De Volta aos Reinos Hiborianos

(por Fernando N. de Aragão e Osvaldo Magalhães)

Livremente inspirado num texto de Leonard Carpenter



1) O Último Retorno
“Não irei mais ao Vale Escuro,
Que é o portão do Inferno”
(Robert E. Howard, em “O Habitante do Vale Escuro).

Um atarracado selvagem uivante ergueu o machado, correndo em direção à bela Aoibhe, dos olhos cor-de-sílex, mas esta deteve a mão do rival e lhe atravessou estômago, pulmões e coluna, numa estocada mortal de sua lâmina. Enquanto ela tentava soltar a espada do cadáver, outro picto do Clã do Urso investiu contra Aoibhe, da tribo ciméria do Grande Lago, mas uma lança, arremessada com precisão por Rotheachta na parte posterior do pescoço do selvagem, pôs fim à vida deste em meio a um borbulhar de sangue, fazendo-o cair sobre a neve de início de outono, com a coluna cervical partida ao meio.

Abrindo os ventres de dois pictos ao mesmo tempo – um com a espada, e outro com o machado –, Conan decepou a cabeça de outro deles, ao mesmo tempo em que Eanbotha e Aoibhe abriram as jugulares de mais dois inimigos. Um cimério teve sua clavícula cortada até a coluna por um dos poucos pictos a brandir uma espada – roubada de uma ciméria morta –, e morreu borbulhando sangue, mas foi vingado por dois giros de Dathal, o qual decepou o antebraço e a cabeça do selvagem das terras a oeste.

Dois anos haviam se passado, desde que Conan havia mandado vender as mulheres e crianças bakalahs como escravas aos jihijis, ao invés de mandar matá-las, e abandonado a liderança dos Bamulas, deixado Lívia a salvo na fronteira stígia e em seu lar em Ophir, e depois se aventurando no reino de Amazon, com suas guerreiras negras e altas, montadas sobre rinocerontes especialmente domesticados e zebras, e que cultuavam Damballah e Derketa. Cansado dos Reinos Negros, ele acabava de retornar ao mundo hiboriano e à Ciméria, onde a vida sempre pendia pelo fio da espada... e do machado.

Outro saqueador picto – líder daqueles incursores – abriu o peito de um cimério com o machado, num giro sangrento, e perfurou o coração de outro com sua lança. Ealadha investiu contra ele e iniciou-se um duelo acirrado, o qual começou com giros e estocadas de lâminas, e esquivas de corpos. A esposa do ferreiro tentou decepar a cabeça do rival, mas este se esquivou e cruzou seu machado – ao contrário dos machados pictos, este era de aço, também roubado de um cimério morto – contra a espada da mulher, até empurrá-la para trás, em meio às faíscas causadas pelo atrito entre as duas lâminas, e esbofeteá-la. Ultrajada, a grisalha mãe de Conan contra-atacou o picto com giros furiosos e mortais, fazendo-o recuar ante os golpes. Num momento, ela sorriu e arremeteu sua lâmina, tentando perfurar o pescoço do selvagem, mas ele se esquivou e lhe rechaçou a espada.

Ela aproveitou e abriu um corte na coxa do homem, fazendo-o urrar de fúria. O duelo continuou, com o restante da tribo ocupada demais para intervir, até que a morena estocou novamente sua espada em direção ao pescoço do picto, ao mesmo tempo em que este girou a própria lâmina sibilante em direção ao pescoço da mãe de Conan. Então, em meio a duas explosões de jatos de sangue, se esvaíram instantaneamente e ao mesmo tempo as vidas de Ealadha e do líder picto, mortos um pelo outro.

Ao verem seu chefe morto, os outros pictos debandaram como poeira, enquanto Conan e o pai correram desesperados até a heroína morta, cujos olhos cinzentos já não mais se moviam – assim como os olhos negros do chefe deles e de muitos outros pictos. Súbito, uma flecha atingiu a nuca grisalha do melancólico ferreiro. Ao ver que a seta partira de um arbusto, Conan imediatamente distinguiu a silhueta de um demônio pintado ali escondido e, com a velocidade cegante de um raio, arremessou sua espada no assassino de Criomnthan, perfurando o pescoço daquele último picto e vingando o pai.

* * *

Durante o funeral, os oráculos cimérios entoavam cantos fúnebres a todos os deuses daquele povo sombrio – exceto Crom, que era indiferente e odiava orações –, enquanto Rotheachta, Conan, Dathal, Ruarcc e Tethba – os cinco filhos de Criomnthan e Ealadha – viam seus pais serem enterrados. Como todos os cimérios, eles não gritavam nem choravam; nenhum gemido lhes escapava pelos lábios empalidecidos, ficando como se estivessem em transe, suas cabeças morenas afundadas no peito como se eles também estivessem mortos. Não havia lágrimas em seus olhos... apenas uma escura tristeza, uma profunda sensação de impotência, futilidade e fadiga – principalmente em Conan, que definitivamente não via mais motivos para permanecer, ou mesmo voltar, à terra onde nascera.

Assim como Cumal havia se tornado, pouco antes daquele último retorno de Conan à terra natal, o novo “rei” da Ciméria – na verdade, o mais poderoso chefe tribal daquela nação bárbara –, o mesmo ocorria agora com Rotheachta na liderança da Tribo do Grande Lago. Após uma eleição, a irmã mais velha de Conan se tornou a segunda líder tribal mais poderosa da Ciméria.

Após curarem suas feridas obtidas na peleja com os pictos e honrarem seus parentes no funeral, os cimérios da Tribo do Grande Lago voltaram à sua vida cotidiana: pescar, caçar, escalar, beber água – e de vez em quando hidromel –, comer e ignorar a Crom, sempre soturnos e melancólicos sob o céu quase sempre plúmbeo da Ciméria.

Para Conan, aquela era uma vida enfadonha, carente das extravagâncias das grandes cidades hiborianas, das enfumaçadas tabernas que ele tanto adorava, do doce vinho vermelho que tantas vezes ele displicentemente desperdiçou, das mulheres fáceis de sedosos cabelos e olhares lascivos que tanto prazer lhe davam (ainda mais que Aoibhe se casara anos antes daquele último retorno) e, agora, dos seus amados pais, a força genitora que se combinou e lhe propiciou a vida.

Não havia mesmo sentido em permanecer na Ciméria. Nem mesmo os laços fraternos eram suficientemente fortes para demover Conan da idéia de partir pela última vez. Seus irmãos eram por vezes frios e lacônicos com ele, desacostumados que eram com aquele parente feroz que amava o sul – apesar de serem igualmente netos do sorridente e saudoso Tassach, com o qual Conan aprendera a sorrir mesmo longe da loucura da batalha.

Numa dessas típicas manhãs cinzentas da Ciméria, Conan não foi encontrado na tribo do Grande Lago. Pela primeira vez, ele fora embora sem anunciar.


2) Mercenário em Koth

O ataque ao castelo do Barão Alias começou ao amanhecer. Sobre os tojos e rochas dos pés da cordilheira, vieram os rebeldes: lavradores alquebrados pelo tempo e fazendeiras de pulsos grossos, garotos impetuosos e garotas saudáveis marchando em filas resolutas. Avançando com seus machados e arcos, eles carregavam pesadas escadas de assédio improvisadas, escudos de couro de vaca e flechas em recipientes.

Os primeiros esquadrões tinham que conter o ataque, sob ordens ríspidas de seus respectivos escudeiros e chefes tribais, até que os outros estivessem posicionados ao redor dos muros. Então, ao estridente e desafinado barulho das cornetas de caça, os insurgentes, em suas roupas ásperas, avançaram para todos os lados.

- Avante, povo de Koth, por liberdade e vingança! Arqueiros, atirem logo e limpem os bastiões!

O que gritava ordens e equilibrava-se no alto da pequena colina, era um gigante de cabelos negros, cujos ferozes olhos azuis ardiam num vigoroso e bronzeado rosto cicatrizado do norte. De olhar mais áspero que qualquer um dos fazendeiros, ele também era mais guerreiro em sua vestimenta. Sua desarrumada juba selvagem era encimada por um elmo de batalha, de aço, enquanto seus ombros maciços se sobressaíam sob as magas de uma túnica de cota-de-malha. A cintura e os membros inferiores estavam pesadamente cingidos: espada, adaga e machado pendiam de seu grosso cinto de metal; placas e grevas completavam sua armadura.

Mais uma vez evitando o lado nemédio do Reino da Fronteira – onde já haviam ocorrido conflitos entre cimérios e nemédios –, Conan seguira para a Britúnia, Coríntia e Koth, trabalhando como mercenário nestes três últimos países.

Mas era um longo arco que agora lhe chamava a atenção. A longa vara curva era quase tão alta quanto o homem, e suprida com hastes de 90 cm de comprimento, que ele tirou de uma aljava, e firmadas nas rochas ao seu lado. Puxar, encaixar, esticar e soltar – seus movimentos eram fáceis e bem-treinados. Conhecedor de sua facilidade, ele estava seguro de seus alvos.

- Eles estão bem embaixo – disse uma voz preocupada, perto dele. – Que belo grupo de rapazes e estas boas damas kothianas! Eu espero mesmo que eles agüentem o dia! Mas e quanto a nós, Conan? Eu pensei que você e eu iríamos liderar o ataque...?

- Poderemos fazer melhor trabalho para eles, daqui mesmo – respondeu pacientemente o arqueiro, sem interromper seu ritmo mortal.

Mesmo enquanto ele falava, um defensor blindado contorceu-se de cabeça pra baixo na muralha, agarrando a extremidade de uma seta que atravessara as partes frontal e posterior de sua cota-de-malha. Um momento depois, outra sentinela agarrou uma flecha que lhe atravessou a coxa e caiu de lado, para trás das ameias.

- Com este alcance, eu posso escolher meus alvos sem pressa. É melhor você esperar aqui comigo, Alranius.

Dúzias de outros arqueiros atiravam flechas para dentro, desde a rochosa área sem árvores que rodeava o castelo. A chuva de setas ajudou a limpar as defesas; mas os arqueiros ameaçavam a si mesmos, pois seus arcos curtos e curvados atiravam menos longe que armas similares, manejadas do alto das torres e ameias. Com homens e mulheres cambaleando e morrendo entre suas fileiras, os arqueiros camponeses não conseguiam apontar friamente. Suas flechas eram lançadas às pressas, num ângulo desfavorável. E as curtas flechas kothianas furavam menos que as setas compridas.

- As escadas de mão estão subindo! Agora, vamos reivindicar alguns troféus reais.

Falando com sombria convicção, o arqueiro continuou disparando. Friamente, ele emplumou o peito blindado em prata de um guardião do castelo que deu um passo adiante para incitar seus homens a avançarem. Ele lançou uma flecha que atravessou o pescoço de um homem com alabarda, que tentava usar seu longo machado para empurrar a cabeça de uma escada de cerco. Uma besta disparou, caindo a uma longa distância e ricocheteando nas rochas a seus pés. Notando isto, ele respondeu com sua flecha seguinte, em linha reta, através da janela da torre da qual saíra.

Alranius ficou inquieto:

- Eles subiram as escadas, cimério; veja! Eu deveria estar lá em cima com eles, assim como você!

O velho atarracado se protegia, com seu cacheado cabelo cinza movendo-se lenta e nervosamente, e agarrando o punho de sua espada embainhada, embora ele ainda não tenha invadido o castelo.

- Conserve sua vida por um momento, Alranius. Eles precisarão de uma barba grisalha pra governar este castelo, quando ele cair.

De repente, ele parou.

- Malditos idiotas, aquela escada é curta!

Da meia-dúzia de escadas de assédio na muralha, a mais próxima da principal torre de guarda do castelo estava num ângulo muito horizontal, ou outra havia escorregado para fora do lugar, na inclinação rochosa. Seu topo estava à distância de um homem abaixo das entalhadas estruturas com ameias dos muros, as quais se erguiam quatro vezes aquela altura sobre a inclinação com feno. Apesar disso, os rebeldes se aglomeravam cegamente, apenas para encontrarem uma impossível e fatal distância entre o degrau mais alto e o parapeito. Eles e os atacantes, que se moviam em redemoinhos sob eles, estavam sob feroz bombardeio de pedras, dardos e flechadas, tanto do alto do muro quanto da torre circular do castelo.

- Agora, cães, por Dagda e Mannanan! Abram caminho até o topo e varram aqueles vermes da muralha!

Praguejando enquanto curvava seu arco, Conan habilmente flechou um dos guardas que arremessavam pedras nos rebeldes próximos à torre. Os defensores na muralha, percebendo isso, se amontoaram atrás das ameias. Um dos fazendeiros se ergueu precariamente no degrau do topo da escada e esticou-se para subir o parapeito. Um braço blindado, brandindo uma maça, estendeu-se para arrebentar-lhe os miolos. Conan trespassou o braço com uma flecha, mas não antes do rebelde cair verticalmente, sem sentidos, sobre as cabeças de seus companheiros.

- Pelos cães-de-caça de Crom! – praguejou o cimério. – Eles não vão conseguir! Um quinto do nosso exército está parado bem abaixo da torre, esperando pra ser massacrado feito gado! E os covardes no alto da muralha nem vão se mostrar!

De fato, os defensores moíam os escaladores com alabardas e piques, de trás das ameias, privando os arqueiros de seus alvos. Em outros lugares, alguns poucos rebeldes estavam pesadamente organizados no alto da muralha, fazendo tudo, menos o impossível, para encontrarem um alvo em meio à luta. Frustrado, Conan arremessou o arco para um lado e lançou-se para a frente.

- Agora, Alranius. Se você quer ação, siga-me! Vamos estripar este tirano do leste e seu bando traiçoeiro!

Correndo pelo campo acidentado, e pulando fossos e corpos flechados, o guerreiro logo deixou os homens mais velhos para trás. Uma ocasional farpa de flecha cortava o solo durante sua passagem, mas muitos dos defensores estavam ocupados com problemas mais próximos. A luta prosseguiu implacável, misturando o clangor metálico, quebrado por gritos ocasionais, de medo ou de agonia mortal. Visto de perto, o castelo erguia-se contra as brilhantes montanhas do sul. Suas fendas para flechas e suas janelas cuspiam morte impessoal e anônima.

- Ei, seus cães, saiam da frente! Deixem seu mestre de batalha passar!

Abrindo caminho aos empurrões entre os fazendeiros, com seus escudos erguidos, caminhando sobre corpos caídos e pedras pesadas, Conan encontrou seu caminho para a base da dupla escada de mão. Seus lados estavam numa depressão, a três passos da base da muralha íngreme. Havia sitiadores nos degraus, seu avanço para o alto parou; eles se defendiam desajeitadamente, incapazes de recuar pra baixo, por causa da pressão dos atacantes por trás.

- Desça, companheiro! – berrou Conan, abruptamente, agarrando um tornozelo. – Vocês, pulem daí! Venham e fiquem sob isto. Precisamos suspendê-la contra o muro.

Inclinando-se para a base da escada de mão, o gigante cimério fincou seus pés calçados por botas e começou a levantar. A larga escada era pesada, assim como os cinco ou seis rebeldes que ainda se agarravam aos seus degraus superiores – robustos fazendeiros, armados e usando armaduras. Outras mãos calejadas apressavam-se em ajudar, embora fosse principalmente o cimério de juba negra quem retesasse seus grossos músculos e erguesse, esfregando as extremidades das vigas através da rocha e em seguida grunhindo uma ordem de arrastar o peso mais para cima. De cima, no início, vieram ruídos de estonteada incerteza, e depois, de exultação e o retinir de machados, enquanto diminuía a distância entre sitiantes e defensores.

- Para o alto agora, cães! Pela glória! Ataquem a muralha!

Liderando pelo exemplo, Conan agarrou os degraus e se moveu para cima entre a multidão, empurrando para trás escaladores mais lentos no caminho. Ele seguiu diretamente para cima, diante das ásperas e irregulares rochas, borrifadas de sangue, do castelo, até que o entalhe do vão da porta chegasse ao alcance do braço. O rebelde logo adiante dele estava pesadamente fortificado: uma valente fazendeira, brandindo um machado de madeira a um lado da escada de mão. Conan chegou um momento tarde demais, e viu o peito dela ser atravessado por uma longa lança. Com um estridente grito de desafio, ela agarrou a lança num sangrento espasmo de dor, e puxou-a enquanto caía para trás. Por um momento, o cimério admirou a bravura da kothiana; somente as mulheres cimérias conseguiam fazer isso. Logo, Conan aproveitou a vantagem momentânea e se arremessou em linha reta sobre o alto da escada e para dentro do vão da janela.

Os guardas, agachados a ambos os lados, pularam ao seu encontro. Ao invés de lançar-se para a frente, ele ergueu-se, dando cobertura aos escaladores que vinham atrás dele. Espada e machado apareceram em seus punhos e fustigaram a torto e a direito, enquanto ele habilmente desviava as armas, mais longas e mais desajeitadas, dos defensores. Conan investiu e se contorceu, esquivando-se de punhaladas e da varredura de aço ensangüentado, até perceber mais rebeldes atrás de si e ouvir seus gritos rudes de ânsia por batalha. Então, com facilidade felina, ele se lançou para dentro do círculo mortal de piques e alabardas. Ele espetou um dos guardas sanguinários com sua espada; o outro, ele derrubou do parapeito, usando a parte lateral de seu machado.

Seu impulso o levou, em linha reta, através da torre circular, quase para o final da torre de menagem. Esta ligação com o muro ameiado, através de um único arco, mal chegava à altura do ombro do enorme cimério. A porta já estava trancada – um resistente painel de madeira, que Conan imediatamente mandou para os ares com seu machado. Talhando com ferozes golpes de ambas as mãos, ele soltou uma longa e pálida lasca de madeira. Então, ele se apoderou de um pique de aço abandonado e pôs-se a usá-lo, esforçando-se para livrar todas as tábuas livres dos corpos flechados.

- Conan, cuidado!

Respondendo ao grito, ou talvez a um sexto sentido, o agigantado cimério se arremessou no espaço da abertura. Enquanto isso, um enorme peso caiu em frente à porta, lançando faíscas, lascas de pavimentação e o penetrante odor de pederneira queimada. Era um espigão de pedra, certamente lançado do alto da torre, atirado violentamente pelos defensores.

Felizmente, a pedra manteve seu formato oblongo; três rebeldes corpulentos, avançando voluntariamente para a frente, pegaram-na e a colocaram nas proximidades, usando-a como aríete contra a madeira estilhaçada da porta.

Conan, estatelando-se contra o homem de barba grisalha chamado Alranius, puxou e esticou para reaver seu machado:

- Você não perdeu tempo em entrar na rixa, velho homem! Obrigado pelo aviso.

- Eu quero você em boa forma também – assegurou-lhe o líder rebelde. – Eu ouço nossos lutadores terem tudo, menos limpado a muralha e obtido a liberdade, mas precisamos ajudar a tomar a fortaleza interna e libertar os reféns. Lembre-se que minha filha está nas garras do Barão Alias.

Mesmo enquanto ele falava, a porta da torre cedeu diante da série de ataques furiosos. O primeiro rebelde a abrir caminho entre os escombros foi perfurado pela seta de uma balestra, caindo morto para trás. Mas ele foi rapidamente puxado para um lado, para dar caminho a outros, com Conan pressionando logo atrás.

A luta dentro do castelo foi furiosa: uma agitada perseguição ao longo de escadas sinuosas e corredores apertados, uma sucessão de portas arrombadas e duelos cegos de espadas em câmaras escuras.

A trilha sangrenta levava para cima e se retirava finalmente para a ofuscante luz do dia, no mais alto parapeito do castelo. Lá, contra a luz enevoada de vales exuberantes, contrafortes escarpados e picos nevados, estava o Barão Alias entre as vigas de um teto, com o último de seus defensores. Segura à frente dele, estava a refém escolhida para garantir-lhe a liberdade em caso de derrota: a bela Berenice, filha do líder rebelde Alranius.

- Então, rebeldes... – o suserano estrangeiro desafiou-lhes, em sua rude reprodução oriental da língua Kothiana. – Vocês tomaram meu castelo, e sem dúvida esperam me matar ou me enfiar em correntes!

Folgando seu capacete manchado de vermelho, ele o lançou descuidadamente para o lado, mostrando sua cabeça de cabelos curtos e seu semblante aquilino de guerreiro.

- Vocês acham mesmo que o rei, em Khorshemish, irá apoiar a derrota de um dos barões que ele nomeou? Ou que ele hesitará em mandar tropas, bigas e catapultas para arrasar este lugar?

- Um nobre que não consegue tomar conta de seus próprios domínios, tem poucos amigos na corte – comentou rispidamente Conan. – E, menos ainda, o rei, que confiou imprudentemente nele. Parece-me que seu chefe real não tem mais amor por um barão espoliador e ladrão do que seus vassalos.

- É isso aí! – afirmou Alranius com firmeza, atrás de Conan. – Sua derrota ensinará a realeza de Khorshemish a não colocar kothianos leais sob o jugo de estranhos, das fronteiras distantes do reino: despóticos sem lei!

A estas palavras, um grito de aplauso subiu dos rebeldes aglomerados sobre o alto da torre, e que ocupavam a passagem inferior. A selvageria do grito fez os homens do barão firmarem suas armas num aperto mais tenso, enquanto permaneciam em sua diminuída metade do parapeito. Os dois lados estavam prontos para recomeçar a batalha. Conan, por sua vez, abaixou-se para pegar um curto arco kothiano, caído junto com um punhado de flechas, perto do alçapão.

- O rei em questão pode ainda ser informado!

O acento áspero do Barão Alias subjugou o tumulto, mesmo quando este ameaçava irromper numa luta desimpedida. Ele segurou com mais firmeza a cativa à sua frente:

- Uma coisa é certa... – ele prosseguiu, desafiador – Antes que me peguem, esta bela garota morre! Ela é sua filha, não é, Alranius?

O barão, tendo agarrando a jovem mulher pelos cabelos escuros, torceu-lhe cruelmente o antebraço para trás e empurrou o corpo dela por cima das ameias. Firmando-se precariamente contra a estrutura, o barão rosnou:

- A menos que me prometa passagem livre pra fora do castelo, com armas e cavalos para meus homens, eu irei arremessá-la para a morte! Você deseja isso?

- Se ele conseguir convencer o rei primeiro – avisou uma voz atrás de Alranius –, poderá haver uma armada imperial em nossas fronteiras, dentro de duas semanas!

- Pense, milorde... – sussurrou outro, cautelosamente – O cão deve ser silenciado! Então teremos pelo menos uma chance!

Alias sorriu para seu quase-usurpador, com os lábios finos se estirando, mais pálidos que seus dentes amarelos a rangerem:

- Bem, escudeiro, qual a sua decisão? Tenho seu juramento?

Alranius, com o rosto congelado e contraído sob as mechas grisalhas, não disse nada.

- Mate todos eles e acabe com isso! – resmungaram vozes entre os rebeldes. – Se Ishtar quiser, a garota será poupada.

- Sim – disse outro. – Lance os canalhas para longe das ameias!

- Sim, pai. Ouça-os e deixe-me morrer!

A jovem Berenice, debatendo-se ferozmente nos braços do Barão Alias, fazia o seu melhor esforço virginal para se lançar pra um lado e, se possível, arrastar seu perseguidor para diante dela.

- Minha morte vale a vida da província – ela argumentou, com suas palavras terminando num meio-soluço.

- Bem, honesto Alranius? – zombou o Barão Alias, com seu esgar lupino. – Seus súditos falaram de seus desejos, até para sua própria descendência! Você é mesmo um leal servo da vontade de seu povo? Devo deixá-la ir, para que possamos lutar como homens?

Pálido pela incerteza, Alranius não disse nada. Ele não poderia deixar de reconhecer este astuto desafio e suas possíveis conseqüências para seu governo – embora a vida de sua filha, sua querida herdeira, fosse um preço muito grande pra pagar.

- Você deve escolher – insistiu o conselheiro mais próximo de Alranius. – E sua escolha deve ser feita para o bem da província!

Finalmente, Conan, que esperava silenciosamente, viu sua chance. Enquanto a encouraçada guarda do barão se deslocou para o lado, o cimério soltou a corda do arco que ele puxara até a cintura. Sua flecha bateu na estrutura onde as pernas do Barão Alias estavam firmadas. O barão olhou rapidamente para baixo, momentaneamente irritado, e então se defendeu – exatamente da segunda flecha de Conan, a qual voou entre os guardas, mesmo eles tendo formado fila para proteger seu senhor. Ela bateu em linha reta, dentro da mal-barbeada garganta de Alias, logo acima da proteção de aço em seu pescoço.

A força da flecha que o perfurou fê-lo cair para trás, desaparecendo, sem um gemido, para trás da beirada do parapeito. A jovem Berenice caiu junto com ele, mas foi pega por sua fina saia de lã – a qual a primeira flecha de Conan havia prendido à resistente estrutura. Enquanto ela se agarrava ali, de cabeça pra baixo, uma falange de rebeldes impacientes lançou-se para a frente e derrubou os surpresos defensores pra um lado. Agarrando Berenice e arrastando-a para cima, eles deixaram-na soluçando entre os braços do pai.

Lá, os dois se abraçaram, enquanto ao redor deles, em meio ao retinir e ressoar do aço, a luta terminava. Os sons finais da batalha foram gritos de vingança, longos choros baixos e o ranger de armas de aço prateado, enquanto os últimos defensores restantes foram arremessados sobre os lados das torres.

- Muito obrigado, Conan – disse Alranius, quando tudo terminou. – Você nos ajudou de inúmeras formas desde o início desta revolta, mas essa foi a mais notável. Nós ficamos eternamente em débito com você.

- Não “eternamente”, eu espero. Prometeram-me uma parte da pilhagem do velho barão, lembra?

Enquanto o gracejo saltava-lhe dos lábios, seus olhos fitaram os da bela moça Berenice. Ela deu-lhe apenas o mais breve piscar de agradecimento, antes de voltar para um grupo de bravas agricultoras, que apressadamente mandaram-na para o andar de baixo.

- Agora é hora de celebrar a vitória. – disse Conan a Alranius, enquanto seguiam-na – E para se estabelecer, é claro. Diga-me, escudeiro... ou devo dizer barão... qual o tamanho das adegas de vinho de seu castelo? No saque do leste de Zamora, em nossa época de Companheiros Livres, nos divertimos e bebemos por três dias e três noites, antes de você retornar à sua terra natal.

- Comemorar, sim, de todos os modos.

Conduzindo para o andar de baixo, Alranius sacudiu solenemente a cabeça:

- Mas haverá tanto dor quanto alegria entre nosso povo, eu temo. Eles perderam muitos amigos e parentes hoje.

Conan encolheu os ombros.

- Seu povo perdeu amigos, é verdade. Mas, pelas minhas contas, perderam muito mais inimigos. Sua causa ganhou por um preço baixo.

- Ainda assim, grandes desafiadores jazem adiante... aqueles que mandariam um generoso tributo ao rei, para ganhar sua aprovação como provincianos da corte.

- Restaurar boa parte do que Alias roubou garantiria isso – disse Conan.

- De qualquer modo, preciso ver se eles encontraram os demais reféns – disse Alranius, preocupado. – Ishtar seja louvada se eles ainda estiverem vivos!

- Se estiverem, haverá ainda mais motivos para celebração – disse Conan, pensativo.

Eles viram muitos rostos exultantes e encolerizados, em sua descida pelo castelo. Os camponeses já haviam colocado homens de confiança nos corredores, para prevenir pilhagens, enquanto outros resolviam retirar os corpos e limpar o sangue. Armas e armaduras eram empilhadas e inventariadas, e um fosso incendiário foi cavado diante do portão para fazer disposição final do velho barão e suas tropas.

Nos nobres aposentos do castelo, guardas rebeldes olhavam desconfiados uns para os outros, através das ricas mobílias. Uma mesa coberta por comida estava quase arrumada; o generoso desjejum certamente não fora comido. Ao lado de alguns sinais de luta, tapeçarias bordadas, espelhos de prata, utensílios dourados e belas estátuas permaneceram intocados.

- Eu mal consigo acreditar na honestidade de seus homens – disse Conan a Alranius, enquanto avaliava as riquezas.

- Nós somos fazendeiros devotos – disse o novo barão –, e não uma turba ignorante. Nossos chefes são prudentes e severos, e eles são obedecidos.

- Aqui está o vinho, finalmente – disse Conan, dirigindo-se, a passos largos, para a mesa e enchendo uma taça com uma garrafa alta. – Ahhh, que delícia! Matança é um trabalho que dá sede. Será que a sala do tesouro do velho Alias é longe daqui? Talvez estas moças saibam, se ninguém souber.

Conan voltou sua atenção para duas mulheres vestidas de seda, que se escondiam num sofá num canto do aposento. Tendo falhado em ganhar a simpatia dos jovens fazendeiros rebeldes enviados para lá, as duas ficaram caladas e constrangidas. Agora, elas procuravam a ajuda de Conan, um tipo de homem que elas reconheciam.

- Elas são as prediletas do barão – comentou Alranius. – Concubinas, nada mais; pagas, como seus mercenários. Suas famílias, provavelmente, devem tê-las rejeitado. Eu tenho dúvidas com relação à segurança delas, se alguma de nossas honestas fazendeiras encontrá-las aqui.

Conan olhou ponderadamente as duas por um momento, surpreso com a vingança que elas talvez pudessem tomar contra o matador de seu lorde anterior. Mas, quando informadas por Alranius sobre o resultado da batalha, elas não protestaram aborrecidas, nem se afligiram demais, mas pareciam apenas preocupadas com suas sortes.

Conan, de fato, já vira muitas mulheres como aquelas, dóceis instrumentos das circunstâncias.

- Por agora – ele garantiu a Alranius –, pode deixá-las sob minha proteção. Venham, garotas, e me contem sobre os modos do primeiro amo de vocês.


Em pouco tempo, as donas de casa do Barão Alias dirigiram seus conquistadores ao tesouro dele, e então à sala secreta onde o restante dos reféns foi encontrado, ainda com vida. Uma reunião de vitória foi anunciada para a noite, e um ensopado rude, porém abundante, cozinhava na copa. Sob ordem de Alranius, o principal salão de banquete teve as mobílias retiradas, em preparação de um círculo de aprimoradas danças populares.

O vinho fluía moderadamente entre os fazendeiros, contudo, e Conan se deixou levar para o andar de cima, onde o estoque particular de bebida e comida permanecia intocado. Ele levou consigo as duas cortesãs, de nome Lilit e Thelia. Elas já tinham sido amplamente mal-acolhidas e desprezadas pelas mais virtuosas mulheres do grupo.

Seguiu-se uma refeição pausada, com os três deitando-se num largo sofá, enquanto bebericavam e mordiscavam várias iguarias da mesa ao lado. A meio caminho da noite, Lilit fez uma pergunta:

- Me diga, Conan, por que você não empurra Alranius para um lado e se declara barão? Alguém tão imponente quanto você poderia facilmente tomar conta deste castelo e protegê-lo dos outros.

Conan sacudiu preguiçosamente a cabeça.

- Não, garota, não há um lugar verdadeiro para mim aqui. Eles desconfiam de estranhos, como você sabe. Mesmo que eu me saísse bem no começo, eles iam querer se erguer e me destituir mais tarde, como fizeram com seu avarento lorde anterior. E eu prefiro uma boa luta rápida a uma longa tirania enfadonha.

- Mas eles resistem a uma chance? – opôs-se Thelia. – Seria o velho Alranius um governador suficientemente perspicaz?

- Quem pode saber? – Conan deu de ombros, e então riu em voz alta. – Se ele não for forte o bastante, talvez sua filha Berenice seja!

Quando a noite finalmente substituiu os sangrentos trabalhos do dia e as bebedeiras do entardecer, a cama nos aposentos baroniais foi macia e espaçosa o bastante, para os prazeres e sono de Conan e das duas belas mulheres. Se eram os nauseantes movimentos de fantasmas, ainda não completamente separados dos cadáveres que jaziam chacinados no pátio inferior do castelo; ou os roncos das duas que dormiam perto, ou ainda alguma impureza nos ricos fermentos e destilações que Conan bebera... O cimério se viu presa de sonhos diversos.

Durante o sono, misturadas com imagens daquele dia turbulento – o áspero despertar e a preparação das tochas, de manhã cedo; a mancha violenta da investida que foi o ataque ao castelo, o ruído dissonante e o gorgolejar de vidas derramadas em sangue e trevas no interior dos corredores de pedra –, ele também viu cenas de seu passado remoto, montanhas cobertas de gelo e vales verdes; campos de batalhas marcados pelo fogo e luxuriantes cidades do sul, com suas enormes muralhas rodeadas por torres. Ele viu amigos e inimigos, também; figuras de uma centena de raças, bem talhadas em sua lembrança; o fruto poliglota de uma juventude passada em longas viagens.

Ele também viu uma bela e voluptuosa guerreira loira, lutando nas tavernas das Ilhas Barachas, bem como na fronteira sul da Stygia e na cidade perdida de Xuchotl. Também a viu lutar em armadura, num rico e poderoso reino hiboriano do ocidente, e ficou intrigado com aquela cena, nunca vista antes. Então, o cimério percebeu que estava sonhando.

Acordando abruptamente, como todos do seu povo, Conan virou-se para a linda ophiriana Thelia, já acordada.

- Tem certeza de que não vai ficar por aqui, talvez como principal defensor do novo Barão? – ela perguntou.

- Não, os camponeses vão querer se ver livres de mim o mais breve possível. Essa gente rural e pacífica não confia em guerreiros... quando não somos necessários para o trabalho pesado, é claro.

Conan se moveu para trás, contra os travesseiros de seda.

- Alranius me pegou para guiar sua rebelião, não seu governo.

- Você se sente indesejado, como nós duas – suspirou a shemita Lilit. – Haverá pouca paz para nós aqui. Estou com medo.

- Então cavalguem comigo, vocês duas – disse Conan, pondo os braços em volta de ambas. – Digam-me, vocês já viajaram para o norte, em direção à Aquilônia?

* * *

Na manhã seguinte, Alranius e seus tenentes bateram à porta de Conan. Eles sentiram certa apreensão em redor de seu objetivo, que era tirá-lo dos aposentos baroniais, entregar-lhe o pagamento e mandá-lo embora. Francamente, se o guerreiro estrangeiro não quisesse ir, lhes custaria caro fazê-lo.

Cozinheiros apreensivos os informaram então, que o cimério já havia se levantado – antes do amanhecer, na verdade –, feito ruídos na copa com as duas ex-amantes do barão anterior, e partido com elas na primeira luz do dia.

Alranius e seus oficiais ficaram ansiosos, até determinarem que os fugitivos haviam levado apenas três pares de cavalos, um suprimento de comida e aproximadamente a parte combinada do tesouro do castelo. Estabelecido isto, sua reação em comum foi um suspiro de alívio.

FIM



Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Ricardo Highlander, de Brasília – DF, e Deuce Richardson, dos EUA.



A Seguir: A Caminho do Trono.




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