A Princesa Escrava (fragmento/sinopse)

(por Robert E. Howard)


1)

Lá fora, o clamor era ensurdecedor. O ruído de aço com aço, misturado com gritos de sede de sangue e gritos de triunfo selvagem. A jovem escrava hesitava e olhava ao redor da sala onde se encontrava. Havia resignada impotência em seu olhar. A cidade havia caído; os turcomanos embriagados de sangue cavalgavam pelas ruas, queimando, saqueando e massacrando. A qualquer momento, ela poderia ver os vitoriosos selvagens correndo, com mãos ensangüentadas, pela casa de seu dono.

De outra parte da casa, um mercador gordo veio correndo. Seus olhos estavam arregalados de terror, e ele respirava ofegante. Ele trazia pedras preciosas e bugigangas sem valor nas mãos – pertences agarrados cegamente e ao acaso.

- Zuleika! – sua voz era o guincho de uma doninha numa armadilha – Abra a porta, rápido; e depois tranque-a deste lado... fugirei pelos fundos. Por Alá! Os demônios turcos estão matando a todos nas ruas... as sarjetas estão ensangüentadas...

- E quanto a mim, meu amo? – a garota perguntou humildemente.

- Quanto a você, vadia? – gritou o homem, batendo violentamente nela – Abra a porta; abra a porta, estou lhe dizendo... ahhhhhh!

Sua voz ficou quebradiça como gelo. Através de uma porta externa, veio entrando uma figura selvagem e medonha – um turcomano peludo e esfarrapado, cujos olhos eram os de um cão louco. Zuleika, em terror congelado, viu os grandes olhos que miravam ferozmente, o cabelo escorrido e a lança curta agarrada por uma mão com pingos escarlates.

A voz do mercador se ergueu a um guincho desvairado. Ele correu desesperadamente para atravessar a sala, mas o homem tribal pulou como um gato sobre um rato, e uma mão magra agarrou as vestes do mercador. Zuleika assistia em horror mudo. Ela tinha motivos para odiar o homem – motivos de afronta, castigo e indignidade –, mas, no fundo do coração, ela sentiu pena do infeliz uivante, quando ele se contorceu e encolheu diante de seu destino. A lança rasgou para cima; os gritos cessaram num terrível gorgolejo. O turcomano deu um passo sobre a horrível coisa vermelha sobre o chão e se aproximou da jovem aterrorizada. Ela recuou, muda. Sozinha, ela havia percebido a crueldade do homem e a inutilidade de suplicar. Ela não implorou por sua vida. O turcomano a agarrou pelo peito da única roupa sumária que ela usava, e ela sentiu aqueles selvagens olhos bestiais arderem para os dela. Ele estava arrebatado demais pelo desejo de matança, para que ela lhe despertasse outro desejo em sua alma selvagem. Naquele momento rubro, ela era apenas uma coisa viva, pulsante e que latejava com vida, para ele silenciar para sempre em sangue e agonia.

Ela procurou fechar os olhos, mas não conseguiu. Numa clara luz branca de semi-desinteresse, ela deu boas-vindas à morte, para terminar uma estrada que havia sido dura e cruel. Mas sua carne se encolhia do destino que seu espírito aceitara, e somente o aperto de seu atacante a manteve ereta. Com um esgar de lobo, ele encostou a ponta afiada da lança contra o peito dela, e um pequeno fio de sangue brotou da pele delicada. O homem tribal inspirou em êxtase feroz; ele enfiaria a lâmina devagar, gradualmente, torcendo-a de forma torturante, saciando sua crueldade nas contorções agonizadas e gritos de sua bela vítima.

Um passo pesado soou atrás deles, e uma voz áspera praguejou numa língua não-familiar. O turcomano girou, com a barba eriçada num rosnado feroz. A garota semi-desmaiada cambaleou para trás, contra um divã, sua mão no peito. Era um franco encouraçado, que havia adentrado a sala e, para o olhar aturdido da jovem, ele avultava como um gigante vestido em ferro. Ele tinha mais de um metro e oitenta de altura, e seus ombros e membros vestidos de aço eram poderosos. De seus calcanhares até seu pesado elmo sem viseira, ele estava compactamente encouraçado, e suas feições bronzeadas e cicatrizadas se somavam à importância sinistra de sua aparência. Não havia uma mancha de sangue em sua malha, e sua espada lhe pendia embainhada no cinto. A jovem sabia que ele só poderia ser um homem: Cormac FitzGeoffrey, o fora-da-lei franco que, às vezes, caçava com a matilha turcomana.

Agora, ele andava a passos largos e pesados em direção a eles, rosnando um aviso para o guerreiro, cujos olhos ardiam com uma luz feroz. O turcomano cuspiu uma praga e saltou como um lobo, arremetendo ferozmente. Um braço vestido em cota-de-malha pôs a lança de lado e, quase com o mesmo movimento, Cormac agarrou o pescoço do turcomano com a mão esquerda, num aperto semelhante ao de um torno, e, com a cerrada mão direita, acertou sua vítima com um golpe semelhante ao de uma marreta na têmpora. Sob o punho encouraçado, o crânio do homem tribal partiu como uma abóbora, e Cormac deixou o cadáver contorcido cair descuidadamente aos seus pés. Zuleika ficou calada, a cabeça baixa em submissão, como se resignada a este novo mestre tanto quanto ao outro, mas o franco não mostrou sinais de reivindicar sua presa. Ele se afastou, com um único olhar casual para a garota, e então parou bruscamente, quando seu breve olhar descansou no pálido rosto dela. Seus olhos se estreitaram, e ele se aproximou dela. Ela se erguia diante dele, como uma criança diante de seu volume ofuscante.

Ele pôs a mão encouraçada sobre seu ombro delicado, e os joelhos dela se dobraram sob o peso involuntário dele. Ela ergueu a cabeça para olhar o rosto dele. Seus ardentes olhos azuis lhe pareciam os de um animal da selva.

- Garota, qual o seu nome? – ele ribombou em Árabe.

- Zuleika, senhor. – ela respondeu na mesma linguagem,

Ele estava calado, como se ponderando. Seu rosto cicatrizado era inescrutável, mas ela percebeu o novo brilho de seus olhos vulcânicos. Sem uma palavra, ele a ergueu com o braço esquerdo, como um homem faria com um bebê. Sua cativa não exprimiu protesto, enquanto ele a carregava para a rua. Sorte. Nenhuma mulher sabia qual Destino estava reservado para ela, e Zuleika havia aprendido submissão numa escola amarga.

A fumaça era soprada pelas ruas em rajadas intermitentes; os turcomanos estavam queimando a cidade. Os prantos de terror e agonia, e os gritos de fúria exultante, ainda se erguiam. Cormac caminhou sobre o corpo de um judeu que jazia numa poça escarlate. Zuleika percebeu, com um tremor, que os dedos haviam sido decepados – mesmo na morte, o judeu se agarrava aos seus tesouros mesquinhos. Uma onda de náusea rolou sobre ela, e ela pressionou o rosto contra o ombro encouraçado de seu captor, impedindo a entrada das visões de horror. Um súbito grito feroz a fez erguer o olhar novamente.

Cormac caminhava em direção a um enorme garanhão negro, de aparência selvagem, que estava com as rédeas penduradas na rua; e um guerreiro alto, usando elmo com pluma de garça e malha lavrada a ouro, corria em sua direção, agarrando uma cimitarra gotejante. Zuleika percebeu que o guerreiro a desejava e, mesmo naquele momento, sentiu que ele estava disposto a disputar a posse de uma escrava com o sombrio franco, quando muitas mulheres poderiam ser tomadas. Cormac a mudou de posição, de modo que seu corpo protegesse o dela, e desembainhou sua pesada espada. Quando o guerreiro deu um salto, o franco golpeou como um leão, e a cabeça do turcomano rolou sobre a poeira ensangüentada. Chutando o corpo caído para um lado, Cormac alcançou seu cavalo, o qual empinava e bufava com as narinas alargadas diante do cheiro de sangue. Mas nem a impaciência de seu cavalo, nem sua cativa, tolheram o franco, que montou facilmente na sela e galopou em direção aos portões despedaçados.

A fumaça, o sangue e o clamor desapareciam lá atrás, e o deserto em terreno elevado aparecia ao redor deles. Zuleika ergueu o olhar para o rosto sombrio e inescrutável de seu novo amo, e uma estranha fantasia lhe cruzou o pensamento. Qual garota nunca sonhou em ser levada na sela de seu príncipe de romance? Assim Zuleika sonhara em outros tempos. Longo sofrimento a havia limpado de amargura, mas ela se surpreendia indefesa diante do capricho do acaso. “Ela foi levada na sela do cavalo”; mas suas roupas não eram as túnicas de uma princesa, e sim a veste de uma escrava; nem ela cavalgava ao ritmo das harpas, mas ao de uivos penosos de horror e massacre; e seu captor não era o príncipe de seus sonhos infantis, mas um sombrio fora-da-lei, duro e selvagem como a terra montanhosa que o gerou.


2)

O castelo do Senhor Amory ficava em meio a uma terra selvagem. Construído originalmente pelos cruzados, caíra nas mãos dos seljúcidas, dos quais havia sido novamente tomado pela astúcia e desesperada coragem de seu atual dono. Era um dos poucos domínios em terras desoladas que restavam dos francos; um posto avançado que se erguia corajosamente numa terra hostil. Havia léguas de distância entre a fortaleza de Amory e o mais próximo castelo cristão. Ao sul ficava o deserto. A leste, pelas areias, se erguiam as montanhas selvagens onde se escondiam inimigos ferozes.

A noite havia caído, e Amory se sentava numa sala interna, ouvindo atenciosamente o seu convidado. Amory era alto, esguio e belo, com agudos olhos cinzas e cachos dourados. Suas roupas outrora haviam sido ricas e suntuosas, mas agora estavam desgastadas e desbotadas. As jóias que outrora adornavam o cabo de sua espada haviam sumido. A pobreza se refletia tanto em seu vestuário quanto no próprio castelo, o qual era improdutivo além do normal, mesmo dos castelos feudais daqueles dias rudes. Amory vivia do saque, como vive um lobo; e, como um lobo do deserto, sua vida era magra e dura.

Ele se sentava no banco tosco, o punho no queixo, e olhava para seus convidados. Seu castelo era um dos poucos abertos para Cormac FitzGeoffrey. A cabeça do fora-da-lei tinha um preço, e as magras fortalezas dos francos de Outremer estavam trancadas para ele; mas aqui, além da fronteira, ninguém sabia o que estava acontecendo naquela propriedade isolada.

Cormac saciava sua sede e fome, com gigantescos goles de vinho e pedaços enormes de carne, arrancados pelos seus dentes fortes de um quarto de animal assado, e Zuleika também havia comido e bebido. Agora a jovem se sentava pacientemente, sabendo que os guerreiros discutiam a respeito dela, mas sem entender sua língua francônica.

- E então – Cormac dizia –, quando ouvi que os turcomanos haviam sitiado a cidade, cavalguei duro para chegar lá, sabendo que ela não resistiria a eles por muito tempo, com aquele idiota do Yurzed Beg comandando as muralhas. Bem, ela caiu antes que eu pudesse adentrá-la; os homens do deserto a haviam despojado... os sortudos pegaram todo o saque que viram, e os outros queimavam os dedos dos pés dos citadinos, para fazerem-nos dar suas riquezas secretas... mas encontrei esta garota.

- E quanto a ela, então? – perguntou Amory, curioso – Ela é linda... vestida em roupa rica, ficaria ainda mais bonita. Mas, apesar de tudo, ela é apenas uma escrava seminua. Ninguém pagará muito por ela.

Cormac sorriu friamente, e o interesse de Amory se avivou. Ele havia tido muitas negociações com aquele guerreiro irlandês e sabia que, quando Cormac sorria, havia coisas em marcha.

- Já ouviu falar em Zalda, a filha do sheik Abdullah bin Kheram, dos Roualli?

Amory balançou a cabeça afirmativamente, e a jovem, compreendendo as palavras árabes, ergueu o olhar com súbito interesse.

- Ela estava prestes a ser casada, há três anos – disse Cormac –, com Khelru Shah, chefe de Kizil-hissar, mas um bando errante de curdos a raptou, e desde então, nenhuma palavra mais foi ouvida sobre ela. Sem dúvida, eles a venderam no Leste distante... ou cortaram a garganta dela. Você nunca a viu? Eu vi... essas mulheres beduínas andam sem véu. E esta jovem árabe, Zuleika, se parece com a princesa Zalda o bastante para ser irmã dela, por Crom!

- Começo a lhe entender. – disse Amory.

- Khelru Shah – disse Cormac – pagará um enorme resgate por sua noiva. Zalda era de sangue nobre... casar-se com ela significa aliança com os Roualli... o sheik é mais poderoso que muitos príncipes... quando ele chama seus guerreiros, os cascos de 3000 corcéis estremecem o deserto. Embora ele more nas tendas de feltro dos beduínos, seu poder é grande e sua riqueza também. Nenhum dote deve ir junto com a princesa Zalda, mas Khelru Shah pagaria pelo privilégio de se casar com ela... aqueles selvagens Rouallas têm este orgulho.

“Mantenha a jovem árabe aqui com você. Cavalgarei para Kizil-hissar e darei minhas condições ao turco. Deixe-a bem escondida e não deixe nenhum árabe vê-la... ela pode ser confundida de fato com Zalda, e se Abdullah bin Kheram vir a saber disso, ele pode lançar contra nós um exército capaz de tomar o castelo de assalto.

“Se eu cavalgar sem pausa, posso alcançar Kizil-hissar em três dias; não gastarei mais do que um dia em discussão com Khelru Shah. Se eu conheço o homem, ele cavalgará comigo para cá, com vários milhares de homens. Alcançaremos este castelo em não mais do que quatro dias após partirmos da cidade das colinas. Deixe os portões bem trancados na minha ausência, e não cavalgue para muito longe daqui. Khelru Shah é tão astuto e traiçoeiro quanto...”.

- Você mesmo. – completou Amory, com um sorriso sombrio.

Cormac grunhiu.

- Quando chegarmos, cavalgaremos até as muralhas. Então, traga a escrava árabe para cima dos muros da torre... em algum lugar, você deve conseguir achar roupas mais adequadas a uma princesa cativa. E a convença de que ela deve se comportar, pelo menos enquanto estiver no muro, com menos humildade. A princesa Zalda era orgulhosa e soberba como uma imperatriz, e se comportava como se todos os seres inferiores fossem pó sob seus pés brancos. Agora cavalgarei.

- No meio da noite? – perguntou Amory – Não vai dormir em meu castelo e cavalgar ao amanhecer?

- Meu cavalo está descansado. – respondeu Cormac – Nunca me canso. Além disso, sou um falcão, que voa melhor à noite.

Ele se levantou, colocando seu gorro de malha na cabeça, juntamente com o elmo. Pegou seu escudo, o qual trazia o símbolo de uma caveira sorridente. Amory olhava curioso para ele e, embora conhecesse o homem há muito tempo, ele não poderia fazer mais do que se maravilhar diante do espírito selvagem e da auto-suficiência que o capacitavam a cavalgar à noite através de uma terra selvagem e hostil, para dentro das próprias fortalezas de seus inimigos naturais. Amory sabia que Cormac FitzGeoffrey fora proscrito pelos francos por matar um certo nobre, que ele era ferozmente odiado pelos sarracenos e tinha meia dúzia de rixas pessoais em suas mãos, tanto com cristãos quanto com muçulmanos. Tinha poucos amigos, nenhum seguidor e nenhuma posição de poder. Era um exilado, que dependia de sua própria inteligência e bravura para sobreviver. Mas estas coisas se ajustavam tranqüilamente na alma de Cormac FitzGeoffrey; para ele, eram apenas circunstâncias naturais. Toda a sua vida havia sido de incrível selvageria e violência.

Amory sabia que as condições na terra natal de Cormac eram selvagens e sangrentas, pois o nome da Irlanda era uma expressão de violência em toda a Europa Ocidental. Mas quão turbulentas e sacudidas pela guerra eram essas condições, Amory não podia saber. Filho de um impiedoso aventureiro normando de um lado, e de um feroz clã irlandês do outro, Cormac FitzGeoffrey havia herdado as paixões, ódios e antigas rixas de ambas as raças. Ele havia seguido Richard da Inglaterra até a Palestina e ganhou um nome sangrento para si mesmo na cega batalha daquela Cruzada vã. Retornando novamente para Outremer para pagar uma dívida de gratidão, ele havia sido pego no turbilhão cego de conspiração e intriga, e havia mergulhado no jogo perigoso com feroz deleite. Cavalgava quase sempre só e, repetidas vezes, seus muitos inimigos pensavam tê-lo capturado, mas ele escapava a cada vez, por habilidade e astúcia, ou pela pura força de seu braço da espada. Pois ele era como um leão do deserto, este gigante normando-gaélico que conspirava como um turco, cavalgava como um centauro, lutava como um tigre sedento de sangue e pilhava os mais fortes e ferozes lordes de terras estrangeiras.

Ele cavalgou totalmente encouraçado noite adentro em seu grande garanhão negro, e Amory voltou sua atenção casual para a jovem escrava. As mãos dela estavam sujas e ásperas devido à labuta servil, mas eram esguias e bem-feitas. Em algum lugar de suas veias, julgou o jovem francês, corria sangue aristocrático, o que se mostrava na delicada textura de pétala de rosa na pele dela, na textura sedosa de seu ondulado cabelo negro e na profunda maciez de seus olhos escuros. Toda a herança quente do deserto do Sul era evidente em cada movimento dela.

- Você não nasceu escrava?

- O que isso importa, senhor? – ela perguntou – Basta que eu seja uma escrava agora. Melhor nascer para os chicotes e correntes, do que ser domado por eles. Outrora fui livre; agora sou escrava. Não é o bastante?

- Uma escrava. – ele murmurou – O que são os pensamentos de um escravo? Estranho... nunca me ocorreu pensar no que se passa na mente de um escravo... ou de um animal também, no que diz respeito ao assunto.

- Melhor um cavalo de um homem do que o escravo de um homem, senhor. – disse a garota.

- Sim. – ele respondeu –, pois há nobreza num bom cavalo.

Ela curvou a cabeça e entrelaçou as mãos, muda.


3)

O anoitecer escurecia as colinas, quando Cormac FitzGeoffrey cavalgou até o grande portão de Kizil-hissar, o Castelo Vermelho, o qual dava seu nome à cidade à qual guardava e dominava. Os guardas – turcos magros e barbados, com olhos de falcão – praguejaram espantados.

- Por Alá e por Alá! O lobo veio colocar a cabeça na armadilha! Corra, Yaser, e conte ao nosso lorde, Suleyman Bey, que o cão infiel, Cormac, está diante dos portões.

- Ei, você aí sobre os muros! – gritou o franco – Diga a seu chefe que Cormac FitzGeoffrey gostaria de conversar com ele. E se apresse, pois não sou de perder tempo.

- Distraia-o com conversa por apenas um momento. – murmurou um mulçumano, se agachando atrás de um bastião e armando sua balestra, um maciço objeto tomado dos francos – Vou mandá-lo para vestir seu escudo no Inferno.

- Pare! – disse um barbado, velho e magro falcão, cujos olhos eram ferozes e desconfiados – Quando este chefe cavalga ousadamente até as mãos de seus inimigos, esteja certo de que ele tem forças secretas. Espere até Suleyman chegar. – Para Cormac, ele gritou de forma cortês: – Tenha paciência, poderoso lorde; o príncipe Suleyman Bey já foi enviado, e logo estará sobre os muros.

- Então, que ele chegue logo. – rosnou Cormac, que não tinha mais respeito por um príncipe do que por um camponês – Não o aguardarei por muito tempo.

Suleyman Bey chegou ao alto das grandes muralhas, e desceu o olhar curiosa e desconfiadamente sobre seu inimigo.

- O que queres, Cormac FitzGeoffrey? – ele perguntou – Você é louco, para cavalgar sozinho até os portões de Kizil-hissar? Já esqueceu que existe rixa entre nós? Que eu havia jurado decepar seu pescoço com minha espada?

- Sim, você o jurou – sorriu Cormac –, e assim juraram Abdullah bin Kheram, Ali Bahadur e o curdo Abdallah Mirza. E assim, em anos passados e em outra terra, juraram Sir John Courcey, o clã dos O’Donnels e Sir William Le Botelier, mas ainda conservo minha cabeça firmemente sobre meus ombros.

“Escute até eu lhe contar o que tenho a dizer. Então, se você ainda quiser minha cabeça, saia de seus muros de pedra e veja se sois homem o bastante para pegá-la. Isto diz respeito à princesa Zalda, filha do Sheik Abdullah bin Kheram – maldito seja o nome dele!”.

Suleyman Bey se enrijeceu com súbito interesse; ele era um homem alto e esbelto, jovem e belo de forma aquilina. Sua curta barba negra contrastava com suas feições aristocráticas, e seus olhos eram delicados e expressivos, com sombras de crueldade ocultas em suas profundezas. Seu turbante era coberto por gemas douradas. O cabo de sua cimitarra delgada e lavrada a prata era incrustado por jóias brilhantes. Suleyman era jovem, mas poderoso, na cidade da montanha, sobre a qual ele investira com seus falcões poucos anos antes e se fez governante. Ele poderia trazer 600 guerreiros para a batalha, e ansiava por mais poder. Por essa razão, ele havia desejado se aliar à poderosa tribo Roualla de Abdullah bin Kheram.

- O que tem a princesa Zalda? – ele perguntou.

- Ela é minha prisioneira. – respondeu Cormac.

Suleyman Bey se sobressaltou violentamente, sua mão agarrou o cabo da espada e logo ele riu em sarcasmo:

- Você mente; a princesa Zalda está morta.

- Assim pensei. – respondeu Cormac com franqueza – Mas, durante o ataque-surpresa à cidade, eu a encontrei cativa de um mercador que não conhecia sua verdadeira identidade, pois ela a escondera, temendo que um mal ainda maior caísse sobre ela.

Suleyman Bey ficou pensativo por um momento, e logo ergueu sua mão.

- Abram os portões para ele. Entre, Cormac FitzGeoffrey; nenhum dano lhe acontecerá. Ponha sua espada no chão e entre.

- Usei minha espada na tenda de Richard Coração de Leão. – rugiu o normando – Quando eu a desabotoar dentro das muralhas de meus inimigos, será quando eu estiver morto. Destranquem esses portões, idiotas; meu corcel está cansado.


Dentro de uma sala interna com cortinas de seda escarlate, cristal, ouro e madeira de teca, Suleyman Bey ouvia, sentado, seu convidado. O rosto do jovem chefe era inescrutável, mas seus olhos escuros estavam empolgados. Atrás dele se erguia, como uma imagem escura, Belek, o egípcio, braço-direito de Suleyman, um homem grande, escuro e forte, com um rosto satânico e olhos perversos. De onde ele veio, quem era e por que seguia o jovem turco, ninguém sabia, exceto Suleyman; mas todos o temiam e odiavam, pois, no cérebro insondável do egípcio, havia a astúcia e crueldade de uma serpente negra.

Cormac FitzGeoffrey havia posto seu elmo de lado e lançado para trás o gorro de malha, descobrindo o grosso pescoço musculoso e sua negra cabeleira de corte reto. Seus vulcânicos olhos azuis ardiam ainda mais ferozmente quando ele falava.

- Uma vez com a princesa Zalda em suas mãos, você pode entrar num acordo com o Sheik. Ao invés de pagar a ele um grande valor por ela, você pode obrigá-lo a lhe pagar um dote. Ele prefere vê-la como sua esposa, mesmo às custas de muito ouro, do que como sua escrava. Uma vez casando-a, ele unirá forças com você. Você terá tudo o que planejou há três anos, adicionado ao rico dote do Sheik.

- Por que não cavalgou até ele, ao invés de mim? – perguntou abruptamente Suleyman.

- Porque você tem as coisas que eu e meu amigo desejamos. Abdullah é mais poderoso que você, mas o tesouro dele é menor. Muitos dos pertences dele consistem em gado, cavalos, armas, tendas, terras... os pertences de um chefe nômade. Aqui no seu castelo, você tem baús de moedas de ouro, pilhados de caravanas e tomados como resgate de cavaleiros cativos. Você tem gemas, prata, sedas, especiarias raras, jóias. Você tem o que eu desejo.

- E qual prova tenho eu de que você não está mentindo?

- Cavalgue conosco amanhã – grunhiu Cormac – até o castelo de meu amigo.

Suleyman riu como um lobo rosnando.

- Você quer nos guiar para dentro de uma armadilha. – disse o egípcio.

- Traga 3 mil homens com você, traga quantos homens você quiser, todo o bando de ladrões. – disse Cormac – Onde você acha que eu conseguiria guerreiros suficientes para emboscar todo o seu exército?

- Onde ela está detida? – perguntou o seljúcida.

- No castelo do Sieur Amory, a três, quatro dias, de cavalgada para oeste. – disse Cormac – Você jamais conseguiria tomá-lo de assalto.

- Não tenho certeza. – murmurou Suleyman – O lorde Amory tem apenas 40 guerreiros.

- Mas o castelo é inexpugnável.

- Assim já ouvi.

Os olhos do egípcio se estreitaram.

- Poderíamos lhe capturar e segurar em troca de um resgate – ele sugeriu –, e forçar o Sieur Amory a devolver a garota.

Cormac riu selvagem e zombeteiramente:

- Amory riria de você e lhe diria para cortar minha garganta e se danar, ou cortaria a garganta da garota se quisesse. Além disso, embora eu esteja em seu castelo, cercado por seus guerreiros, não estou totalmente indefeso. Tente me pegar, e inundarei estas paredes com sangue antes de morrer.

Não era bazófia vã, como os muçulmanos bem sabiam.

- Chega! – Suleyman fez um gesto impaciente – Prometo-lhe segurança... o que foi?

Um tumulto havia surgido lá fora: briga, gritos, ameaças e maldições na língua Árabe. A porta externa foi aberta bruscamente, e um turco barbado, o qual vigiava a porta, entrou, arrastando uma vítima que se debatia e cuja barba estava eriçada de cólera. Ele agarrava firmemente um pacote, o qual expelia várias bugigangas e ornamentos.

- Encontrei este cão se esgueirando numa sala adjacente, senhor. – ribombou o guarda – Parece-me que ele estava escutando a conversa. Devo cortar fora a cabeça dele?

- Sou Ali bin Nasru, um mercador honesto! – gritou o árabe, com raiva e medo – Sou bem conhecido em Kizil-hissar! Vendo utensílios para os xás e sheiks, e eu não estava escutando a conversa. Acaso sou um cão, para espionar meu patrão? Eu estava procurando o grande chefe Suleyman Bey, para mostrar minhas mercadorias a ele!

- Melhor cortar a língua dele. – grunhiu Belek – Ele pode ter escutado demais.

- Não ouvi nada! – gritou Ali – Cheguei ao castelo agora há pouco!

- Expulsem-no daqui. – Suleyman Bey disse bruscamente, irritado – Será que vou me aborrecer com os ganidos de um vira-lata? Expulsem-no com chibatadas e, se ele voltar com o lixo dele, arranquem sua roupa e o pendurem pelos pés na praça do mercado, para as crianças atirarem pedras nele. Cormac, cavalgaremos ao nascer do sol e, se você tiver me enganado, faça suas pazes com Alá!

- E, se você tentar me enganar – rosnou Cormac –, faça suas pazes com o Demônio, pois você logo o encontrará.

Já era mais de meia-noite, quando uma figura descia cuidadosamente por uma corda pendurada na muralha externa da cidade. Descendo apressadamente as inclinações, o homem logo chegou a um matagal, onde um camelo veloz estava escondido em segurança, juntamente com uma trouxa grande – pois o homem não confiava todos os seus pertences a uma cidade governada por turcos. Lançando indiferentemente o embrulho para o lado, ele montou no camelo e fugiu para o sul.


4)

Amory descansava o queixo no punho e olhava pensativo para a jovem árabe Zuleika. Nos últimos dias, ele percebera seus olhos se demorando freqüentemente em sua esguia cativa. Ele se assombrava com o silêncio e a submissão dela, pois sabia que, em certa época de sua vida, ela havia conhecido uma posição mais elevada que a de uma escrava. Seus modos não eram os de alguém que nasceu escrava; ela não era atrevida nem servil. Ele pensou vagamente na escola cruel e feroz, na qual ela fora quebrada – não, não quebrada, pois havia nela uma estranha e profunda força, a qual não fora tocada; ou, se fora, apenas ficou mais flexível.

Ela era bonita – não com a beleza passional e feroz das turcas que haviam dado a ele seu amor selvagem, mas com uma beleza profunda e tranqüila, de alguém cuja alma fora forjada em fogos ferozes.

- Conte-me como você se tornou uma escrava. – A voz era de comando, e Zuleika entrelaçou os dedos em submissão.

- Nasci entre as negras tendas de feltro do sul, mestre, e passei minha infância no deserto. Todas as coisas eram livres... no início de minha mocidade, eu era orgulhosa, pois os homens me diziam que eu era bonita, e muitos pretendentes vinham me cortejar. Mas vieram outros, também... homens que cortejavam com aço nu, e me raptaram.

“Eles me venderam a um turco, o qual logo se cansou de mim e me vendeu a um escravista persa. Assim, cheguei à casa do mercador da cidade, e lá trabalhei penosamente, uma escrava entre as mais baixas escravas. Meu mestre uma vez me ofereceu liberdade, se eu o amasse, mas eu não podia. Meu corpo era dele; meu amor, ele não poderia algemar. Então, ele fez de mim seu burro de carga”.

- Você aprendeu profunda submissão. – comentou Amory.

- Por açoite, grilhões, tortura e labuta, eu aprendi, mestre. – ela disse.

- Sabe o que pretendemos fazer com você? – ele perguntou abruptamente. Ela sacudiu a cabeça.

- Cormac acha que você se parece com a princesa Zalda – disse Amory –, e nossa intenção é trapacear Suleyman Bey com você. Nós lhe mostraremos a ele na muralha, e acho que ele pagará um alto preço por você. Quando lhe tivermos entregado a ele, você terá sua chance. Jogue bem suas cartas, e talvez você possa encantá-lo, de modo que, quando souber de nossa fraude, ele não lhe ponha de lado.

Mais uma vez, os olhos de Amory passearam sobre sua forma esbelta. Um pulsar começou a tamborilar em sua têmpora. Por enquanto, ela era dele; por que ele não poderia tomá-la, antes de entregá-la aos braços de Suleyman Bey? Havia aprendido que, o que um homem quer, ele deve tomar. Com uma única e longa passada, ele a alcançou e colocou entre os braços. Ela não ofereceu resistência, mas se desviou do rosto dele, recuando a cabeça de seus lábios ferozes. Seus olhos escuros miraram os dele com uma profunda dor, e subitamente ele se sentiu envergonhado. Ele a soltou e deu as costas.

- Há algumas roupas que eu comprei de um bando errante de ciganos. – ele disse abruptamente – Vista-as; ouço uma trombeta.

Pelo deserto, uma trombeta ecoava fracamente. Amory alinhava seus homens em completa armadura nas muralhas, com armas nas mãos, quando o cavaleiro se dirigiu até o portão do castelo, o qual era flanqueado por uma torre.

Amory os saudou. Ele viu Suleyman Bey em elmo de pluma de garça e malha de escamas douradas, sentado em sua égua negra. Bem próximo a ele, Belek do Egito montava um cavalo baio e, ao lado do chefe, Cormac FitzGeoffrey em seu grande garanhão. E Amory arreganhou os dentes. Não era estranho ver o homem cavalgando na companhia daqueles que haviam jurado cortar o pescoço deste? Uns três mil cavaleiros estavam enfileirados atrás do líder.

- Ah, Amory! – disse Cormac – Traga a princesa... que ela seja mostrada sobre o muro da torre, e Suleyman Bey seja convencido; ele pensa que somos mentirosos, pelos cascos do Demônio!

Amory hesitou, enquanto uma súbita repulsa o sacudia; então, com um encolher de seus ombros, ele fez um gesto para seus guerreiros. Zuleika foi escoltada para o alto do muro sobre o portão, e Amory ofegou. Roupas ricas haviam causado uma transformação na jovem escrava; de fato, ela as usava como se nunca houvesse vestido os frágeis farrapos de uma escrava. Ela não se portava com o orgulho soberbo de uma princesa, pensou Amory, mas havia certa dignidade calma nela, certa humildade orgulhosa que muitos de sangue real mal poderiam copiar.

Suleyman Bey também ofegou; ele a fitava perplexo e cavalgou para mais perto.

- Por Alá! – ele disse, pasmo – Zalda! É ela? Não... sim... por Asrael, não sei dizer! Ela não anda de queixo erguido, como fazia, se for ela; e, no entanto... no entanto... pelos deuses, deve ser ela!

- Com certeza, é a princesa Zalda! – retumbou Cormac – Por Satã, você acha que os francos não têm palavra? Bem, chefe, o que diz? Ela vale dez mil peças de ouro para você?

- Espere. – respondeu o turco – Preciso de tempo para refletir. Esta jovem é idêntica à princesa Zalda... mas toda a sua postura é diferente... Preciso me convencer. Deixe-a falar comigo.

Amory acenou com a cabeça para Zuleika, que lhe lançou um olhar lastimoso, e logo, erguendo a voz:

- Milorde, eu sou Zalda, filha de Abdullah bin Kheram.

Mais uma vez, o turco sacudiu sua cabeça de falcão:

- A voz é suave e melodiosa como a de Zalda, mas o tom é diferente... a princesa estava acostumada a dar ordens, e seu tom era autoritário.

- Ela foi uma escrava. – grunhiu Cormac – Três anos de cativeiro podem mudar até mesmo uma princesa.

- Verdade... bem, eu cavalgarei até a fonte de Mechmet, que fica a pouco mais de uma milha daqui, e acamparei lá. Amanhã voltarei e conversaremos sobre o assunto. Dez mil peças de ouro... um preço alto a ser pago, até mesmo pela princesa Zalda.

- Muito bem. – grunhiu Cormac – Vou permanecer no castelo... e atenção, Suleyman: sem truques. À primeira insinuação de um ataque noturno, cortaremos o pescoço de Zalda e lançaremos a cabeça dela para você. Cuidado!

Suleyman balançou a cabeça com a mente distraída, e se afastou a cavalo, à frente de seus cavaleiros, em intensa conversa com Belek, do rosto escuro. Cormac cavalgou para dentro do portão, o qual foi instantaneamente barrado e trancado atrás dele, e Zuleika deu a volta para ir ao seu quarto. Sua cabeça estava curvada e suas mãos entrelaçadas; ela assumia novamente os modos de escrava. Mas ela parou por um momento diante de Amory e, em seus olhos escuros, havia uma profunda mágoa, quando ela disse:

- Vai me vender a Suleyman, meu senhor?

Amory corou sombriamente – há anos que o sangue não lhe ruborizava o rosto desta forma. Ele tentou responder e procurou palavras. Inconscientemente, sua mão encouraçada procurou-lhe o ombro esguio, meio carinhosamente. Então, ele se sacudiu e falou asperamente, por causa das estranhas emoções em conflito dentro dele:

- Vá para seu quarto, rapariga! Que lhe interessa o que estou fazendo?

E, enquanto ela ia, a cabeça afundada no peito, ele ficou olhando atrás dela, cerrando os punhos encouraçados até os dedos estalarem, e se amaldiçoando desconcertadamente.


5)

Cormac FitzGeoffrey e Amory se sentavam numa câmara interna, embora fosse tarde da noite. Cormac estava com armadura completa, exceto pelo elmo, assim como Amory. Os gorros de malha de ambos os homens estavam puxados sobre seus ombros, revelando os cachos amarelos de Amory e a cabeleira preta e lustrosa de Cormac. Amory estava silencioso e taciturno; bebia pouco e falava ainda menos. Cormac, por outro lado, estava num espírito de total satisfação. Ele bebia intensamente, e sua gratificação o levava a um humor retrospectivo.

- Guerras e batalhas amontoadas, eu já vi em abundância. – ele disse, erguendo seu grande copo de vinho – Sim! Lutei na batalha de Dublin quando eu tinha apenas oito anos, pelos cascos do Diabo! Miles de Cogan e seu irmão Richard defendiam a cidade para Strongbow... homens de ferro numa era de ferro. Hascuf Mac Turkill, Rei de Dublin, que havia sido empurrado para dentro das Órcades, veio navegando pela praia com 65 navios... galés dos pagãos escandinavos, cujo chefe era o berserk Jon o Louco... e ele era louco, pelos cascos de Satã! Assim, Hasculf voltou para ganhar sua cidade novamente, com os dinamarqueses, dano-irlandeses, e seus aliados da Noruega e das Ilhas.

“A notícia da guerra chegou oeste adentro, onde eu era um garoto, correndo seminu pelas urzes, na terra dos O’Briens. Tínhamos um guerreiro cujo nome era Wulfgar, e ele era um escandinavo. ‘Darei mais um golpe pelo povo do mar’, ele disse, e seguimos através dos pântanos e brejos, como lobos, e fui com ele e com meu arco de menino, pois o anseio por perambulação e sangue já existia em mim. Assim, atacamos de surpresa a praia de Dublin no momento em que a batalha estava unida. Por Satã, os escandinavos empurraram os normandos de volta à cidade e estavam despedaçando os portões, quando Richard de Cogan fez uma sortida desde o portão de trás e caiu sobre eles pela retaguarda. E então, Sir Miles saiu dos portões principais com seus cavaleiros, e os corvos se alimentaram intensamente. Por Satã, lá os machados beberam e as espadas não deixaram de se saciar!

“Então, Wulfgar e eu entramos na batalha, e o primeiro homem ferido que vi foi um guerreiro inglês que havia outrora me esmagado o lóbulo da orelha a uma polpa, de modo que o sangue fluiu sobre seus dedos encouraçados, para ver se ele conseguia me fazer gritar – não gritei, mas cuspi na cara dele, e então ele me deu um golpe que me deixou inconsciente. Agora, aquele homem me reconhecia e chamava pelo nome, ofegando por água. ‘Água?’, eu disse. ‘É nos rios gelados do inferno que você vai saciar sua sede!’. E puxei a cabeça dele para trás, para cortar a garganta, mas antes que eu pudesse enfiar meu punhal no esôfago dele, ele morreu. Suas pernas foram quebradas por uma grande pedra, e uma lança havia se quebrado em suas costelas.

“Wulfgar havia se afastado de mim e, naquele momento, eu avançava para dentro do grosso da batalha, atirando minhas flechas com toda a força de meus músculos infantis, cegamente e ao acaso, de modo que eu não sabia se acertava ou não, nem a quem, pois o barulho e gritos me confundiam, o cheiro de sangue que estava em minhas narinas, e a cegueira e fúria de minha primeira grande batalha estava sobre mim.

“Assim, cheguei até o local onde Jon o Louco estava aliado com alguns de seus vikings pelos cavaleiros normandos – por Saint John. Nunca vi um homem dar golpes como aquele berserk dava! Ele lutava seminu e sem malha nem escudo, e não havia escudo ou armadura que pudesse resistir àquele machado. E eu vi Wulfgar – ele jazia numa pilha de mortos, ainda agarrando um cabo cuja lâmina havia se quebrado dentro do coração de um cavaleiro normando. Ele morria rapidamente, sua vida vazando dele em grossas ondas escarlates, mas ele me falava fracamente e disse: ‘Curve seu arco, Cormac, contra o homem grande em armadura de cota-de-malha’. E assim, ele morreu, e eu sabia que ele se referia a Miles de Cogan.

“Mas, naquele momento, Jon, sangrando de cem ferimentos, deu um golpe que decepou a perna de um cavaleiro na altura do quadril, embora este estivesse vestido em espessa cota-de-malha; o cabo do machado se estilhaçou na mão do viking, e Miles de Cogan lhe acertou seu golpe fatal. Naquele momento, todos os escandinavos estavam mortos ou haviam fugido, e os guerreiros arrastavam o Rei Hasculf Mac Turkill diante de Miles de Cogan e lhe decepavam a cabeça no mesmo instante. Aquela visão me enlouqueceu, pois, embora eu não amasse o dinamarquês, eu odiava ainda mais os normandos e, correndo pelos corpos dilacerados, curvei meu arco contra Miles de Cogan. Era minha última flecha, e ela se quebrou em sua placa peitoral. Um guerreiro me agarrou e suspendeu para Miles me ver, enquanto eu o amaldiçoava em Gaélico e quebrava meus dentes de leite em seu punho encouraçado, ao mordê-lo.

“‘Por São Jorge!’, disse Miles, ‘é o lobinho irlandês, filhote de Geoffrey o Bastardo’.

“‘Esmague-o’, disse Richard de Cogan. ‘Ele é meio gaélico – ele será um lobo para os O’Briens’.

“‘Ele é meio Geoffrey’, disse Miles. ‘Será um bom soldado para o rei’.

“Bom, ambos estavam certos, mas Miles viria a amaldiçoar o dia em que me poupou. Quando eu o reencontrei em batalha, anos mais tarde, dei a ele um ferimento que o marcou por toda a vida.

“Lutando em vão numa terra estéril. Por Satã, parece no entanto que agora seremos recompensados por nosso zelo. Você postou todos os guerreiros nos muros? É uma noite escura e sem estrelas, e devemos ter cuidado com Suleyman Bey. Há, nós o enganamos! Estamos dez mil peças de ouro mais ricos! Agora, você pode reconstruir este castelo, empregar mais guerreiros, comprar armaduras e armas. Juntarei um bando de valentões degoladores e viajarei para leste em busca de uma cidade gorda para saquear”.

- Cormac – os olhos de Amory estavam embotados e perturbados –, o que você acha que Suleyman Bey fará com a jovem Zuleika, quando descobrir que o trapaceamos? Ele não irá matá-la em sua fúria?

- Não ele. – Cormac bebeu intensamente – Ele a usará para enganar o velho Abdullah bin Kheram, como fizemos com ele. Se a garota jogar corretamente, ela ainda pode se tornar uma rainha.

- Cormac – Amory disse abruptamente –, não posso fazer isso.

O normando o olhou ferozmente e perplexo:

- Do que está falando?

Amory estendeu as mãos, sem saber o que fazer:

- Desculpe. Eu percebi isso quando ela estava no muro... não posso deixar essa garota ir embora... eu a amo...

- O quê! – exclamou Cormac, completamente assombrado – Que dizer que você vai retê-la... e não entregá-la a Suleyman Bey... por quê?!

- Eu a amo. – disse Amory teimosamente – Essa é a única justificativa que posso dar.

Fagulhas azuis do fogo do Inferno começaram a palpitar nos olhos de Cormac. Seus dedos encouraçados se fecharam no copo de vinho e o destruíram.

- Você quer me passar a perna, é? – ele rugiu – Você quer me trapacear! É lobo mordendo lobo, com seu desejo maldito? Seu cão francês, vou lhe mandar para cortar as unhas do Diabo!

Amory esticou rapidamente o braço, em busca de sua espada, enquanto Cormac investia desde seu assento, mas o gigante irlandês pulou diretamente sobre sua garganta, estilhando a mesa compacta em lascas. Antes que o jovem francês pudesse retirar sua espada, o impacto do arremesso do corpo encouraçado de Cormac o deixou cambaleando, e ele lutava desesperadamente para afastar os dedos férreos do normando de sua garganta. Uma das mãos de Cormac havia se fechado como um torno numa prega da malha de Amory, em seu pescoço, mal lhe errando a garganta, e a outra mão agarrava repentinamente, para um aperto mortal. O rosto de Amory estava pálido, pois ele já vira Cormac arrancar o pescoço de um gigante turco com os dedos nus, e sabia que, uma vez que aquelas mãos de ferro se fechassem na sua garganta, nenhum poder na terra conseguia soltá-las antes que elas arrancassem a vida que pulsava sob ela.

Na sala, eles lutavam e se engalfinhavam – aqueles dois grandes guerreiros encouraçados, numa batalha estranha e silenciosa. Cormac não havia tentado puxar seu aço, e Amory não teve tempo de fazê-lo. Com toda a sua habilidade, rapidez e força, ele lutava uma batalha perdida para se livrar daquelas terríveis mãos que apertavam. Amory golpeou com toda a sua força, acertando seu punho cerrado e encouraçado em cheio no rosto de Cormac, e o sangue respingou, mas o tremendo golpe não deteve nem um pouco o normando – Amory nem sequer achou que Cormac havia piscado. Eles se espatifaram de ponta-cabeça nos destroços da mesa e, ao caírem engalfinhados, Cormac rugiu breve e trovejantemente, enquanto seus dedos finalmente se fechavam no aperto que ele procurava. Instantaneamente, a cabeça de Amory começou a ter vertigens e a luz da vela ficou ensangüentada aos seus olhos dilatados. Os dedos de Cormac estavam afundados nas pregas soltas de sua touca, a qual, puxada para trás de sua cabeça, estava solta ao redor de seu pescoço; e apenas isto o salvou de morrer instantaneamente, mas mesmo assim ele sentia sua consciência se esvair. Ele golpeava em vão os pulsos; sua cabeça foi curvada para trás num ângulo torturante... seu pescoço estava prestes a se quebrar... então, veio um rápido correr de pés no corredor externo: um guerreiro de olhos selvagens entrou repentinamente na sala.

- Meus senhores... mestres... os pagãos... eles estão dentro das muralhas, e o castelo está em chamas!


6)

Os sons do castelo desvaneciam enquanto os guardas assumiam seus postos e o restante se acalmava para dormir. No grande salão, o mendigo se movia; de seus farrapos, olhos estranhamente inapropriados para um mendigo brilhavam: olhos semelhantes aos de basilisco. Com um rápido movimento, ele se levantou, livrando-se de suas roupas sujas e esfarrapadas, e revelando o rosto demoníaco e a forma felina de Belek, o egípcio. Vestido apenas numa tanga despojada e com uma longa adaga na mão, ele se esgueirou pelo grande salão e subiu a escadaria em espiral como um fantasma.

Por todo o castelo, reinava o silêncio; diante da porta de Zuleika, o sonolento guarda bocejava e se curvava sonolento sobre sua lança. Qual a utilidade de um guarda diante de uma sala interna? Qual pagão conseguia passar pelos muros sem despertar toda a tropa dos defensores? O guarda não ouviu os pés descalços, que deslizavam silenciosamente pelas lajes. Não viu a figura parda que deslizou atrás dele. Mas sentiu subitamente um braço de ferro lhe envolver o pescoço, estrangulando o grito sobressaltado que tentava subir até seus lábios; sentiu a agonia momentânea de uma lâmina que lhe perfurou o coração, e depois não sentiu mais nada.

Belek soltou o corpo flácido ao chão e, rapidamente, lhe tirou as chaves do cinto. Escolheu uma e abriu a porta, trabalhando rápida, mas silenciosamente. Ele se esgueirou para dentro, fechando a porta.

Zuleika acordou percebendo que havia alguém no seu quarto, mas, na total escuridão, ela não conseguia ver ninguém. Mas Belek conseguia enxergar como um gato no escuro. Zuleika sentiu uma mão lhe estalar subitamente na boca e, ao erguer instintivamente as mãos para se desviar daquele ataque, seus pulsos esguios foram presos um ao outro.

- Fique quieta, princesa. – sibilou uma voz no escuro – Se gritar, morre.

A mão foi tirada de seus lábios, e Zuleika sentiu as próprias mãos serem amarradas; em seguida, uma mordaça lhe foi colocada na boca. Belek do Egito tinha suas próprias idéias sobre como tratar mulheres. Ele havia sido enviado para resgatar Zuleika, sim; mas sabia que mulheres muito freqüentemente preferem não ser resgatadas de seus captores, e que ela poderia preferir continuar com seus donos atuais a cavalgar para longe com Suleyman Bey. Belek não pretendia deixar que o grito de uma mulher o levasse à sua condenação.

Ele levantou sua esguia cativa e, carregando-a cuidadosamente sobre um ombro, andou silenciosa e cuidadosamente pelo corredor, a adaga de prontidão. Desceu a escada e deslizou através da grande cozinha. Ouviu o cozinheiro roncando na despensa. Normalmente, seria impossível para um homem se esgueirar pelo castelo de Sieur Amory sem ser detectado, mas esta noite todos os homens estavam nos muros, ou então dormindo profundamente à espera do chamado para o turno de vigia.

Belek cautelosamente destrancou uma pequena porta e deslizou para fora, mantendo-se próximo à parede. Estava escuro como breu, com nuvens baixas obscurecendo as estrelas, e não havia lua. Belek hesitou, incerto por um momento; logo, ele cruzou rapidamente o pátio e entrou nos estábulos. Ele sabia que o grande garanhão de Cormac estava alojado ali, e tremeu, receoso de despertar a fúria total da fera selvagem, a qual poderia fazer barulho suficiente para despertar todo o castelo. Mas a entrada furtiva de Belek não causou agitação; o grande animal estava alojado em outra parte dos estábulos. O egípcio deitou a garota numa cocheira vazia em outra parte dos estábulos, primeiro lhe amarrando os tornozelos, e depois se esgueirou de volta ao castelo. Entrando na cozinha, ele a atravessou até a pequena sala, onde a lenha estava empilhada, e se ocupou por alguns momentos. Então, ele fechou a porta e, apressadamente, abandonou mais uma vez o castelo. Um leve sorriso sombrio ondulou sobre seus lábios finos.

E agora, ele estava pronto para a parte mais perigosa de seu ousado trabalho noturno. Agachando-se como uma pantera, ele deslizou através do pátio até o portão dos fundos. Só havia um guarda ali, curvado sobre sua lança e meio adormecido; era a hora da escuridão antes do amanhecer, quando a vitalidade está baixa. Belek se agachou e pulou, silenciosa e mortalmente como uma pantera. Sua mão poderosa se fechou ao redor do pescoço de sua vítima, e o homem morreu sem dar um grito.

Belek manuseou cuidadosamente o portão, sentiu-o mover sob suas mãos e abrir para dentro. Ele se agachou silenciosamente, quase prendendo o fôlego, e forçou seus olhos na noite. Ele conseguia reconhecer as obscuras e sombrias extensões do deserto, cortado por desfiladeiros e ravinas; havia homens se movendo ali? Nem mesmo o egípcio de olhos agudos poderia dizer, pois as nuvens estavam baixas e uma intensa escuridão repousava sobre tudo. Ele pensou em voltar atrás da garota, escapar com ela e desistir do plano. Os homens no muro acima dele não estavam dormindo. Seus baixos e breves trechos de conversa lhe alcançavam de tempos em tempos. Ele havia se esgueirado até o portão dos fundos e matado o guarda deles quase sob seus pés, mas isso foi atrás deles. Seus olhares estavam virados para fora; eles veriam qualquer coisa que se movesse do lado externo da muralha, caso ele deslizasse para fora, e flechas cairiam como chuva ao seu redor. Sozinho, ele se arriscaria, mas não ousaria fazê-lo com a garota.

Lá fora, entre os desfiladeiros, um chacal latiu três vezes e parou. Belek sorriu ferozmente; Suleyman Bey não havia falhado em cumprir sua parte no plano. Atrás de si, ele ouviu um quebrar e estalar que aumentava cada vez mais; uma luz sinistra ficou visível através da abertura do castelo, e os homens no muro começaram a falar alto e de forma apressada, quando um súbito grito selvagem se ergueu da fortaleza. Como que em resposta, um clamor de gritos ferozes soou do deserto lá fora, e subitamente a escuridão estava viva com sombras que atacavam.

O próprio Belek deu um único grito, em triunfo feroz, e correu rapidamente até o estábulo onde havia deixado a jovem.


O punhado de homens no castelo abre seu caminho para fora do círculo de fogo, mas são cercados no pátio e estão prestes a serem despedaçados, quando Abdullah bin Kheram vem cavalgando com mil homens. O mercador Ali havia lhe contado que sua filha é prisioneira lá. A luta cessa quando todos descobrem, espantados, que Zuleika é de fato a princesa Zalda. Khelru Shah – ou Suleyman Bey – é morto por Cormac, que talha seu caminho através dos árabes e foge; e Zalda declara seu amor por Amory. O sheik dá seu consentimento para que se casem, e uma poderosa aliança é formada para sempre entre os árabes e Amory.





Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão.

Fonte: The Lord of Samarcand.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da Hungria.
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