Um Novíssimo Recomeço... Levante na Hirkânia
(por Fernando N. de Aragão e Marco A. Collares)
1)
Era noite nas estepes do leste insondável da Hirkânia. O rei cimério Conan I da majestosa Aquilônia – que deixara Próspero como regente na capital – retornava de uma missão na ainda mais distante Khitai. Após ter recusado uma missão diplomática com os hiperbóreos – tendo, inclusive, se recusado a receber o Rei Tomar Orlov da Hiperbórea, por este (na época, um jovem príncipe) ter torturado até a morte os aesires de quem Conan (então adolescente) era amigo –, Conan havia achado melhor aceitar o pedido do embaixador khitanês, o qual se apresentara na sala do trono do Palácio Real de Tamar, logo após o Rei Tomar.
A lua ainda não estava em seu zênite, quando o bárbaro deu ordens para seus soldados e oficiais acamparem e descansarem. Naquelas duas turbulentas décadas de reinado, Conan da Ciméria, além de ter aumentado o poder e a prosperidade da Aquilônia, também enfrentara várias conspirações e guerras, derrotando seus maiores inimigos e adversários, fossem eles homens civilizados ou seres do mundo sobrenatural, como os reis Amalrus de Ophir e Strabonus de Koth, bem como os feiticeiros Tsotha-Lanti e Xaltotun, e a poderosa vampira Akivasha. Após derrotar, há 16 anos, a conspiração nemédia contra seu reino, o bárbaro casara-se com a saudosa Zenóbia e gerara dois filhos: sua primogênita e herdeira Pandora, de 15 anos, e Cruaidh, de 11.
Súbito, enquanto ainda se encontrava perdido em pensamentos, sua escolta se deparou com um povo reptiliano daquela região, o qual só saía de seus esconderijos à noite. Eretas, aquelas criaturas não tinham um metro e meio de altura; seus corpos acanhados e horrivelmente desfigurados eram esqueléticos e de brutalidade estranhamente sensual, e suas cabeças desproporcionalmente grandes. Elas possuíam cabelos escorridos e embaraçados que lhes caíam sobre as faces quadradas e inumanas, bem como oscilantes lábios flácidos e retorcidos, que revelavam presas amarelas e curvas de serpente, narinas largas e achatadas, e grandes e oblíquos olhos amarelos e brilhantes.
Eram descendentes mestiços e involuídos do povo-serpente da Era Thuriana, e de outros povos, humanos, demoníacos e semi-humanos. Aquelas criaturas repugnantes atacaram, derrubaram e mataram o cavalo de Conan, mas não antes do rei cimério esquartejar vários deles, em giros descendentes de sua pesada e larga espada aquiloniana reta, de dois gumes. Caindo de pé como um felino no solo, o bárbaro encarou um pesadelo voador de grande sucessão de cabelos emaranhados, lábios manchados e espumantes, e olhos brilhantes. Bradando seu grito de guerra, o Rei Conan saltou tal qual uma pantera para encontrá-los, sua espada cantou e uma cabeça com os dentes arreganhados rodou dos ombros de uma das criaturas, numa fonte circular de sangue. Os demais seres bestiais vieram para cima do cimério, como uma onda, e a loucura de batalha de sua raça dominou Conan. O rei lutou como uma besta enlouquecida e, a cada poderoso golpe, ele perfurava carne e ossos, esguichando o sangue de seus antagonistas, que se espalhava como uma chuva profana e escarlate. Ele sempre lutou contra homens, bestas, demônios ou deuses, sem fazer distinção.
Se um dia os cronistas civilizados decidissem relatar a batalha ali ocorrida, muitas de suas palavras pomposas se perderiam em detalhes para tentar externar o que se passou, esquecendo-se de que fúria, sangue, aço e trovão juntos não podem ser explicados dessa maneira. Conan bradou, e seu grito inumano veio acompanhado de mutilações e morte, como numa dança macabra entre poderosas feras igualmente inumanas. Enquanto o rei abria as fileiras inimigas, seus soldados aquilonianos também gritavam ferozmente, com suas espadas entoando canções de morte, e aliviando assim a pressão sobre o monarca deles. As criaturas da noite espumavam como lobos ensandecidos, mas foram massacradas até as estepes ficarem cobertas de corpos mutilados. Infelizmente, os soldados aquilonianos, que viajavam de volta do leste distante, também faziam parte dos múltiplos cadáveres esquartejados. Único sobrevivente daquele massacre, Conan cremou os corpos de todos os seus leais aquilonianos, pegou o último cavalo da escolta e, melancólico, prosseguiu para o oeste.
Algum tempo depois, um poderoso guerreiro cimério se aliava a rebeldes hirkanianos que buscavam deter o avanço turaniano na Hirkânia central. Conan se sentia em casa novamente, mesmo que distante de seu imponente reino ocidental. Era hora de novas aventuras pelos ermos das estepes silenciosas.
* * *
- Aqueles malditos filhos do Lobo Branco assassinaram meus pais, meu marido, meu irmão e meus filhos – disse Bayarmaa, a líder dos rebeldes, dirigindo-se a Conan. – Poucos de nós, da tribo dos Kurelen, conseguiram escapar. Não é apenas uma missão de defesa – ela acrescentou. – É uma missão de vingança também.
Ela era uma voluptuosa mulher de meia idade, olhos amendoados de cor escura e seios fartos. Seus traços tipicamente hirkanianos denotavam a força e o vigor ancestral de sua raça, a qual descendia dos antigos lemurianos, outrora grandiosos nas distantes – e agora quase totalmente submersas – ilhas do Oceano Oriental. Os cabelos volumosos de cor negra, encimados por um chapéu hirkaniano de pele, com copa alta, deixavam a pele morena ainda mais destacada, possuindo ainda um corpo escultural de quem vive pela espada e não se deixa marcar pela ociosidade civilizada. As roupas vermelhas, usadas por Bayarmaa, eram de seda – um tecido tão comum na Hirkânia, que era usado por pessoas de todas as classes sociais.
O maior desejo daqueles hirkanianos da tribo Kurelen, dos quais Bayarmaaa era líder e que agora viviam temporariamente acampados dentro de uma caverna, era o de expulsarem os turanianos até o distante Mar de Vilayet, bem como invadir e pilhar as cidades turanianas de Secunderam e Khorusun – ambas na Hirkânia – e reduzi-las a ruínas, nas quais pudessem construir suas aldeias por entre os restos daquelas cidades, com direito a currais dentro da sala do trono dos palácios arruinados, e tendas por entre as ruínas dos bazares, deixando intactos somente os templos de Tarim e Erlik, a quem aquele povo bárbaro do oriente também cultuava. Mas os hirkanianos Kurelen sabiam que aquilo era um sonho impossível e, por isso, contentavam-se em, aliados aos hirkanianos das tribos Bayurt e Barula, deterem o avanço do Império de Turan até eles.
As tribos que se aliaram aos Kurelen se constituíam de homens com rostos enrugados e tão morenos quanto os de qualquer hirkaniano. E, sobre as sedas e o aço que lhes cobriam os corpos, usavam casacos de lã com cinturão de couro pintado, com os gorros de pele e altos chapéus pontudos lhes sombreando os negros olhos que cintilavam à luz das fogueiras – estas últimas, feitas com madeira e estrume como combustíveis. As mulheres cozinhavam em seus caldeirões incessantemente. Os mais gordos espécimes dos rebanhos foram mortos, e o odor da carne cozinhando e de especiarias enchia o ar poeirento daquela vasta caverna. Enquanto Bayarmaa conversava com os líderes das tribos aliadas, as crianças espreitavam ansiosamente, de dentro de suas tendas, o fluxo dos recém-chegados, ao mesmo tempo em que as belas jovens Kurelen flertavam com os oficiais das tribos Bayurt e Barula, bem como com os da recém-chegada tribo Jirko.
Assim eram os dias de Conan, um pouco a oeste das montanhas que ficavam a leste do ainda distante Mar de Vilayet, ouvindo lamentos ou exigências daqueles que se dirigiam a ele e a Bayarmaa para pedir-lhes algum auxílio, conhecendo todos cada vez mais a seus nomes e a força primal bárbara do rei cimério. Durante os preparativos para uma das muitas emboscadas contra as forças turanianas imperiais que os guerreiros hirkanianos fariam nas estepes, alguém bastante familiar apareceu por entre os rebeldes e, enquanto comia junto aos homens reunidos numa grande cabana central, Conan reconheceu imediatamente aquela figura.
- Oi, cimério – disse, com um sorriso sardônico. – Ao saber desta coalizão, eu vim do Mar de Vilayet para cá, a fim de me aliar aos rebeldes hirkanianos. Só não imaginei encontrá-lo aqui, entre a horda de Bayarmaa. Seu nome é mesmo uma inspiração, Conan... Apesar de muitos aqui lhe conhecerem há pouco tempo, todos sabem que seu nome é como um grito de guerra que irradia força e valentia. O povo hirkaniano precisa mesmo de mais guerreiros de teu porte para lhes trazer paz; além, claro, da doce e majestosa liberdade!
Conan sorriu de volta diante dessas palavras de incentivo. Seu gosto por aventuras e por novas guerras de pilhagem o fez se sentir vivo novamente, algo que não lhe acontecia desde tempos mais antigos, antes dele, num lance do destino e do acaso, colocar uma coroa sobre sua cabeça – e que também não lhe ocorria desde o dia em que sua esposa, a Rainha Zenóbia, fora horrivelmente assassinada por Akivasha. Era o momento, então, de mais uma emboscada contra as forças do Império Turaniano, que ousava adentrar cada vez mais no leste e no oeste. Para Conan, a plenitude da vida em cima de um cavalo brandindo uma espada não precisava de mais do que isso, para torná-lo consciente de seu papel no mundo.
2)
A surpresa pegou todos os turanianos desprevenidos. Muito se falava das constantes emboscadas que os hirkanianos estavam perpetrando contra o Império de Turan, ainda mais após um certo rei ocidental chamado Conan se juntar às forças da horda bárbara liderada por Bayarmaa. Os turanianos tinham o sangue hirkaniano nas veias, mas eles tinham se tornado um tanto mais “civilizados” com o tempo – amolecendo, segundo seus irmãos do leste, sua antiga brutalidade racial bárbara.
Espalhando óleo incendiário ao redor do acampamento turaniano, Bayarmaa e seus comandados criaram uma cortina de fogo pela qual os guerreiros de Secunderam não conseguiam passar, enquanto eram mortos a flechadas por cavaleiros da própria raça – só que mais bárbaros que eles. Juntamente com as setas, sabres e iatagãs de aço sibilavam, colidiam, perfuravam e cortavam, enquanto aquele acampamento era preenchido por gritos de vitória e morte, e as chamas se alastravam inexoravelmente até as barracas turanianas.
Com seu sabre, a bela e imponente Bayarmaa aparou o golpe de um turaniano, deixando-lhe a guarda aberta o tempo suficiente para que ele fosse perfurado no coração. Ao mesmo tempo, Conan se esquivava do giro de outro guerreiro turaniano, para depois lhe atingir o elmo com o cabo de sua espada e lhe abrir a jugular num esguichar de sangue.
Rindo e praguejando, o rei cimério golpeava como uma pantera, numa velocidade à qual olhos humanos não podiam acompanhar; sua lâmina era um borrão de fogo azul, e os imperialistas turanianos caíam como cereais diante da foice. Blasfêmias saíam incessantemente dos lábios do bárbaro do oeste, o qual ria loucamente enquanto sua teimosa espada cortava e estocava os turanianos que haviam cercado a ele e a Bayarmaa.
Um deles gritou e aparou como pôde os golpes de Conan; de repente, soltando a espada, agarrou desesperado, com as mãos nuas, a lâmina gotejante do cimério. Em desespero, o homem oscilou e gemeu, e Conan arrancou a espada do corpo dele com uma torcida e um puxão, arrancando-lhe os dedos. Com um grito que anunciava seus estertores de morte, o imperialista recuou alguns passos e caiu morto para trás.
Enquanto isso, Bayarmaa matava mais um turaniano, enfiando-lhe o sabre entre os dentes e pescoço adentro. Este caiu moribundo ao chão, afogado no próprio sangue. Pode-se dizer que a matança foi um deleite para o rei aquiloniano, revigorando seu espírito irrequieto uma vez mais em meio ao episódio. No instante seguinte, Conan salvou a vida da líder, acertando uma flecha certeira no pescoço do turaniano que a tentara atacar por trás com seu iatagã. E, assim como Bayarmaa, Conan e a outra pessoa vinda do ocidente lutavam como tigres, despedaçando carnes e ossos após suas flechas se esgotarem.
Destarte toda a sua habilidade, os legalistas turanianos não eram páreos para os dois ocidentais grisalhos, que haviam somado suas forças à dos hirkanianos, fazendo com que os guerreiros aliados a Subedei Khan morressem como porcos num matadouro. O próprio cimério era um lutador, nascido no campo de batalha. Para ele, lutar era um estilo de vida. Isso é tudo o que ele sabia naquele momento. Era tudo o que ele queria saber. Ele não era um soldado, ao qual ensinaram a lutar. Para o cimério, lutar era instintivo, primal – natural até. Era parte dele, como suas pernas, seus braços, seu tronco e seu pescoço.
Com a permissão de Bayarmaa, Conan organizara a cavalaria hirkaniana em formação de cunha, deixando-a praticamente inexpugnável. Até onde os olhos podiam ver, havia cadáveres de olhos e bocas abertos, e cortados em pedaços ensangüentados pelas estepes – quase todos de turanianos, dentre os quais pouquíssimos haviam conseguido escapar. As prostitutas do acampamento – loiras britunianas, morenas stígias, zamorianas de cabelos escuros, kushitas de ébano e shemitas cor-de-oliva (todas elas compradas nos abarrotados mercados de Aghrapur, Sultanapur, Khawarizm e Khorusun) – foram libertadas de seu cativeiro. As que não quiseram partir, ficaram com os hirkanianos que pudessem pagá-las para continuarem suas atividades.
A horda, mais uma vez, havia feito seu festim de sangue e fogo, sendo liderados pela valente mulher de olhos escuros, aliada do maior guerreiro já visto numa era de homens igualmente brutais e imponentes. Conan era feliz assim.
* * *
Dias se passaram. Era noite, e todos os rebeldes comiam, bebiam leite fermentado e se divertiam com mulheres – prostitutas ou não –, gozando dos prazeres que somente um povo livre é capaz de ter. Contudo, Bayarmaa permanecia tão vigilante e séria quanto as sentinelas que ela havia postado ao redor do esconderijo. Súbito, ela sinalizou para que todos os seus comandados silenciassem, e eles, como sempre, obedeceram.
- Esta é a terceira patrulha – disse repentinamente uma das sentinelas à líder deles. – Não podemos nos esconder para sempre. Já faz tempo desde nossa última emboscada, a norte.
- Confie em mim, Todoyan – disse a líder dos rebeldes. – Depois desta noite, não precisaremos mais. Ouçam todos! – ela acrescentou. – Chegaram as notícias do reino de Turan. O traidor hirkaniano Subedei Khan liderará a caçada aos rebeldes esta noite.
- O quê? – perguntaram alguns rebeldes da resistência.
- Se aquele traidor do nosso povo sair da segurança de seu acampamento – disse o co-líder –, ele ficará vulnerável.
Brados de guerras foram clamados, alguns de valentia ou ressentimento, enquanto Conan, taciturno observava a cena, sem se exaltar. Seus movimentos eram propositalmente lentos, mas ao mesmo tempo ágeis, como de pantera. Seus olhos faiscavam com o fogo de eras e eras de bárbaros do ocidente distante.
Outrora ele foi um errante, um mercenário, um ladrão, um pirata, um líder guerreiro e agora monarca de um reino civilizado. Sua presença ali gerava em todos, de forma consciente ou não, um lampejo ainda maior de valentia, além da segurança que homens não tão imponentes possuem diante de uma figura colossal de tamanha envergadura. Seria uma longa noite de matanças no leste.
* * *
A rota da patrulha chegou ao rio à noite. Os rebeldes ficaram escondidos na estrada, à espreita. Quando a patrulha chegou à clareira, a líder deu o sinal e então os membros da resistência atacaram impiedosamente. Sob a liderança de Bayarmaa e com a mais que bem-vinda ajuda de Conan, setas incendiárias foram lançadas pelos rebeldes da resistência, numa chuva impiedosa que reduziu aquela patrulha pela metade. Quando os rebeldes saíram da tocaia, Conan se esquivou facilmente das flechas, enquanto matava cavaleiros turanianos a torto e a direito, com sua espada e seu punhal, num turbilhão de aço e sangue. Bayarmaa fazia o mesmo, deixando um rastro de cadáveres imperialistas mutilados e despedaçados em seu caminho.
Arremessando fatalmente seu punhal no pescoço de um turaniano que apontava uma flecha para um dos homens da resistência, ela depois atirou um machado certeiro em outro, esfacelando-lhe elmo e crânio. Em seguida, a líder acertou uma flecha no pescoço de outro arqueiro de Turan, para logo após desmontar e decepar a cabeça de mais um que, a pé, cruzava espadas com um de seus hirkanianos.
Outro turaniano, cuja montaria caíra flechada, tentou apunhalar Bayarmaa por trás, mas esta o agarrou pelo antebraço, fazendo-o cair, com uma mão no pulso e outra na garganta. Enquanto lhe estrangulava lentamente, golpeou a cabeça do patife contra uma pedra várias e implacáveis vezes, até sua nuca espirrar em sangue e miolos. Os olhos do defunto se convulsionaram e vitrificaram, e a hirkaniana o largou como um fardo sobre o solo, onde ele jazeu imóvel e estendido.
Em seguida, vendo um turaniano investir em sua direção, Conan ergueu uma lança, apontou-a e a arremessou como só um cimério seria capaz de fazê-lo, acertando o pescoço do Filho do Lobo Branco. Outro cavaleiro de Turan teve sua coxa e cavalo atingidos pelas flechas de um dos hirkanianos, de modo que caiu para trás e rolou do cavalo, espatifando-se no chão. O cavalo moribundo também perdeu o equilíbrio e caiu, esmagando a barriga do turaniano. Outra flecha daquele hirkaniano, certeira no elmo do turaniano caído, completou o serviço.
Bayaramaa voltou a montar seu cavalo. Cataratas de flechas rutilavam no ar, que estava cheio do fragor de cavalos e de homens rugindo, dos baques de corpos caindo, do retinir das espadas e do estardalhaço de armas contra escudos. Os rebeldes da frente se inclinavam para trás, girando seus laços, curvando arcos reforçados com poderosos chifres, ou arremessando lanças vivas e velozes. Nenhum arco era curvado, ou arma empunhada ou lança arremessada em vôo, sem visar um objeto determinado, e inevitavelmente esse objeto era atingido e o inimigo atirado longe aos guinchos, do cavalo, para ser pisoteado pelo casco de outra montaria, ou trespassado pelo meneio relampejante de uma cimitarra.
Súbito, um dos turanianos apareceu abruptamente diante de Bayarmaa, com um olhar feroz e selvagem – um homem de meia-idade, cheio de ódio hereditário pelos hirkanianos, que eram mais selvagens e bárbaros que ele. Ele sabia que seu líder nunca obteria a vitória enquanto Bayarmaa estivesse viva. Ela viu o fulgor demente dos olhos naquela face estreita e barbada, e o cintilar demente dos dentes. Aquele homem tinha mais coragem e ferocidade que os outros, e vinha também armado com um ódio furioso.
A líder da resistência viu o braço erguido empunhando a espada sangrenta e ficou tão surpresa com a súbita aparição daquele homem e com a loucura de sua expressão, que seu próprio braço ficou momentaneamente paralisado. Via a espada do turaniano lhe avançando na direção do peito, e sabia que agora nada poderia salvá-la, pois havia perdido um momento precioso.
Então ficou imóvel e estupidificada, no tumulto de homens e cavalos. Pois, num instante, ali estava o turaniano, sorrindo insanamente e brandindo a espada, e no instante seguinte, havia apenas sobre seu cavalo um cavaleiro sem cabeça, com o pescoço cortado esguichando sangue e com a espada ainda na mão. E então, o tronco sangrento se inclinou para o lado e caiu pesadamente do cavalo.
Bayarmaa olhou para sua direita, com a boca escancarada de assombro. Conan estava ao lado dela, com a espada gotejante e um largo sorriso duro em sua face bronzeada e cicatrizada.
- Obrigada por salvar minha vida, cimério – ela exclamou.
Arqueiros montados foram derrubados de suas selas e mortos a golpes de espadas e machados, ou pelos velozes laços hirkanianos, que os arrancavam da sela e os estrangulavam até lhes quebrar os pescoços. E a resistência de Bayarmaa não deixou sobreviventes. Sangue escorria aos borbotões de jugulares abertas, e de braços e pescoços cortados, e homens se encolhiam sobre as vísceras ensangüentadas, tentando fazer parar o sangue. A lua contemplava embaixo essa desordem, a fuga, o pânico, e os hirkanianos chacinadores galopando para cima e para baixo em seus cavalos. Quando Subedei fugiu, todos os rebeldes comemoraram – com exceção de Conan, indiferente ao fato.
3)
A tenda de Subedei Khan – um típico yurt hirkaniano, feito de madeira, com o teto ligeiramente abobadado, coberto por feltro e lã brancos –, fora armada do topo de uma pequena colina. Em seu interior, a débil luz de uma lamparina a óleo o recebeu. Comparado a outros líderes hirkanianos, os gostos de Subedei eram bastante simples: um tapete vendhyano; uma cadeira e uma mesa com pão, carne, um jarro de leite de égua e outro jarro, com aguardente de leite de égua; um suporte de madeira para armaduras, um braseiro cheio de cinzas e um pequeno altar com imagens de Tarim e Erlik – deuses adorados, tanto pelo seu povo quanto pelos turanianos aos quais se aliara. Uma cortina delimitava o acesso ao seu quarto.
Ainda arfando em razão da fuga inesperada, Subedei, como de costume, manteve a adaga e a espada na cintura e, devido às circunstâncias, tensas, também manteve a armadura sobre o traje de seda que ele vestia. Ao abrir a cortina de seda que dava acesso ao seu quarto... deparou-se com uma mulher de meia-idade – e era uma bela mulher ocidental, de pele branca! Apesar dos cabelos prateados e das linhas de expressão em seu rosto, o corpo daquela beldade era igual ao de uma jovem de 20 anos. E as linhas que sulcavam o rosto simétrico daquela cinqüentona lhe acentuavam ainda mais a beleza natural, ao invés de tirá-la ou sequer diminuí-la.
- Que artimanha demoníaca é essa?
Ela estava deitada sob uma fina manta, com a cabeça apoiada num dos braços. Seus olhos escuros e graúdos observavam o hirkaniano com traços de humor felino. A mulher estava tão nua como veio ao mundo; a manta fina pouco fazia para ocultar as curvas luxuriosas e firmes de seu corpo escultural.
- Eu não pretendo lhe fazer mal algum, meu senhor – a hiboriana respondeu, com sotaque ophiriano.
Subedei riu. Embora pego de surpresa, logo reconheceu aqueles traços ocidentais, pois havia visto aquela mulher, dias atrás.
- Ah, eu conheço você! És a mulher e companheira de armas daquele rei bárbaro ocidental, conhecido como Conan!
A mão do hirkaniano se posicionou sobre o cabo de sua espada. Ele não era um jovem tolo inexperiente, e seu olhar vagou de um canto a outro do aposento, de sombra em sombra, procurando o gatilho que deflagraria alguma armadilha ou ardil previamente elaborado. Mas nada encontrara.
- Na verdade, eu sou prisioneira daquele bruto – respondeu. – Não passo de um brinquedo em suas mãos ásperas, e sou constantemente maltratada por aquele bárbaro imundo do ocidente.
- Maltratada? Você? Ora, mulher, não sei qual é o seu jogo aqui, mas não pretendo participar dele. Já lhe vi ao lado de Conan, e não vi amarras nem grilhões pendendo de seus belos membros.
Ela se sentou lentamente e elevou os joelhos até sob o queixo:
- Certas correntes são invisíveis, meu senhor. Eu poderia relatar sobre a depravação do cimério, mas não quero que pense que aceitei tudo de bom grado, ou mesmo que gostei daquelas perversões. Não sou uma meretriz.
Subedei Khan sorriu:
- Então por que está nua na minha cama?
- Eu pensei que, se eu lhe seduzisse – disse a ophiriana – e você me amasse, teria sua clemência e sua ajuda para voltar ao meu lar.
Antes que o líder hirkaniano pudesse mandá-la sair de sua tenda, uma flecha assobiou do lado de fora, cravando-se na coluna do traidor. Em seguida, mais rápida que o bote de uma víbora, a mulher desembainhou a adaga que Subedei Khan trazia consigo e a cravou no pescoço do hirkaniano, pouco abaixo do lado esquerdo da mandíbula. O sangue jorrou, o homem tentou tapar o terrível ferimento, mas se engasgou no próprio sangue e sangrou até morrer.
Logo a seguir, o acampamento lá fora foi invadido pelo som inconfundível de batalha. Ao sair da tenda, com a espada de Subedei na mão, a hiboriana sorriu ao ver um guerreiro alto, meio musculoso e moreno, de 60 anos, cabelos grisalhos e vulcânicos olhos azuis, usando completa armadura aquiloniana de cota-de-malha e sorrindo de volta para ela.
- Parabéns por cumprir bem o seu papel, Olívia – disse o rei cimério, que havia disparado a flecha em Subedei. Logo, sem gastar tempo se vestindo, a ex-princesa ophiriana pegou a espada do líder morto, e o casal de amantes se lançou àquela batalha, onde a luz das fogueiras se refletia nas lâminas curvas, nas pontas das flechas que zuniam de ambos os lados e para todos os lados, e nas cenas de duelos, escaramuças e matanças.
Turanianos haviam chegado ao local, para se aliarem a Subedei Khan, mas não imaginavam encontrar aquela grande horda de rebeldes hirkanianos, aliada àqueles dois ocidentais e atacando tanto a eles quanto aos hirkanianos que se aliaram aos súditos do Rei Taliph de Turan, filho do falecido Yildiz/Yezdigerd.
A mais absoluta confusão tomou conta de tudo imediatamente. O acampamento entrou em pânico. Guerreiros corriam por todo lado, como que cegos, agarrando os cavalos assustados que os escoiceavam. Homens e animais corriam através das fogueiras, espalhando faíscas vermelhas e brasas fulgurantes. Os oficiais tentavam restaurar a ordem, para organizar as formações de soldados, enquanto distribuíam pontapés em torno de si sobre os guerreiros desorientados.
Enquanto isso, após abrir o peito encouraçado de um cavaleiro hirkaniano num jato escarlate, com seu poderoso machado, Conan arremessou a arma no pescoço de um turaniano a cavalo, que investia em sua direção, derrubando-o, já morto, da sua montaria. No instante seguinte, o cimério desembainhou sua espada e continuou seu trabalho sangrento.
Naquele meio tempo, os hirkanianos de Bayarmaa correram por entre os turanianos, aproveitando-se do barulho e da desordem para usarem as espadas destramente, saltando de uma morte para outra. Mas, apesar de desordenados e dispersados, os turanianos lutavam valentemente. Os hirkanianos se espalharam pelo acampamento como uma onda irresistível, fustigando em torno de si indiscriminadamente com seus sabres recurvos, galopando através das ilhas de yurts nos seus cavalos velozes e ágeis – sombras vingadoras com os rostos terríveis de loucos furiosos, deixando, atrás de si, os caminhos juncados de mortos.
Furioso, Jokhin Khan, segundo em comando de Subedei, conseguiu reorganizar parte dos turanianos e investiu contra Bayarmaa. A líder rebelde bloqueou o primeiro giro do iatagã de seu antagonista. Em seguida ela se esquivou e girou, contra-atacando Jokhin duramente. Durante alguns instantes, que mais se pareciam uma eternidade, a líder rebelde e o co-líder traidor lutaram selvagemente, digladiando com o clangor de suas lâminas e com os grunhidos de seus esforços.
Ao mesmo tempo, quase tão habilidosa quanto Conan, a ex-princesa Olívia de Ophir lutava, entre cambalhotas, fintas, giros e estocadas, ajudando os rebeldes hirkanianos a matarem os imperialistas que lutavam sob a bandeira do Lobo Branco de Turan. Ao mesmo tempo, o rei cimério via rostos desaparecendo em jatos escarlates de sua poderosa espada selvagem, cujo canto enchia o acampamento de corpos mutilados, e cujas arremetidas arrancavam cada vez mais ondas vermelhas de sangue oriental. Espadas e adagas curvas se abatiam sobre Conan, e ele estava vagamente consciente de que haviam conseguido feri-lo. Mas o bárbaro ocidental lutava como uma fera ancestral dos tempos antigos, indomada, enquanto sua enorme espada partia crânios, transpassando e decepando corpos e mais corpos. Seus olhos azuis coruscavam como relâmpagos, e seus dentes fulguravam por entre os lábios.
Cortar, perfurar, brandir, abrir. Esse era o doce canto da batalha que tanto Conan exultava. Ainda assim, o bárbaro do oeste teria morrido, se não fosse pela desnuda ophiriana que se agachava ao seu lado, o defendendo e golpeando seus adversários. Pois o rei estava claramente fora de controle, lutando no terrível estilo cimério, que leva a morte aos inimigos, sem fazer qualquer esforço para evitar cortes ou perfurações, mantendo-se de pé e apenas avançando. Aquele estilo de quem não tem nada a perder, e nada além do que o desejo de matar em sua mente.
Raramente Conan se esquecia de sua estratégia de batalha naquela fúria primitiva, mas agora era como se amarras houvessem se partido em sua alma, enchendo sua mente com a onda escarlate da sede de sangue. Ele assassinava um inimigo a cada golpe, mas eles ainda vinham por sobre o rei como uma onda, e mais de uma vez Olívia desviou uma arremetida que seria fatal a Conan, agachada ao lado dele, desviando e prestando assistência com uma habilidade fria, matando a todos que se aproximavam e não eram trespassados pela força primal do bárbaro. Ela não lutava como o cimério, que atacava seus inimigos com cortes longos e empurrões, mas atuava com golpes curtos e arremetidas para cima, de forma leve e incrivelmente ágil.
O velho Conan soltou uma gargalhada insana em meio à matança. Os rostos turanianos e hirkanianos de seus antagonistas giravam ao seu redor, numa resplandecência escarlate. Ao sentir aço afundando em seu braço encouraçado, fez sua espada descrever um arco que abriu uma fenda até o esterno de um adversário. Então a névoa se desfez e o rei percebeu que ele e Olívia eram os únicos de pé, naquele círculo enorme de descendentes de lemurianos que se aglomeraram ao redor deles, e cujos remanescentes turanianos eram perseguidos cada vez mais pelos rebeldes, os quais agora os apavoravam mais do que nunca, com a cabeça de Subedei Khan na ponta de uma lança.
Ao mesmo tempo de toda essa batalha épica, e apesar de ter recebido um leve corte no ventre, Bayarmaa deteve mais uma estocada de Jokhin Khan e, aproximando-se do traidor na fração de segundo seguinte, ela o transpassou, enfiando a espada até o cabo no coração do homem, de modo que a ponta da lâmina se sobressaiu entre as espáduas do agora morto co-líder.
Ensangüentados, feridos, com hematomas no rosto e com os olhos inchados – porém vivos e ainda dispostos –, Conan e Olívia tiveram relações sexuais ali mesmo, entre mortos e moribundos, com o sangue dos inimigos mortos ainda coagulando em suas mãos e entre beijos recíprocos, a se espalharem por corpos nus, suados e arfantes, ao mesmo tempo em que os vitoriosos rebeldes hirkanianos soltavam seus brados de júbilo e queimavam a bandeira imperial do Lobo Branco de Turan. Quando as mulheres sentiam os braços de Conan, fortes como troncos, em torno de suas cinturas, elas se derretiam como manteiga ao sol. E, com Olívia, não seria jamais diferente.
* * *
Os pastores e guardadores de gado tangiam de volta seus rebanhos, e a atmosfera estava cheia dos seus berros roucos e seus gritos estridentes. O gado queixava-se em mugidos profundos e melancólicos, galopando através dos caminhos tortuosos por entre os yurts escuros e abobadados, com as suas plataformas de madeira. O ordu (aldeia) de tendas voltara a se assentar perto de um rio, em cuja direção os guardas dos rebanhos conduziam os animais. Crianças nuas e morenas brincavam no cascalho perto dos yurts; mas, diante da aproximação atroadora dos rebanhos, pularam para cima das plataformas e mofavam dos pastores, quando estes passavam correndo por entre os cascos espumantes e a poeira quente.
Os rebanhos passavam como fantasmas. Aqui e ali, uma cabeça que se atirava para trás, um feixe de chifres, um mar de caudas, uma extensão de ancas, uma floresta de pernas peludas passavam pelas estepes cinza-esverdeadas, cintilando no fulgor deslumbrante do sol.
Mulheres, ansiosas por sua prole, acorriam às entradas dos yurts. Algumas vinham de amamentar os bebês, e os seios morenos apareciam nus, pendentes, cheios e túrgidos. Aos clamores dos guardadores e brados dos animais, juntavam seus chamados estridentes. Outras emergiam das tendas com baldes de cobre e madeira, pois os animais seriam ordenhados logo que voltassem do rio.
Neste momento, outros pastores se aproximavam, conduzindo garanhões selvagens e irrequietos, éguas e potros, e os anciões da aldeia fugiam prudentemente para cima das plataformas. Uma pessoa jovem podia se arriscar à carga das cabras, mas nunca à dos garanhões. Seus olhos selvagens brilhavam e seus corpos peludos eram recobertos por um pelame cinzento. Os guardadores, a cavalo, praguejavam e berravam, tangendo os animais com varas compridas. Esses guardadores eram mais selvagens que os próprios garanhões, e mais ferozes. Seus olhos cintilavam furiosamente. Seus rostos escuros brilhavam de suor, e tinham os lábios rachados pela poeira. A gritaria era ensurdecedora.
Os caçadores seguiam-nos em seus pequenos e ágeis cavalos, carregando os frutos da caça amontoados na frente deles: lebres e antílopes, porcos-espinhos, aves e raposas, martas e outros animais de peles. Os caçadores bradavam triunfantemente, e faziam as suas montarias cabriolarem e voltearem; e, quando se chocavam uns com os outros, riam como loucos. Brandiam as espadas e os arcos, fincavam os saltos duros nos flancos dos cavalos e galopavam em círculos. E, quando a noite caía e grandes fogueiras escarlates começavam a arder entre as fileiras de yurts, havia festas, canções, gargalhadas, histórias incríveis e bazófias. Enfim, a vida daquele povo livre e bárbaro das estepes havia voltado à sua rotina – sendo que, durante os festejos, jovens das tribos Tarkut, Bayurt e Barula haviam se casado com várias das moças da tribo Kurelen.
Após terem derrotado aqueles imperialistas, os hirkanianos da tribo dos Kurelen haviam festejado durante dias, com música, danças, carne de ovelhas e cavalos inteiros assados – bem como de outros animais –, e aguardente de leite de égua, além de comida saqueada dos acampamentos dos turanianos e dos traidores hirkanianos. E agora, que tudo voltara à sua normalidade, Conan e Olívia foram recompensados por Bayarmaa com 20 rubis, cada um, além de suprimentos para as longas jornadas que fariam – e, durante as quais, se acasalaram bastante, antes da ophiriana alcançar o Mar de Vilayet. O rei cimério – viúvo já há dez anos – propôs à ophiriana ser Rainha da Aquilônia ao lado dele, mas ela recusou a proposta, pois não gostaria de dividi-lo com mulheres de seu harém, de variadas raças e culturas existentes – além de que, graças a Conan, ela já era a Rainha do Mar de Vilayet há décadas e pretendia continuar sendo.
Quanto a Conan... após esse breve momento de total liberdade pelos ermos da distante Hirkânia, auxiliando um levante rebelde contra as forças imperiais turanianas, ele seguiu caminho para sua terra adotiva, a oeste. Ele nunca mais esqueceria aquele momento de batalhas, que ele viveu entre um povo livre e selvagem em uma terra indomada. Pode-se dizer que, em meio a uma vida de esparsas alegrias e de momentos marcantes de melancolia, ele sentia-se vivo no decorrer do clamor das batalhas. E isso bastava para o cimério Conan, mais ainda do que qualquer coroa pesada sobre sua cabeça.
FIM
Agradecimento especial à escritora Taylor Caldwell (1900-1985).