O Cão Negro da Morte





 O Cão Negro da Morte

(por Robert E. Howard)



1) O Assassino na Escuridão


Escuridão egípcia! A frase é vívida demais para conforto completo, sugerindo não apenas trevas, mas coisas invisíveis espreitando naquelas trevas; coisas que se escondem em sombras profundas e evitam a luz do dia; formas furtivas que vagam além do limite da vida normal.

Alguns desses pensamentos esvoaçavam de forma vaga pela minha mente, naquela noite, enquanto eu tateava de forma vaga ao longo da trilha estreita que serpenteava através dos profundos pinhais. Tais pensamentos são apropriados para fazer companhia a qualquer homem que ouse invadir, à noite, aquela extensão solitária da região fluvial densamente florestal, a qual o povo negro chama de Egito por alguma razão obscuramente racial.

Não há trevas, deste lado do abismo sem luz do Inferno, tão absolutas quanto as das florestas de pinheiros. A trilha era apenas um traço meio adivinhado, serpenteando entre muros de ébano sólido. Eu a seguia, tanto pelos instintos do habitante das florestas de pinha, quanto pela orientação dos sentidos externos. Seguia tão apressadamente quanto eu ousava, mas a furtividade se misturava à minha pressa, e meus ouvidos estavam afiados a uma prontidão aguçada. Esta cautela não vinha de especulações sobrenaturais, despertadas pela escuridão e pelo silêncio. Eu tinha boas razões materiais para ser cuidadoso. Fantasmas talvez perambulassem pelos pinhais, com goelas ensangüentadas e famintas, e fome canibalesca, como os negros sustentavam; mas não eram fantasmas o que eu temia. A criatura que, temia eu, assombrava o Egito, era mais temível do que qualquer fantasma tagarela. Naquela manhã, o pior bandido negro daquela parte do estado havia fugido da lei, deixando um terrível rastro de morte atrás de si. Descendo a margem do rio, cães de caça ladravam através do matagal, e homens de olhos duros, armados de rifles, irrompiam pelos bosques cerrados.

Eles o procuravam na fortaleza próxima aos assentamentos dispersos de negros, sabendo que um negro procura pelo seu próprio tipo em seu momento crítico. Mas eu conhecia Tope Braxton melhor do que eles; eu sabia que ele era diferente do tipo geral de sua raça. Ele era inacreditavelmente primitivo, atávico o suficiente para mergulhar em selvas inabitadas e viver como um gorila louco por sangue, em solidão capaz de aterrorizar e intimidar um membro mais normal de sua raça.

Assim, enquanto a caçada fluía em outra direção, eu cavalguei sozinho para o Egito. Mas não foi apenas para procurar Tope Braxton que mergulhei naquela fortaleza isolada. Minha missão era mais de aviso do que de busca. Nas profundezas do emaranhado labirinto de pinheiros, um homem branco e seu criado viviam sós, e era o dever de qualquer homem alertá-los de que um matador de mãos ensangüentadas poderia estar se esgueirando ao redor da cabana deles.

Talvez eu fosse tolo de viajar a pé; mas homens que usam o nome de Garfield não têm o hábito de voltar atrás numa tarefa uma vez tentada. Quando meu cavalo inesperadamente ficou manco, eu o deixei numa das cabanas dos negros, as quais margeiam os limites do Egito, e segui a pé. A noite me alcançou no caminho, e eu pretendia ficar até de manhã com o homem a quem eu ia avisar: Richard Brent. Ele era um recluso taciturno, suspeito e peculiar, mas dificilmente se recusaria a me hospedar para passar a noite. Era uma figura misteriosa. Por que ele escolhera se esconder numa floresta meridional de pinheiros, ninguém sabia. Ele vinha morando numa velha cabana, no coração do Egito, havia seis meses.

Súbito, enquanto eu avançava através da escuridão, minhas especulações sobre o misterioso recluso foram cortadas bruscamente, e enxugadas do meu pensamento. Parei repentinamente, meus nervos formigando na pele das costas de minhas mãos. Um súbito grito agudo na escuridão tem esse efeito, e este grito estava aguçado por agonia e terror. Veio de algum lugar à minha frente. Um silêncio morto se seguiu àquele grito; um silêncio no qual a floresta parecia prender a respiração, e a escuridão se calava numa quietude negra.

O grito se repetiu, desta vez mais próximo. Então, ouvi o bater de pés descalços ao longo da trilha, e uma forma se lançou contra mim, vinda das trevas. Meu revólver estava em minha mão, e eu instintivamente o puxei para fora, no intuito de desviar a criatura. A única coisa que me impediu de puxar o gatilho foi o barulho que o objeto estava fazendo – ofegando, soluçando barulhos de dor e medo. Era um homem, e terrivelmente ferido. Ele tropeçou bem em cima de mim, deu outro grito estridente e caiu esparramado, babando e tagarelando.

- Oh, meu Deus, salve-me! Oh, Deus, tenha piedade de mim!

- Que diabo é isso? – indaguei, meu cabelo se agitando em meu couro cabeludo, diante da agonia pungente naquela voz tagarela.

O infeliz reconheceu minha voz; ele agarrou meus joelhos.

- Oh, Senhor Kirby, não deixe que ele me pegue! Ele já matou meu corpo, e agora ele quer minha alma! Sou... o pobre Jim Tike! Não deixe que ele me pegue!

Risquei um fósforo e arregalei os olhos de espanto, enquanto o palito queimava até os meus dedos. Um homem negro rastejava diante de mim, seus olhos se revirando. Eu o conhecia bem – um dos negros que viviam em suas pequenas cabanas de madeira, ao longo dos limites do Egito. Ele estava salpicado e manchado de sangue, e acreditei que estivesse mortalmente ferido. Somente a energia anormal, causada pelo pânico frenético, seria capaz de fazê-lo correr tão longe quanto ele correu. Sangue espirrava de suas veias e artérias rasgadas no peito, ombros e pescoço, e os ferimentos eram horríveis de se ver: grandes rasgos irregulares, que jamais foram feitos por balas ou faca. Uma orelha havia sido arrancada de sua cabeça, e pendia solta, com um grande pedaço de carne do canto de seu maxilar e pescoço, como se algum gigantesco animal selvagem o houvesse arrancado com suas presas.

- O que, em nome de Deus, fez isso? – exclamei, enquanto o fósforo se apagava e ele se tornava apenas uma bolha indistinta sob mim. – Um urso? – Mesmo enquanto falava, eu sabia que nenhum urso fora visto no Egito há 30 anos.

- Ele fez! – O murmúrio grosso e soluçante rodopiou para o alto, através da escuridão. – O homem branco, que veio até minha cabana, e me pediu para guiá-lo até a casa do Senhor Brent. Ele disse que estava com dor de dente, de modo que tinha uma bandagem na cabeça; mas as bandagens caíram e vi seu rosto... ele me matou por vê-lo.

- Quer dizer que ele soltou cães em sua direção? – indaguei, pois seus ferimentos eram tais como eu já tinha visto em animais mordidos por cães de caça raivosos.

- Não, senhor – choramingou a voz que diminuía. – Ele mesmo fez isso... aaaggghhh!

O murmúrio se rompeu num grito agudo, quando ele torceu a cabeça, mal visível na escuridão, e arregalou os olhos de volta ao caminho por onde viera. A morte deve tê-lo alcançado no meio daquele guincho, pois este se quebrou subitamente em seu tom mais alto. Ele se agitou convulsivamente uma única vez, como um cão atingido por um caminhão, e depois jazeu imóvel. Forcei meus olhos para dentro da escuridão, e distingui uma forma vaga, a poucos metros de distância na trilha. Era ereto e tinha a altura de um homem; não fazia som. Abri minha boca para desafiar o visitante desconhecido, mas não veio nenhum som. Um arrepio indescritível fluiu sobre mim, prendendo minha língua no céu da boca. Era medo, primitivo e sem razão, e mesmo enquanto eu estava paralisado, eu não conseguia entendê-lo; não conseguia descobrir por que aquela figura silenciosa e imóvel, apesar de sinistra, causaria tal medo instintivo.

Então, a figura se moveu súbita e rapidamente em minha direção, e encontrei minha voz:

- Quem vem aí?

Nenhuma resposta; mas a forma veio se arremessando, e enquanto eu tateava por um palito de fósforo, ele estava quase sobre mim. Risquei o fósforo; com um rosnado, a figura se lançou contra mim, o fósforo foi derrubado de minha mão e se apagou, e senti uma dor aguda no lado do meu pescoço. Minha arma explodiu quase involuntariamente e sem mira, e seu clarão me aturdiu, obscurecendo mais do que revelando a figura alta em forma de homem que me atacava; então, com um arremessar ruidoso pelas árvores, meu atacante desapareceu, e eu cambaleei sozinho na trilha da floresta. Praguejando furiosamente, tateei em busca de outro palito de fósforo. O sangue escorria pelo meu ombro, encharcando minha camisa. Quando risquei o fósforo e observei, outro arrepio desceu pela minha espinha. Minha camisa estava rasgada, e a carne sob ela levemente cortada; o ferimento era pouco mais que um arranhão, mas a coisa que causou medo sem nome em minha mente era o fato de que o ferimento era similar àqueles no pobre Jim Tike.



2) “Homens mortos com gargantas cortadas!”


Jim Tike estava morto, jazendo de bruços numa poça do seu próprio sangue, seus membros salpicados de vermelho estatelados como os de um bêbado. Encarei desconfortavelmente a floresta ao redor, a qual ocultava a coisa que o matara. Era um homem o que eu conheci; o contorno, na breve luz do fósforo, havia sido vago, mas inconfundivelmente humano. Mas que tipo de arma seria capaz de abrir um ferimento igual ao triturar impiedoso de grandes dentes bestiais? Sacudi minha cabeça, lembrando-me da ingenuidade da humanidade na criação de instrumentos de matança, e refleti sobre um problema mais agudo. Eu deveria arriscar minha vida, continuando minha marcha, ou retornar ao mundo externo e trazer homens e cães, a fim de levar o cadáver do pobre Jim Tike para fora, e caçar seu assassino?

Não gastei muito tempo com indecisão. Eu havia partido para fazer uma tarefa. Se um criminoso assassino, além de Tope Braxton, estava à solta nas florestas de pinheiros, havia mais uma razão para alertar o homem naquela cabana solitária. Quanto ao perigo que eu corria, eu já estava a mais de meio caminho da cabana. Dificilmente seria mais perigoso avançar do que recuar. Se eu voltasse, e escapasse vivo do Egito antes que pudesse reunir um destacamento, qualquer coisa poderia acontecer naquela cabana isolada sob as árvores negras.

Assim, eu abandonei o corpo de Jim Tike lá na trilha, e segui adiante, arma na mão, e os nervos aguçados pelo novo perigo. Aquele visitante não havia sido Tope Braxton. Eu tinha a palavra do homem morto por ele, de que a coisa que atacara era um misterioso homem branco; o vislumbre que eu tivera da figura havia confirmado o fato de que ela não era Tope Braxton. Eu reconheceria aquele corpo atarracado e simiesco, até na escuridão. Este homem era alto e esguio, e a mera lembrança daquela figura magra me fazia estremecer de forma irracional.

Não era uma experiência agradável caminhar ao longo da trilha de uma floresta negra, com apenas as estrelas brilhando através dos galhos densos, e sabendo que um assassino impiedoso se esgueirava por perto – talvez à distância de um braço, na escuridão que a tudo ocultava. A lembrança do negro assassinado queimava vividamente em meu cérebro. Suor brotava de meu rosto e de minhas mãos, e eu me virei várias vezes, olhando ferozmente para as trevas, onde meus ouvidos captavam o sussurro de folhas ou o quebrar de um galhinho – como eu saberia se aqueles sons eram apenas os barulhos naturais da floresta, ou os movimentos furtivos do assassino? Num momento em que parei, com um arrepio medonho em minha pele, vislumbrei um brilho fraco e sinistro. Não era fixo; movia-se, mas estava muito longe de mim, para que eu percebesse de onde vinha. Com meus cabelos coçando de forma desagradável, eu aguardei, pois não sabia o que era; mas logo o brilho misterioso desapareceu, e eu estava tão incitado por acontecimentos não-naturais, que só depois percebi que aquela luz poderia muito bem ter sido feita por um homem que caminhava com uma tocha de madeira de pinheiro. Corri para diante, amaldiçoando-me por meus medos, os mais frustrantes por serem nebulosos. O perigo não me era estranho naquela terra de rixas e violência, onde ódios seculares ainda ardiam pelas gerações. Ameaças abertas de bala ou faca, ou de emboscadas, nunca me abalaram os nervos; mas agora eu sabia que eu estava com medo – medo de algo que eu não conseguia entender, nem explicar.

Suspirei aliviado, quando vi a luz de Richard Brent lampejando através dos pinheiros, mas não relaxei minha vigilância. Muitos homens acostumados ao perigo haviam sido mortos, no próprio limiar da segurança. Batendo à porta, fiquei de lado, olhando atenciosamente para as sombras, que cercavam a pequena clareira e pareciam repelir a luz fraca das janelas fechadas.

- Quem está aí? – disse uma voz grossa e áspera, vinda de dentro. – É você, Ashley?

- Não; sou seu... Kirby Garfield. Abra a porta.

A metade superior da porta foi aberta para dentro, e a cabeça e ombros de Richard Brent se destacaram na escuridão. A luz atrás dele deixava quase todo o seu rosto sombreado, mas não era capaz de obscurecer as duras linhas magras de suas feições, nem o brilho dos melancólicos olhos cinzentos.

- O que você quer a esta hora da noite? – ele exigiu, com sua brusquidão habitual.

Respondi em poucas palavras, pois eu não gostava do homem; cortesia em nossa parte do país é uma obrigação, à qual nenhum cavalheiro pensa em evitar:

- Vim lhe contar que é bem provável que um negro perigoso esteja vagando pela sua vizinhança. Tope Braxton matou Constable Joe Sorley e um negro de confiança, e fugiu de sua prisão. Acho que ele se refugiou no Egito. Achei que você deveria ser avisado.

- Bem, você já me avisou – ele falou bruscamente, em seu curto sotaque do leste. – Por que não vai embora?

- Porque não tenho a intenção de voltar através dessas florestas esta noite – respondi raivosamente. – Vim aqui para lhe avisar; não por causa de algum amor por você, mas simplesmente porque você é branco. O mínimo que você pode fazer é me hospedar em sua cabana, até de manhã. Tudo o que peço é um catre no chão; não precisa nem me dar comida.

Aquele era um insulto que eu não pude conter, em meu ressentimento; pelo menos nas florestas de pinheiro, era considerado um insulto. Mas Richard Brent ignorou minha alfinetada em sua avareza e falta de cortesia. Ele carranqueou para mim. Não pude ver suas mãos.

- Você viu Ashley em algum lugar da trilha? – ele finalmente perguntou. Ashley era seu criado; uma figura sombria, tão taciturna quanto seu amo, que se dirigia à distante aldeia do rio apenas uma vez por ano, em busca de suprimentos.

- Não; ele deve ter ido à cidade, e partido depois de mim.

- Acho que vou deixá-lo entrar – ele resmungou, de má vontade.

- Bom, apresse-se – eu pedi. – Tenho um corte em meu ombro, o qual quero lavar e enfaixar. Tope Braxton não é o único assassino à solta esta noite.

Ao ouvir isso, ele parou de mexer na porta inferior, e sua expressão mudou.

- O que você quer dizer?

- Há um negro morto a uns dois quilômetros trilha acima. O homem que o matou tentou me matar. Ele pode estar atrás de você, pelo que sei. O negro que ele matou o estava guiando para cá.

Richard Brent estremeceu violentamente, e seu rosto ficou pálido.

- Quem... o que você quer dizer? – Sua voz se quebrou a um inesperado falseto. – Que homem?

- Não sei. Um sujeito capaz de rasgar suas vítimas como um cão de caça.

- Um cão de caça! – As palavras jorraram num grito agudo. A mudança em Brent foi horrenda. Seus olhos pareciam sair da cabeça; seu cabelo se arrepiou no couro cabeludo, e sua pele ficou com o tom das cinzas. Seus lábios se puxaram para trás dos dentes, num esgar de puro terror.

Ele gaguejou e então encontrou voz.

- Saia! – ele disse sufocado. – Agora eu vejo! Eu sei por que você queria entrar em minha casa! Seu demônio sanguinário! Ele te enviou! Você é espião dele! Saia! – Este último foi um grito agudo, e suas mãos finalmente saíram de trás da parte inferior da porta. Encarei as bocas abertas de uma serrilhada espingarda de caça. – Saia, antes que eu lhe mate!

Dei um passo para trás, minha pele se arrepiando ao pensar num tiro a queima-roupa daquele instrumento assassino de destruição. As bocas negras dos canos, e o rosto pálido e abalado, prometiam destruição súbita.

- Seu maldito idiota! – rosnei, com a cortesia destruída por minha fúria. – Tenha cuidado com essa coisa. Estou indo. Prefiro me arriscar com um assassino a um louco.

Brent não respondeu; ofegando e tremendo como um homem com febre, ele se curvou sobre sua espingarda e ficou me observando, enquanto eu dava as costas e caminhava a passos largos através da clareira. Onde as árvores começavam, eu poderia ter me virado e atirado nele sem muito esforço, pois minha 45 tinha um alcance maior que sua arma. Mas eu viera para avisá-lo, e não matá-lo.

A porta superior bateu, caminhei para debaixo das árvores e o fluxo de luz foi abruptamente apagado. Puxei minha arma e mergulhei na trilha escura, meus ouvidos novamente aguçados para os sons sob os galhos negros.

Meus pensamentos voltaram para Richard Brent. Certamente não fora um amigo quem havia procurado direção até sua cabana! O medo desvairado do homem havia beirado a insanidade. Eu me perguntei se fora para escapar desse homem que Brent havia se exilado, neste trecho solitário dos pinhais e do rio. Certamente havia sido para escapar de algo – pois ele nunca escondera seu ódio pela região, nem seu desprezo pelas pessoas nativas, brancas ou negras. Mas eu nunca havia acreditado que ele fosse um criminoso, escondendo-se da lei.

A luz diminuiu atrás de mim desapareceu entre as árvores negras. Uma sensação curiosa, arrepiante e declinante me perseguiu, como se o desaparecimento daquela luz, apesar da sua fonte hostil, houvesse cortado o único elo que conectava esta aventura de pesadelo com o mundo da sanidade e da humanidade. Controlando sombriamente meus nervos, eu continuei subindo a trilha. Mas eu não tinha ido muito longe, quando parei de novo.

Desta vez, era o som inconfundível de cavalos correndo; o ribombar de rodas, misturado ao pisar de cascos. Quem poderia estar vindo ao longo daquela trilha anoitecida numa engrenagem, senão Ashley? Mas eu instantaneamente percebi que o grupo foi para outra direção. O som recuou rapidamente, e logo se tornou apenas um borrão distante de barulho.

Apressei meu passo, bastante perplexo, e logo ouvi passos apressados e cambaleantes à minha frente, e um rápido e esbaforido ofegar que parecia indicar pânico. Distingui os passos de duas pessoas, embora eu não conseguisse ver nada naquela escuridão intensa. Naquele ponto, os galhos se entrelaçavam sobre a trilha, formando um arco negro pelo qual nem mesmo as estrelas brilhavam.

- Olá! – gritei cuidadosamente. – Quem são vocês?

Instantaneamente os sons pararam de forma abrupta, e eu pude distinguir duas figuras sombreadas de pé, paradas tensamente e prendendo a respiração.

- Quem está aí? – eu repeti. – Não tenham medo. Sou eu... Kirby Garfield.

- Fique onde está! – disse uma voz dura, que eu reconheci como a de Ashley. – Sua voz soa como a de Garfield... mas quero ter certeza. Se você se mexer, eu te enfio uma bala.

Houve o som de um raspar, e uma pequena chama se ergueu. A mão de um homem apareceu em seu brilho e, atrás dela, o rosto quadrado e duro de Ashley fitando em minha direção. Uma pistola em sua outra mão refletia a luz do fogo; e, naquele braço, descansava outra mão – magra e branca, com uma jóia cintilando num dedo. Reconheci vagamente a figura esguia de uma mulher; seu rosto era uma flor pálida no escuro.

- Sim, é você; tudo bem – grunhiu Ashley. – O que faz aqui?

- Eu vim avisar Brent a respeito de Tope Braxton – respondi sucintamente; eu não gostava de dar satisfação das minhas ações para ninguém. – Você naturalmente soube disso. Se eu soubesse que você estava na cidade, isso me pouparia de andar tanto. O que vocês fazem a pé?

- Nossos cavalos correram para trás – ele respondeu. – Havia um negro morto na trilha. Mas não foi isso o que assustou os cavalos. Quando saímos para investigar, eles bufaram e dispararam com todo o equipamento. Tivemos que vir a pé. Foi uma experiência muito desagradável. Pelo aspecto do negro, eu diria que uma matilha de lobos o matou, e o cheiro assustou os cavalos. Achamos que seríamos atacados a qualquer minuto.

- Lobos não caçam em bandos, nem arrastam seres humanos nesta floresta. Foi um homem que matou Jim Tike.

No brilho decrescente do fósforo, Ashley ficou me encarando espantado, e então vi o espanto diminuir em suas feições e o horror cresceu nelas. Lentamente, sua cor desapareceu, deixando-lhe o rosto bronzeado tão pálido quanto o de seu patrão havia ficado. O palito de fósforo se apagou, e ficamos em silêncio.

- Bem – eu disse repentinamente –; fale, homem! Quem é a dama com você?

- Ela é sobrinha do Sr. Brent. – A resposta veio sem tom, através de lábios secos.

- Sou Gloria Brent! – ela exclamou numa voz, cujo acento culto não estava perdido no medo que a deixava trêmula. – Tio Richard me telegrafou para que eu fosse imediatamente até ele...

- Eu vi a mensagem – Ashley murmurou. – Você a mostrou para mim. Mas eu não sei como ele a enviou. Até onde sei, ele não vai à vila há meses.

- Eu vim de Nova Iorque o mais rápido possível! – ela exclamou. – Não entendo por que o telegrama foi enviado para mim, ao invés de outra pessoa da família.

- Você sempre foi a favorita do seu tio, Senhorita – disse Ashley.

- Bem, quando saí do barco para a vila, pouco antes do cair da noite, encontrei Ashley, preparando-se para ir para casa. Ele ficou surpreso em me ver, mas é claro que ele me levou; e então... aquele... aquele homem morto...

Ela parecia consideravelmente abalada pela experiência. Era óbvio que havia sido criada num ambiente bastante refinado e protegido. Se ela houvesse nascido nas florestas de pinheiro, como eu, a visão de um homem morto, fosse branco ou negro, não teria sido um fenômeno incomum para ela.

- O... o homem morto... – ela gaguejou, e então foi respondida da forma mais hedionda. Das florestas negras, ergueu-se um guincho de risada de gelar o sangue. Sons babantes e enfáticos o seguiram, tão estranhos e truncados que, a princípio, não os reconheci como palavras humanas. Suas entonações inumanas fizeram um arrepio descer pela minha espinha.

- Homens mortos! – a voz inumana entoou. – Homens mortos com gargantas cortadas! Haverá homens mortos entre os pinheiros, antes do amanhecer! Homens mortos! Tolos, vocês estão todos mortos!

Ashley e eu atiramos juntos na direção da voz, e, nos ecos despedaçadores de nossos tiros, o cântico medonho se apagou. Mas a risada bizarra ressoou novamente, cada vez mais profunda na floresta, e em seguida, o silêncio tenso se fechou como uma bruma negra, na qual eu ouvia o ofegar meio histérico da garota. Ela havia soltado Ashley e se agarrava desvairadamente a mim. Eu podia sentir o tremor de seu corpo flexível no meu. Provavelmente ela havia apenas seguido seu instinto feminino, de procurar abrigo no mais forte; a luz do fósforo havia mostrado a ela que eu era um homem maior que Ashley.

- Corra, pelo amor de Deus! – A voz de Ashley soou estrangulada. – A cabana não pode estar longe. Corra! Você virá conosco, Sr. Garfield?

- O que foi isso? – a garota estava arfando. – Oh, o que foi isso?

- Um louco, eu acho – respondi, cobrindo-lhe a pequena mão sob meu braço esquerdo. Mas, no fundo de minha mente, sussurrava a percepção pavorosa de que jamais um louco teria uma voz como aquela. Aquilo soava... Deus!... soava como alguma criatura bestial falando com palavras humanas, mas não com uma língua humana!

- Fique do outro lado da Senhorita Brent, Ashley! – eu mandei. – Fique o mais longe possível das árvores. Se qualquer coisa se mover daquele lado, atire primeiro e faça perguntas depois. Farei o mesmo deste lado. Agora vamos!

Ele não respondeu enquanto acedeu; seu medo parecia mais intenso que o da garota; sua respiração vinha em arfadas horrorizadas. A trilha parecia sem fim, e a escuridão parecia abismal. O medo espreitava em ambos os lados ao longo do caminho, e se movia furtivamente atrás de nós. Minha pele se arrepiava, ao pensar numa coisa, com garras e presas demoníacas, lançando-se sobre meus ombros.

Os pezinhos da jovem mal tocavam o chão, pois nós praticamente a carregávamos. Ashley era quase tão alto quanto eu, embora não tão pesado, e era forte.

À nossa frente, uma luz enfim brilhou fracamente entre as árvores, e um suspiro borrascoso de alívio lhe saiu dos lábios. Ele apressou o passo, até quase corrermos.

- A cabana, finalmente! Graças a Deus! – ele ofegou, enquanto saltávamos para fora das árvores.

- Chame seu patrão, Ashley – grunhi. – Ele já me expulsou com uma arma, esta noite. Não quero ser baleado pelo velho... – Eu parei, lembrando-me da garota.

- Sr. Brent! – gritou Ashley. – Sr. Brent! Abra a porta, rápido! Sou eu... Ashley!

Instantaneamente a luz saiu da porta, enquanto a parte superior era puxada para trás, e Brent espiou para fora, espingarda na mão e piscando para dentro da escuridão.

- Depressa! Entrem! – O pânico ainda tamborilava em sua voz. Logo: – Quem é este, ao seu lado? – ele gritou furiosamente.

- O Sr. Garfield, e tua sobrinha, a Senhorita Gloria.

- Tio Richard! – ela gritou, sua voz se prendendo a um soluço. Livrando-se de nós com um puxão, ela correu para diante e lançou seu corpo flexível meio por cima da porta inferior, lançando os braços ao redor do pescoço dele:

- Tio Richard! Estou com muito medo! O que significa tudo isso?

Ele parecia estupefato.

- Gloria! – ele repetiu. – O que, em nome do céu, você faz aqui?

- Ora, você me mandou uma mensagem! – Ela puxou para fora um amassado telegrama amarelo. – Está vendo? Você me disse para vir imediatamente!

Ele ficou novamente pálido.

- Eu nunca mandei isso, Gloria! Bom Deus, por que eu iria arrastá-la até meu inferno particular? Há algo diabólico aqui. Entre... entre logo!

Ele abriu bruscamente a porta e puxou a jovem para dentro, nunca largando a espingarda. Ele parecia atrapalhado em seu atendimento. Ashley entrou depois dela, e exclamou para mim:

- Entre, Sr. Garfield! Entre... entre!

Eu não havia feito movimento para segui-los. À menção do meu nome, Brent, que parecia ter esquecido minha presença, soltou-se da garota com um grito sufocado e deu a volta, erguendo a espingarda. Mas, desta vez, eu estava preparado para ele. Meus nervos estavam muito aflorados, para permitirem que eu me submetesse a qualquer outra ameaça. Antes que ele pudesse posicionar a arma, estava olhando para dentro da boca de minha 45.

- Abaixe-a, Brent – respondi asperamente. – Abaixe-a, antes que eu quebre seu braço. Já estou farto de suas suspeitas idiotas.

Ele hesitou, olhando ferozmente, e atrás dele, a garota se encolheu. Imaginei que, totalmente iluminado pela luz da porta, eu não era uma figura que inspirasse confiança numa jovem garota, com minha constituição moldada para a força e não para a aparência, bem como meu rosto escuro, cicatrizado por várias brutais batalhas fluviais.

- Ele é nosso amigo, Sr. Brent – interpôs Ashley. – Ele nos ajudou, na floresta.

- Ele é um demônio! – delirou Brent, agarrando-se à sua arma, embora não tentasse levantá-la. – Veio aqui para nos assassinar! Ele mentiu, quando disse que veio nos avisar sobre um homem negro. Qual homem seria idiota o bastante, para vir até o Egito, só para alertar um estranho? Meu Deus, ele conseguiu enganar vocês dois? Eu lhes digo: ele usa a marca do cão!

- Então, você sabe que ele está aqui! – gritou Ashley.

- Sim; este demônio me contou, tentando entrar manhosamente em minha casa. Por Deus, Ashley, ele nos rastreou, apesar de nossa sagacidade. Estamos numa armadilha! Numa cidade, poderíamos comprar proteção; mas aqui, nesta floresta amaldiçoada, quem ouvirá nossos gritos ou virá nos ajudar, quando esse demônio vier até nós? Que tolos... que tolos nós fomos, ao pensar em nos esconder dele neste ermo!

- Eu o ouvi rindo – estremeceu Ashley. – Ele nos escarneceu desde o matagal, em sua voz de animal selvagem. Eu vi o homem a quem ele matou... rasgado e mutilado, como se pelas presas do próprio Satã. O que... o que vamos fazer?

- O que podemos fazer, exceto nos trancar aqui dentro e lutar até o fim? – guinchou Brent. Seus nervos estavam numa forma medonha.

- Por favor, me conte o que está acontecendo! – implorou a garota trêmula.

Com uma terrível risada desesperada, Brent esticou o braço, gesticulando em direção à floresta negra além da luz fraca.

- Um demônio em forma humana está espreitando aqui! – ele exclamou. – Ele me rastreou através do mundo, e finalmente me encurralou! Você se lembra de Adam Grimm?

- O homem que foi com você até a Mongólia, há cinco anos? Mas você me disse que ele morreu. Você voltou sem ele.

- Pensei que ele estivesse morto – murmurou Brent. – Ouça, vou lhe contar. Entre as montanhas negras da Mongólia Interior, onde nenhum homem branco jamais penetrou, nossa expedição foi atacada por fanáticos adoradores de demônio... os monges negros de Erlik, que moram na cidade perdida e amaldiçoada de Yahlgan. Nossos guias e criados foram mortos, e todos os nossos animais fugiram, exceto um pequeno camelo.

“Grimm e eu fugimos deles o dia inteiro, atirando de trás das rochas, quando tentaram nos perseguir. Naquela noite, planejamos escapar de vez, no camelo que nos restava. Mas era evidente para mim que aquele animal não conseguiria carregar nós dois para a segurança. Um só homem poderia ter uma chance. Quando anoiteceu, acertei Grimm por trás com a coronha de minha arma, deixando-o inconsciente. Então, eu montei o camelo e fugi...”.

Ele não percebeu o olhar de assombro e aversão doentios, que crescia no belo rosto da jovem. Seus olhos grandes estavam fixos no tio, como se ela estivesse vendo o homem verdadeiro pela primeira vez, e ficou chocada com o que viu. Ele continuava absorto, muito preocupado e mergulhado no medo para se importar, ou prestar atenção, com o que ela achava dele. A visão de uma alma despida de seu verniz convencional, e de seu fingimento superficial, nem sempre é agradável.

- Atravessei as linhas dos que nos cercavam e fugi na noite. Grimm, naturalmente, caiu nas mãos daqueles adoradores de demônio e, durante anos, achei que estivesse morto. Eles tinham a reputação de matar, através de tortura, cada estrangeiro que capturasse. Anos se passaram, e eu havia quase esquecido o episodio. Então, há sete meses, eu soube que ele estava vivo... estava, de fato, de volta à América e sedento por minha vida. Os monges não o haviam matado; mas suas artes malditas o haviam alterado. O homem não é mais totalmente humano, mas toda a sua alma está voltada para minha destruição. Pedir ajuda à polícia seria inútil; ele os enganaria e saciaria sua vingança, apesar deles. Fugi dele por toda a parte, através do país, durante mais de um mês, como um animal caçado; e finalmente, quando pensei que o havia tirado do meu rastro, eu me refugiei neste ermo abandonado por Deus, entre estes bárbaros, do quais Kirby Garfield é um exemplo típico.

- Você falando de bárbaros! – ela se inflamou, e seu desprezo seria capaz de cortar a alma de qualquer homem que não estivesse totalmente absorvido em seus próprios medos.

Ela se voltou para mim:

- Sr. Garfield, por favor, entre. Você não deve tentar atravessar esta floresta à noite, com aquele demônio à solta.

- Não! – guinchou Brent. – Afaste-se dessa porta, sua pequena tola! Ashley, segure sua língua. Eu lhes digo: ele é uma das criaturas de Adam Grimm! Ele não colocará o pé nesta cabana!

Ela olhou para mim, pálida, desamparada e desconsolada, tive pena dela, tanto quanto desprezei Richard Brent – ela parecia tão pequena e perplexa.

- Eu não dormiria em sua cabana, nem que todos os lobos do Inferno estivessem uivando lá fora – rosnei para Brent. – Estou indo e, se você me balear nas costas, eu te mato antes de morrer! Eu não voltaria de modo algum para cá, mas a jovem dama precisava de minha proteção. Ela precisa agora; mas é seu privilegio negar isso a ela. Senhorita Brent – eu disse –; se você quiser, voltarei amanhã com uma carroça, para carregá-la até a vila. É melhor voltar para Nova Iorque.

- Ashley a levará até a vila – rugiu Brent. – Maldito, você vai embora?

Com um sorriso de escárnio, que fez o sangue dele deixar seu rosto roxo, eu me voltei diretamente sobre ele e me afastei a passos largos. A porta bateu com força atrás de mim, e ouvi sua voz falsetto misturada aos acentos lacrimosos de sua sobrinha. Pobre garota; deve ter sido como um pesadelo para ela: ter sido arrancada de sua protegida vida urbana, e largada numa região estranha e primitiva para ela, entre pessoas cujas maneiras pareciam incrivelmente selvagens e violentas, e dentro de um episódio sangrento de injustiça, ameaça e vingança. As profundas terras de pinheiro do Sudoeste parecem estranhas e impróprias, em qualquer ocasião, para o morador comum das cidades do Leste; e, adicionado ao seu mistério sombrio e selvageria primordial, havia esse fantasma ameaçador, saído de um passado insuspeitado, como a ficção de um pesadelo.

Girei ao redor e fiquei imóvel na trilha negra, encarando novamente o ponto de luz que ainda piscava através das árvores. O perigo pairava sobre a cabana naquela pequena clareira, e não era a qualidade de um homem branco deixar aquela garota sem a proteção de ninguém, exceto seu tio meio lunático e seu criado. Ashley parecia um lutador. Mas Brent era imprevisível. Creio que ele era matizado de loucura. Suas raivas insanas, e suas suspeitas igualmente insanas, pareciam indicar muito. Eu não tinha simpatia por ele. Um homem que sacrifica o amigo, para salvar a própria vida, merece morrer. Mas evidentemente Grimm era louco. Sua matança de Jim Tike sugeria insanidade homicida. O pobre Jim Tike nunca o havia prejudicado. Eu mataria Grimm sozinho por aquele assassinato, se eu tivesse oportunidade. E eu não queria que a garota sofresse pelos pecados do tio. Se Brent não havia mandado aquele telegrama, como ele jurou, então mais parecia que ela havia sido chamada por um propósito sinistro. Quem, senão o próprio Grimm, a teria chamado, para compartilhar do destino que ele planejou para Richard Brent?

Dando a volta, caminhei trilha abaixo. Se eu não podia entrar na cabana, pelo menos poderia espreitar nas sombras, pronto e por perto, se minha ajuda fosse necessária. Poucos momentos depois, eu estava sob as margens das árvores que cercavam a clareira. A luz ainda brilhava através das rachaduras nas persianas e, num dos lugares, uma porção do vidro da janela era visível. E, enquanto eu olhava, aquele vidro foi despedaçado, como se alguma coisa tivesse sido arremessada através dele. Instantaneamente, a noite foi partida por um lençol de chamas que explodiu num clarão cegante, o qual saiu das portas, janelas e chaminé da cabana. Por um instante infinitesimal, vi a cabana delineada negramente contra as línguas de fogo que lampejavam dela. Com o clarão, veio o pensamento de que a cabana tinha ido pelos ares – mas nenhum som acompanhou a explosão.

E, enquanto aquela labareda ainda estava em meus olhos, outra explosão preencheu o universo com fagulhas cegantes, e esta foi acompanhada por uma reverberação trovejante. A consciência foi apagada de mim muito subitamente, para eu saber que havia sido golpeado na cabeça por trás, pavorosamente e sem aviso.



3) Mãos Negras


Uma luz bruxuleante foi a primeira coisa que se imprimiu sobre minhas faculdades que despertavam. Pisquei, sacudi minha cabeça e súbito fiquei totalmente acordado. Eu estava deitado de costas numa pequena clareira, cercada por altas árvores negras, que refletiam irregularmente a luz incerta que irradiava de uma tocha, enfiada na terra próxima a mim. Minha cabeça latejava, e sangue coagulava em meu couro cabeludo; minhas mãos estavam atadas à minha frente, por um par de algemas. Minhas roupas estavam rasgadas, e minha pele arranhada, como se eu tivesse sido brutalmente arrastado pelo matagal. Uma enorme forma negra se acocorava sobre mim – um negro de estatura mediana, mas de largura e grossura gigantescas, vestindo apenas calças esfarrapadas e lamacentas: Tope Braxton. Ele segurava uma arma em cada mão e, alternadamente, mirava primeiro uma, depois outra, para mim, entortando os olhos ao longo do cano. Uma pistola era minha; a outra havia pertencido ao agente de polícia a quem Braxton rebentara os miolos.

Fiquei calado por alguns momentos, examinando o brilho da luz da tocha no grande torso negro. Seu corpo enorme luzia como ébano brilhante ou bronze fosco, enquanto a tocha palpitava. Ele era como uma forma vindo do abismo, do qual a humanidade rastejara há eras. Sua ferocidade primitiva se refletia nos nós salientes de músculos, que se empilhavam em seus braços longos e simiescos, e em seus ombros enormes e em declive; acima de tudo, a cabeça em forma de bala, que se projetava para a frente sobre um pescoço em forma de coluna. O nariz largo e chato, olhos negros; lábios grossos que se torciam para trás, mostrando dentes em forma de presas... tudo proclamava o parentesco daquele homem com o primordial.

- Onde diabos você se encaixa neste pesadelo? – indaguei.

Ele mostrou os dentes num sorriso largo e simiesco.

- Achei que era hora de você chegar, Kirby Garfield – ele arreganhou os dentes. – Quis que você viesse pra eu te matar, pra que você soubesse quem te mata. Então eu volto e assisto Siô Grimm matá o véio e a moça.

- O que quer dizer, seu demônio negro? – exigi asperamente. – Grimm? O que você sabe sobre Grimm?

- Encontrei ele nas florestas profundas, depois dele matar Jim Tike. Uvi um tiro de arma e vim com uma tocha pra vê quem... pensei talvez alguém atrás de mim. Encontrei Siô Grimm.

- Então você é o homem que eu vi com a tocha – grunhi.

- Siô homem ispérto. Ele diz que se eu ajudar ele a matar algumas pessoas, ele me ajuda a ir embora. Ele pega e joga bomba dentro da cabana; aquela bomba não mata as pessoas; só paralisa elas. Eu olhando pra trilha, e bato em você quando você volta. Aquele homem Ashley não totalmente paralisado, então Siô Grimm, ele leva e corta com os dentes garganta dele, como fez com Jim Tike.

- O que quer dizer com cortar a garganta com os dentes? – indaguei.

- Siô Grimm não é um ser humano. Ele fica em pé e anda feito um homem, mas ele é parte cão ou lobo.

- Você quer dizer um lobisomem? – perguntei, meu couro cabeludo formigando.

Ele sorriu largamente.

- Sim, é isso. Eles têm ele na velha região. – Então ele mudou de humor. – Falei demais. Vou istorá seus miolos agora!

Seus lábios grossos congelaram no sorriso sem alegria de um matador, quando ele entortou os olhos ao longo do cano da pistola, em sua mão direita. Meu corpo inteiro ficou tenso, enquanto eu procurava desesperadamente por uma escapatória para salvar minha vida. Minhas pernas não estavam amarradas, mas minhas mãos estavam algemadas, e o menor movimento traria chumbo quente atravessando meu cérebro. Em meu desespero, eu penetrei nas profundezas do folclore negro, em busca de uma superstição pálida – tudo, menos esquecida.

- Estas algemas pertencem a Joe Sorley, não? – indaguei.

- Uh huh – ele sorriu largamente, sem parar de fazer mira. – Peguei elas junto com essa arma, depois que bati na cabeça dele com barra de janela. Achei que podia precisar dela.

- Bem – eu disse –, se você me matar enquanto eu as estiver usando, estará condenado eternamente! Não sabe que, se você matar um homem que usa uma cruz, o fantasma dele lhe assombrará para sempre?

Ele puxou a arma subitamente, e seu esgar foi substituído por um rosnado.

- O que quer dizer, branco?

- Apenas o que sei. Há uma cruz riscada dentro de uma destas algemas. Eu já a vi mil vezes. Agora vá adiante e atire, e eu vou te assombrar no Inferno.

- Que algema? – ele rosnou, erguendo ameaçadoramente a coronha.

- Descubra você mesmo – sorri com escárnio. – Vá em frente; por que não atira? Espero que você tenha dormido bastante, porque verei que você nunca dormirá outra vez. À noite, debaixo das árvores, você verá meu rosto lhe olhando malevolamente. Você ouvirá minha voz no vento que geme pelos galhos de cipreste. Quando fechar seus olhos no escuro, você sentirá meus dedos em sua garganta.

- Cala a boca! – ele rugiu, brandindo suas pistolas. Sua pele negra estava matizada num tom lívido.

- Cale-me... se ousar! – Esforcei-me para me sentar, e então caí de volta, praguejando. – Maldito, minha perna está quebrada!

Diante daquilo, o tom pálido sumiu de sua pele de ébano, e a determinação se ergueu em seus olhos avermelhados.

- Então, tua perna quebrada! – Ele mostrou os dentes cintilantes, num esgar bestial. – Acho que você caiu duramente, e então te arrastei.

Colocando as duas pistolas no chão, longe do meu alcance, ele se levantou e curvou-se sobre mim, tirando uma chave do bolso da calça. Sua confiança era justificada – pois eu não estava com uma perna quebrada? Eu não precisava das algemas. Curvando-se sobre mim, ele girou a chave dentro das algemas antigas, e as puxou. E, como cobras gêmeas atacando, minhas mãos voaram até sua garganta negra, fechando-se ferozmente nela e o arrastando para cima de mim.

Eu sempre me perguntei qual poderia ser o resultado de uma luta entre eu e Tope Braxton. Alguém raramente se ocupa em provocar lutas com homens negros. Mas agora uma alegria feroz me invadia, uma gratificação sombria de que a questão sobre nossa relativa bravura estava para ser resolvida de uma vez por todas, com vida para o vencedor e morte para o perdedor.

Enquanto eu o apertava, Braxton percebeu que eu o havia enganado para me libertar – que eu não estava mais inutilizado do que ele. Instantaneamente, ele explodiu num furacão de ferocidade que teria desmembrado um homem mais fraco. Rolamos sobre as agulhas de pinheiros, engalfinhando-nos.

Se eu estivesse escrevendo um romance elegante, eu contaria como derrotei Tope Braxton, numa combinação de inteligência maior, habilidade pugilista e ciência ágil, que venceram sua força bruta. Mas devo me apegar aos fatos, nesta crônica. A inteligência teve pouca participação naquela luta. Ela não me ajudaria mais do que a um homem sob o verdadeiro aperto de um gorila. Quanto a habilidade artificial, Tope teria rasgado um boxeador comum ou um lutador, membro a membro. A ciência desenvolvida pelos homens não teria conseguido resistir sozinha à velocidade cegante, ferocidade de tigre e força esmagadora que se escondiam nos músculos terríveis de Tope Braxton.

Era como lutar com um animal selvagem, e eu o enfrentei de seu próprio jeito. Lutei com Tope Braxton como lutam os homens do rio, os selvagens e os grandes macacos. Peito a peito, músculo se esforçando contra músculo, punho de ferro se espatifando contra crânio duro, joelho golpeando virilha, dente cortando carne vigorosa, arrancando, rasgando, esmagando. Ambos esquecemos as pistolas no chão; devemos ter rolado sobre elas meia-dúzia de vezes. Cada um de nós só estava ciente de um único desejo, uma urgência cega e escarlate de matar com as mãos nuas, de dilacerar, rasgar, de contundir e pisar, até o outro se tornar uma massa imóvel de carne sangrenta e ossos estilhados.

Não sei por quanto tempo lutamos; o tempo se tornou uma eternidade injetada de sangue. Seus dedos eram como garras de ferro, que rasgam a carne e contundem os ossos sob ela. Minha cabeça estava girando, por causa dos impactos contra o chão duro, e da dor em meu lado. Eu sabia que, pelo menos, uma costela estava quebrada. Meu corpo inteiro era uma dor solidificada e uma combustão de articulações torcidas e tendões deslocados. Minhas roupas pendiam em farrapos, encharcadas pelo sangue que escorria de uma orelha que havia ficado pendurada em minha cabeça. Mas, se eu estava recebendo um castigo terrível, eu o estava dando também.

A tocha havia sido derrubada e chutada de lado, mas ainda ardia irregularmente, dando uma luz fraca e pálida àquela cena primitiva. Sua luz não era tão vermelha quanto a ânsia de matar, que nublava meus olhos a se turvarem.

Numa nuvem vermelha, vi seus dentes brancos lampejarem no esgar de esforço agonizado, seus olhos se revirando de uma máscara de sangue. Eu lhe havia espancado o rosto, além de qualquer semelhança humana; dos olhos à cintura, sua pele negra estava bordada de escarlate. O suor nos enlodava, e nossos dedos escorregavam ao agarrarem. Retorcendo-se meio livre de seu aperto dilacerador, pus cada nó contraído de músculo do meu corpo por trás do meu punho, que esmagou como uma marreta o seu maxilar. Houve um quebrar de osso, um gemido involuntário; sangue esguichou e o maxilar quebrado ficou pendente. Uma espuma sangrenta lhe cobria os lábios afrouxados. Então, pela primeira vez, aqueles dedos negros e rascantes vacilaram; senti aquele corpo grande, que se contraía contra o meu, ceder e amolecer. E, com um soluço bestial de ferocidade deleitada decaindo de meus lábios amassados, meus dedos finalmente alcançaram sua garganta.

Ele caiu de costas, comigo sobre seu peito. Suas mãos vacilantes se agarravam em meus punhos, cada vez mais fracamente. E eu o estrangulava lentamente, sem nenhum truque de jiu-jitsu ou luta livre, mas com pura força bruta, curvando-lhe a cabeça cada vez mais para trás entre seus ombros, até o pescoço grosso quebrar como um galho podre. Naquela embriaguez de luta, eu não sabia quando ele morreu, e não sabia que era a morte que finalmente havia amolecido os tendões de ferro do corpo sob mim. Erguendo-me cambaleante e dormente, bati aturdidamente o pé sobre seu peito e cabeça, até os ossos quebrarem sob meus calcanhares, antes de eu perceber que Tope Braxton estava morto.

Eu logo teria caído e desabado inconsciente e sem sentidos, se não fosse a consciência vaga de que meu trabalho ainda não havia terminado. Tateando com mãos dormentes, encontrei as pistolas e saí cambaleando entre os pinheiros, na direção para a qual meu instinto criado na floresta me dizia onde ficava a cabana de Richard Brent. A cada passo, minha forte capacidade de recuperação se fazia valer.

Tope não me arrastara muito longe. Seguindo seus instintos de selva, ele havia simplesmente me puxado para fora da trilha, para dentro de uma floresta mais profunda. Alguns passos me trouxeram de volta ao caminho, e vi novamente a luz da cabana lampejando através dos pinheiros. Então Braxton não havia mentido sobre a natureza daquela bomba. Ao menos, a explosão sem som não destruíra a cabana; pois ela estava como eu a vira pela última vez: aparentemente intacta. A luz se derramava, como antes, das janelas fechadas, mas dele saía uma gargalhada inumana que congelou o sangue em minhas veias. Era a mesma risada que zombara de nós, ao lado da trilha sombreada.


4) O Cão de Satã


Agachando-me nas sombras, girei ao redor da clareira, para alcançar um lado da cabana que não tivesse uma sombra. Na densa escuridão, sem qualquer vislumbre de luz para me revelar, deslizei para fora das árvores e me aproximei da construção. Próximo à parede, eu tropecei em alguma coisa volumosa e amolecida, e quase caí de joelhos, meu coração disparando até a garganta, por medo do barulho me trair. Mas a gargalhada medonha ainda badalava horrivelmente de dentro da cabana, misturada ao choramingar de uma voz humana.

Era em Ashley que eu havia tropeçado – ou melhor, em seu cadáver. Ele jazia de costas, olhando cegamente para o alto, sua cabeça pendente para trás sobre a ruína vermelha de seu pescoço. Sua garganta havia sido rasgada; do queixo ao colarinho, havia um ferimento enorme, aberto e esfarrapado. Suas roupas estavam escorregadias de sangue.

Levemente enojado, apesar de minha experiência com mortes violentas, deslizei até a parede da cabana e procurei, sem sucesso, por uma fenda entre as toras. A risada havia parado na cabana, e aquela voz assustadora e inumana soou, fazendo tremer os nervos das costas de minhas mãos. Com a mesma dificuldade que eu experimentara antes, reconheci as palavras.

- ... E assim, eles não me mataram, os monges negros de Erlik. Eles preferiram fazer uma pilhéria... uma deliciosa pilhéria, do ponto de vista deles. Simplesmente me matar seria gentil demais; acharam mais engraçado brincarem um pouco comigo, como os gatos fazem com um camundongo, e então me mandarem de volta ao mundo, com uma marca que eu jamais poderia apagar... a marca do cão. É assim que eles a chamam. E realmente fizeram bem o seu trabalho. Ninguém sabe melhor que eles como alterar um homem. Magia negra? Bah! Aqueles demônios são os maiores cientistas do mundo. O que o mundo Ocidental pouco sabe de ciência, transpirou em pequenas gotas daquelas montanhas negras.

“Aqueles demônios poderiam conquistar o mundo, se quisessem. Eles sabem coisas que nenhuma pessoa moderna sequer ousa imaginar. Conhecem mais sobre cirurgia plástica, por exemplo, do que todos os cientistas do mundo juntos. Eles entendem sobre glândulas, como nenhum europeu ou americano as entende; sabem como as retardar ou exercitar, de modo a produzirem certos resultados – Deus, que resultados! Olhem para mim! Olhem, seus malditos, e enlouqueçam!”.

Deslizei ao redor da cabana, até alcançar uma janela, e espiei através de uma rachadura na persiana.

Richard Brent estava deitado num divã, numa sala incongruentemente mobiliada para aquela casa primitiva. Ele estava com mãos e pés amarrados; seu rosto estava lívido e pouco humano. Em seus olhos sobressaltados, havia o olhar de um homem que finalmente fica face a face com o horror supremo. Do outro lado da sala, a jovem Gloria estava amarrada com braços e pernas abertos, indefesa e atada com cordas em seus pulsos e tornozelos. Ela estava completamente nua, suas roupas espalhadas confusamente no chão, como se tivessem sido brutalmente arrancadas dela. Sua cabeça se torcia ao redor, enquanto encarava, horrorizada e de olhos arregalados, a figura alta que dominava a cena.

Ele estava de costas para a janela onde eu me agachava, enquanto encarava Richard Brent. Em todos os aspectos, a figura era humana – a forma de um homem alto e magro, usando roupas pretas e justas, com uma espécie de manto curto pendendo de seus ombros magros e largos. Mas, ao ver, um estranho tremor tomou conta de mim, e finalmente reconheci o temor que eu havia sentido desde a primeira vez em que vislumbrei aquela figura magra, na trilha escura, acima do corpo do pobre Jim Tike. Havia algo de não-natural ao redor daquela figura; algo não-visível, enquanto ele estava lá, com as costas voltadas para mim, mas uma inconfundível sugestão de anormalidade; e minhas sensações foram o temor e a repugnância que homens normais naturalmente sentem diante do anormal.

- Fizeram de mim o horror que sou hoje, e então me expulsaram – ele estava tagarelando, em sua horrível voz balbuciante. – Mas a mudança não foi feita em um dia, ou um mês ou um ano! Eles brincaram comigo, como os demônios brincam com uma alma que grita nas grades em brasa do Inferno! Por vezes, eu teria morrido, apesar deles, mas fui sustentado pelo pensamento de vingança! Durante os longos anos negros, avermelhados de tortura e agonia, sonhei com o dia em que eu pagaria o débito que tinha com você, Richard Brent, sua cria da mais vil sarjeta de Satã!

“Então a caça finalmente começou. Quando alcancei Nova Iorque, eu te enviei uma foto do meu – meu rosto – e uma carta, detalhando o que acontecera – e o que aconteceria. Seu idiota, você pensou que conseguiria escapar de mim? Pensa que eu lhe avisaria, se eu não tivesse minha presa nas mãos? Eu quis que você sofresse, sabendo do seu destino; que vivesse em terror, que fugisse e se escondesse como um lobo caçado. Você fugiu e eu lhe cacei, de costa a costa. Você escapou temporariamente de mim, ao chegar aqui, mas era inevitável que eu lhe farejasse. Quando os monges negros de Yahlgan me deram isto” (sua mão parecia lhe apunhalar o rosto, e Richard Brent gritou salivante), “eles também introduziram em minha natureza alguma coisa do espírito do animal que copiaram.

“Matar-lhe não era o bastante. Eu desejava saciar minha vingança até o último e estremecedor grama. É por isso que enviei um telegrama para sua sobrinha; a única pessoa, no mundo, com quem você se importava. Meus planos funcionaram perfeitamente – com uma exceção. As bandagens que eu vinha usando, desde que deixei Yahlgan, foram tiradas do lugar por um galho, e eu tive de matar o tolo que estava me guiando até sua cabana. Nenhum homem olha para meu rosto e vive, exceto Tope Braxton, que é mais simiesco do que homem, de qualquer forma. Eu o conheci logo depois que fui baleado pelo homem Garfield, e ganhei sua confiança, reconhecendo um aliado valioso. Ele é animalesco demais, para sentir o mesmo horror diante da minha aparência que o outro negro sentiu. Ele achou que sou algum tipo de demônio, mas como não sou hostil com ele, ele não vê razão pela qual não se aliaria a mim.

“Foi favorável eu me juntar a ele, pois foi ele quem derrubou Garfield quando este retornou. Eu mesmo teria matado Garfield, mas ele era muito forte, muito hábil com sua arma. Você deve ter aprendido uma lição desta gente, Richard Brent. Eles vivem dura e violentamente, e são resistentes e perigosos como lobos da floresta. Mas vocês – vocês são moles e muito civilizados. Morrerão fácil demais. Eu desejaria que vocês fossem tão duros quanto Garfield era. Eu gostaria de mantê-los vivos durante dias, para sofrerem.

“Dei a Garfield uma chance de ir embora, mas o idiota voltou e teve de lidar com isso. Aquela bomba que lancei pela janela teria tido pouco efeito sobre ele. Ela continha um dos segredos químicos que consegui aprender na Mongólia, mas é eficiente apenas em relação à força física da vítima. Era suficiente para derrubar uma garota e um suave degenerado mimado como você. Mas Ashley conseguiu cambalear para fora da cabana, e logo conseguiria recuperar totalmente sua força, se eu não tivesse caído sobre ele e o colocado além da capacidade de ferir”.

Brent soltou um gemido. Não havia inteligência em seus olhos – somente um medo horrível. Espuma voava de seus lábios. Ele estava louco – louco como a coisa medonha que posava e tagarelava naquela sala de horror. Somente a garota, que se contorcia lastimosamente naquela mesa de ébano, estava sã. Tudo o mais era loucura e pesadelo. E subitamente o delírio completo subjugou Adam Grimm, e os esforçados tons uniformes se despedaçaram num grito agudo de parar o coração.

- Primeiro a garota! – guinchou Adam Grimm... ou a coisa que havia sido Adam Grimm. – A garota... para ser morta como já vi mulheres sendo mortas na Mongólia... para ser esfolada viva, devagar... oh, bem devagar! Ela sangrará para lhe fazer sofrer, Richard Brent... sofrer como sofri na Yahlgan negra! Ela não morrerá, até não sobrar uma polegada de pele em seu corpo, do pescoço para baixo! Veja-me esfolar sua amada sobrinha, Richard Brent!

Não acredito que Richard Brent compreendeu. Ele estava além de entender qualquer coisa. Ele tagarelava, lançando sua cabeça de um lado a outro, salpicando espuma de seus lábios pálidos e agitados. Eu ergui um revólver, mas logo depois Adam Grimm girou rapidamente, e a visão de seu rosto me paralisou. Quais mestres inimaginados de ciência sem nome viviam nas torres negras de Yahlgan, eu não ouso sonhar, mas certamente a feitiçaria negra dos fossos do Inferno se ocuparam com o remodelamento daquele rosto.

As orelhas, a testa e os olhos eram os de um homem comum; mas o nariz, a boca e o maxilar eram tais como homens não imaginaram sequer em pesadelos. Eram horrivelmente alongados, como o focinho de um animal. Não havia queixo; os maxilares inferior e superior se sobressaíam como as mandíbulas de um cão de caça ou um lobo, e os dentes, desnudados pelos rosnantes lábios bestiais, eram presas lampejantes. Como aquelas mandíbulas conseguiam formar palavras humanas, eu não consigo imaginar.

Mas a mudança foi mais profunda que a aparência superficial. Seus olhos, que ardiam como carvões do fogo do Inferno, eram um clarão que nunca brilhou nos olhos de homem algum, são ou louco. Quando os negros monges-demônios de Yahlgan alteraram o rosto de Adam Grimm, eles bordaram uma mudança correspondente em sua alma. Ele não era mais um ser humano; era um verdadeiro lobisomem, tão terrível quanto qualquer um da lenda medieval. A coisa que havia sido Adam Grimm se lançou em direção à garota, uma curva faca de esfolador brilhando em sua mão, e eu expulsei bruscamente meu torpor de horror e atirei pelo buraco na persiana. Minha mira foi certeira; vi o manto curto ser arrancado pelo impacto da bala, e ao espatifar do tiro, o monstro cambaleou e a faca caiu de sua mão. Então, instantaneamente, ele rodopiou e se lançou para trás, através da sala, em direção a Richard Brent. Com compreensão relampejante, ele percebeu o que havia acontecido, soube que só poderia levar uma vítima com ele, e fez sua escolha instantaneamente.

Não acredito que posso logicamente ser censurado pelo que aconteceu. Eu poderia ter esmagado aquela persiana, pulado para dentro da sala e me engalfinhado com aquela coisa que os monges da Mongólia Interior haviam feito com Adam Grimm. Mas o monstro se moveu tão rápido, que Richard Brent morreria de qualquer forma, antes que eu pudesse irromper na sala. Fiz o que parecia ser a coisa óbvia – despejei chumbo, através da janela, dentro daquele horror galopante, enquanto ele cruzava a sala. Aquilo deveria tê-lo parado; deveria tê-lo derrubado morto ao chão. Mas Adam Grimm continuou saltando, desatento às balas que o perfuravam. Sua vitalidade era mais que humana, mais que bestial; havia algo demoníaco nele, invocado pelas artes negras que faziam dele o que ele era. Nenhuma criatura natural conseguiria atravessar aquela sala sob aquela saraivada de chumbo a queima-roupa. Àquela distância, eu não tinha como errar. Ele cambaleava a cada impacto, mas não caiu até eu ter acertado a sexta bala. Então, ele seguiu rastejando de quatro, espuma e sangue pingando de suas mandíbulas arreganhadas. O pânico me percorreu. Desvairadamente eu agarrei a segunda arma, e a esvaziei naquele corpo que avançava se contorcendo dolorosamente, salpicando sangue a cada movimento. Mas nem todo o Inferno conseguiria afastar Adam Grimm de sua presa, e a própria morte se encolhia diante da determinação medonha daquela alma outrora humana.

Com doze balas nele, literalmente despedaçado, seus miolos escorrendo de um grande buraco em sua têmpora, Adam Grimm alcançou o homem no divã. A cabeça disforme mergulhou; um grito agudo gorgolejou na garganta de Richard Brent, quando as mandíbulas hediondas se fecharam. Por um louco instante, aqueles dois rostos pareceram se misturar, diante do meu olhar horrorizado – o humano louco e o inumano louco. Então, com um gesto de besta selvagem, Grimm levantou a cabeça, dilacerando a jugular de seu inimigo, e sangue inundou as duas figuras. Grimm ergueu a cabeça, com suas presas gotejando, focinho ensangüentado e seus lábios torcidos para trás, num último repique de gargalhada medonha que se sufocou num jorrar de sangue, quando ele se contorceu e jazeu imóvel.



FIM



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.


Fonte: https://gutenberg.net.au/ebooks13/1304151h.html


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