", mas este nem deu ouvidos às suas palavras e ameaças. Subitamente, uma outra voz retumbou como mil trovões, respondendo ao chamado de Arak-Zan:
- Fizeste uma boa escolha, meu irmão! Mas seu selvagem não terá nenhuma chance contra Uzur-Kall, meu novo campeão!
Conan virou-se para o outro castelo, de onde vinha a voz, e contemplou uma figura de braços erguidos, em um patamar muito acima do solo. Para o espanto do cimério, a figura era exatamente igual à Arak-Zan! Parecia que havia somente um castelo e apenas um mago, refletidos por um gigantesco espelho - a ponte de cristal. Conan ficou estarrecido, apenas vislumbrando a cena com sua espada em riste. Quando, subitamente, uma porta se abriu na base do castelo de Jannal. A seguir, uma figura magra e curvada, de pele lisa e cinzenta, saiu pela porta - que se fechou rapidamente, assim como foi aberta. A figura demoníaca não tinha nenhum pêlo no corpo, e seus ossos eram tão saltados que quase rasgavam sua pele semi-transparente. A criatura não portava nenhuma arma, mas suas mãos - que quase arrastavam no chão, devido ao comprimento dos braços - continham garras gigantescas, que aterrorizaram o gigante de bronze.
- Vá, Uzur-Kall! Mate o selvagem, e eu lhe enviarei novamente para sua terra natal! - gritou Jannal, com uma feição insana estampada no rosto.
- Cimério! - gritou Arak-Zan, no patamar acima de Conan - Apenas destrua esta criatura profana, e você voltará para seu mundo hiboriano!
Conan fez uma cara de desprezo, e cuspiu no chão, encarando o mago que estava acima dele.
- Feiticeiro maldito! Saiba que eu não... - quando o bárbaro começou sua desfeita, notou algo se movendo, no canto dos seus olhos. Era Uzur-Kall, que já estava quase no meio da ponte, correndo muito rapidamente, em vista de seu corpo desproporcional e deformado. Conan parou sua indagação imediatamente, partindo em direção à criatura, em um passo lento e cuidadoso.
- Maldição! - grunhiu ele para si mesmo, com os olhos fixos na criatura aberrante que se aproximava em grande velocidade.
Quando estava a cerca de três metros do cimério, Uzur-Kall saltou sobre ele, descendo ambas as garras contra seu tronco. O primeiro golpe Conan defendeu com sua espada, mas o segundo atingiu seu ombro, dilacerando parte de sua carne e das peles de lobo que ele usava sobre o corpo para escapar do frio. Conan reagiu à terrível dor com um grunhido de agonia, que deixou seu sangue bárbaro fervendo. Ele recuou dois passos e ergueu sua espada com ambas as mãos. Porém, antes que pudesse descê-la, a criatura atirou-se de cabeça contra seu corpo, atingindo em cheio seu estômago. Conan reuniu forças sobre-humanas para não perder sua ação devido à dor que sentia, e desceu sua espada contra a criatura que encontrava-se abaixada em sua frente. O golpe foi dado com o cabo da espada, diretamente sobre a coluna dorsal de Uzur-Kall. O estalo de ossos se quebrando ecoou pelo cenário cristalino, devido à força bruta de Conan contra o corpo frágil da criatura, que jazia agora atirada em sua frente, contorcendo-se de dor. Conan voltou-se para Arak-Zan com uma feição de ódio e poder estampada no rosto.
- Isto, meu bárbaro! - gritou o feiticeiro, com um sorriso insano que lhe atravessava orelha a orelha. - Muito bem! Hahahahaha! Agora, termine com este ser grotesco, e compre sua volta para Aesgaard!!!
Conan não mudou sua feição. Lentamente ele virou-se e contemplou Jannal, que explodia em uma convulsão de fúria, golpeando a borda do patamar com os punhos cerrados. Depois, Conan virou-se novamente para Arak-Zan, que ainda estava com seu sorriso insano estampado, esperando um golpe final. O cimério estendeu sua espada para frente, e a deixou cair de sua mão, não desviando o olhar de Arak-Zan. A espada tilintou ao cair no piso de cristal, depois silenciando-se, criando um clima de tensão naquele cenário cristalino e melancólico. O rosto de Arak-Zan foi perdendo sua expressão de insana felicidade, que aos poucos se transformou em uma feição de puro ódio e repulsão.
- Bárbaro miserável! O que pensa que está fazendo?! - gritou ele, debruçado sobre a borda do patamar.
- Por Crom, seu maldito feiticeiro! Acha que eu vou me submeter a divertí-los em seus jogos insanos?! - resmungou Conan enfurecido, fitando o feiticeiro com seus ferozes olhos azuis.
- Quem você pensa que é, tolo mortal, para nos enfrentar em nossa própria morada?! - gritou Jannal, também enfurecido com a atitude deplorável do cimério. Conan virou-se para ele, com a postura de um verdadeiro rei, e ergueu seu punho cerrado o mais alto que pôde.
- Sou Conan da Ciméria! - gritou Conan, com toda a força que encontrou em seus poderosos pulmões de aço. Jannal chegou a recuar alguns passos, devido à presença onipotente que o jovem bárbaro expressou naquele momento de glória e determinação.
- Seu bárbaro maldito! Vai pagar seus insultos com a própria vida! - gritou Arak-Zan, espumando pela boca de tanta raiva que sentia naquele momento. Conan apenas voltou seu olhar à ele, sem baixar o punho que erquia-se soberano sobre sua cabeça.
- Pois então tente, cão feiticeiro! - grunhiu o cimério, mais preparado do que nunca para o terrível confronto que estava por vir.
5.
Arak-Zan e Jannal estenderam os braços para o céu, e começaram a executar um terrível ritual proliferado com palavras inumanas, ditas em perfeita sincronia. Nisto o céu escureceu bruscamente, e terríveis raios rasgaram-no com o estrondo de mil manadas em disparada. Conan juntou sua espada e posicionou-se na metade da ponte de cristal, que era o ponto em que ele se encontrava em melhor posição estratégica, com mesma distância entre os dois feiticeiros. O cimério estava ansioso, pois não havia nada que pudesse fazer no momento, à não ser atirar-se da ponte ou esperar pra ver o que aconteceria. E, com certeza, ele não estava disposto a pular em direção à morte certa, restando apenas uma alternativa para seguir.
Subitamente uma ventania terrível desceu sobre aquele cenário cristalino, quase jogando o cimério para fora da ponte de cristal. Quando Conan voltou seu olhar para os feiticeiros, pôde observar que os dois agora flutuavam livremente no ar, emitindo uma luz opaca e azulada de seus corpos. Vagarosamente os dois começaram a flutuar um em direção ao outro, até se encontrarem no meio da ponte, a cerca de dez metros acima de Conan. Quando os dois feiticeiros estenderam os braços e deram as mãos, uma explosão de energia azulada propagou-se pelos arredores, fazendo o cimério atirar-se no chão, com ambas as mãos sobre a cabeça. Conan ficou cego por alguns instantes, devido à intensidade da luz emitida no encontro dos dois feiticeiros. Quando sua visão voltou, o gigante de bronze ficou totalmente aterrorizado com o que viu acima de si. Uma terrível besta alada havia tomado o lugar dos dois feiticeiros, uma criatura enorme e apavorante. Seu corpo era todo coberto por placas ósseas disformes e esbranquiçadas, e sua gigantesca bocarra era munida de terríveis presas salientes. O corpo da besta era como o de um gigantesco réptil, porém com as patas dianteiras acopladas num poderoso par de asas que lhe saía das costas. Do meio de sua cabeça brotava um único chifre, como acontece nos unicórnios, só que seu chifre era todo disforme e cheio de pequenas pontas. Espantosamente, a criatura não possuía olhos, apenas uma placa óssea cobria seu crânio. Tórax, patas, cauda, asas, pescoço, cabeça... tudo era totalmente preenchido pelas carapaças ósseas que protegiam a criatura inteiramente. Frente a esta terrível monstruosidade, o cimério começou a recuar pela ponte, com a espada empunhada pelas duas mãos, fitando a criatura com uma aterradora feição de espanto. Crenças antigas, lendas e supertições lutavam entre si dentro de sua cabeça primitiva. Nunca antes o jovem bárbaro havia visto criatura tão infernal quanto aquela que estava diante de seus olhos. Subitamente a besta começou a se contorcer no ar, batendo as asas fortemente, como se estivesse sentindo uma terrível dor por todo o corpo. Depois ergueu a cabeça para o céu, abriu completamente as mandíbulas e emitiu um poderoso e estridente som agudo que ecoou pelos confins daquele mundo. O cimério fechou os olhos e apertou os dentes com força; parecia que aquele grito iria estourar seus tímpanos, tão forte era sua potência. Quando o estridente grito parou, a criatura não mais se contorcia, e suas asas batiam em perfeita sincronia. A besta começou a voar para cima, se distanciando cada vez mais da ponte, e, quando chegou a cerca de vinte metros dela, fez a volta e caiu num poderoso rasante na diagonal, visando como destino final o bárbaro que tremia sobre a ponte cristalina!
Conan apertou com força o punho de sua espada, as mãos trêmulas e escorregadias, e afastou as pernas, levemente as flexionando. A imagem daquela besta infernal caindo sobre ele, cada vez se aproximando mais, fazia-o ter pequenas convulsões no estômago. A criatura bateu asas mais uma vez, emitiu outro grito aterrador e posicionou as patas traseiras para frente, assim como faz um gavião que tenta apanhar sua presa. A morte era certa para Conan... não fosse por sua destreza felina, que o salvou das garras mortíferas da besta no último instante.
Quando ía receber o ataque, o cimério saltou para o lado e ainda conseguiu desferir um poderoso golpe de espada no dorso da criatura, proeza que nenhum homem normal jamais sonharia em conseguir realizar. Mas, para o espanto de Conan, a lâmina de sua espada apenas ricocheteou na carapaça do monstro, como se ele tivesse golpeado o poderoso escudo de um soldado hirkaniano! A criatura passou à toda velocidade sobre a ponte, sem nem sentir o golpe, enquanto que Conan caiu cambaleando sobre o cristal maciço. Sua mão estava formigando com o choque de seu golpe, e a dor percorria seu braço, chegando até o ombro que fora ferido no combate anterior contra Uzur-Kall. Conan levantou-se ligeiramente, e, quando olhou para a direção da besta alada, viu que ela já virava-se para atacá-lo novamente. O cimério estava exausto, e sabia perfeitamente que não conseguiria obter a mesma agilidade de antes neste próximo ataque... sua situação estava terrivelmente complicada.
Após completar a manobra de vôo, a criatura blindada (agora vindo na direção do cimério), caiu em um novo rasante, tão ou mais veloz quanto o primeiro. Conan apenas esperou, com a espada baixada. Quando a criatura estava a cerca de dez metros da ponte, o cimério começou a correr com toda a velocidade que pôde, em direção ao castelo que antes o abrigara. A besta, que vinha em um sentido perpendicular à ponte, fez a curva e tomou um sentido paralelo à ela, perseguindo o cimério com as garras preparadas para dilacerá-lo. A criatura voava rasteiramente sobre a ponte, logo atrás de Conan, encurtando a distância entre eles a cada fração de segundo que passava. Subitamente, quando ela menos esperava, o bárbaro girou com a espada levantada, o cabo apoiado contra seu abdômen de aço, e jogou-se para trás. O choque entre os dois foi estrondoso. Conan sentiu todo o peso do monstro cair sobre seu corpo, que foi esmagado contra a ponte e arrastado por uns cinco metros a fio, ainda debaixo da fera. Sentiu ainda uma dor horrível no abdômen, com o cabo de sua espada quase penetrando em sua carne devido à força de impacto entre a criatura e a resistente lâmina de aço brituniano. Uma lâmina que, ao ter metade de sua extensão introduzida no tórax do monstro, não resistiu à pressão e partiu-se em duas partes, ficando uma delas alojada dentro da criatura. Após a colisão, homem e fera rolaram juntos pela ponte, até alcançarem uma de suas extremidades. Conan estava por baixo do monstro, e, com muita sorte, conseguiu segurar-se, quase que inconscientemente, em uma das inúmeras pontas de cristal que saíam das bordas da ponte, ficando pendurado apenas com uma mão, suspenso no ar. Já a fera desabou em direção à neblina que cobria tudo como um gigantesco mar cinzento, gritando e contorcendo-se de dor, até afundar na névoa e desaparecer. O cimério assistiu aquela cena ainda não acreditando que conseguira sobreviver. Com um esforço brutal ele esticou seu braço ferido e agarrou-se com ele também na ponta de cristal, conseguindo uma maior firmeza com o sustento dos dois braços juntos. Neste movimento seu corpo todo estremeceu de dor... certamente ele havia quebrado algumas costelas no choque contra o demônio alado.
Conan começou a erguer seu corpo de aço, na tentativa de voltar para cima da ponte. Um esforço que, em condições normais, seria uma brincadeira para seus músculos bronzeados. Mas, na situação atual, parecia que seu corpo pesava centenas de quilos! O cimério cerrou os dentes e começou uma nova tentativa. Seu corpo foi erguendo-se lentamente, fazendo seu rosto se contorcer em uma feição de dor e angústia. Quando Conan estava quase conseguindo, um som vindo das profundezas fez seu corpo todo estremecer, fazendo-o voltar para baixo imediatamente, quase o derrubando da ponte. O som era um grito agudo e estridente, que quase estourava seus tímpanos devido à sua enorme potência... um som que o cimério já havia tido o desprazer de escutar antes...
Conan olhou para baixo a tempo de ver a besta alada emergindo das profundezas cinzentas, emitindo seu terrível grunhido com a bocarra totalmente aberta.
- Demônios de Crom! - gritou o cimério apavorado - Maldita criatura do inferno!!!
O demônio de asas emergiu das névoas em linha reta com o bárbaro, que encontrava-se totalmente indefeso, sem armas e sem ter como movimentar-se. A criatura subia em direção ao cimério em uma velocidade impressionante, e em uma fúria sem igual. Quando a criatura estava a cerca de cinco metros de alcançar Conan com suas mandíbulas escancaradas, o gigante de bronze soltou o pico de cristal que tanto esforçava-se para segurar. O demônio alado não esperava por esta reação do bárbaro, mas ainda assim tentou apanhá-lo no ar com sua gigantesca bocarra. Foi por uma questão de centímetros que suas presas não abocanharam o cimério, que escutou o som seco das mesmas se fechando ao lado de sua cabeleira negra. Assim que o monstro fechou as mandíbulas no ar, Conan agarrou-se em seu único chifre, ficando pendurado sobre seu pescoço coberto de carapaças ósseas. A besta começou a rodopiar e a se contorcer no ar, em uma tentativa falha de derrubar o cimério de seu corpo. Conan reuniu todas as forças que ainda lhe restavam, e, em um ato suicida, forçou o chifre da criatura até arrancá-lo de sua cabeça esbranquiçada. O monstro começou a emitir seus gritos estridentes e a se contorcer mais ainda, quase atirando o cimério para baixo, que ficou firme apenas por ter enrolado suas pernas no pescoço da fera.
- Demônio maldito! - gritou o bárbaro fitando o buraco sangrento que se encontrava no meio da cabeça da fera - Está sentindo falta do seu chifre?! Então pegue-o de volta!!!!
Conan ergueu o chifre com as duas mãos, virou-o com a ponta para baixo, e desceu-o com toda a força que Crom havia lhe concedido, afundando-o completamente no buraco de onde ele havia sido arrancado. Um rio de sangue jorrou sobre ele, e a criatura emitiu seu último grito, em um desespero sem igual. O monstro foi perdendo altitude, e, quando passou sobre a ponte de cristal, Conan atirou-se de seu corpo, caíndo rolando sobre a ponte. A criatura começou a rodopiar e a ter terríveis convulsões, até que chocou-se contra a ponte de cristal, rolando até encontrar um dos castelos que erguiam-se em suas extremidades. Quando a criatura bateu contra a parede do castelo uma explosão azulada aconteceu, mas não chegou a atingir a visão do cimério, que jazia no chão de olhos fechados. Depois do estrondo da explosão o silêncio reinou absoluto no panorama cristalino. Conan levantou-se lentamente, e sentiu seu corpo totalmente esmigalhado. Uma dor sem igual percorreu todos os seus músculos, mas ele forçou alguns passos, caminhando em direção à extremidade em que a besta alada havia caído. Para sua surpresa, a única coisa que ele encontrou lá foi os dois feiticeiros gêmeos estendidos no chão... ambos com um imenso buraco na testa.
- Maldito feiticeiro! - lamentou-se o bárbaro - Eu nunca devia ter confiado em suas conversas! Nisto, Conan sentiu uma pequena trepidação sob seus pés, e viu que a ponte começava a se trincar, por toda sua extensão. Logo tudo tremia, e blocos maciços de cristal começaram a se soltar dos castelos, rolando e quebrando pedaços inteiros da ponte que os unia. Tudo estava desmoronando, e o cimério simplesmente não sabia o que fazer. Quando uma torre inteira se desprendeu e começou a cair em sua direção, Conan não teve outra alternativa a não ser atirar-se nas brumas cinzentas que cobriam tudo até onde a visão podia alcançar. O cimério fechou os olhos e afundou nas névoas escuras... tudo em sua mente ficou leve e embaralhado. Em poucos instantes, Conan perdeu os sentidos.
6.
Quando o jovem bárbaro recobrou os sentidos, não mais sentia seu corpo. Parecia que todos os seus ossos estavam quebrados. Suas pálpebras se abriram após um grande esforço, e seus olhos azuis arderam ao encontrarem-se com os raios de um poderoso sol de verão. Conan virou a cabeça lentamente, e se viu quase soterrado em uma gigantesca duna de areia. Sua mente primitiva não conseguia entender o que havia acontecido, tampouco o porquê de sua chegada neste deserto infernal. Mas ele não podia ficar ali parado, e disso ele sabia perfeitamente. Seu corpo já estava todo queimado pelo sol, e sua boca totalmente ressecada devido à desidratação. Por quantas horas ele estivera ali, torrando no sol? Isto Conan não tinha a menor idéia. A única coisa que ele sabia é que precisava mexer-se o mais rápido possível, se ainda quisesse lutar por sua sobrevivência.
O cimério demorou vários minutos até conseguir manter-se de pé, devido ao estado em que seu corpo se encontrava. Ele tentou avistar algo no horizonte que não fosse areia, mas não enxergou nada além de um deserto que parecia ser infinito. O bárbaro amaldiçoou os deuses, e, quando virou-se para trás, uma sensação de euforia explodiu em seu peito. Há algumas milhas de distância, ele avistou um grande forte militar construído no meio das areias escaldantes. Conan atirou-se em sua direção, caminhando o mais rápido que seu corpo podia agüentar. Só de pensar em conseguir um pouco d'água, um bom banho e umas raparigas para sua companhia, isto fez desaparecer a tremenda dor que percorria todo o seu corpo. Mas o que havia naquele estranho forte? Será que o cimério conseguiu ajuda? Bem, isto já é uma outra história...
FIM
Marcos César Bonatto
( marcos.bonatto@bol.com.br )
NOTA DO AUTOR
Caros Leitores: tenho certeza que, assim como nosso amigo Osvaldo Magalhães, muitos de vocês perceberam que o final deste conto é incompatível com a verdadeira cronologia de Conan. Porém quero salientar que estou ciente disto, pois desta forma sinto-me muito mais livre para escrever. Sei que, se eu tentasse colocar meus contos na cronologia real de Conan, cometeria erros ainda maiores, visto que não sou um aprofundado no assunto. Gostaria também de enfatizar que não estou tentando criar uma cronologia nova para o grandioso bárbaro. Apenas desejo escrever contos baseados em alguns momentos de sua vida, sem nenhum grande compromisso (mas sempre tentando deixar tudo o mais plausível possível, dentro de minhas limitações, claro). Assim explico a razão deste final "alternativo", salientando também que meu próximo conto partirá deste ponto (isto é, se não surgir uma outra idéia no caminho). Despeço-me agradecendo ao Osvaldo e à toda comunidade do "Crônicas da Ciméria", assim como a todos os conanmaníacos do Brasil. Todas as críticas serão bem vindas, sejam elas positivas ou negativas, pois é errando-se que se aprende. Um abraço a todos!
Marcos César Bonatto