(por Fernando Neeser de Aragão)
Um navio
negro, com proa em forma de dragão, singra as águas azuis dos mares que banham
os Reinos Negros. Os corpos dos corsários mortos haviam sido lançados no mar. Conan
já havia vingado as mortes dos argoseanos, que foram assassinados a mando da
pirata que agora descansa a linda cabeça sobre seu peito encouraçado – o
desejo, desperto pela dança do acasalamento de Bêlit, havia sido tão forte, que
o cimério não tivera tempo de se despir completamente.
Os ancestrais de
Bêlit – reis destronados de Asgalun (ou Askalon, na pronúncia da líder da
tripulação) – haviam fundado uma colônia na Costa Negra, mas mantiveram seu sangue
sem miscigenação com o dos negros. Contudo, eles haviam adotado muitos dos
costumes dos nativos – como a escassa roupa de Bêlit e sua habilidade em usar a
lança. Já o uso do arco foi herança de seus ancestrais shemitas, bem como sua
dança de acasalamento.
Quanto ao Tigresa, este era um navio stígio,
roubado por Bêlit e seus corsários. Os corsários de Bêlit – originários das
ilhas do sul – têm feições mais retas, cabelos mais lisos e membros mais longos
e bem-proporcionados que a maioria dos negros que Conan conhecera até então.
Sem seu cocar
emplumado, o velho N’Yaga mostra ter uma enorme e alta cabeleira crespa, em
contraste com seu nariz relativamente fino – este último, uma herança do povo
de pele marrom que outrora havia subjugado os negros das ilhas do sul, assim como
a outras terras ao sul dos Reinos Negros, antes de serem expulsos por seus
ex-vassalos de pele de ébano.
Súbito, a Rainha da Costa Negra
quebra o silêncio, dirigindo-se a Conan:
- Há quatro anos, a tripulação do Tigresa
era de mais de 200 piratas. Eu havia ouvido rumores de uma cidadela arruinada numa
praia perto daqui, e achei que pudesse haver um tesouro escondido nela. Eu e 50
de meus corsários seguimos uma velha trilha, com a ajuda de guias locais, os
quais deixaram que eu e meus homens entrássemos nas ruínas, antes que negros
nativos começassem a nos trucidar. Devia haver 500 ou 600 deles. Eles nos
procuraram por entre as paredes sem teto, e então nos atacaram; e outros
pularam as paredes atrás de nós e nos eliminaram. Eu, Ajonga e N’Gora fomos os
únicos a escaparem, abrindo nosso caminho até a praia, onde Yasunga, Laranga e
os 150 corsários restantes nos aguardavam. Zarpamos e conseguimos fugir.
“Recentemente, soube que uns 300 daqueles cães vivem na cidade de
Abombi, como mercenários dos reis gêmeos de lá”.
- E onde fica essa tal Abombi? – pergunta Conan, ansioso por batalha e
saque.
- A poucos dias de viagem para o norte. Mas, primeiro, vamos às ilhas
do sul, para repor alguns dos corsários mortos – responde a pirata de 30 anos,
despindo a malha metálica do cimério, e o beijando e abraçando novamente
naquele convés, tomada mais uma vez pelo desejo e despertando de novo a libido
de seu companheiro.
* * *
As regras de
Bêlit aos tripulantes são: todos têm direito a uma ração diária e bebida à
vontade, exceto se houver necessidade de racionamento; o tripulante que roubar
a ordem pirata é exilado numa ilha ou cabo deserto, com apenas uma espada e uma
garrafa de água, cabendo a ele sobreviver ou morrer de fome; quem largar o
navio durante um combate tem a mesma punição dos ladrões, e brigas a bordo são
proibidas, devendo ser resolvidas num duelo em terra firme.
Semanas depois, o Tigresa chega
às praias da mais setentrional das ilhas do sul. Aquela costa é um paraíso.
Conan vê os coqueirais se estendendo ao longo da praia de areia dourada. Vê o
mar chegando até a areia em suaves ondas, espalhando a espuma branca e tênue.
Vê meninos cor de ébano subindo nos coqueirais, e olha com cobiça as desnudas
mulheres nativas, a carregarem vasos de argila nas cabeças e filhos amarrados
às costas, em portas-bebê feitos de couro.
Uma das nativas lava o rosto no rio próximo a uma aldeia. Como todas,
ela também tem o torso nu. Conan contempla discretamente – para que Bêlit não
perceba – o perfil curvo e tenso da espádua, a pele negra cintilando de suor,
os dois seios pendendo sobre a água, salpicados de gotas cristalinas. Ela vira
o rosto e sorri para ele; é uma jovem felina, mostrando dentes brancos,
inocentes e carnívoros. É uma das filhas de N’Yaga.
A jovem, de nome N’Unna, sabendo que aquele estranho forasteiro é
companheiro de Bêlit, prepara um banho e um almoço de boas-vindas ao casal de
piratas brancos.
* * *
Dias depois, com a tripulação do Tigresa
devidamente preenchida por novos corsários, Bêlit e sua tripulação desembarcam
ao norte, a menos de 5 km
da cidade de Abombi, e contornam um morro, a fim de cortarem caminho para a cidade.
Apreensivos, por saberem que leões perambulam por aquele local, os corsários
negros assumem uma formação mais coesa e diminuem a velocidade de seu avanço.
Na retaguarda, Bêlit, irritada, grita ordens para que os negros mantenham sua
velocidade normal. O olhar de sombrio de Conan para trás, na vanguarda e
andando de forma resoluta e sem medo, reforça mais ainda as ordens da
rainha-pirata e os ensina a respeitarem e temerem seus líderes mais do que a
qualquer leão.
Súbito, um deles aparece – provavelmente desgarrado de seu bando –,
urrando e com sua juba soprada pelo vento. Os corsários param e assumem
novamente uma formação coesa, enquanto o cimério ruge como em resposta ao leão,
e avança até o felino, brandindo a larga espada azulada.
Quando o gato
gigante se lança em sua direção, com as presas e garras à mostra, Conan, sem
diminuir a velocidade de sua corrida, gira a espada para o lado direito e, com
ambas as poderosas mãos agarrando o cabo, gira a lâmina sibilante de um lado a
outro dos olhos esmeraldas do leão que investe contra ele, esfacelando o crânio
do felino – uma tarefa nada difícil para quem havia matado, há alguns anos, um
leão que se aproximara silenciosamente dele por trás, na Torre do Elefante. O
corpo do leão cai sobre o solo, sendo empurrado logo após para um lado pelo
blindado cimério. Os negros são uma raça que já era antiga, antes que o
primeiro rei branco trançasse o teto de palha de sua cabana de barro coberta
com varas de vime. Mas Conan não é meramente um selvagem como os corsários
negros; o cimério é parte dos elementos selvagens e indomáveis da vida. Em suas
veias corre o sangue de uma matilha de lobos, em seu cérebro se escondem as profundezas
meditativas da noite do norte, e seu coração pulsa com o fogo de uma floresta
em chamas.
Os corsários, acostumados a se juntarem uns aos outros e se aproximarem
lentamente, para depois atirarem suas lanças contra um leão, ficam estupefatos
com a maneira simples e direta como Conan matou aquele felino, bem como com a
demonstração de força e agilidade do bárbaro de olhos azuis à frente deles, e
começam a gritar “Amra! Amra!”, em homenagem à façanha de seu co-líder,
enquanto correm e investem contra os portões de Abombi, cujos muros e portões
finalmente surgem no horizonte da savana.
10 km portões, e protegida
por uma vala de um metro e meio de profundidade, preenchida com um denso crescimento
da espinhosa acácia, a qual serve de defesa àquela fortaleza. Dentro das
muralhas, aldeias são separadas por áreas, o Palácio do Rei Ajaga – um
guerreiro negro, que fundara aquela cidade, séculos atrás, e a tornara
independente do Império Kushita (este último, outrora três vezes maior que o
reino atual de Kush) –, um mercado local e uma grande praça que contém as
barracas. Abombi se baseia no culto à realeza, estruturado em sacrifícios –
inclusive humanos, em altares de bronze –, e aos antepassados dos monarcas
gêmeos. Toda a terra ao redor é propriedade dos reis, que coletam tributos de
todas as colheitas obtidas.
Com a ajuda de
pranchas e os escudos erguidos para o alto – para se protegerem das flechas que
são lançadas dos muros de Abombi – Conan, Bêlit e os corsários negros transpõem
as valas e, disparando flechas contra as sentinelas no alto das muralhas, começam
a usar aríetes para arrombar os portões da cidade.
Conan, com um
aperto no coração, vê que nada pode deter sua implacável Bêlit e os corsários.
A porta da primeira casa é derrubada a pontapés e golpes de lança. Bêlit fica
na retaguarda, disparando suas flechas contra os guerreiros que investem na
direção dos corsários negros e, quando as mesmas acabam, ela atira sua lança no
inimigo mais próximo e permanece em compasso de espera, enquanto Conan vai à
frente dos lobos-do-mar. Os gritos de pânico a saírem das casas incendeiam o
ânimo dos piratas negros. Mulheres histéricas são arrastadas para o meio da
rua. Bancos de madeira, plumas de avestruz, roupas e peles de animais começam a
ser despejadas pelas janelas e portas. Garrafas de cerveja nativa e sacos de
milho e batata-doce são arrastados dos mercados e barracas. Grupos de corsários
passam brandindo as lanças e perseguindo pessoas aterrorizadas. Mulheres nuas
conseguem, mais por sorte que por habilidade, furar o cerco e fugir, com seus
filhos bebês para o mato.
De repente, as aoshi – guerreiras da cidade de Abombi –
saem às dezenas do Palácio, gritando e brandindo suas armas. As aoshi eram,
inicialmente, recrutadas entre as centenas de esposas reais. Com o tempo,
mulheres comuns da sociedade abombi passaram a alistar-se voluntariamente, ao
passo que outras tantas eram recrutadas à força, bastando para isso que seus
pais ou maridos reclamassem ao rei sobre seu comportamento. A adesão às
fileiras das mulheres guerreiras tem como principal finalidade a lapidação de
qualquer traço de caráter agressivo para os combates. Durante o período de
engajamento, as aoshi não
podem ter filhos nem a rotina de uma mulher casada. Muitas delas são virgens. O
regimento tem um status semi-sagrado,
entrelaçado com as crenças abombis.
Os treinamentos
delas dão ênfase aos intensos exercícios físicos e à disciplina. Ao final
deste, elas recebem o armamento: espadas, porretes e facas. As unidades também são
comandadas por mulheres. Seus prisioneiros são freqüentemente decapitados. E
dizem que a prova principal para ser aceita como membro do corpo de elite é decapitar
um homem e beber o seu sangue.
Com uma chuva de
flechas, metade das guerreiras aoshi
é exterminada pelos corsários; a outra metade é morta no corpo-a-corpo por
golpes implacáveis das lanças daqueles lobos da costa meridional, e a espada de
Conan dá cabo da vida das poucas que tentam lhe matar.
Súbito, num momento em
que Conan e seus corsários negros estão ocupados demais para
verem Bêlit, uma negra alta e forte aproveita que a Rainha da Costa Negra ficou
na retaguarda, e sai correndo de uma das cabanas, com os olhos reluzindo de
ódio, e agarra a rainha-pirata pelo pescoço com as duas mãos. Com sua adaga
fora de alcance por ter acabado de arremessá-la num guerreiro abombi, Bêlit se
defende segurando os braços de ébano da mulher seminua, a fim de aliviar a
asfixia. Desesperada e sentindo sua resistência diminuir, a pirata agarra o
pescoço da negra e a empurra para dentro da choupana de onde esta saíra, indo
ambas cair sobre a cama da mulher.
Bêlit tem sorte: cai por cima da adversária e aproveita para acertar
uma joelhada em cada um dos negros seios nus daquela nativa de Abombi, de modo
que esta, sentindo terrível e intensa dor, lhe solta o pescoço. Antes que sua
antagonista se recupere, Bêlit pisa no pescoço da mulher e a estrangula com a
sola da sandália de couro, até matá-la. Saindo da cabana, a rainha-pirata
recupera sua adaga e retorna ao ataque.
As casas começam a ser incendiadas sob as ordens de Bêlit e N’Gora. O
sapé que cobre as cabanas faz fumaça e se transforma em enormes labaredas. Um
tipo diferente de grito angustiado começa a cortar os ares, quando abombis
ainda vivos passam a ser lançados nas gigantescas fogueiras das cabanas. O
cheiro de carne queimada enche o ar.
Conan, matando e saqueando, cansa de gritar aos seus corsários; cansa
de impedir assassinatos de gente inocente e se dirige ao Palácio do Rei Ajaga.
Seguindo as ordens de Bêlit, de não poupar os negros que haviam traído a pirata
anos antes, o cimério e seus corsários matam todos os homens que se encontram
dentro do palácio real – agora que as aoshis
foram exterminadas. Os 300 mercenários, que agora compõem a guarda pessoal dos
reis de Abombi, opõem sua resistência final àqueles piratas e a seu líder blindado
de pele branca. Apesar da superioridade numérica da guarda particular dos reis
da cidade – a qual torna a luta acirrada –, a habilidade lanceira dos
corsários, aliada ao férreo e não menos habilidoso espadachim a quem todos
agora chamam de Amra – e cuja ira é maior que a de um leão ferido –, vai, pouco
a pouco, favorecendo o cimério e seus piratas.
A visão daquele gigante bronzeado e vestido em metal, quase
invulnerável, matando os melhores guerreiros da cidade e sendo chamado
repetidamente de Amra, assusta, não penas a população de Abombi, mas até mesmo
os reis de lá, os irmãos Dadokonou e Tebgessou; mas
este último não se intimida e sai do palácio, desafiando o bárbaro para um
duelo. Conan sai dali – agora que a vingança de Bêlit estava concluída – e
responde ao desafio, investindo contra o líder negro.
Assim como seu irmão gêmeo, Tebgessou é tão alto e musculoso quanto
Conan, e já havia participado de incontáveis batalhas. Não havia homem nos Reinos
Negros que conhecesse a esgrima mais profundamente que ele. Mas jamais
enfrentara uma lâmina manejada por braços tão fortes, forjados nas terras
selvagens das florestas sombrias e montanhosas do norte. Contra a sua arte de
espadachim, coloca-se uma estonteante velocidade e força. A maneira de Conan
lutar não obedece a ordens ou regulamentos, mas é tão instintiva e natural
quanto os movimentos de um lobo da floresta. Lutando como jamais lutou antes,
Tebgessou usa cada gota de sua força para resistir à lâmina que brilha como um
relâmpago sobre sua cabeça lanosa e, desesperado, apara um violento golpe com a
base da espada, bem perto do cabo. A lâmina de bronze da espada daquele rei de Abombi
não resiste ao azulado aço aquiloniano da espada de Conan e se quebra, ao mesmo
tempo em todo o braço musculoso do negro adormece com a força da terrível
pancada. E o golpe é instantaneamente seguido de outro, no qual a ponta afiada
da espada de aço lhe atravessa as costelas e penetra fundo o coração do abombi,
como se este fosse feito de papel.
Os lábios grossos de Tebgessou se contorcem em breve agonia, mas não
emitem nenhum som. Ele está morto antes que seu corpo amoleça sobre o chão de
terra batida. Assistindo àquilo tudo de dentro da porta do palácio, e vendo que
é um dos poucos sobreviventes do ataque a Abombi e que não tem a menor condição
de vingar o irmão morto, Dadokonou consegue fugir para o norte, desaparecendo de vista na savana.
Após matar o rei Tebgessou, Conan encontra, dentre os três
primeiros corpos de vítimas inocentes, uma criança, um velho e uma moça. Estão
caídos a poucos metros uns dos outros. A criança e o velho foram retalhados e
tiveram morte instantânea. A moça ainda vive. Levou um golpe de lâmina aoshi, apanhada por um dos corsários
negros, da têmpora à mandíbula, e outro no pescoço, além de flechadas nos
braços, com os quais tentara se defender. A jovem movimenta convulsivamente o
queixo. Quer falar, mas só se ouve um estranho ruído incompreensível. Perde
muito sangue. Para poupá-la de uma longa agonia, Conan lhe encerra o sofrimento
com um golpe certeiro de sua espada. Um bebê abombi também agoniza mortalmente,
e o cimério faz o mesmo, abreviando a agonia do recém-nascido com o mesmo golpe
que dera na moça moribunda, momentos antes.
Embora as vidas daquelas mulheres e crianças negras pesem na
consciência de Conan, ele sabe que matá-las rapidamente – como ele o fez sob o
comando de Bêlit – foi uma bondade maior do que deixar aquelas viúvas e órfãos
à mercê da savana e de seus predadores, ou deixá-los agonizando durante horas.
* * *
Após ter se lavado – juntamente com Conan – nas águas do rio que
banhava a agora destruída Abombi, Bêlit volta, com o cimério, os corsários
negros e o saque da cidade, para o Tigresa.
Enquanto Conan e os negros recebem os curativos necessários, a líder pirata
mais uma vez tira os ornamentos, as sandálias e o saiote de seda, para lançar
tudo aos pés de Conan – este agora despido de sua cota-de-malha. E, mais uma
vez, ela dança para seu amado. Os quadris, ventre e nádegas de Bêlit parecem
copular com o vazio, e logo ela faz numerosas acrobacias cheias de sensualidade
sobre o chão de tábuas do Tigresa,
com os volumosos seios esféricos saltando junto com ela, e o rosa de sua vulva,
envolta por negros pêlos pubianos, contrastando com o branco de sua pele.
Para Conan, não poderia haver vida melhor: os ricos sucos das carnes
vermelhas e o vinho picante em seu paladar, enquanto assiste à dança; o aperto
quente de braços brancos como o marfim, a loucura do triunfo da batalha, quando
as lâminas azuladas queimam e são tingidas de vermelho – isso é o suficiente
para alegrar o bárbaro. Então, com um grito selvagem, Bêlit se atira de joelhos
aos pés do cimério. O luar ilumina a forma branca e nua de Bêlit, abraçada ao
desnudo corpo moreno de Conan – ambos tomados pela loucura do desejo. O bárbaro
a agarra, aperta e conquista, puxando a alma de sua amada para os lábios com a
ferocidade de seus beijos ardentes.
FIM
Agradecimentos especiais: Aos
howardmaníacos e amigos Ricardo Medeiros, de Brasília (DF); Mark Singleton e
Deuce Richardson, dos EUA, e Al Harron, da Escócia.