Falcões Sobre o Egito

(por Robert E. Howard)


1)

A figura alta em khalat branco girou, praguejando em voz baixa, com a mão no cabo da cimitarra. Nenhum homem andava despreocupado pelas ruas noturnas do Cairo, nos dias agitados do ano 1021 d.C. Neste beco escuro e sinuoso do repugnante bairro fluvial de El Maks, tudo poderia acontecer.

- Por que está me seguindo, cão? – A voz era áspera, aguçada com um sotaque turco.

Outra figura alta emergiu das sombras, vestida, como a primeira, num khalat de seda branca, mas sem o elmo espiralado do outro.

- Não estou lhe seguindo! – A voz não era tão gutural quanto a do turco, e o sotaque era diferente – Um forasteiro não pode caminhar pelas ruas, sem ser alvo de insulto de cada bêbado cambaleante da sarjeta?

A ira violenta em sua voz não era fingida, assim como a suspeita na voz do outro também não. Olharam ferozmente um para o outro, cada um agarrando o cabo de sua respectiva lâmina com uma mão tensa de fúria.

- Venho sendo seguido desde o cair da noite. – acusou o turco – Venho escutando passos furtivos ao longo dos becos escuros. Agora, você aparece inesperadamente, num local dos mais apropriados para um assassinato!

- Alá lhe amaldiçoe! – praguejou o outro, encolerizado – Por que eu lhe seguiria? Eu me perdi nas ruas. Nunca lhe vi antes, assim como espero nunca mais lhe ver. Sou Yusuf ibn Suleyman, de Córdoba, mas cheguei recentemente ao Egito... seu cão turco! – ele acrescentou, como se levado por uma ira transbordante.

- Pensei que seu sotaque fosse mouro. – disse o turco – Não importa. Uma espada andaluza pode ser comprada tão facilmente quanto uma cairota, e...

- Pela barba de Ali! – exclamou o mouro, numa rajada de fúria incontrolável, puxando o sabre; então, um som furtivo de passos o fez dar a volta, e ele saltou para trás e girou, para manter tanto o turco quanto os recém-chegados à sua frente. Mas o turco havia puxado a própria cimitarra e olhava ferozmente perto dele.

Três figuras enormes avultavam ameaçadoramente nas sombras, a fraca luz das estrelas cintilando em largas lâminas curvas. Havia também um vislumbre de dentes brancos e olhos em movimento.

Por um instante, houve uma quietude tensa; logo, um deles murmurou no tom rouco e gutural do Sudão:

- Qual deles é o cão? Aqui tem dois com a mesma roupa e, na escuridão, parecem irmãos gêmeos.

- Matem os dois. – respondeu outro, meia cabeça maior que seus companheiros altos – Assim, não erramos nem deixamos qualquer testemunha.

E, dito isto, os três negros se aproximaram em tenso silêncio, o gigante avançando em direção ao mouro, e os outros dois em direção ao turco.

Yusuf ibn Suleyman não esperou pelo ataque. Rosnando uma praga, ele avançou sobre o colosso que se aproximava e arremeteu em direção à sua cabeça. O negro deteve o golpe com sua lâmina erguida, e grunhiu com o impacto. Mas, no momento seguinte, com uma astuta torção e um puxão, ele havia prendido a lâmina do mouro sob sua guarda e arrancado a arma da mão de seu oponente, de modo que esta caiu com um tinido sobre as pedras. Uma praga cáustica irrompeu dos lábios de Yusuf. Ele não esperava encontrar tamanha combinação entre habilidade e força bruta.

Mas, incendiado à loucura da luta, ele não hesitou. Quando o gigante ergueu a larga cimitarra, o mouro saltou para baixo do braço levantado, soltando um selvagem grito de guerra, e enfiou seu punhal até o cabo no largo peito do negro. O sangue esguichou pelo punho de Yusuf, e a cimitarra caiu vacilante, para lhe cortar o turbante de seda e resvalar no gorro de aço sob ele. O gigante desabou moribundo ao chão.

Yusuf ibn Suleyman pegou seu sabre e olhou ao redor, para localizar seu próximo antagonista.

O turco havia enfrentado calmamente o ataque de dois negros, recuando devagar para mantê-los à sua frente, e subitamente talhou um, de um lado a outro do peito e ombro, de modo que este deixou a espada cair e caiu de joelhos com um gemido. Mas, ao cair, ele agarrou os joelhos de seu matador e se segurou neles como uma sanguessuga sem cérebro, pensamento ou razão. O turco chutou e se debateu em vão; aqueles braços negros, salientando-se com músculos de aço, o deixaram imóvel, enquanto o negro restante redobrava a fúria de seus golpes. O turco não conseguia avançar nem recuar, nem poupar o simples palpitar relampejante de sua lâmina, a qual o livraria de seu pesadelo.

Quando o espadachim negro tomou fôlego para dar um golpe ao qual o estorvado turco não conseguiria deter, ele ouviu o rápido correr de pés atrás de si, olhou ferozmente por cima do ombro e viu o mouro se aproximar, com os olhos ardentes e os lábios rosnando à luz das estrelas. Antes que o negro pudesse girar, o sabre mouro o atravessou com tal fúria que a lâmina se sobressaiu bastante pelo seu peito, enquanto o cabo o batia ferozmente entre os ombros; a vida o abandonou com um grito inarticulado.

O turco rachou o crânio raspado do outro negro com o cabo de sua cimitarra e, se desembaraçando do cadáver, se voltou para o mouro que puxava seu sabre do corpo contorcido ao qual este trespassara.

- Por que veio me ajudar? – indagou o turco. Yusuf ibn Suleyman encolheu os ombros largos diante da qualidade desnecessária da pergunta.

- Éramos dois homens cercados por velhacos. – ele disse – O destino nos fez aliados. Agora, se você quiser, podemos continuar nossa briga. Você disse que eu lhe espionava.

- E vejo meu erro e solicito suas desculpas. – o outro respondeu prontamente – Agora eu sei quem me seguia furtivamente pelos becos escuros.

Embainhando sua cimitarra, ele se curvou sobre cada um dos corpos, observando-lhes atentamente as feições sangrentas. Quando alcançou o corpo do gigante morto pelo punhal do mouro, ele fez uma pausa mais longa e logo depois murmurou baixinho, como que para si mesmo:

- Hã! Zaman, o Espadachim! De um alto posto de arqueiros, cujas flechas são enfeitadas por pérolas.

E, puxando do flácido dedo negro um anel grosso e curiosamente biselado, ele o guardou dentro do cinto e depois agarrou as vestes do morto.

- Ajude-me, irmão. – ele disse – Vamos nos livrar desta carniça, para que perguntas não sejam feitas.

Sem questionar, Yusuf ibn Suleyman agarrou uma jaqueta ensangüentada em cada mão, e arrastou os corpos atrás do turco por um beco malcheiroso e escuro, no meio do qual havia a beirada quebrada de um poço esquecido. Os cadáveres caíram de ponta-cabeça dentro do abismo e bateram lá embaixo com um chapinhar sombrio; e, com uma leve risada, o turco se voltou para o mouro.

- Alá nos tornou aliados. – ele repetiu – Estou em dívida com você.

- Você não me deve nada. – respondeu o mouro, num tom ríspido.

- Palavras não podem se igualar a uma montanha. – respondeu o turco imperturbavelmente – Sou Al Afdhal, um mameluco. Venha comigo, para longe deste covil de ratos, e conversaremos.

Yusuf ibn Suleyman embainhou seu sabre com um pouco de má-vontade, como se estivesse meio arrependido da decisão de paz do turco, mas ele o seguiu sem fazer comentários. O caminho deles seguia através da escuridão, infestada por ratos, de becos fedorentos; e através de ruas estreitas e sinuosas, fedendo a lixo. O Cairo era na época, assim como mais tarde, um fantástico contraste entre esplendor e decadência, onde palácios exóticos se erguiam entre as ruínas esfumaçadas de cidades esquecidas; um enxame de subúrbios variados se agrupando ao redor dos muros de El Kahira, a proibida cidade interna onde morava o califa e seus nobres.

Em seguida, os companheiros chegaram a um bairro mais novo e respeitável, onde os balcões salientes, com suas janelas ricamente treliçadas por desenhos de cedro e madrepérola, quase se tocavam ao longo da rua estreita.

- Todas as lojas estão às escuras. – grunhiu o mouro – Há poucos dias, a cidade estava iluminada como se fosse dia, do escurecer ao nascer do sol.

- Esse foi um dos caprichos de Al Hakim. – disse o turco – Agora, ele tem outro capricho, e nenhuma luz queima nas ruas de al medina. Qual será o humor dele amanhã, só Alá sabe.

- Não há conhecimento, salvo em Alá – o mouro concordou religiosamente e franziu a testa. O turco havia puxado o fino bigode caído, como se para disfarçar um largo sorriso.

Pararam diante de uma porta com tranca de ferro, numa compacta arcada de pedra, e o turco bateu cuidadosamente. Uma voz pediu uma senha lá dentro, e foi respondida nos tons guturais de Turan, ininteligíveis para Yusuf ibn Suleyman. A porta foi aberta, e Al Afdhal entrou em densa escuridão, puxando o mouro consigo. Ouviram a porta se fechar atrás deles, e depois uma pesada cortina foi puxada para trás, revelando um corredor iluminado por lampiões, e um ancião cicatrizado cujos bigodes ferozes o anunciavam como sendo turco.

- Um velho mameluco que se tornou vendedor de vinho. – disse Al Afdhal para o mouro – Leve-nos a uma sala onde possamos ficar a sós, Ahmed.

- Todas as salas estão vazias. – queixou-se o velho Ahmed, mancando à frente deles – Sou um homem arruinado. Os homens temem tocar na taça, desde que o califa proibiu vinho. Alá o castigue com gota!

Curvando-os para dentro de uma pequena sala, ele estendeu panos para eles, colocou diante deles um grande prato de grãos de pistacho, uvas-passa de Tihama e cidras; serviu vinho de um odre bojudo, e se afastou manquejando e murmurando baixo.

- O Egito caiu em maus dias. – o turco falou arrastada e indolentemente, bebendo a grandes goles o licor de Xiraz. Era um homem alto, magro porém fortemente constituído, com agudos olhos negros que dançavam incansáveis e nunca ficavam parados. Seu khalat era simples, mas de feito suntuoso; seu elmo espiralado estava cinzelado com prata, e jóias brilhavam no cabo de sua cimitarra.

De frente para ele, Yusuf ibn Suleyman apresentava algo da mesma aparência de falcão, o que é característico de todos os homens que vivem pela guerra. O mouro era tão alto quanto o turco, mas com membros mais grossos e peito mais volumoso. Ele tinha a constituição física de um montanhês – força combinada com resistência. Sob o turbante branco, seu rosto marrom se mostrava bem barbeado, e ele tinha feições mais suaves que o turco, sendo a cor escura de sua pele mais devido ao sol que à Natureza. Seus calmos olhos cinzas eram frios como aço, mas mesmo assim, ardia neles uma insinuação de fogos tempestuosos.

Ele bebia sofregamente seu vinho e estalava os lábios com gosto, e o turco sorria largamente e tornava a lhe encher o copo de vinho.

- Como vão os fiéis na Espanha, irmão?

- Muito mal, desde que o Vizir Mozaffar ibn Al Mansur morreu. – respondeu o mouro – O Califa Hischam é um fraco. Ele não consegue frear seus nobres, cada um dos quais quer fundar um estado independente. A terra geme sob a guerra civil, e a cada ano os reinos cristãos ficam mais poderosos. Uma mão forte ainda pode salvar a Andaluzia; mas, em toda a Espanha, não há tal mão forte.

- No Egito, uma mão assim pode ser encontrada. – observou o turco – Aqui há emires muito poderosos, que adoram homens bravos. Nas fileiras dos mamelucos, há sempre um lugar para um sabre como o seu.

- Não sou turco nem escravo. – grunhiu Yusuf.

- Não! – a voz de Al Afdhal era suave; a insinuação de um sorriso lhe tocava os lábios finos – Não tema; estou em débito com você, e posso guardar seu segredo.

- O que quer dizer? – A cabeça aquilina do mouro se ergueu bruscamente. Seus olhos cinzentos começaram a arder. Sua mão forte procurou o cabo da espada.

- Ouvi você gritar, na tensão da luta, quando golpeou o espadachim negro. – disse Al Afdhal – Você rugiu “Santiago!”. Assim gritam os cáfaros da Espanha em batalha. Você não é mouro; você é um cristão!

O outro estava de pé num instante, o sabre desembainhado. Mas Al Afdhal não estava agitado; ele se reclinava tranqüilamente sobre as almofadas, sorvendo seu vinho.

- Não tema. – ele repetiu – Já disse que guardarei seu segredo. Eu lhe devo minha vida. Um homem como você jamais poderia ser um espião; você é muito rápido na ira, e aberto demais em sua fúria. Só há uma razão para você ter vindo para entre os muçulmanos: vingar-se de um inimigo pessoal.

O cristão ficou imóvel por um momento, os pés firmados como se para um ataque, a manga de seu khalat recuada para revelar os músculos enrijecidos de seu grosso braço moreno. Ele carranqueou incerto e, deste modo, parecia bem menos um muçulmano do que antes.

Houve um instante de tensão ofegante; então, com um encolher de seus ombros musculosos, o falso mouro se sentou novamente, embora com seu sabre deitado sobre os joelhos.

- Muito bem. – ele disse com sinceridade, agarrando um cacho de uvas com uma mão bronzeada e enfiando-as na boca. Ele falou enquanto mastigava: – Sou Diego de Guzman, de Castela. Procuro um inimigo no Egito.

- Quem? – indagou Al Afdhal com interesse.

- Um berbere chamado Zahir el Ghazi; que os cães mastiguem seus ossos!

O turco se sobressaltou:

- Por Alá, você aponta para um alvo elevado! Sabia que esse homem é agora um emir do Egito, e general de todas as tropas berberes dos califas fatímidas?

- Por São Pedro – respondeu o espanhol –, isso importa tão pouco quanto se ele fosse um varredor de ruas.

- Sua rixa de sangue lhe levou para longe. – comentou Al Afdhal.

- Os berberes de Málaga se revoltaram contra seu governante árabe. – disse abruptamente de Guzman – Eles pediram ajuda de Castela. Quinhentos cavaleiros marcharam em seu auxílio. Antes que pudéssemos alcançar Málaga, este amaldiçoado Zahir el Ghazi havia traído seus companheiros para o califa. Então, ele traiu a nós, que estávamos marchando para a ajuda deles. Ignorantes de tudo o que havia acontecido, caímos numa armadilha feita pelos mouros. Somente eu escapei com vida. Três irmãos e um tio caíram ao meu lado naquele dia. Fui lançado numa prisão mourisca, e um ano se passou antes que meu povo pudesse juntar ouro bastante para me resgatar.

“Quando fiquei livre novamente, eu soube que Zahir havia fugido da Espanha, por medo de seu próprio povo. Mas minha espada era necessária em Castela. Passou-se mais um ano, antes que eu pudesse tomar a estrada da vingança. E, durante um ano, procurei pelos países muçulmanos, disfarçado de mouro, cuja fala e costumes aprendi através de uma vida de batalhas contra eles, e por conta de meu cativeiro entre eles. Só recentemente soube que o homem a quem eu procurava estava no Egito”.

Al Afdhal não respondeu imediatamente, mas ficou examinando atentamente as feições ásperas do homem à sua frente, vendo refletida nelas a natureza indomável das selvagens regiões montanhosas, onde um punhado de guerreiros cristãos desafiava as espadas do Islã durante 300 anos.

- Há quanto tempo você está em al medina? – ele indagou abruptamente.

- Há poucos dias apenas. – grunhiu de Guzman – Tempo suficiente para saber que o califa é louco.

- Há mais para saber. – respondeu Al Afdhal – Al Hakim é realmente louco. Eu digo a um franco o que não ouso dizer a um muçulmano... mas todos os homens sabem disso. O povo, que é sunita, resmunga sob seu calcanhar. Três grandes tropas sustentam seu poder. Primeiro, os berberes de Kairouan, onde a dinastia xiita dos Fatímidas inicialmente criou raízes; segundo, os sudaneses negros, os quais, sob o comando do General Othman, ganham mais poder a cada ano; e terceiro, os mamelucos, ou baharitas, os Escravos Brancos do Rio: turcos e sunitas como eu. O emir deles é Es Salih Muhammad, e entre ele, el Ghazi e o negro Othman, há ódio e inveja suficientes para começar uma dúzia de guerras.

“Zahir el Ghazi veio ao Egito há três anos como um aventureiro sem dinheiro. Ele foi elevado à categoria de emir, em parte graças à virtude de uma escrava veneziana chamada Zaida. Há também uma mulher por trás da cortina do califa: a árabe Zulaikha. Mas nenhuma mulher consegue jogar com Al Hakim”.

Diego abaixou seu copo vazio e olhou diretamente para Al Afdhal. Os espanhóis ainda não haviam adquirido a formalidade polida, a qual seria mais tarde considerada sua característica dominante. O castelhano ainda era mais nórdico do que latino. Diego de Guzman possuía a franqueza rude dos godos, que eram seus ancestrais.

- Bem, e agora? – ele indagou – Você vai me trair para os muçulmanos, ou foi sincero quando disse que guardaria meu segredo?

- Não tenho amor nenhum por Zahir el Ghazi. – murmurou Al Afdhal, como que para si mesmo, revirando em seus dedos o anel que havia tirado do gigante negro – Zaman era cão de Othman; mas o ouro berbere pode comprar uma espada sudanesa. – Erguendo sua cabeça, ele devolveu o olhar direto e desafiador de De Guzman.

- Também tenho uma dívida com Zahir. – disse – Farei mais do que guardar seu segredo. Vou lhe ajudar na sua vingança!

De Guzman se moveu para diante, e seus dedos de aço agarraram o ombro vestido em seda do turco, como um torno.

- Você fala a verdade?

- Que Alá me castigue se eu estiver mentindo! – jurou o turco – Ouça meu plano...


2)

E, enquanto na loja oculta de Ahmed O Aleijado um turco e um espanhol curvavam juntos suas cabeças sobre um plano sombrio, dentro das muralhas maciças de El Kahira, um evento estupendo estava prestes a ocorrer. Sob as sombras dos muxarabis (*) se esgueirava uma figura velada e encapuzada. Pela primeira vez em sete anos, uma mulher andava pelas ruas do Cairo.

Percebendo sua enormidade, ela tremia de um medo que não era de todo inspirado pelas sombras ocultas que poderiam esconder ladrões sorrateiros. As pedras lhe feriam os pés em seus esfarrapados chinelos de veludo; há sete anos, os sapateiros do Cairo haviam sido proibidos de fazerem calçados de rua para as mulheres. Al Hakim havia decretado que as mulheres do Egito fossem confinadas, não como jóias em caixas fortes, mas como répteis em jaulas.

Embora vestida em farrapos rejeitados, não era uma mulher comum que se esgueirava trêmula pela noite. No dia seguinte, a notícia correria, através de canais misteriosos de comunicação, harém em harém, e mulheres rancorosas, se refestelando em almofadas de cetim, ririam alegremente da vergonha de uma irmã invejada e odiada.

Zaida, a ruiva veneziana, favorita de Zahir el Ghazi, havia tido mais poder que qualquer outra mulher no Egito. E agora, enquanto ela deslizava pela noite – uma proscrita –, o pensamento que lhe queimava como ferro em brasa era o de saber que ela havia ajudado seu infiel amante e senhor em sua subida até lugares elevados do mundo, somente para que outra mulher colhesse os frutos daquela labuta.

Zaida vinha de uma raça de mulheres acostumadas a desestabilizarem tronos com sua beleza e sagacidade. Ela mal se lembrava de Veneza, de onde havia sido raptada por piratas berberes. O corsário, que a havia pegado e criado para seu harém, havia caído em batalha contra os bizantinos e, como uma garota esguia de 14 anos, Zaida havia passado para as mãos de um príncipe de Creta – um jovem lânguido e afeminado, ao qual ela passou a manipular com os dedos róseos. Então, após alguns anos, chegara a incursão da frota egípcia nas ilhas dos gregos – pilhagem, matança, fogo, paredes despedaçadas, guinchos de morte e uma jovem ruiva gritando nos braços de ferro de um gigante berbere que gargalhava.

Como ela vinha de uma raça cujas mulheres governavam os homens, Zaida não pereceu nem se tornou um brinquedo que choramingava. Sua natureza era flexível, como uma árvore nova que se curva sem ser arrancada pela raiz. Em pouco tempo, apesar de nunca ter mandado em Zahir el Ghazi, ela pelo menos estava no mesmo patamar que ele, e por ser oriunda de uma raça de fazedoras de reis, ela começou a fazer de Zahir el Ghazi um rei. O homem tinha inteligência, super-vitalidade, e força física e mental; ele só precisava de um único estímulo para sua ambição. Zaida era esse estímulo.

E agora Zahir, considerando-se totalmente capaz de galgar sozinho o brilhante tapete vermelho da escada sem ela, havia colocado-a de lado. Porque Alá tinha dado a ele um desejo que mulher nenhuma, por mais desejável que fosse, conseguia satisfazer totalmente, e porque Zaida não suportaria uma rival – uma árabe flexível havia sorrido para o berbere, e o mundo da ruiva veneziana havia desmoronado. Zahir a havia despido e lançado na rua, como se fosse uma vagabunda comum – somente a compaixão de um escravo lhe cobrindo a nudez.

Absorta em seus pensamentos que lhe queimavam, ela ergueu o olhar com um sobressalto, quando uma silhueta alta e encapuzada saiu de dentro das sombras de um balcão saliente e a encarou. Um largo manto o envolvia, e sua touca lhe escondia a parte inferior do rosto. Apenas seus olhos ardiam para ela, quase luminosos à luz das estrelas. Ela se encolheu para trás, com uma exclamação baixa.

- Uma mulher nas ruas de al medina! – A voz era estranha e cavernosa, quase fantasmagórica – Isso não é uma desobediência às ordens do califa?

- Não ando nas ruas por escolha, ya khawand. – ela respondeu – Meu amo me expulsou de casa, e não tenho onde repousar minha cabeça.

O estranho curvou sua cabeça encapuzada e ficou imóvel por algum tempo, como uma imagem meditativa de noite e silêncio. Zaida o observava nervosamente. Havia algo de sombrio e agourento nele; parecia menos um homem ponderando a história de uma jovem escrava encontrada por acaso, do que um profeta sombrio pesando o destino de um povo pecador.

Por fim, ele ergueu a cabeça.

- Venha! – ele disse, numa voz mais de comando que de convite – Encontrarei um lugar para você.

E, sem parar para ver se ela obedecia, ele caminhou altivamente na rua. Ela se apressou atrás dele, agarrando ao redor de si o robe que se arrastava pelo chão. Não poderia andar pelas ruas a noite toda; qualquer oficial do califa a decapitaria por violar o decreto de Al Hakim. Este estranho poderia estar levando-a para a escravidão, mas ela não tinha escolha.

O silêncio de seu acompanhante a deixava nervosa. Várias vezes, ela tentou falar, mas sua sombria ausência de resposta a deixava calada, por sua vez. Sua curiosidade foi aguçada e sua vaidade tocada. Ela nunca antes havia falhado de forma tão marcante em interessar um homem. Ela sentiu vagamente algo imponderável e que não conseguia dominar: uma indiferença não-natural e assustadora, à qual não conseguia tocar. O medo começou a crescer nela, mas ela o seguiu porque não sabia mais o que fazer. Ele só falou uma vez, quando, olhando para trás, ela ficou sobressaltada ao ver várias formas furtivas e indistintas se esgueirando atrás deles.

- Há homens nos seguindo! – ela exclamou.

- Não ligue para eles. – ele respondeu, em sua voz estranha – São apenas servos de Alá, que O servem ao modo deles.

Esta resposta enigmática a deixou tremendo, e mais nada foi dito até alcançarem um pequeno portão arcado, num muro alto. Ali, o estranho parou e chamou em voz alta. Ele foi respondido do lado de dentro, e o portão se abriu, revelando um negro mudo que segurava uma tocha no alto. Sob sua luz sinistra, a altura do estranho de túnica ficava inumanamente exagerada.

- Mas este... este é o portão do Grande Palácio! – gaguejou Zaida.

Como resposta, o homem puxou o capuz para trás, revelando o longo oval pálido de um rosto, no qual ardiam aqueles olhos estranhos e luminosos.

Zaida gritou e caiu de joelhos:

- Al Hakim!

- Sim, Al Hakim, ó infiel pecadora! – A voz cavernosa foi como o bater de um sino fúnebre. Sonora e inexorável como as trombetas de latão do juízo final, ela ressoava na noite – Ó, mulher vã e insensata, que ousa ignorar a ordem de Al Hakim, a qual é a palavra de Deus! Que anda pelas ruas em pecado, e põe de lado as ordens do Rei Beneficente! Não há majestade e não há poder, salvo em Alá, o glorioso, o poderoso! Oh, Senhor dos Três Mundos, por que reténs Teu fogo iluminador de queimá-la até transformá-la num tição torrado e enegrecido, para que todos os homens presenciem e estremeçam?

Então, mudando subitamente seu tom, ele gritou de forma abrupta:

- Peguem-na!

E as sombras que os seguiam se aproximaram, revelando serem homens negros com as feições murchas de mudos. Quando seus dedos agarraram a carne dela, Zaida desmaiou pela primeira e última vez em sua vida.

Ela não percebeu enquanto era erguida e carregada através do portão e de jardins, os quais ondulavam com flores e fediam a pimenta, e através de corredores enfileirados com colunas espiraladas de mármore e ouro, e para dentro de uma câmara sem janelas, cujas portas arcadas estavam trancadas com barras de ouro decoradas com ametistas.

Foi sobre o chão atapetado e alastrado por travesseiros desta câmara, que a veneziana recuperou a consciência. Ela olhou atordoada ao redor, e logo a lembrança de sua aventura retornou aceleradamente; e, com uma exclamação baixa, ela arregalou desvairadamente os olhos ao redor, em busca de seu captor. Ela se encolheu novamente para vê-lo de pé sobre ela, os braços cruzados e a cabeça sombriamente curvada, enquanto seus terríveis olhos lhe queimavam dentro da alma.

- Oh, Leão dos Fiéis! – ela arfou, se esforçando para ajoelhar-se – Piedade! Piedade!

Mesmo enquanto falava, ela estava repugnantemente consciente da futilidade de implorar por piedade onde a piedade era desconhecida. Ela se curvava servilmente diante do monarca mais temido do mundo: o homem cujo nome era uma maldição nas bocas dos cristãos, judeus e muçulmanos ortodoxos; o homem que, alegando ser descendente de Ali, o sobrinho do Profeta, era a cabeça do mundo xiita, a encarnação da Razão Divina para todos os xiitas; o homem que ordenara que todos os cães fossem mortos, todas as vinhas destruídas, toda uva e mel jogados no Nilo; que havia banido todos os jogos de azar, confiscado as propriedades dos cristãos coptas e abandonado o próprio povo a torturas abomináveis; que acreditava que desobedecer algum de seus comandos, por mais insignificante que fosse, era o mais tenebroso pecado concebível. Ele percorria as ruas à noite, disfarçado, como Harun al-Rashid havia feito antes dele, e como Baibars fez depois dele, para ver se suas ordens eram obedecidas.

Assim, Al Hakim a encarava com olhos arregalados e sem piscar, e Zaida sentia sua pele secar e se arrepiar de horror.

- Blasfemadora! – ele sussurrou – Instrumento de Shaitan­(**)! Filha de todo o mal! Ó, Alá! – ele gritou subitamente, lançando para o alto seus braços envoltos em mangas largas – Qual castigo deve ser inventado para este demônio? Qual agonia é suficientemente terrível, qual degradação é vil o bastante para fazer justiça? Alá me dê sabedoria!

Zaida se ergueu sobre os joelhos, arrancando o véu rasgado. Ela esticou o braço, apontando para o rosto dele.

- Por que chama Alá? – ela guinchou histericamente – Chamai Al Hakim! Você é Alá! Al Hakim é Deus!

Ele parou bruscamente diante do grito dela; cambaleou, agarrando a própria cabeça e gritando de forma incoerente. Logo, ele se endireitou e baixou, de forma deslumbrada, o olhar pra ela. O rosto dela estava branco como giz, os olhos grandes arregalados. À sua habilidade natural de dramatizar, foi adicionado o verdadeiro e desesperado horror de sua posição. Para Al Hakim, parecia que ela estava deslumbrada e maravilhada por uma visão de esplendor celestial.

- O que vê, mulher? – ele arfou.

- Alá se revelou para mim! – ela sussurrou – Em seu rosto, brilhante como o sol da manhã! Mais ainda, eu queimo, eu morro no fogo de tua glória!

Ela afundou o rosto nas mãos e se agachou trêmula. Al Hakim passou uma mão trêmula sobre a testa e têmporas.

- Deus! – ele sussurrou – Sim, eu sou Deus! Eu havia pensado nisso... eu havia sonhado com isso... eu, e apenas eu, possuo a sabedoria do Infinito. Agora, uma mortal viu isso, reconheceu o deus na forma de homem. Sim, é a verdade ensinada pelos mestres do Xiismo: a encarnação da Divindade. Vejo a Verdade por trás da verdade, finalmente. Não uma mera encarnação da divindade, mas a própria divindade! Alá! Al Hakim é Alá!

Curvando o olhar sobre a mulher aos seus pés, ele ordenou:

- Levante-se, mulher, e olhe para teu deus!

Timidamente, ela o fez e ficou encolhida diante de seu olhar que não piscava. Zaida, a veneziana, não era extremamente bonita de acordo com certas normas arbitrárias, as quais exigem feições perfeitamente esculpidas e estrutura delicada – mas ela era agradável ao olhar. Tinha a constituição larga, com seios grandes e quadris largos, e ombros mais largos que a maioria. Seu rosto não era clássico como o dos gregos, e era levemente sardento. Mas havia nela uma vitalidade que transcendia a mera beleza superficial. Seus olhos castanhos lampejavam, refletindo uma inteligência aguda, e seus membros e quadris largos indicavam vigor físico.

Enquanto olhava para ela, uma mudança nublou os olhos grandes de Al Hakim; ele parecia vê-la claramente pela primeira vez.

- Teu pecado está perdoado. – ele entoou – Tu foste a primeira a louvar teu Deus. De hoje em diante, tu me servirás em honra e esplendor.

Ela se prostrou, beijando o carpete diante dos pés dele, e ele bateu palmas. Um eunuco entrou, fazendo uma reverência.

- Vá depressa à casa de Zahir el Ghazi. – disse Al Hakim, parecendo olhar por cima da cabeça de seu criado e não vê-lo – Diga a ele: “Esta é a palavra de Al Hakim, o qual é Deus, que amanhã de manhã será o início dos acontecimentos, da construção de navios e da condução dos exércitos, como tu desejaste, pois Deus é Deus, e os incrédulos por muito tempo blasfemaram contra Ele!”.

- Ouvindo e obedecendo, mestre. – murmurou o eunuco, se curvando até o chão.

- Eu duvidava e temia. – disse Al Hakim, sonhador, olhando para longe e além dos confins da realidade, para algum reino distante ao qual só ele conseguia ver – Eu não sabia, como agora sei, que Zahir el Ghazi era a ferramenta do Destino. Quando ele me insistiu para conquistar o mundo, eu hesitei. Mas eu sou Deus; e, para os deuses, todas as coisas são possíveis; sim, todos os reinos e glória!


3)

Uma breve olhada no mundo naquela noite de presságios em 1021 d.C. Era uma noite numa era de mudanças; uma era em que se contorcia nas dores da labuta, na qual tudo o que levou à forma do mundo moderno estava se esforçando para nascer. Era um mundo escarlate e dilacerado, caótico e medonho, prenhe de poder imponderável, mas aparentemente afundando em estagnação e ruína.

No Egito, uma população sunita gemia sob o calcanhar de uma dinastia xiita – uma dinastia encolhida e murcha do império mundial, mas ainda poderosa, se estendendo do Eufrates ao Sudão. Entre as fronteiras do Egito e o mar ocidental, havia uma vasta extensão, habitada por tribos selvagens, nominalmente sob o cetro do califa; as mesmas tribos que outrora haviam esmagado o reino godo da Espanha, e que agora se agitavam incansáveis em suas montanhas, precisando apenas de um líder poderoso para guiá-los novamente numa onda esmagadora contra a Cristandade.

Na Espanha, as divididas províncias mouras cediam terreno às hostes de Castela, Leon e Navarra. Mas estes reinos cristãos, apesar de forjados em sangue e ferro, não eram numericamente poderosos o suficiente para resistirem a um ataque unido do Islã. Eles formavam a fronteira oeste dos domínios cristãos, enquanto Bizâncio formava a fronteira leste, como nos dias de Omar e as Companhias conquistadoras, detendo as trompas da Lua Crescente, também enfrentadas na Europa central, para formar um círculo inexorável. E a Lua Crescente nunca estava morta; ela apenas dormia e, mesmo em seu sono, palpitavam os tambores do império.

A Europa, sob o domínio do feudalismo, estava mais fraca internamente do que em suas fronteiras. As nações já estavam vagamente tomando forma, mas ainda não havia verdadeiro espírito nacional. Na França, não havia Carlos Magno nem Martel – apenas camponeses famintos e assolados pela praga, feudos em guerra e uma terra dividida pela luta entre a Dinastia Capetiana e o duque de Normandia, soberanos e vassalos rebeldes. E a França representava a Europa.

Havia, é verdade, homens fortes no Oeste: Canuto O Dinamarquês, governando a Inglaterra saxã; Henry da Germânia, Imperador do sombrio Santo Império Romano. Mas Canuto era quase como o rei de outro mundo, em seu isolamento marinho; e o Imperador estava ocupado, tentando unir os reinos rivais da Germânia e Itália, e em expulsar os invasores eslavos.

Em Bizâncio, o reinado glorioso de Basílio Bulgaróctone estava chegando ao fim. Longas sombras já estavam caindo desde o leste, através do Chifre de Ouro (***). Bizâncio ainda era o mais poderoso baluarte da Cristandade; mas, para oeste desde Bucara, avançavam os cavaleiros das estepes, rapidamente destinados a arrancarem do Império Oriental sua última possessão asiática. Os seljúcidas, bloqueados ao sul pelo cintilante império indo-iraniano de Mahmud de Ghazni, cavalgavam em direção ao sol poente, e não seriam detidos até que os cascos de seus cavalos batessem nas águas do Mediterrâneo.

Em Bagdá, os persas lutavam nas ruas contra os mercenários turcos do fraco califa abássida. Mas o Islã não estava destruído – apenas quebrado em várias partes, como os pedaços de uma lâmina brilhante. Havia força ativa no Egito, em Ghazni e nos saqueadores seljúcidas. Força potencial estava adormecida na Síria, Iraque, Arábia e nas tribos inquietas do Atlas – força suficiente para destruir as barreiras ocidentais da Cristandade, se os vários elementos separados estivessem unidos por uma mão forte.

Bizâncio ainda era inatacável; mas, se os reinos espanhóis caíssem diante de uma súbita investida vinda da África, as hordas jorrariam para dentro da Europa quase sem obstáculo. Era esse o retrato daquela época: tanto o Oeste quanto o Leste divididos e inertes; no Oeste, ainda não havia nascido aquele espírito flamejante que, 75 anos depois, trovejou para leste nas Cruzadas; no Leste, nenhum Saladin nem Gêngis Khan havia aparecido. Mas, se tal homem surgisse, as trompas da renovada Lua Crescente ainda poderiam completar o círculo, não na Europa Central, mas sobre as muralhas caídas de Constantinopla, atacada tanto pelo norte quanto pelo sul.

Esse era o panorama do mundo, naquela noite de ruína e augúrios, quando duas figuras encapuzadas pararam num grupo de palmeiras, entre as ruínas da Cairo noturna.

Diante deles, estavam as águas de el Khalij, o canal, e além dele, se erguendo de sua própria margem, a própria muralha fortificada de tijolos secos que cercava El Kahira, separando o coração real de al medina do resto da cidade. Construída pelos Fatímidas meio século antes, a cidade interna era na verdade uma gigantesca fortaleza, a qual abrigava os califas, seus criados e certas tropas de seus mercenários – proibida para homens comuns sem permissão especial.

- Poderíamos escalar a parede. – murmurou de Guzman.

- E nem chegaríamos perto de nosso inimigo. – respondeu Al Afdhal, tateando nas sombras sob as árvores aglomeradas – Aqui está!

Olhando sobre seu ombro, de Guzman viu o turco mexendo em algo que parecia ser um amontoado disforme de mármore. Esta localização em particular era totalmente ocupada por ruínas, e habitada apenas por morcegos e lagartos.

- Um antigo santuário pagão. – disse Al Afdhal – Evitado por causa de superstições, e há muito tempo em ruínas... mas ele esconde mais do que um arvoredo de palmeiras mostra!

Ele ergueu e afastou uma larga laje, revelando degraus que guiavam para dentro de uma abertura negra; de Guzman franziu a testa, desconfiado.

- Esta – disse Al Afdhal, percebendo sua dúvida – é a entrada de um túnel que segue por debaixo da muralha e sobe para dentro da casa de Zahir el Ghazi, a qual fica logo após o muro.

- Sob o canal? – indagou o espanhol incrédulo.

- Sim; outrora a casa de el Ghazi era a casa de prazeres do Califa Khumaraweyh, o qual dormia num travesseiro de ar que flutuava numa piscina de mercúrio, guardada por leões... mas caiu sob a faca do vingador, apesar de tudo. Ele preparou saídas secretas de todos os seus palácios e casas de prazer. Antes que Zahir el Ghazi tomasse a casa dele, ela era ocupada por seu rival Es Salih Muhammad. O berbere nada sabe desta passagem secreta. Eu poderia tê-la usado antes, mas até esta noite, eu não tinha certeza de que desejava matá-lo. Venha!

De espadas desembainhadas, eles desceram tateando por um lance de degraus de pedra e avançaram ao longo de um túnel plano em escuridão de breu. Os dedos tateantes de De Guzman diziam a ele que as paredes, chão e teto eram compostos por enormes blocos de pedra, provavelmente pilhados de edifícios construídos pelos faraós. Enquanto avançavam, as pedras ficavam escorregadias sob os pés, e o ar ficava úmido. Gotas de água caíam viscosamente no pescoço de De Guzman, e ele estremecia e praguejava. Estavam passando sob o canal. Pouco depois, esta umidade diminuiu e, logo em seguida, Al Afdhal sibilou um aviso, e eles começaram a subir outro lance de degraus de pedra.

No topo, o turco parou e remexeu em alguma tranca ou ferrolho. Um painel deslizou para o lado, e uma luz suave fluiu para dentro, vinda de um corredor abobadado e atapetado. De Guzman percebeu que eles realmente passaram sob o canal e o grande muro, e que estavam nos limites proibidos de El Kahira, a misteriosa e fabulosa.

Al Afdhal deslizou agilmente através da abertura, e logo de Guzman o havia seguido e fechado-a atrás deles. Tornou-se um dos painéis internos da parede, não ficando diferente dos outros painéis de sândalo. Então o turco andou rapidamente e sem hesitação pelo corredor, como um homem que conhece seu caminho. O espanhol seguiu, de sabre na mão, olhando incessantemente para a direita e esquerda.

Atravessaram uma cortina escura de veludo e se depararam com uma entrada arcada de ébano marchetado de ouro. Um negro musculoso, vestido apenas com volumosas calças de seda, o qual estivera cochilando sobre os próprios quadris, se ergueu sobressaltado, girando uma grande cimitarra. Mas ele não bradou – tinha o rosto bestial de um mudo.

- O estrondo do aço vai acordar as pessoas da casa. – Al Afdhal disse bruscamente, evitando o giro da espada do eunuco. Quando o negro se desequilibrou por conta de sua tentativa frustrada, de Guzman deu uma rasteira nele. Ele caiu estatelado, e o turco atravessou sua lâmina no corpo negro.

- Foi rápido e silencioso o bastante! – Al Afdhal riu suavemente – Agora vamos à verdadeira presa!

Cuidadosamente, ele testou a porta, enquanto o espanhol se agachava, respirando entre dentes e seus olhos começando a arder como os de um gato caçando. A porta cedeu para dentro, e de Guzman ultrapassou o turco num salto para dentro da câmara. Al Afdhal seguiu e, fechando a porta, encostou se a ela, rindo do homem que havia se erguido subitamente de seu divã, com uma praga sobressaltada.

- Encontramos a caça no abrigo, irmão!

Mas não havia risada nos lábios de Diego de Guzman, quando ele se ergueu sobre o semi-levantado ocupante do quarto, e Al Afdhal viu o sabre erguido em sua mão musculosa.

Zahir el Ghazi era um homem alto e forte, seu cabelo amarelo bem cortado e a curta barba clara cuidadosamente aparada. Embora fosse tarde da noite, ele estava totalmente vestido em calças de seda, e cinto e colete de veludo.

- Não grite, cão. – o espanhol avisou – Minha espada está em seu pescoço.

- Estou vendo. – respondeu Zahir el Ghazi imperturbavelmente. Seus olhos azuis vaguearam até o turco, e ele riu com zombaria áspera – Então, você evitou os derramadores de sangue? Pensei que estivesse morto a esta hora. Mas o resultado será o mesmo. Idiota! Você cortou sua própria garganta! Como chegou ao meu quarto, eu não sei; mas um só grito chamará meus escravos.

- Casas antigas têm segredos antigos. – riu o turco – Um deles você aprendeu: que as paredes deste quarto são feitas para abafar gritos. Outro você não sabe ainda: por que viemos aqui esta noite. – Ele se voltou para Diego de Guzman: – Bem, por que está hesitando?

De Guzman recuou e abaixou o sabre.

- Lá está sua espada. – ele disse ao berbere, enquanto Al Afdhal praguejava, meio enojado, meio entretido – Pegue-a. Se você for homem o bastante para me matar, seja. Mas acho que você nunca verá o sol nascer novamente.

Zahir o olhou atentamente.

- Você não é mouro. – disse o berbere – Nasci nos Montes Atlas, mas fui criado em Málaga. Você é um espanhol. Quem é você?

Diego puxou para um lado seu turbante esfarrapado.

- Diego de Guzman. – disse Zahir calmamente – Eu devia ter imaginado. Bem, fidalgo, você percorreu um longo caminho até sua morte...

Ele puxou a pesada cimitarra, e então hesitou:

- Você usa armadura, enquanto eu só visto seda e veludo.

Diego chutou um elmo em sua direção – uma das várias peças de armadura largadas sem cuidado pelo quarto.

- Eu vejo o brilho de malha sob sua roupa. – ele disse – Você sempre usou uma camisa de aço. Estamos em pé de igualdade. Levante-se, cão. Minha alma está sedenta por seu sangue.

O berbere se curvou, pôs o elmo e saltou inesperadamente, esperando pegar seu antagonista com a guarda aberta. Mas o sabre mouro colidiu no ar contra a cimitarra berbere, e faíscas choveram quando as duas longas lâminas curvas giraram, lampejaram, levantaram e caíram, palpitando à luz do lampião.

Ambos atacaram, golpeando furiosamente, cada um preocupado demais em matar o outro para pensar muito em ostentar esgrima. Cada golpe era dado com força total e desejo assassino por trás dele. Tal duelo não continuaria por muito tempo; a desesperada indiferença do combate o levaria rapidamente a um desfecho sangrento, para um ou para outro.

De Guzman lutava em silêncio, mas Zahir el Ghazi ria e escarnecia de seu inimigo entre golpes relampejantes.

- Cão! – O manejo do braço do berbere não interferia no de sua língua – Matar você aqui me cansa. Você deveria viver para presenciar a destruição de seu povo maldito! Por que vim ao Egito? Meramente por refúgio? Há! Eu vim forjar uma espada para meus inimigos, tanto cristãos quanto muçulmanos! Insisti para que o califa construísse uma frota... para erguer os estandartes da guerra santa... para conquistar o califado de Córdoba!

“As tribos berberes estão preparadas para tal guerra. Rugiremos para oeste desde o Egito, como uma avalanche que ganha volume e velocidade à medida que avança. Com meio milhão de guerreiros, invadiremos a Espanha... transformaremos Córdoba em pó e incorporaremos seus guerreiros às nossas fileiras! Castela não pode conosco e, sobre os cadáveres dos cavaleiros espanhóis, invadiremos as planícies da Europa!”.

De Guzman cuspiu uma praga.

- Al Hakim havia hesitado. – riu Zahir, respirando calma e facilmente, enquanto aparava o sabre que zunia – Mas, esta noite, ele me mandou uma notícia... acabei de sair do palácio, onde ele me contou que será como desejei. Ele tem uma nova fantasia: acredita ser Deus! Não importa. A Espanha está condenada! Se eu sobreviver, serei o califa de lá um dia! E mesmo que você me mate, não pode deter Al Hakim agora. A guerra santa será iniciada. Os haréns do Islã serão preenchidos por garotas castelhanas...

Dos lábios de De Guzman explodiu um grito áspero e selvagem, como se ele percebesse pela primeira vez que o berbere não estava simplesmente zombando dele com palavras sem importância, mas enunciando um verdadeiro plano de conquista.

Com o rosto sombrio e os olhos ferozes, ele mergulhou com uma velocidade renovada que fez Al Afdhal arregalar os olhos. Os lábios barbados de Zahir já não pronunciavam mais escárnios. Toda a atenção do berbere estava dedicada a deter o sabre espanhol que lhe batia na lâmina como um martelo numa forja.

O estrondo do aço se ergueu até Al Afdhal morder o lábio em nervosismo, sabendo que qualquer eco daquele barulho iria certamente reverberar além das paredes abafadas.

A pura força e fúria berserk do espanhol estavam começando a surtir efeito. O berbere estava com a pele bronzeada pálida. Sua respiração foi ficando ofegante, e ele foi continuamente recuando. O sangue escorria de talhos nos braços, coxa e pescoço. De Guzman sangrava também, mas ele não afrouxava o furor impetuoso de seu ataque.

Zahir estava próximo da parede atapetada, quando subitamente saltou para um lado enquanto de Guzman investia. Desequilibrado por errar a estocada, o espanhol pulou para a frente e a ponta de seu sabre colidiu contra a pedra sob a tapeçaria. Ao mesmo tempo, Zahir dirigiu um talho à cabeça de seu inimigo, com toda a sua força minguante. Mas o sabre de aço de Toledo, ao invés de se quebrar como uma lâmina mais fraca, se dobrou e endireitou novamente. A cimitarra que descia cortou o elmo mouro e arranhou o couro cabeludo por baixo, mas antes que Zahir pudesse recuperar seu equilíbrio, o sabre de De Guzman golpeou para cima, atravessando elos de metal e o osso do quadril até lhe ralar a coluna vertebral.

O berbere cambaleou e caiu com um grito abafado, suas entranhas se espalhando pelo chão. Seus dedos agarraram brevemente a felpa do grosso tapete, e logo ele ficou flácido.

De Guzman, cego pelo sangue e suor, enfiava, em silencioso frenesi, várias vezes, sua espada na figura aos seus pés, embriagado demais de fúria para perceber que seu rival estava morto, até Al Afdhal, praguejando num quase horror, arrastá-lo dali. O espanhol, atordoado, limpou o sangue e suor dos olhos, e fitou groguemente seu adversário. Ainda estava aturdido pelo golpe que lhe havia rachado o elmo. Puxou o capacete partido e o lançou para um lado. Estava ensangüentado, e uma torrente escarlate lhe descia pelo rosto, cegando-o.

Praguejando ardentemente, ele começou a tatear por algo que o enxugasse, quando sentiu os dedos de Al Afdhal em ação. O turco rapidamente limpou o sangue do rosto do companheiro, e lhe enfaixou o ferimento com tiras arrancadas da própria roupa.

Logo, tirando do cinto algo que De Guzman reconheceu como o anel que Al Afdhal havia tirado do dedo do matador negro Zaman, o turco o deixou cair no pequeno tapete felpudo próximo ao corpo de Zahir.

- Por que fez isso? – indagou o espanhol.

- Para confundir os vingadores. Vamos embora logo, em nome de Alá. Os escravos do berbere devem estar todos surdos ou bêbados, para não terem acordado até agora.

Quando saíram no corredor, onde o mudo morto fitava o teto pintado ao qual não mais enxergava, ouviram sons que indicavam gente acordando – um vago murmúrio de vozes, um som distante de passos. Apressando-se pelo vestíbulo até o painel secreto, eles entraram e tatearam na escuridão, até saírem mais uma vez no silencioso arvoredo.

As estrelas que empalideciam estavam refletidas nas águas escuras do canal, e a primeira sugestão de aurora se refletia nos minaretes.

- Você conhece algum caminho para dentro do palácio do califa? – perguntou De Guzman. A bandagem em sua cabeça estava encharcada de sangue, e uma fina gota lhe escorria pescoço abaixo.

Al Afdhal girou e eles se encararam, sob a sombra das árvores.

- Eu lhe ajudei a matar um inimigo em comum. – disse o turco – Não negociei para trair meu soberano para você! Al Hakim é louco, mas a hora dele ainda não chegou. Ajudei-lhe num assunto de vingança pessoal... não na guerra de nações. Contente-se com sua vingança, e lembre-se que voar muito alto é secar as asas ao sol.

De Guzman limpou o sangue e não respondeu.

- Você deve abandonar o Cairo o mais cedo possível. – disse Al Afdhal, observando-o estreitamente – Acho que seria mais seguro para todos os envolvidos. Mais cedo ou mais tarde, você será reconhecido como um franco por alguém que nada lhe deve. Vou lhe fornecer cavalos e muito dinheiro...

- Tenho ambos. – grunhiu De Guzman, limpando o sangue do pescoço.

- E você partirá em paz? – indagou Al Afdhal.

- Acaso tenho escolha? – respondeu o espanhol.

- Jure. – insistiu o turco.

- Por Deus, você é insistente. – queixou-se De Guzman – Muito bem, eu juro por Santiago de Compostela que deixarei a cidade antes do meio-dia.

- Ótimo! – o turco deu um suspiro de alívio – É para seu próprio bem, tanto quanto qualquer coisa que eu...

- Entendo suas motivações altruístas. – grunhiu De Guzman – Se havia alguma dívida entre nós, considere-a paga, e que cada homem aja de acordo.

E, girando, ele se afastou a passos largos, com o caminhar oscilante de um cavaleiro. Al Afdhal observava seus ombros largos recuarem através das árvores, com um ligeiro franzir de testa, dirigido para ele.


4)

Das mesquitas e minaretes, saiu o sonoro adan. Diante da Mesquita de Talai, do lado de fora de Bab Zweyla, encontrava-se Darazai, o mulá, e quando ele ergueu a voz, e quando ele anunciou vagarosamente através das tensas multidões, homens estremeceram e unhas se cravaram em palmas pardas de mãos.

- E através de seu divinamente apontado califa, Al Hakim, que é a semente de Ali, o qual tem o sangue do Profeta, que era Deus Encarnado, assim é Deus hoje entre vós! Sim, o Deus único anda entre vós em forma mortal! E agora ordeno a todos vocês, todos os Fiéis do Islã, que reconheçam, se curvem e adorem o único Deus verdadeiro, Senhor dos Três Mundos, o Criador do Universo, que ergueu o firmamento sem pilares em seu lugar, a Encarnação da Vontade Divina, que é Deus, que é Al Hakim, a semente de Ali!

Um grande estremecimento agitou a multidão; logo, um grito arrebatado quebrou a quietude ofegante. Uma figura de cabeleira selvagem correu para a frente, um árabe seminu. Com um guincho de “Blasfemador!”, ele pegou uma pedra e a arremessou. O projétil atingiu o mulá em cheio na boca, quebrando-lhe os dentes. Ele cambaleou, com o sangue lhe escorrendo pela barba. E, com um rugido aterrador, a multidão se ergueu, formou vagalhões e rolou para a frente. Impostos, fome, pilhagem e massacre... tudo isto os egípcios conseguiram suportar; mas este golpe nas raízes de sua religião foi a última gota. Mercadores calmos ficaram loucos; mendigos encolhidos se transformaram em demônios de olhos furiosos.

Pedras voavam como granizo, e o rugido ficava cada vez mais alto – o tumulto de feras selvagens ou de homens enlouquecidos. Mãos agarravam as roupas do espantado Darazai, quando homens da guarda turca em cota-de-malha e elmos espiralados fizeram a multidão recuar com suas cimitarras, e carregaram o aterrorizado mulá para dentro da mesquita, a qual eles entrincheiraram contra a multidão que avançava.

Com um tinido de armas e um tilintar de freios, uma tropa de cavaleiros sudaneses, resplandecentes em corseletes folheados a ouro e calças de seda, saiu a golpes do portão Zuweyla. Os dentes brancos dos cavaleiros negros brilhavam em largos sorrisos de alegria; seus olhos reviravam, eles lambiam seus lábios grossos em expectativa. As pedras da multidão batiam inofensivas em suas couraças e em seus escudos de pele de hipopótamo. Eles apressavam seus cavalos contra a turba, talhando com suas lâminas curvas. Homens rolavam uivando sob os cascos esmagadores. Os amotinados recuaram, fugindo desvairadamente para dentro de lojas e pelas ruas, abandonando a praça alastrada de corpos que se contorciam.

Os cavaleiros negros saltaram de suas selas e começaram a despedaçar portas de lojas e moradias, enchendo seus braços com pilhagem. Gritos de mulheres ressoavam de dentro das casas. Um guincho, um quebrar de vidro e treliça, e um corpo vestido de branco se espatifou na rua com um impacto de esmagar os ossos. Um rosto negro olhava para dentro do batente arruinado da janela, dividido numa gargalhada desocupada de sacudir a barriga. Um cavaleiro negro esporeou o cavalo para a frente, se inclinou de sua sela e enfiou sua lança na forma ainda trêmula de uma mulher sobre as pedras.

O gigante Othman, em seda flamejante e aço polido, cavalgava entre seus cães negros, chicoteando-os. Eles montaram e ficaram alinhados atrás dele. Num balouçante meio-galope, eles seguiram pelas ruas, com ensangüentadas cabeças humanas penduradas em suas lanças – uma lição para os enlouquecidos cairotas, que se agachavam em seus esconderijos, ofegando de ódio.


O resfolegante eunuco, que trazia notícias da revolta e sua repressão para Al Hakim, foi seguido rapidamente por outro, o qual se prostrou diante do califa e gritou:

- Ó, Senhor dos Três Mundos, o emir Zahir el Ghazi está morto! Seus servos o encontraram assassinado em seu palácio, e ao lado dele, o anel de Zaman, o Espadachim Negro. Por este motivo, os berberes gritam que ele foi assassinado por ordem do emir Othman, procuram por Zaman em el Mansuriya e lutam contra os sudaneses!

Zaida, escutando por trás de uma cortina, abafou um grito e agarrou o próprio peito numa dor breve e passageira. Mas o inescrutável olhar distante de Al Hakim não se alterou; ele estava envolto em indiferença, isolado na contemplação de mistério.

- Que os mamelucos os apartem. – ele disse – Rixas particulares interferirão no destino de Deus? El Ghazi morreu, mas Alá está vivo. Outro homem será achado para liderar minhas tropas para dentro da Espanha. Enquanto isso, que comece a construção de navios. Que os sudaneses cuidem da ralé, até que ela perceba sua insensatez e o pecado de sua heresia. Já reconheci meu destino, que é o de me revelar ao mundo em sangue e fogo, até que todas as tribos da terra me conheçam e se curvem diante de mim. Têm minha permissão para ir!


A noite caía numa cidade tensa, enquanto Diego de Guzman caminhava a passos largos pelas ruas de uma parte vizinha a el Mansuriya, no bairro dos sudaneses. Naquela seção, ocupada principalmente por soldados, luzes brilhavam e estábulos estavam abertos por um implícito acordo mudo. O dia inteiro, revoltas haviam retumbado pelos bairros; a população era como uma serpente de mil cabeças: esmagada num lugar, estourava novamente em outro, xingando, gritando e lançando pedras. Os cascos dos cavalos sudaneses haviam corrido de Zuweyla até a mesquita de ibn Tulun e de volta a Zuweyla, esguichando sangue.

Agora somente homens armados atravessavam as ruas. Os grandes portões de madeira, com trancas de ferro, dos bairros, estavam fechados, como em épocas de guerra civil. Através do arco carrancudo do grande portão de Zuweyla, tropas de cavaleiros negros andavam a meio-galope, a luz das tochas tingindo de escarlate suas cimitarras desembainhadas. Seus mantos de seda esvoaçavam ao vento, e seus braços negros luziam como ébano polido.

De Guzman não havia quebrado seu juramento a Al Afdhal. Certo de que o turco iria entregá-lo aos muçulmanos, caso ele não parecesse concordar com a exigência do outro, o espanhol havia cavalgado para fora da cidade e para dentro das colinas de Mukattan, antes do meio-dia. Mas ele não jurou que não retornaria. O pôr-do-sol o viu cavalgando para dentro dos subúrbios arruinados, onde ladrões e chacais se moviam furtivamente com passos silenciosos.

Agora, ele andava a pé pelas ruas, entrando nas lojas – onde soldados cingidos se fartavam de melões, nozes e carne, e bebiam vinho secretamente –, e ouvia a conversa deles.

- Onde estão os berberes? – indagou um turco de bigode, abarrotando a boca com um punhado de bolos de amêndoa.

- Estão emburrados no bairro deles. – respondeu outro – Eles juram que el Ghazi foi morto pelos sudaneses, e exibem o anel de Zaman como prova. Todos conhecem aquele anel. Mas Zaman desapareceu. O emir negro Othman jura não saber nada a respeito. Mas ele só pode negar a respeito do anel. Doze homens já foram mortos em brigas, quando o califa ordenou que nós, mamelucos, os apartássemos. Por Alá, este foi um dia daqueles!

- A loucura de Al Hakim causou isso. – declarou outro, abaixando sua voz, e olhando rápida e cautelosamente ao redor – Até quando sofreremos sob o governo daquele cão xiita?

- Cuidado. – avisou seu companheiro – Ele é o califa, e nossas espadas estão a serviço dele, enquanto Es Salih Muhammad assim ordenar. Mas, se a revolta estourar novamente, é mais provável que os berberes lutem contra os sudaneses do que com eles. Dizem que Al Hakim tomou Zaida, concubina de el Ghazi, para seu harém, e isso enfurece mais ainda os berberes, fazendo-os suspeitarem que el Ghazi foi morto, se não por ordem de Al Hakim, pelo menos com o consentimento dele. Mas, Wellah, a fúria deles não é nada, perto da de Zulaikha, a quem o califa deixou de lado! Dizem que a ira dela é como a de uma tempestade do deserto.

De Guzman esperou para ouvir mais; mas, levantando-se, ele saiu rapidamente da loja de vinho. Se alguém conhecia os segredos do palácio real, esse alguém era Zulaikha. E uma amante descartada é uma arma perfeita para a vingança. A missão de De Guzman se tornou mais do que uma busca secreta pela vida de um inimigo pessoal. Agora mesmo, os rumores rastejavam para fora da misteriosa fortaleza do palácio do califa, e os homens já falavam, nos bazares, sobre uma invasão à Espanha. De Guzman sabia que a feroz habilidade de luta dos espanhóis não iria, no final, lhes servir contra uma força como a que Al Hakim poderia ser capaz de lançar contra eles. Talvez somente um louco pudesse acolher a idéia de um império mundial, mas um louco poderia cumpri-la; e, fosse qual fosse o destino final da Europa, a ruína de Castela estaria selada se as hordas africanas rolassem pelos desfiladeiros das montanhas. De Guzman pensava pouco na Europa; as terras além dos Pireneus lhe eram obscuras e sombrias, não muito mais reais que os impérios de Alexandre e dos Césares. Era em Castela que ele pensava, e no povo feroz e ardente das selvagens terras altas; nenhum outro pensamento lhe fazia o sangue latejar mais quente nas veias.

Contornando el Mansuriya, ele atravessou o canal e se dirigiu ao pequeno bosque de palmeiras próximo à margem. Tateando na escuridão entre as ruínas de mármore, ele encontrou e ergueu a laje. Mais uma vez, ele avançou através da escuridão total e água gotejante, tropeçou em outra escadaria e a subiu. Seus dedos encontraram e mexeram numa tranca de metal, e ele emergiu no corredor, agora sem iluminação. A casa estava em silêncio, mas o reflexo de luzes em todos os lugares indicava que ela ainda estava ocupada – sem dúvida pelos criados e mulheres do emir assassinado.

Sem saber qual caminho levava para fora, ele andou ao acaso, atravessou uma arcada encortinada... e se deparou com meia-dúzia de escravos negros, que se ergueram de um pulo, olhando ferozmente e de espada na mão. Antes que pudesse recuar, ele ouviu um grito e um grande movimento de pés atrás de si. Amaldiçoando sua sorte, ele correu diretamente até os desnorteados negros. Um palpitante redemoinho de aço, e ele atravessava o caminho, deixando uma forma se contorcendo e sangrando atrás de si, e corria através de uma portada do outro lado da larga câmara. Espadas curvas gemiam às suas costas e, quando ele bateu a porta atrás de si, o aço vibrou no carvalho resistente e pontas brilhantes apareceram nas tiras de madeira da porta. Ele passou rapidamente a tramela e girou, olhando ferozmente ao redor, em busca de uma via de fuga. Seu olhar caiu numa janela próxima, com barras de ouro.

Correndo impetuosamente e com um ofego de esforço, ele se lançou em cheio contra a janela. Com um despedaçar estilhaçante, as barras moles cederam e todo o batente foi destruído diante do impacto do seu corpo que se arremessava. Ele se lançou no vazio, no exato momento em que a porta era arrombada e um enxame de formas uivantes inundava a sala.


5)

No Grande Palácio Leste, onde jovens escravas e eunucos deslizavam sobre furtivos pés descalços, nenhum eco repercutia daquele inferno que rugia do lado de fora das paredes. Numa câmara, cujo domo era de marfim com filigranas de ouro, Al Hakim, vestido numa túnica de seda branca que o fazia parecer ainda mais fantasmagórico e irreal, sentava-se de pernas cruzadas num leito enfeitado de jóias, e encarava, sem piscar, com seus olhos grandes, Zaida, a veneziana que se ajoelhava aos pés dele.

Zaida não estava mais vestida com os farrapos de um escravo. Seu robe era feito com a seda escarlate de Mossul, com beiradas folheadas a ouro; seu cinto de cetim bordado com pérolas. O feitio das largas ceroulas dela era simples e diáfano, parecendo brilhar suavemente com a pele rosada à qual mal escondiam. Suas argolas eram incrustadas com grandes jóias em forma de pêra. Seus longos cílios estavam pintados por cosmético, e suas unhas com henna. Ela estava ajoelhada sobre uma almofada folheada a ouro.

Mas, no meio de todo este esplendor, o qual ofuscava qualquer coisa que até mesmo aquela princesa de brinquedo já conhecera, os olhos da veneziana estavam ensombrecidos. Pela primeira vez em sua vida, ela se sentia realmente um brinquedo. Ela havia inspirado a última loucura de Al Hakim, mas não o havia dominado. Uma noite, uma hora, ela havia tido expectativa de dobrá-lo às vontades dela. Agora ele parecia afastado dela, e havia uma expressão em seus frios olhos inumanos, à qual a fazia estremecer.

De repente, ele falou, pesada e portentosamente, como um deus enunciando uma sentença:

- Não é apropriado deuses se acasalarem com mortais.

Ela estremeceu, abriu a boca e logo teve medo de falar.

- O amor é humano e é uma fraqueza. – ele continuou, pensativo – Vou afastá-lo de mim. Os deuses estão além do amor. A fraqueza me ataca quando me deito em seus braços.

- O que quer dizer, meu senhor? – ela aventurou, temerosa.

- Até os deuses devem se sacrificar – ele respondeu sombriamente – O amor de uma humana é uma blasfêmia à natureza divina. Renunciarei a você, antes que minha divindade enfraqueça.

Ele bateu palmas calmamente, e um eunuco entrou de quatro – um novo costume criado.

- Traga o emir Othman. – ordenou Al Hakim, e o eunuco bateu violentamente a cabeça contra o chão, e recuou desajeitadamente da presença do califa.

- Não! – Zaida se ergueu de um pulo, desesperada – Oh, meu senhor, tenha piedade! Você não pode me entregar àquele animal negro! Você não pode...

Ela estava de joelhos, agarrando-lhe a túnica, à qual ele arrancou dos dedos dela.

- Mulher! – ele trovejou – Está louca? Quer trazer ruína para cima de você? Você atacaria a pessoa de Deus?

Othman entrou hesitante, e em evidente apreensão – um guerreiro da bárbara Darfur, ele se erguera ao seu atual posto elevado, através de lutas selvagens e uma forma brutal de diplomacia.

Al Hakim apontou para a mulher encolhida de medo aos seus pés, e falou brevemente:

- Leve-a!

O sudanês nunca questionou as ordens de seu monarca. Um largo sorriso lhe dividiu o rosto de ébano e, curvando-se, ele ergueu Zaida, que se contorcia e gritava no aperto dele. Enquanto ele a carregava para fora da sala, ela contorcia os braços, estendendo suas mãos brancas e suplicando desesperadamente. Al Hakim não respondeu; ele entrelaçou as mãos, seu olhar desinteressado e impessoal como o de um viciado em haxixe. Se ouvia os gritos de sua ex-favorita, ele não dava sinal.

Mas outra pessoa ouvia. Agachada numa alcova, uma esguia jovem de pele marrom observava o sorridente sudanês carregar pelo salão sua cativa contorcida. Mal ele desaparecera, ela correu em outra direção, as roupas balançando acima de suas cintilantes pernas marrons.

Othman, o favorito do califa, era o único emir que morava no Grande Palácio, o qual era na verdade um conjunto de palácios unidos numa enorme estrutura, a qual abrigava 30 mil criados de Al Hakim. Ele morava numa ala que dava no bairro meridional de Beyn el Kasreyn. Para alcançá-la, ele não precisava sair do palácio. Seguindo corredores sinuosos, cruzando um ocasional pátio aberto pavimentado por mosaicos e limitado por arcos desgastados e sustentados por colunas de alabastro, ele chegou à sua casa.

Espadachins negros guardavam a porta de teca negra, enfaixada por cobre com arabescos, a qual separava seu quarto do resto do palácio. Mas, quando ele se aproximou daquela porta, uma forma flexível deslizou para fora de um largo corredor enfeitado por panos, e lhe barrou o caminho.

- Zulaikha! – O negro recuou em temor quase supersticioso; as esguias mãos brancas da mulher se fechavam a abriam num requinte de ira sutil e profunda demais para a compreensão grosseira dele; e, sobre o véu tênue, seus olhos ardiam como gemas do inferno.

- Um servo me deu a notícia de que Al Hakim havia descartado a vadia ruiva. – disse a árabe – Portanto, venda-a para mim! Pois tenho uma dívida que quero pagar de bom grado.

- Por que eu deveria vendê-la? – discordou o sudanês, remexendo-se em impaciência animal – O califa a deu para mim. Afaste-se, mulher, antes que eu lhe cause algum dano.

- Já ouviu o que os berberes gritam nas ruas? – ela perguntou.

Ele estremeceu, empalidecendo levemente.

- O que isso tem a ver comigo? – ele esbravejou, mas sua voz não era firme.

- Eles uivam pela cabeça de Othman. – ela disse fria e venenosamente – Eles lhe chamam de o matador de Zahir el Ghazi. O que aconteceria se eu fosse até eles e dissesse que aquilo do que suspeitam é verdade?

- Mas não tenho nada a ver com isso! – ele exclamou ferozmente, como um homem pego numa rede invisível.

- Posso fazer homens jurarem que lhe viram ajudando Zaman a matá-lo.

- Vou te matar! – ele sussurrou.

- Você não ousaria, animal negro das savanas! Agora, você vai me vender esta rapariga ruiva, ou enfrentar os berberes?

Suas mãos afrouxaram o aperto, deixando Zaida cair ao chão.

- Leve-a e vá embora! – ele murmurou, com a pele negra empalidecida.

- Primeiro leve seu pagamento! – ela replicou com malícia vingativa, e lançou um punhado de moedas em cheio no rosto dele. Ele recuou como um enorme macaco negro, seus olhos vermelhos, e suas mãos pardas abrindo e fechando numa vã sede de sangue.

Ignorando-o, Zulaikha se curvou sobre Zaida, a qual se agachou, atordoada em nauseada impotência, esmagada pela percepção de sua incapacidade contra este novo conquistador, contra o qual, sendo alguém do mesmo sexo, toda a sedução e astúcia que ela havia usado nos homens eram inúteis. Zulaikha agarrou os cachos vermelhos da veneziana com os dedos e, forçando-lhe brutalmente a cabeça para trás, encarou fundo seus olhos com uma possessividade feroz e ansiosa, a qual fez Zaida congelar.

A árabe bateu palmas, e quatro eunucos sírios entraram.

- Levantem-na e levem até minha casa. – Zulaikha ordenou, e eles pegaram a encolhida veneziana e a carregaram dali. Zulaikha os seguiu, com as unhas rosas afundando nas palmas das mãos, enquanto inspirava suavemente entre os dentes cerrados.


6)

Quando Diego de Guzman mergulhou pela janela, ele não fazia idéia do que havia na escuridão sob ele. Não caiu muito, e se espatifou em arbustos que lhe amorteceram a queda. Erguendo-se de um pulo, ele viu seus perseguidores se amontoando através da janela à qual acabara de despedaçar, e estorvando uns aos outros por causa de seu grande número. Ele estava num jardim, um lugar grande e sombreado por flores fantasmagóricas e árvores. No momento seguinte, ele corria por entre as sombras, ziguezagueando entre a plantação de arbustos. Seus caçadores andavam às cegas por entre as árvores, correndo a esmo e embaraçados. Sem obstáculos, ele alcançou o muro, deu um pulo alto, agarrou o espigão com uma das mãos e transpôs a parede alta.

Ele parou e procurou se orientar. Nunca havia estado antes nas ruas de El Kahira, mas havia escutado tão freqüentemente a descrição da cidade interna, que tinha um mapa dela em sua mente. Ele sabia que estava no Bairro dos Emires e, à sua frente, sobre os tetos planos, avultava uma grande estrutura, a qual só poderia ser o Palácio Menor do Oeste, uma gigantesca casa de prazer, a qual dava no bastante famoso Jardim de Kafur. Bastante seguro de onde andava, ele correu pela rua estreita na qual caíra, e logo saiu na larga passagem que atravessava El Kahira do Portão de Futuh, ao norte, ao Portão de Zuweyla, ao sul.

Embora já fosse tarde da noite, havia muita agitação pelas ruas. Mamelucos armados passavam por ele a cavalo; na larga Beyn el Kasreyn, a grande praça que ficava entre os palácios gêmeos, ele ouviu o retinir de rédeas em cavalos inquietos, e viu um esquadrão de cavaleiros sudaneses montados em seus corcéis sob a luz das tochas. Havia motivo para sua vigilância. À distância, ele ouvia tambores tocando de forma taciturna entre os quartéis. Em algum lugar além dos muros, uma luz tênue começou a brilhar contra as estrelas. O vento trouxe breves trechos de música selvagem e gritos distantes.

Com sua bazófia de soldado e o cabo do sabre apontado proeminentemente para a frente, De Guzman passou despercebido entre as figuras de cota-de-malha e com armas à cintura, que espreitavam as ruas. Quando ele se aventurou a puxar a manga de um mameluco barbudo e perguntar o caminho para a casa de Zulaikha, o turco deu a informação prontamente e sem surpresa. De Guzman sabia – assim como todo o Cairo – que, embora a árabe considerasse Al Hakim sua propriedade especial, ela não se considerava de forma alguma posse exclusiva do califa. Havia capitães mercenários que eram tão familiarizados com os aposentos dela quanto Al Hakim o fora.

A casa de Zulaikha ficava imediatamente afastada da larga rua e construída como adjacência de uma corte do Palácio Leste, a cujos jardins era conectada, de modo que Zulaikha, nos seus dias de favorita, poderia passar entre sua casa e o palácio sem violar a ordem do califa sobre o isolamento de mulheres. Zulaikha não era uma criada; era a filha de um sheik livre e havia sido amante de Al Hakim, não sua escrava.

De Guzman não esperou qualquer grande dificuldade em entrar na casa dela; ela manipulava secretamente intrigas e políticas, e homens de todos os credos eram admitidos em sua câmara de audiência, onde jovens dançarinas e ópio ofereciam entretenimento. Naquela noite, não havia dançarinas nem convidados, mas um iemenita mal-encarado abriu, sem fazer perguntas, a porta arcada, acima da qual ardia uma lâmpada a óleo, e conduziu o falso mouro através de um pequeno pátio interno, subindo uma escadaria externa, ao longo de um corredor e para dentro de uma larga câmara, na qual se abriam vários arcos desgastados e enfeitados por tapeçarias de veludo escarlate.

A sala estava vazia, sob o brilho suave dos lampiões de bronze, mas em algum lugar na casa, soava o grito agudo de uma mulher que sofria, acompanhado por opulenta risada musical, também em voz de mulher, e indescritivelmente vingativa e maligna.

Mas De Guzman deu pouca atenção a isso, pois foi naquele momento que todo o inferno explodiu do lado de fora dos muros de El Kahira.

Foi um rugido abafado de incrível volume, como o bramido de uma torrente enclausurada finalmente explodindo sua represa; mas era o selvagem uivo bestial de muitos homens. O iemenita também ouviu, e sua pele escura empalideceu. Então, ele gritou e se precipitou para dentro do corredor, enquanto lá fora soava o barulho de pés e uma respiração ofegante.

Numa câmara vizinha, endireitando-se de um trabalho que achava indescritivelmente divertido, Zulaikha ouviu um grito abafado do lado de fora da porta, o zunir e cortar de um golpe selvagem e o baque de um corpo que caía. A porta foi subitamente aberta e Othman entrou – uma figura selvagem e aterrorizante, com os olhos revirados e os dentes à mostra brilhando à luz dos lampiões, o sangue pingando de sua larga cimitarra.

- Cão! – ela exclamou, erguendo-se abruptamente, como uma serpente que se desenrola – O que faz aqui?

- A mulher que você tomou de mim! – ele vociferou, simiesco em sua fúria – A ruiva! O inferno está solto no Cairo! Os bairros se revoltaram! As ruas irão boiar em sangue antes do amanhecer! Cavalgo para cortar os cães sunitas como talos de bambu. Uma matança a mais em toda esta chacina nada significa! Dê-me a mulher antes que eu lhe mate!

Embriagado pela sede de sangue e pelo desejo frustrado, o enlouquecido negro havia esquecido seu medo de Zulaikha. A árabe deu uma rápida olhada na figura nua e trêmula que jazia estendida, de pés e mãos atadas, a um divã. Ela ainda não havia feito tudo o que queria com sua rival. Tudo o que ela havia feito fora apenas um divertido prelúdio de tortura, mutilação e morte – agonizante em sua humilhação. Todo o inferno não poderia tomar a vítima que lhe pertencia.

- Ali! Abdullah! Ahmed! – ela guinchou, puxando uma adaga cravejada de jóias.

Com um bramido de touro, o enorme negro investiu. A árabe nunca havia lutado contra homens, e sua rapidez flexível, sem experiência nem conhecimento de combate, foi inútil. A lâmina larga afundou no corpo dela, a ponta se sobressaindo a trinta centímetros entre os ombros. Com um grito sufocado de agonia e terrível surpresa, ela desabou e o sudanês puxou brutalmente a cimitarra enquanto ela caía. Naquele instante, Diego de Guzman apareceu na porta.

O espanhol nada sabia das circunstâncias; ele apenas viu um enorme negro puxando sua espada do corpo de uma mulher branca, e agiu de acordo com seus instintos.

Othman, girando como um grande gato, ergueu sua cimitarra gotejante, apenas para tê-la espantosamente batida em seu crânio lanoso sob o terrível golpe de De Guzman. Ele cambaleou e, no instante seguinte, o sabre, brandido com toda a força dos músculos enrijecidos do espanhol, decepou-lhe o braço esquerdo na altura do ombro, desceu cortando as costelas e se cravou profundamente no osso de sua bacia.

De Guzman, grunhindo e praguejando enquanto torcia sua lâmina para fora da carne e osso que a aprisionava, suando de medo de um ataque antes que pudesse soltar a lâmina, ouvia o trovejar crescente da multidão, e seu cabelo se arrepiava. Ele conhecia aquele rugido – o grito de caça de homens, o trovão que sacudia os tronos do mundo ao longo das eras. Ele ouvia o barulho de cascos nas ruas lá fora, e vozes ferozes gritando comandos.

Ele se voltava para o corredor externo, quando ouviu uma voz implorando por algo e, girando de volta à câmara, viu, pela primeira vez, a forma nua se contorcendo no divã. Seus membros e corpo não apresentavam cortes nem machucados, mas suas bochechas estavam molhadas de lágrimas; os cabelos vermelhos, que fluíam em selvagem abundância sobre seus ombros brancos, estavam molhados de suor, e sua carne tremia como se tivesse sido torturada.

- Solte-me! – ela suplicou – Zulaikha está morta... solte-me, em nome de Deus!

Sussurrando uma praga impaciente, ele lhe cortou as cordas e girou de novo, esquecendo-a quase instantaneamente. Ele não a viu se erguer e deslizar através de uma portada encortinada.

Lá fora, uma voz gritava:

- Othman! Em nome de Shaitan, onde está você? É hora de montar e cavalgar! Eu vi você correndo até aqui! O diabo te leve, seu cão negro; onde está você?

Uma figura em malha e elmo entrou bruscamente na sala, e então parou de repente.

- O quê...? Wellah! Você mentiu para mim!

- Eu não! – De Guzman respondeu alegremente – Deixei a cidade, como havia jurado fazer, mas voltei.

- Onde está Othman? – indagou Al Afdhal – Eu o segui até aqui... Alá! – Ele puxou selvagemente os bigodes – Por Deus, o Único Deus Verdadeiro! Oh, cáfaro maldito! Por que você tinha que matar Othman? Todas as cidades se revoltaram, e os berberes lutam contra os sudaneses, os quais já estavam ocupados. Cavalgo com meus homens para ajudar os sudaneses. Quanto a você... ainda lhe devo minha vida, mas há um limite para tudo! Em nome de Alá, vá embora e não me deixe mais vê-lo novamente!

De Guzman sorriu como um lobo:

- Você não vai se livrar tão fácil de mim, desta vez, Es Salih Muhammad!

O turco se sobressaltou:

- O quê?

- Pra que continuar esta farsa? – replicou De Guzman – Eu lhe conheci quando entramos na casa de Zahir el Ghazi, a qual outrora havia sido a casa de Es Salih Muhammad. Somente um dono da casa poderia ser tão familiarizado com os segredos dela. Você me ajudou a matar el Ghazi, porque o berbere havia pagado Zaman e os outros para lhe matarem. Muito bem. Mas isso não é tudo. Vim ao Egito para matar el Ghazi; está feito; mas agora Al Hakim planeja a ruína da Espanha. Ele deve morrer; e você deve me ajudar na derrota dele.

- Você é tão louco quanto Al Hakim! – exclamou o turco.

- O que aconteceria se eu fosse até os berberes e dissesse a eles que você me ajudou a matar o emir deles? – perguntou De Guzman.

- Eles lhe cortariam em pedaços!

- Sim, eles o fariam! Mas eles lhe cortariam igualmente em pedaços. E os sudaneses os ajudariam; eles também não amam os turcos. Berberes e negros juntos matarão cada turco no Cairo. Então, como fica sua ambição, se a sua cabeça é arrancada? Morrerá, é claro; mas, se eu colocar sudaneses, turcos e berberes para matarem uns aos outros, talvez a rebelião destrua a todos eles, e eu terei ganhado, na morte, o que não consegui em vida.

Es Salih Muhammad reconheceu a determinação sombria que havia por trás das palavras do castelhano.

- Vejo que devo matá-lo, afinal! – ele sussurrou, puxando a cimitarra. No momento seguinte, o estrondo do aço ressoou na sala.

Ao primeiro golpe, De Guzman percebeu que o turco era o melhor espadachim ao qual encontrara; ele era gelo onde o espanhol era fogo. À sua relutância de matar Es Salih, era adicionado o conhecimento de que era enfrentado por um espadachim melhor que ele próprio. E o pensamento o animava a uma fúria desesperada, de modo que a impetuosa indiferença que sempre fora sua fraqueza, tornou-se sua força. Sua vida não importava; mas, se ele caísse naquela câmara ensangüentada, Castela cairia com ele.

Do lado de fora dos muros de El Kahira, a plebe avançava e rapinava, tochas espirravam fagulhas, e o aço bebia e se avermelhava. Dentro da câmara da falecida Zulaikha, as lâminas curvas cantavam e assobiavam. Golpeie, Diego de Guzman! (elas cantam). A Espanha depende de seu braço. Golpeie pelas glórias do passado e pelos esplendores do futuro. Golpeie pelo trovejar de armas, pelo sussurrar das bandeiras nos ventos das montanhas, a agonia do esforço e o sangue do martírio; golpeie pelas lanças das terras altas, as mulheres de cabelos negros, fogos nos corações vermelhos, e as trombetas de impérios que ainda virão! Golpeie pelos reinos não-nascidos, a pompa da glória e os grandes galeões deslizando, através de um mar dourado, para um mundo não-sonhado! Golpeie pela maravilha que é a Espanha, antiga e sempre jovem, a fênix das nações, sempre se erguendo das cinzas de um passado morto para arder entre os estandartes do mundo!

Através dos lábios entreabertos, sibilava a respiração de Es Salih Muhammad. Sob sua pele escura, crescia uma cor azul. Habilidade e astúcia não lhe serviam contra esta encarnação de olhos ardentes da fúria, a qual avançava sobre ele numa onda irresistível, batendo como um ferreiro numa forja.

Sob a bandagem encrostada de marrom, o ferimento de De Guzman estava sangrando novamente, e o sangue lhe escorria pela têmpora, mas sua espada era como uma roda flamejante. O turco só conseguia aparar; ele não tinha oportunidade de revidar.

Es Salih Muhammad lutava por ambição pessoal; Diego de Guzman lutava pelo futuro de uma nação.

Um último ofego de intenso esforço muscular, uma explosão de força dinâmica e a cimitarra foi arrancada da mão do turco. Ele recuou cambaleando com um grito, não de dor nem medo, mas de desespero. De Guzman, seu peito largo arfando devido aos seus esforços, afastou-se.

- Não vou lhe matar pessoalmente. – ele disse – Nem vou lhe arrancar um juramento no fio da espada. Você não o manteria. Irei até os berberes e ao meu destino... e seu. Adeus. Eu teria feito de você vizir do Egito!

- Espere! – ofegou Es Salih, agarrando uma cortina para se apoiar – Vamos raciocinar sobre este assunto! O que quer dizer?

- O que eu falei! – De Guzman deu as costas para a porta, eletrificado com uma sensação de que ele finalmente tinha um jogo desesperado na mão – Não percebe que, neste momento, você tem a balança do poder? Os sudaneses e berberes lutam uns contra os outros, e os cairotas lutam contra ambos! Nenhuma facção pode vencer sem a sua ajuda. O modo como você lançar seus mamelucos será o fator decisivo. Você planejava ajudar os sudaneses e esmagar tanto berberes quanto rebeldes. Mas suponha que você jogue sua sorte com os berberes. Suponha que você apareça como líder da revolta, o defensor do credo ortodoxo contra um blasfemador. El Ghazi está morto; Othman está morto; a plebe não tem líder. Você é o único homem forte no Cairo. Você busca honras sob Al Hakim; honras maiores você pode conseguir sozinho! Junte os berberes com seus turcos e elimine os sudaneses! O povo irá aclamá-lo como um libertador. Mate Al Hakim! Nomeie outro califa, com você mesmo como vizir e verdadeiro governante! Cavalgarei ao seu lado, e minha espada é sua!

Es Salih, que havia escutado como um homem num sonho, soltou uma súbita risada, como um bêbado. A percepção, de que De Guzman queria usá-lo como um peão para esmagar um rival da Espanha, foi afogada no vinho impetuoso da ambição pessoal.

- Feito! – ele trombeteou – Para casa, irmão! Você me mostrou o caminho que procuro! Es Salih Muhammad ainda governará o Egito!


7)

Na grande praça de el Mansuriya, as tochas arremessadas brilhavam sobre um turbilhão de figuras que se esforçavam e saltavam, cavalos que relinchavam e lâminas cortantes. Homens morenos, negros e brancos lutavam. Berberes, sudaneses e egípcios, ofegando, praguejando, matando e morrendo.

Durante mil anos, o Egito havia dormido sob o calcanhar de senhores estrangeiros; agora ele acordava, e seu despertar era escarlate.

Como loucos sem cérebro, os cairotas agarravam os matadores negros, arrastando-os em massa de suas selas, cortando as barrigueiras dos cavalos enlouquecidos. Piques enferrujados retiniam contra lanças. O fogo surgia repentinamente em cem lugares, elevando-se aos céus até os pastores em Mukattan acordarem e ficarem boquiabertos de espanto. De todos os subúrbios saíam abundantemente figuras selvagens e desvairadas – uma torrente urrante de mil galhos, todos convergindo para a grande praça. Centenas de formas imóveis, em malhas ou em cáftans rasgados em tiras, jaziam sob os cascos e pés esmagadores; e, sobre eles, os vivos gritavam e cortavam.

A praça ficava no coração do bairro sudanês, no qual vinham rapinando os berberes loucos por sangue, enquanto a maioria dos negros havia enfrentado a plebe em outras partes da cidade. Agora, retirando-se às pressas para seu próprio bairro, os espadachins de ébano dominavam os berberes com pura superioridade numérica, enquanto a turba ameaçava engolir ambas as hordas. Os sudaneses, sob o comando de seu capitão Izz ed din, mantinham alguma aparência de ordem, o que dava a eles uma vantagem sobre os desorganizados berberes e a plebe sem líder.

Os enlouquecidos cairotas destruíam e pilhavam as casas dos negros, arrastando mulheres uivantes para fora; o brilho das construções em chamas fazia a praça nadar num oceano de fogo.

Em algum lugar ali, começou o zunido de timbales tártaros, mais alto que o vibrar de muitos cascos.

- Os turcos, finalmente! – ofegou Izz ed din – Eles demoraram muito! E onde, em nome de Alá, está Othman?

Um cavalo desvairado corria para dentro da praça, a espuma lhe esvoaçando das argolas das rédeas. O montador girou na sela, com as vestes coloridas esfarrapadas e a pele de ébano fustigada em escarlate.

- Izz ed din! – ele gritou, agarrando a crina esvoaçante com ambas as mãos – Izz ed din!

- Aqui, idiota! – rugiu o sudanês, agarrando as rédeas do outro e fazendo o cavalo recuar e se sentar.

- Othman está morto! – gritou o homem, acima do rugido das chamas e do crescente trovejar dos timbales que avançavam – Os turcos se voltaram contra nós! Eles estão matando nossos irmãos nos palácios! Sim! Estão chegando!

Com um trovejar ensurdecedor de cascos e um rufar estremecedor de tambores, os esquadrões de lanceiros em cotas-de-malha invadiram a praça, dividindo as ondas de matança e atropelando tanto amigos quanto inimigos. Izz ed din viu o moreno rosto exultante de Es Salih Muhammad sob o arco brilhante de sua cimitarra e, com um rugido, cavalgou em direção a ele, seus esquadrões rodopiando atrás de si.

Mas, com um estranho grito-de-guerra, um cavaleiro em vestimenta mourisca se ergueu nos estribos, golpeou e Izz ed din caiu; e, sobre os corpos talhados de seus capitães, trovejaram os cascos dos matadores – um rio moreno e urrante que trovejava dentro da noite partida pelas chamas.

Nos contrafortes rochosos de Mukattam, os pastores assistiam e tremiam, vendo o brilho de fogo e matança desde o Portão de el Futuh até a mesquita de Ibn Tulun; e o clangor de espadas era ouvido ao sul, até El Fustat, onde nobres pálidos tremiam em seus palácios rodeados por jardins.

Como uma torrente escarlate, espumante e facetada de fogo, as marés de fúria inundavam os bairros e jorravam através do Portão de Zuweyla, manchando as ruas de El Kahira, a Vitoriosa. Na grande Beyn el Kasreyn, onde 10 mil homens poderiam desfilar, os sudaneses fizeram sua resistência final, e lá morreram, encurralados por turcos com elmos, berberes que guinchavam e cairotas furiosos.

Foi a população quem primeiro voltou sua atenção para Al Hakim. Correndo através das portas de bronze com arabescos do Grande Palácio Leste, as hordas esfarrapadas fluíam uivando pelos corredores, através dos Portões Dourados, para dentro do grande Salão Dourado, arrancando a cortina de filigranas de ouro, para revelar um trono dourado vazio. Tapeçarias bordadas a seda foram arrancadas das paredes com frisos, por dedos sujos e ensangüentados; mesas de ônix foram derrubadas com um barulho de vasos esmaltados a ouro; eunucos em robes escarlates fugiram aos guinchos; jovens escravas gritavam nas mãos dos violadores.

No Grande Salão Esmeralda, Al Hakim se erguia como uma estátua num estrado coberto de peles. Suas mãos brancas estavam contraídas e seus olhos, nublados; parecia um bêbado. Na entrada do salão, se aglomerava um punhado de servos fiéis, expulsando a multidão com espadas desembainhadas. Um bando de berberes abria caminho penosamente através da turba heterogênea e entrava no corpo-a-corpo com os escravos negros; e, naquela tempestade de golpes de espada, nenhum homem teve tempo de olhar para a alva forma rígida no estrado.

Al Hakim sentiu uma mão lhe puxando o cotovelo, e olhou para o rosto de Zaida, vendo-a como num sonho.

- Venha, meu senhor! – ele insistia – Todo o Egito se revoltou contra você! Pense em sua própria vida! Siga-me!

Ele a permitiu guiá-lo. Movia-se como um homem em transe, murmurando:

- Mas eu sou Deus! Como pode um deus ser derrotado? Como pode um deus morrer?

Puxando para o lado uma tapeçaria, ela o guiou para dentro de uma alcova e através de um longo corredor estreito. Zaida aprendera bem os segredos do Grande Palácio, durante sua breve permanência lá. Através dos indistintos jardins com cheiro de pimenta, ela o guiou apressadamente, através de uma rua sinuosa entre casas de tetos planos. Ela havia lançado seu khalat sobre ele. Nenhuma das poucas pessoas às quais encontraram deram atenção ao par que corria. Um pequeno portão, escondido atrás de um amontoado de palmeiras, os fez atravessar o muro. A norte e leste, El Kahira era cercada pelo deserto vazio. Eles haviam saído pelo lado leste. Atrás deles, e bem longe ao sul, se erguia o ruído das chamas e da matança; mas, ao redor deles, somente o deserto, silêncio e estrelas. Zaida parou, e seus olhos brilhavam à luz das estrelas, enquanto ela permanecia muda.

- Sou Deus. – murmurou Al Hakim atordoado – De repente, o mundo ficou em chamas. Mas eu sou Deus...

Ele mal sentiu os braços fortes da veneziana ao redor dele, num último e terrível abraço. Ele mal ouviu o sussurro dela:

- Você me entregou nas mãos de um animal negro! Graças a ele, caí nas garras de minha rival, a qual me deu tamanha vergonha com a qual os homens não sonham! Eu lhe ajudei a fugir, porque ninguém, exceto Zaida, lhe destruirá, Al Hakim, idiota que pensou ser um deus!

Mesmo quando sentiu a estocada mortal da adaga dela, ele gemeu:

- Mas eu sou Deus... e os deuses não podem morrer...

Em algum lugar, um chacal começou a ganir.

De volta a El Kahira, no Grande Palácio Leste, cujos mosaicos estavam sujos de sangue, Diego de Guzman, uma figura ensangüentada, se voltou para Es Salih Muhammad, igualmente desalinhado e manchado.

- Onde está Al Hakim?

- Que importa? – riu o turco – Ele caiu; somos senhores do Egito esta noite, você e eu! Amanhã, outro se sentará no trono do califa; uma marionete cujas cordas puxarei. Amanhã, serei vizir, e você... peça o que quiser! Mas esta noite, governamos em poder nu, pelo brilho de nossas espadas!

- Mas eu gostaria de enfiar meu sabre em Al Hakim, como um clímax apropriado ao trabalho desta noite. – respondeu De Guzman.

Mas não era para ser assim, embora homens com adagas sedentas percorressem salões atapetados e câmaras abobadadas, até que ao ódio e fúria começassem a ser adicionados espanto e o temor supersticioso que cresce das lendas de desaparecimentos milagrosos, e através dos quais mistérios invocam o sobrenatural. O tempo transforma loucos em santos e místicos; nas distantes montanhas do Líbano, os drusos aguardam o retorno de Al Hakim, o Divino. Mas, embora aguardem até as trombetas serem sopradas pela passagem de 10 mil anos, eles nunca chegarão perto dos portais do Mistério. E somente os chacais que freqüentam as colinas de Mukattan, e os abutres que dobram suas asas sobre as torres de Bab el Vezir, poderiam contar o destino final do homem que queria ser Deus.


FIM





(*) – Muxarabi: Espécie de janela treliçada, de origem muçulmana (Nota do Tradutor);

(**) – Shaitan: Versão árabe do nome Satã (N. do T.);

(***) – Chifre de Ouro: Estuário que divide o lado europeu da atual cidade de Istambul (antiga Constantinopla). Era lá que o Império Bizantino tinha seu quartel-general naval (idem).





Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: The Lord of Samarcand.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Karoly Mazak, da Hungria.
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