Bhar-Laam

Introdução:


Este é o primeiro conto de reencarnação da minha autoria – baseado em diversos textos de Robert E. Howard, e o primeiro deles a ser parcialmente ambientado no século 21. Comecei a rascunhá-lo há cerca de cinco anos, quando eu ignorava o conteúdo do fragmento inédito “O Cavaleiro do Trovão”, e havia esquecido um importante trecho de “O Povo do Círculo Negro” – os quais quebravam a “mesmice nórdico-celta” de outros contos howardianos sobre reencarnação.

De qualquer modo, as traduções dos últimos anos me forneceram dados importantíssimos e inspiração para concluir a aventura seguinte; e espero que os leitores apreciem este conto pós-hiboriano com o mesmo prazer que tive em escrevê-lo. Embora mencione de passagem o protagonista da pouco purista “Traição em Asgalun”, o conto que segue é um dos mais puristas que já escrevi, mostrando somente elementos howardianos em combinação com os que eu mesmo criei.

E aproveito para dar meus agradecimentos especiais ao webmaster e amigo, o howardmaníaco Osvaldo Magalhães, por suas preciosas dicas, as quais me ajudaram a detalhar a estória a seguir. O conto propriamente dito – apesar de não ser protagonizado por James Allison – se passa entre os eventos narrados em “O Vale do Verme” e “O Jardim do Medo”.






Bhar-Laam
(por Fernando Neeser de Aragão)


1)

Após a morte do nosso valoroso líder Yasser Arafat, a minha Palestina natal se viu ameaçada por uma nova invasão de israelenses. Estes, que sempre tiveram o apoio dos malditos norte-americanos, agora tinham seus ataques e atentados financiados também por um traficante inglês que se chamava Edward Foxx. Um amigo meu e parceiro de guerra, o qual sabe falar Inglês, chamava-o desprezivelmente de Edward Dog (“Edward Cachorro”, em Inglês), e eu fazia o mesmo com mais ódio ainda, pois foram usuários das drogas que aquele desgraçado vendia – três israelenses e um palestino traidor – que assassinaram minha mãe e meus dois filhos, a única família que me restara.

Se Allah me der uma chance, sou capaz de rasgar o pescoço do desgraçado com meus próprios dentes, nem que eu tenha de morrer junto com ele. Se isso acontecer, sei que ganharei as almofadas do Paraíso, enquanto a alma daquele maldito loiro arderá para sempre no mármore do inferno!

Eu entendo que os israelitas foram, por muitos séculos, um povo sem pátria, e me compadeço daqueles que foram vítimas do racismo extremo daquele maldito alemão chamado Adolf Hitler. Mas isso não lhes dá o direito de invadirem um território que já era nosso há milênios, e desalojarem famílias inteiras de palestinos como eu, como foi feito a partir da criação do Estado de Israel. Talvez o israelense Isaac Rabin conseguisse pôr fim a este interminável conflito de quatro mil anos, mas o assassinato deste e, anos depois, a morte de Arafat, eliminaram esta esperança. E a chegada do maldito inglês só fez piorar tudo.

Pertenço a uma ala moderada dos palestinos. Enquanto alguns do meu povo querem reocupar toda Israel, eu e meus companheiros de ideologia só queremos parte daquelas terras – metade para nós, metade para os israelitas.

De repente, uma bomba, lançada na trincheira onde eu lutava contra israelenses, me despertou desses devaneios e explodiu, fazendo com que eu desmaiasse. Súbito, como num sonho, uma paisagem surgiu diante de mim. Por um momento, achei que eu tivesse morrido e alcançado o Paraíso. Mas alguma coisa me dizia que aquela visão era algo terrestre. Logo me peguei descobrindo que, mais do que um sonho, eu estava tendo uma lembrança! Uma lembrança de uma era passada eons atrás e quilômetros a oeste, numa região verde e exuberante! Uma região onde o verde existira onde hoje há deserto!



2) “E floresça o deserto aos teus pés!
Regando as areias, recriando regatos
E as luzes do Éden nas flores...”.
(Marcus Viana, em “Sob o Sol”/ 2001)


Após a morte do sábio Zinoatim de Asgalun, conselheiro do rei Menas I, do Egito, uma ameaça sinistra do norte ameaçou as fronteiras de Shem e, indiretamente, seu vizinho a sudeste, o Egito. Eram pictos, que, com suas armas de ferro e aço, e um pouco da magia aprendida nas ruínas do Império Aquiloniano, punham em perigo aquele remanescente ocidental do reino de Shem, mantido relativamente intacto pelo líder picto Gorm há séculos.

Como a maioria dos governantes egípcios da época, Menas tinha o corpo esguio, a pele morena e cabelos negros dos stígios, e os olhos azuis dos guerreiros ruivos da tribo de aventureiros que conquistara, ampliara e renomeara aquele reino. Preocupado, ele pediu a ajuda dos povos da fronteira norte do grande rio – descendentes de shemitas, amazonenses, hirkanianos e até de nórdicos.

Os três primeiros, por já estarem se miscigenando uns com os outros e estarem ameaçados em seu comércio com os vizinhos ao sul do rio, formaram confederações para se aliarem aos egípcios como mercenários. Já os descendentes dos vanires e aesires eram saqueadores, que só arriscavam suas vidas por pilhagem.

Além disso, aqueles bárbaros loiros e ruivos, embora vizinhos dos egípcios e shemitas, não tinham, como estes dois últimos, cidades muradas a defender. Viviam suas vidas tribais e tinham pouco ou nenhum vínculo com os remanescentes civilizados da sua época. Eles também sabiam se defender melhor que qualquer um daqueles povos de sangue negro, Khari, lemuriano, pré-humano e shemita. Não tendo seu sangue bárbaro diluído entre civilizados, como os governantes egípcios, qualquer um dos descendentes dos nórdicos tinha três vezes mais força, rapidez e habilidade que o mais bem-treinado guerreiro de Shem ou do Egito.

Contudo, fui eu, Bhar-Laam, um canlam, vindo do leste – onde negros, descendentes dos ex-escravos de Amazon, trazidos séculos antes pelos outrora poderosos hirkanianos, se miscigenavam intensamente com os shemitas –, que me tornei a salvação dos reis de Shem e do Egito.

Meu pai era shemita, e minha mãe, uma negra de ascendência amazonense. Meu povo mestiço já existia há séculos, desde a época em que os hirkanianos fugiram para o leste do Mar Interno, por causa de invasões, saques e destruições ao seu outrora poderoso império ocidental. Mas mesmo assim, o meu povo ainda estava em formação: os canlams, futuros ancestrais longínquos, tanto de cananeus quanto de elamitas. De meu pai, herdei o nariz aquilino; de minha mãe, a cor de mogno e a textura lanosa dos meus longos cabelos pretos. Minha barba negra, que cobria meu escuro e musculoso peito nu, era tão crespa quanto a de qualquer shemita ou negro. Meus lábios não eram tão finos quanto os de meu pai, nem tão grossos quanto os de minha mãe.

Mais do que um mero parentesco, percebi, ao me lembrar disso, uma unidade entre o eu esguio e cor-de-oliva que sou hoje, e o eu musculoso e quase negro que eu fui. Minha musculatura de milênios atrás era capaz de impressionar até mesmo alguns dos nordheimrs da época – muitos dos quais já haviam recuado, da idade do ferro e do aço, para a idade do bronze.

Meu pai havia adoecido e morrido um ano antes. Minha mãe casou-se com outro homem, e eu, sabendo que ela estaria segura com o novo marido, vim para o Egito. Não conheci terra mais formosa do que aquele reino em seus primórdios vanires. Quando os ruivos navegaram até aquele país – assim diziam as crônicas de Zinoatim, lidas por Menas para mim –, o local se chamava Stygia. Dentre outras coisas, os co-ancestrais vanires do atual rei haviam abolido o tenebroso culto a um demônio-serpente de nome Set (ou Satha, como era chamado por parte dos stígios e pelos negros que, expulsos da Stygia pelos vanires, se miscigenaram com pictos e shemitas, a leste de Shem), e substituído-o – assim como à própria religião dos conquistadores nórdicos – pelo culto a Íbis e a diversos outros deuses zoomórficos, porém benignos. Só dali a milênios, quando o Egito voltasse a ser desértico, é que o culto a Set como deus (e não como demônio) retornaria – mesmo assim, em pequena escala –, com tal divindade representando o vento do deserto. Mas, durante minha vida como Bhar-Laam, o Egito era um país cujo verdor se estendia até os pântanos do sudeste, os quais haviam diminuído por causa das glaciações. Os negros que viviam naqueles então diminutos pântanos – os darfaris – haviam sido também dominados pelos egípcios, mas receberam relativa autonomia em troca da abolição do canibalismo, proposta pelos governantes que orgulhosamente traziam sangue stígio e vanir nas veias.

Eu estava passeando pelas ruas de Luxor, a mais bela, grandiosa e próspera cidade daquela época. Embora avisado do perigo, o povo local não parecia muito preocupado com a ameaça que alcançava o reino vizinho a noroeste. Nobres de olhos azuis ou verdes eram carregadas em liteiras por escravos de pele escura – descendentes não-miscigenados de stígios e kushitas –, enquanto guardas ruivos, morenos e miscigenados percorriam as ruas da cidade. Eu estava numa taberna, bebendo uma caneca de vinho com minha única moeda de ouro restante, quando a guarda do rei Menas adentrou o recinto, oferecendo o peso em ouro daquele que saísse consciente do local após uma briga.

Resta dúvida sobre quem se manteve consciente, enquanto o taberneiro e as prostitutas se escondiam assustados atrás do balcão? Meu povo vivia a leste do Egito e das cidades shemitas que se erguiam a norte do Nilus. Naqueles prados, eu cresci cortando madeira de florestas, por horas a fio – às vezes, dezesseis horas por dia –, para ajudar meu pai shemita, que, embora marceneiro, não era tão musculoso quanto eu. Minha alimentação era à base de frutas silvestres e carne de javali. Na adolescência, eu matava dentes-de-sabre com poucos golpes, para vender-lhes o couro e presas às cidades do leste do Egito. Em combates como esses, além de escaramuças e outras brigas, eu havia desenvolvido uma agilidade felina. Todas as qualidades de luta dos loiros e ruivos de Nordheim também se aplicavam a mim.

Não parti para o ataque, mas esperei o mesmo. Um stígio bêbado tentou me esmurrar a face, mas me esquivei e acertei-lhe a barriga gorda com meu punho fechado. Ele caiu ajoelhado, vomitando vinho e cerveja no chão. Um negro – provavelmente de Kush, e quase tão forte quanto eu – tentou me acertar com um chute, mas agarrei-lhe a perna erguida e a quebrei com outro soco.

Cadeiras e bancos voavam a esmo pelo recinto, lançadas pelos contendores. Uma delas se espatifou em minha nuca, mas nem chegou a me fazer cócegas. Olhei para trás e vi um loiro franzino me pedindo desculpas com um sorriso sem jeito. Eu não ia fazer nada, mas em meio àquele caos, um brutamontes acertou o nariz do magrelo, deixando-o inconsciente, e depois partiu para cima de mim. Acertei o grandalhão com um chute nos testículos, e o nocauteei com um murro na cabeça.

Covardemente – pois a ordem era “sair consciente”, e não “sair vivo”, o que implicava não matar –, um mestiço de vanires e stígios, de cabelos castanhos, tentou me acertar uma punhalada no peito; mas travei-lhe a mão armada e, com um murro em seu queixo, fiz o covarde atacante de olhos verdes cair ao chão.

Em seguida, um gigantesco descendente de stígios com shemitas, tão alto quanto eu, investiu contra mim – também covardemente, pois estava armado com uma espada na mão direita –, ao mesmo tempo em que um loiro, também brutamontes, me segurou por trás. Com um balão, arremessei o loiro por cima de mim, em direção à lâmina que o stígio-shemita me apontara. O de cabelos claros morreu com o pulmão furado, vítima do próprio veneno que ele e o comparsa me armaram. Já o de nariz aquilino teve mais sorte: enquanto ele tentava puxar a espada do corpo do loiro, esmurrei-lhe a boca, arrancando-lhe vários dentes num jato de sangue. Meio zonzo, o moreno cambaleou, e então terminei de nocauteá-lo, com um soco na têmpora.

Por fim, um último velhaco tentou me estrangular, com uma chave de braço. Com pouco esforço, soltei meu pescoço e arremessei o homem em direção a uma das mesas, onde ele bateu a cabeça e ficou inconsciente.

Olhei ao meu redor, esquadrinhando cada canto da taberna à procura de algum adversário que ainda estivesse de pé e em condições de lutar. Não vi nenhum. Com exceção do taberneiro, que se levantara e punha as mãos na cabeça diante de tamanha bagunça, das prostitutas que espiavam amedrontadas por detrás do balcão, e do rei Menas e sua guarda postada na saída da taberna, não havia qualquer outro homem de pé. O silêncio era quebrado apenas pelos gemidos de dor e de agonia dos feridos. Sangue, vinho e cerveja derramados se misturavam no chão, formando um amálgama viscoso e mal-cheiroso. A taberna estava um caos com mesas e cadeiras quebradas. Aqui e acolá eu avistava uma perna estirada para cima com o restante do corpo oculto por uma mesa espatifada; braços e cabeças, engalfinhados em posições que pareciam impossíveis, compunham o aspecto restante do ambiente.

A guarda de Menas voltou a adentrar o recinto formando um corredor humano à minha frente, por onde o rei se pôs a caminhar com uma elegância e uma pujança quase leonina.

Os dois guardas que estavam mais próximos de mim e na ponta de cada lado da formação, apontaram suas azagaias pontudas diretamente para o meu peito nu.

Não me movi em absoluto e aguardei, até que o rei chegou e parou a três passos de distância. Se quisesse, poderia ter saltado como um tigre e decepado a cabeça do monarca antes mesmo que os guardas pudessem reagir. Mas não tinha nenhum motivo para isso, e eu não queria ser caçado como um lobo pelas ruas de Luxor. Além do quê, aquele rei tinha algo que me agradava: ouro e uma chance de emprego.

Os olhos azuis do rei me fitaram por um longo tempo, como que me avaliando. Fiquei como estava: com os braços cruzados sobre o peito, a cimitarra pendendo embainhada de meu cinto, as pernas abertas num ângulo seguro e o queixo barbudo apontado para a face do soberano.

Qualquer outro homem teria se ajoelhado perante Menas, mas este canlam do Leste não se ajoelharia para homem algum, rei ou não.

Menas, ao contrário da maioria dos soberanos, pareceu não se importar com isso. Achou até divertida a minha impertinência, atribuindo-a à minha ignorância pastoril.

Por fim, ele falou:

- Homem, quem és tu?

- Bhar-Laam. – respondi laconicamente.

- E de que recanto deste mundo tu vistes?

- Sou do Leste. Cheguei há pouco tempo em Luxor, à procura de uma guerra para empregar os meus talentos e o meu aço.

- Pois tu acabas de ganhar a tua guerra, Bhar-Laam! Acompanha-me, pois temos muito a conversar.

Então, girando sobre os calcanhares, o rei voltou-se para o corredor de sua guarda, mas, antes de continuar, ele avistou o taberneiro desconsolado cercado pelas prostitutas.

- Taberneiro. – disse o rei – Compareça ao palácio ainda hoje com a contabilidade de seu prejuízo. Darei ordens ao tesoureiro para te ressarcir e mais uma compensação pelo teu tempo perdido.

Dito isso, o rei se pôs a caminhar. Antes que eu desse um passo, a guarda já havia cercado seu soberano, restando-me apenas seguir a coorte.


* * *

Fui levado até o Palácio Real, onde Menas me contou sobre a ameaça picta da qual já falei. Era um lugar suntuoso, o Palácio Real de Luxor! Era feito de mármore e pedra negra, e o teto não podia ser visto, dada a sua altura colossal! As escadas do portão do palácio eram pavimentadas e largas o bastante para subirem dez homens lado a lado.

Guardas com elmos de bronze e cortesãs nuas – “vestidas” apenas com altos adornos de plumas sobre as cabeças – faziam reverência ao rei, enquanto este se dirigia ao trono, a 90 metros de distância do portão do palácio. A meio-caminho entre o referido portão e os tronos propriamente ditos, ficavam, numa sacada à direita de quem entrasse, as esposas do rei Menas – beldades de origem stígia, kushita, shemita, e mestiças destas três primeiras umas com as outras ou com vanires deserdadas, e até com remanescentes mestiças de hiborianas, da plebe egípcia. Mas nenhuma delas se igualava, em beleza, à mulher de cabelos em corte reto sobre o estrado, cujo trono ficava ao lado do trono do rei do Egito!

Nefer-yedda, irmã do rei Menas, era – assim como o rei egípcio – descendente de stígios e vanires, mas uma de suas avós era de origem kushita – uma bela nativa cor-de-ébano, trazida da região sudoeste do Egito. A princesa do Egito tinha a mesma cabeleira ruiva dos vanires que dominaram aquele país juntamente com os reinos de Kush, Darfar e Kordafan; sua pele clara era dourada pelo sol tropical daquela região – que, graças às glaciações, deixara de ser desértica –; seus olhos verdes indicavam claramente a miscigenação entre povos de olhos azuis e olhos negros; e seus lábios carnudos indicavam-lhe a ascendência kushita.

Infelizmente, aquela mulher não se encaixava no padrão de beleza dos primeiros egípcios, o que fê-la chegar aos 35 anos solteira. Mas, aquele conjunto de três raças em uma só me fez o sangue latejar nas veias: aquela mulher era belíssima! Talvez por ter nascido entre um povo mestiço e ter um meio-irmão cuja mãe era hirkaniana, eu valorizava diversos tipos de beleza feminina. Deste modo, quando Menas, após me adiantar o ouro para combater os pictos, me perguntou qual a recompensa que eu desejava caso saísse vitorioso, não pensei duas vezes em responder: a mão de Nefer-yedda em casamento!

A princípio, Menas achou minha idéia um tanto petulante, mas terminou aceitando, já que sua irmã ainda era solteira, e que o fato dela se casar comigo não ameaçaria a herança de seu filho recém-nascido ao trono – mesmo eu sendo um guerreiro ágil e fortíssimo, ele sabia perfeitamente que eu estava atraído pela princesa, e não pelo poder.


À noite – ao contrário dos tempos anteriores à conquista vanir –, a cidade ficava apinhada de pessoas alegremente vestidas, a rirem e passearem pelas calçadas; e casas de comércio e balcões escancarados, ostentando suas mercadorias sob as luzes de lampiões e fogaréus. Prostitutas ficavam nas esquinas, enquanto nobres altos, a cavalo ou em carruagens, as levavam para luxuosas mansões, onde pagariam para terem relações sexuais com elas.

Eu estava no alojamento dos mercenários – quase tão luxuoso quanto os aposentos palacianos –, e cortesãs eram oferecidas aos meus colegas mercenários (quase todos tão estrangeiros quanto eu). Menas chegou a me oferecer uma das mulheres de seu harém – uma beldade alta e branca, de cabeleira negra e brilhantes olhos negros; a única delas que descendia dos Reis-Gigantes, os quais outrora governavam a Stygia, antes mesmo dos stígios de pele marrom, ou Kharis, cruzarem o Styx! –; mas, além de já ter me divertido, durante o dia, com uma bela stígia marrom na taverna, eu só conseguia pensar em Nefer-yedda.


3)

No dia seguinte, velas foram içadas, e embarcações longas, estreitas e baixas foram impelidas por remos e pela correnteza fluvial, levando exércitos egípcios, e de mercenários aliados a eles – eu era um desses mercenários –, para a margem norte do caudaloso Nilus, até Shem, onde ajudaríamos aquele reino a se livrar dos pictos que os ameaçavam.

A viagem durou vários dias, levando os mercenários dos quais eu fazia parte. Eram homens de diversos lugares, exceto das tribos vanires e aesires. Juntamente com os mercenários, iam os egípcios – vestidos com tangas de seda e sandálias, cotas-de-malhas sobre os poderosos troncos, elmos de bronze nas cabeças; e, nos cintos, espadas curvas de aço e leves machados de batalha. Alguns dos egípcios carregavam arcos pesados, de poder evidente, e aljavas com longas flechas farpadas. E todos – especialmente o exército de Menas – usavam lanças.

Após uma longa travessia, chegamos às selvas ao norte do Nilus, onde se erguiam as cidades das planícies do reino de Shem.

Aquelas cidades shemitas viviam em contínuas lutas contra os pictos, nórdicos e atrianos – estes últimos, descendentes mestiços de stígios, hirkanianos e pictos, bem como ancestrais distantes dos primeiros etruscos –; e seus moradores eram um povo endurecido contra aqueles demônios pintados, desde a época em que ficaram independentes dos pictos graças às invasões nórdicas. Desta vez, contudo, a invasão picta era tão perigosa que, além de requisitar a ajuda dos egípcios – com os quais tinham próspero comércio –, o povo de Shem deixou de lado qualquer uma das esporádicas guerras civis.

Em Asgalun (ou Askalon, como era chamada pelos não-shemitas), a cidade mais poderosa daquele reino, havia ruas estreitas, largas avenidas flanqueadas por colunas e leões de pedra entalhada, e acima, grandes extensões de casas com tetos planos. Muitas das construções eram de pedra. E, em muitas destas, as fachadas eram lisas, e as portas, baixas. Os fornos, as forjas e os bares atraíam muita gente.

O muro que cercava a cidade era alto e grosso, com torres espaçadas a intervalos regulares. Vi figuras com armaduras e aspecto guerreiro se moverem como sentinelas ao longo da muralha. As ruas e mercados apresentavam um labirinto colorido. A sala do trono do palácio real de Asgalun era tão esplendorosa quanto a do de Luxor, embora menor: tinha um teto alto, porém visível, um comprimento de 52 metros e largura de 17. Dentro dos palácios, as paredes de azulejos eram ricas em decorações murais, afrescos e entalhes pintados em várias cores, bem-matizadas e combinadas.

Com movimentos fluidos e sensuais, a dança das mulheres de Shem ainda era feita para louvar a Ishtar, deusa do amor e dos prazeres carnais. Foi no meio de uma daquelas festas, que reencontrei meu meio-irmão – que, por descender de shemitas com hirkanianos, usava orgulhosamente o nome de Shumir –, se divertindo com uma bela prostituta local. Após algumas horas de prazer com ela, ele se juntou ao exército de Menas. Meu irmão gostava de viajar mais do que eu. Por coincidência, ele havia se alistado no exército de mercenários shemitas de Pelishtia, o qual se aliou a nós, assim que eu e os egípcios adentramos aquela cidade, onde os shemitas nos aguardavam para unirem forças conosco.

Em seguida, acampamos próximos a uma floresta do lado de fora de Asgalun, pois era além dos muros daquela cidade que o perigo se encontrava, e, portanto, era lá que nós o enfrentaríamos. O rei de Asgalun ofereceu hospedagem a Menas, mas ele – assim como todos os futuros reis do Egito até os primeiros faraós – se orgulhava do belicoso sangue vanir que tinha nas veias, e preferiu dormir numa das tendas do acampamento dos guerreiros que chefiava, o que fez crescer meu orgulho e admiração para com aquele líder, ao qual eu já tinha desde aquele momento como amigo.

Àquele exército, também aderiu um grupo de mercenários negros – ex-escravos de pictos mestiços que viviam nas selvas das colinas de Shem Oriental (a migração mais oriental daquele povo atarracado, o qual agora se miscigenava com seus escravos negros, nas selvas orientais das quais falei). Seu líder se chamava Urumbassa.

Embora barrigudo, o chefe da única tribo rebelde de negros puros do leste de Shem – a qual se rebelara contra o domínio picto naquela região a nordeste do Egito e se aliara a nós – tinha todo o restante do corpo musculoso e firme. Sua cabeça de ébano – quase raspada, exceto por meia-dúzia de finas tranças longas a lhe descerem, do alto da nuca até o meio das espáduas – estava coberta por um enfeite, feito com a juba inteira de um leão. E, apesar do corpanzil, Urumbassa tinha a agilidade de um tigre.

E nossos principais aliados eram dali de Shem, é claro: pelishtios atarracados, de nariz aquilino e barba muito negra que caía sobre o peito coberto com cota-de-malha

* * *

Naquela madrugada, acordei de meu sono leve, ao ouvir o estalar de um graveto, a dezenas de metros de minha tenda. Meus instintos me diziam que não era um pé humano que havia pisado naquele graveto. Levantei-me de um pulo, peguei minha lança e amarrei minha espada à cintura.

Chegando ao lado de fora, finalmente vi do que se tratava: um feroz dentes-de-sabre – um animal bem maior e mais pesado que um tigre listrado, quase tão volumoso quanto um urso. Assim como entre os de sua espécie que eu conhecera a leste, seus ombros e patas dianteiras eram bastante maciços e musculosos, e seus quadris eram mais poderosos que os de um leão. Suas mandíbulas eram possantes e dotadas de caninos enormes e curvos. Em seu cérebro diminuto, só havia espaço para os instintos de destruição. Era, para aqueles que nunca o viram nem enfrentaram, um horror de presas e garras.

Seus olhos vermelhos brilhavam na penumbra daquele acampamento noturno. O dentes-de-sabre fora destinado à tenda do rei Menas – o qual parecia não demonstrar medo, apesar da estrutura esguia. Um egípcio de cabeça raspada se adiantou com sua lança, para defender Sua Majestade daquele enorme tigre. Mas, com um salto e um urro – que gelariam a espinha de qualquer um que não fosse eu –, o enorme felino esmagou a cabeça daquele guarda com as poderosas mandíbulas,

Antes que a fera pudesse atacar Menas – o qual já estava com a própria lança de prontidão –, eu arremessei minha lança em sua enorme boca escancarada e manchada de sangue. A ponta de metal se projetou pela nuca, mas o tigre avançou feroz em minha direção. No último instante, me esquivei para um lado – uma brincadeira de criança para quem matara feras como aquela na adolescência – e, com minha cimitarra, abri um corte na jugular do felino, para, no momento seguinte, partir-lhe o crânio ao meio.

Urumbassa, apesar de ágil, não tinha os sentidos tão aguçados quanto os meus, de modo que o líder negro chegou depois que eu havia matado o dentes-de-sabre.

Não me parecia uma fera domesticada; o animal era selvagem! E felinos como aquele só existiam nas selvas ao norte e leste de Shem. Como podia ter sido trazido para cá, sem ser naturalmente domado, se não fosse por magia? Naquele momento, percebemos que tínhamos mais do que inimigos humanos e naturais para enfrentar...

Cientes disso – e do fato dos pictos terem um feiticeiro poderosíssimo a serviço deles, segundo os boatos dos nossos shemitas –, eu e meu meio-irmão conversamos com o rei Menas a respeito de uma idéia que tivemos. Ele a achou temerária, mas decisiva, e nos deu permissão para que a executássemos.

* * *

Eu e meu irmão nos esgueiramos à noite até o acampamento picto, a um dia de cavalgada dali. Nossa missão era matar o feiticeiro-chefe do exército picto. Além de imaginarmos que o mago teria enviado o dentes-de-sabre para matar Menas, fomos avisados de que escravos – shemitas e descendentes puros dos negros que outrora viviam ao sul do Egito – eram obrigados a construírem máquinas de assédio, e estávamos cientes de que a morte do referido bruxo tiraria a auto-estima daqueles cães pintados.

Misturando-nos às sombras, nocauteamos cada um uma sentinela, com uma paulada em cada cabeça – nosso objetivo era fazer o líder picto achar que os dois guardas da tenda haviam dormido ou sofrido leves acidentes. Adentrando a tenda – quase tão luxuosa quanto um aposento de um palácio shemita ou egípcio –, vimos uma esguia figura de costas para nós, com longos cabelos negros e os braços estendidos cobertos por um enorme manto espesso de veludo vermelho, que ia até o chão.

Meu irmão olhou ao redor, enquanto eu mirava minha lança para as costas do maldito bruxo. Súbito, a pessoa que a quem eu ia matar virou-se de frente: era uma mulher! E, apesar dos cabelos e olhos escuros – e da estatura mediana que alguns daqueles demônios em cota-de-malha possuíam – não se parecia nada com um picto: tinha a pele alva, o corpo era magro, porém curvilíneo, e estava coberto por um curto vestido branco sob o manto escarlate; e seus olhos negros eram luminosos. Era de uma estranha beleza, e dirigiu a palavra a mim, numa voz que soava como distantes sinos dourados:

- Sei por que está aqui, Bhar-Laam. – me disse a jovem de cabelos ondulados, enquanto eu hesitava em usar a lança – E também sei que você nunca matou, nem mataria a uma mulher.

Subitamente, meia dúzia de pictos invadiu a tenda. Com as costas coladas às de Shumir, enfrentamos e matamos um por um. Antes que outros, alertados pelo retinir das armas e pelos gritos, viessem para cá, apontei meu punhal no pescoço da bela feiticeira e ameacei matá-la, caso não me abrissem caminho. Fugimos de lá na mesma biga que nos levara ao acampamento inimigo.

* * *

Chegando ao acampamento, a mulher permanecia em teimoso silêncio no início. Mas, consciente do que ela própria havia dito, quebrou subitamente o silêncio:

- Antes que me perguntem, não fui eu quem enviou o dentes-de-sabre para o rei a quem vocês servem. Ainda que eu conheça segredos inimaginados, tanto por vocês quanto pelos pictos, eu não sou uma feiticeira. Sou a filha de um rei da obscura Lemúria, que o mar engoliu há muito tempo. Ainda jovem, fui casada com Poseidon, o deus do mar, que me concedeu o dom... ou a maldição... da vida eterna.

“Mas continuei vivendo na púrpura Lemúria, jovem e bela, enquanto minhas amigas envelheciam e morriam. Até que, um dia, Poseidon se cansou da Lemúria e da Atlântida. Vi estes continentes afundarem, mas Poseidon me ergueu suavemente sobre seu seio e me levou intacta a uma terra distante dali, onde vivi adorada como deusa, por uma estranha, porém benevolente, raça de selvagens de pele morena, nariz aquilino e barba preto-azulada.

“Presenciei o surgimento dos hiborianos que, juntamente com os stígios de pele escura... estes últimos, já se encontrando ao sul e norte do Styx ou Nilus... tiraram do barbarismo o primeiro povo que me tomou por deusa. Num dia infeliz, porém, enquanto fugia de uma feroz e sangrenta escaramuça entre aquele povo e os stígios de Kuthchemes, fui parar nas praias ao sul dos antigos desertos shemitas. Lá, abordei, séculos depois, uma galé da distante Khitai, que em seguida contornou os mares do sul e atravessou o oceano a oeste daqui.

“Mas, um furacão fez o navio afundar dentro do golfo de um distante continente ocidental. Só eu sobrevivi, mais uma vez graças à ajuda de Poseidon, mas terminei me tornando escrava de sacerdotes malignos, pertencentes a um povo que se dizia descendente dos lemurianos, mas que não passava de ex-súditos dos mesmos e que falavam a mesma língua de seus ex-lordes. Durante mais de mil anos, fui prisioneira numa câmara em forma de cúpula, debaixo do domo dourado do templo de Khemu... deusa para o povo, mas escrava dos sacerdotes!

“Depois de tão longo suplício, fui libertada por um guerreiro loiro de terras distantes, membro de uma horda de mercenários errantes que fora acolhida e traída naquela cidade. Graças a isso, pude usar um poder que possuo, para me vingar daqueles que me escravizaram. Novamente, fui salva por Poseidon, e viajei por inúmeras terras nos últimos séculos.

“Mais tarde, visitei Khitai, e mais uma vez naveguei para o sudoeste, até seguir para norte, subindo a Costa Negra e a Stygia. Meu objetivo era chegar às terras ao norte do Nilus, onde meu nome também havia sido venerado durante a Era Hiboriana.

“Mas uma tribo de cavaleiros pictos, renegada pelo próprio povo, rendeu e escravizou a mim, bem como a vários shemitas ali presentes”.

Eu ouvia a tudo, fascinado. Ela era uma mulher muito bela, e quase pensei em cortejá-la, apesar de já estar prometido – e vice-versa – à princesa Nefer-yedda. Mas, o fato dela ser imortal e ter um poder oculto me fez mudar de idéia. Temeroso em profanar alguém que talvez eu conhecesse, admirei-a sem desejá-la, como uma pessoa faz com uma bela paisagem ou com um amigo leal – e aquela mulher parecia uma feliz combinação de ambos.

Então, a lemuriana abaixou a voz, e me acrescentou:

- Se você, ou seu irmão, puder me levar à praia desta cidade, eu posso ajudá-lo a derrotar os pictos, caso o exército egípcio falhe. O líder picto possui um pouco de magia, e soube deste meu poder. Mas, embora os pictos sejam bons rastreadores na selva, a magia do maldito é insuficiente para que ele saiba onde estou, se eu for à praia.

Sorri, desconfiado.

- E quem garante que você usará seu poder a nosso favor? – perguntei.

Ela me olhou num misto de tristeza e raiva, com os olhos úmidos de rancor e mágoa.

- Por acaso, eu ajudaria uma gente que fez isto comigo? – explodiu ela, ao mesmo tempo em que abaixava a parte superior do vestido.

Então, calei minha boca e, bestificado, engoli minhas palavras, enquanto olhava para o vil trabalho que aqueles cães pintados haviam feito com ela: os seios da lemuriana apresentavam marcas recentes e mal-cicatrizadas de um chicote picto.

* * *

Pouco depois de Shumir ter levado a mulher imortal à praia, o dia amanheceu, a tarde se passou, e finalmente o sol se pôs outra vez sobre as selvas, fazendo a noite entrar.

E foi naquela noite azulada na selva úmida, enquanto escutava os tambores pictos baterem em ritmo de pé-de-guerra, enquanto a batalha se fazia cada vez mais iminente, que eu busquei um local à parte do iluminado acampamento egípcio para, longe daquelas fogueiras, rezar a Ishtar, deusa do povo do meu pai.

Durante a oração, contudo, o que me invadiu foi o espírito do povo negro de minha mãe – não apenas o dos negros de Amazon, dos quais ela descendia, mas o espírito que vagou, viveu e morreu entre vários corpos negros pelo continente meridional, até se tornar Bhar-Laam. O espírito dos nativos da outrora imperial Negari, que se rebelaram contra o domínio opressor dos atlantes; dos darfaris dos pântanos, que comiam crus os corações ainda pulsantes dos seus inimigos moribundos; dos puntianos, em suas batalhas encarniçadas contra Keshan, e dos gallahs, que há muitos séculos em Shumballa, se rebelaram contra o jugo tirânico dos chagas – diferente do governo condescendente dos reis de sangue vanir, no Egito.

Naquele momento – em que eu tive uma vaga noção de que uma pessoa vive várias vidas –, eu estava com uma bravura e coragem ancestrais no coração, e me sentia mais pronto do que nunca para lutar e matar – até morrer, se preciso, pois estava tomado pelo espírito selvagem daqueles que lutavam encarniçadamente por suas autonomias. E eu não iria deixar que Shem e o Egito fossem invadidos por cães sem escrúpulos, que valorizavam o mesmo sacrifício humano que fora banido pelos vanires, e que matavam impiedosamente seus inimigos – fossem homens, mulheres, crianças, velhos ou bebês. Isso, sem contar que eu não deixava de pensar em Nefer-yedda, dos cabelos cor-de-fogo, dos olhos cor-de-jade, e do maduro e mestiço rosto dourado.

Eu sabia que, dali a pouco, os pictos, enlouquecidos de ódio com o rapto da “feiticeira” deles, atacariam nosso acampamento, não muito longe do deles. Foi o que aconteceu no instante seguinte: eram centenas, a cavalo, com pinturas azuis nos rostos, vestindo malhas de aço e munidos de arcos e espadas.

À frente dos pictos, e fazendo a terra estremecer, vinha um enorme rinoceronte – maior que os das terras ao sul do Egito, e bem mais peludo. Entretanto, o rei Menas arremessou a lança, certeira, no coração do animal, e este caiu durante a corrida, indo escorregar a poucos metros da linha de frente de nosso exército. Parecia ser, assim como o dentes-de-sabre que eu matara, um animal selvagem, trazido por magia.

De qualquer forma, a morte daquela besta diminuiu um pouco o moral dos cavaleiros pictos, que vinham se chocar contra nossos enormes escudos e lanças.

Até alguns mercenários da região de Atriann – descendentes mestiços de refugiados stígios da invasão vanir à Stygia, com remanescentes hirkanianos e pictos que viviam quilômetros ao sudeste das terras pictas de então –, com seus mantos escarlates e coletes de couro, faziam parte do exército do rei picto Sagoyaga: um guerreiro tatuado e de estatura mediana, com a cabeça raspada e brincos pelo rosto e corpo. Com minha lança, mirei o infame líder picto, mas quis o destino que ela atingisse outro selvagem em cota-de-malha, que cavalgava ao seu lado.

E não vimos nenhuma máquina de assédio com eles. Certamente, a perda da “bruxa” deles para nós lhes apressou o ataque, de modo que não tiveram tempo de construí-las.

Os arqueiros pictos precisavam frear seus cavalos para atirarem. No entanto, os atrianos constituíam um perigo ainda maior que os cães pintados aos quais acompanhavam, porque os mercenários de Atriann haviam aprendido, com seus co-ancestrais hirkanianos, a atirarem suas flechas com as montarias a pleno galope, na exata fração de segundo em que as patas das mesmas ficavam acima do chão.

Então, o retinir do aço contra o aço e do ferro contra o ferro invadiu a floresta ao redor da cidade: espadas, escudos, machados, lanças e flechas. Os egípcios e shemitas ali presentes, embora simpatizassem com meu povo, detestavam meus parentes de sangue puro das selvas a nordeste do Nilus, pelo fato destes adorarem um deus que fora banido da Stygia após o domínio vanir – e apesar de terem aliados de pura origem amazonense. Contudo, eu me compadecia deles, não só por serem tão do meu sangue quanto os shemitas, mas também por serem tratados como escravos – e eu sempre abominei a escravidão.

Assim, meu sangue virou fogo, quando vi os parentes não-miscigenados de meu povo – os quais haviam sido trazidos por outros pictos, em sua colônia mais oriental, nas colinas a leste de Shem – serem trucidados como gado.

Após um breve entrechocar de três espadas, estripei, de um só golpe, o picto e o atriano que estavam matando os escravos e prisioneiros negros. Um terceiro tentou me apunhalar, mas, cravando os dedos ao redor de seu pescoço, ergui o cão picto e transformei-lhe a coluna cervical em migalhas sob sua garganta amolecida pelo estrangulamento.

No momento seguinte, um cavaleiro picto, após acertar três flechas em meu escudo, investiu contra mim, e teve a perna esquerda decepada por minha cimitarra. Ao cair do seu cavalo, o picto foi pisoteado pelos cascos de outras montarias.

Em seguida, um atriano, esquecendo que podia simplesmente usar suas flechas contra mim, saltou de seu cavalo em minha direção, com espada e escudo erguidos; mas, antes que ele pudesse descer sua lâmina contra mim, acertei-lhe um chute entre as pernas, destroçando-lhe os testículos, quebrando-lhe a bacia e partindo-lhe a coluna vertebral ao meio.

Então, comecei a disparar minhas flechas contra os invasores, derrubando vários pictos de seus cavalos e sem errar um único disparo.

Enquanto isso, um arqueiro picto tentou me acertar com uma seta, mas foi morto por uma lança shemita, arremessada mortalmente em sua direção. A partir daquele momento, acertei minha última flecha num atriano, usei o cadáver do recém-abatido picto como novo escudo contra qualquer flecha inimiga e comecei a usar minha cimitarra e punhal.

Quando o cadáver picto ficou estraçalhado demais para me proteger, eu o descartei e logo me vi cruzando espadas com dois pictos – um de cada lado. Quando ambos chegaram muito perto de mim, me esquivei para trás, fazendo com que a espada de um deles decepasse a cabeça do outro. Matei o picto que dera o golpe no companheiro, com um chute em sua têmpora, antes que ele pudesse traçar outro arco com sua espada reta.

Por sorte, as flechas pictas acabaram quase ao mesmo tempo em que as pelishtias – estas últimas, capazes de voarem a uma distância de 450 metros. Mas a vantagem numérica ainda pendia para o lado dos pictos e atrianos.

Assim, num momento em que Urumbassa estava extenuado pela batalha e cercado por seis ferozes pictos, um sétimo selvagem pintado apunhalou o bravo canlam do oeste pelas costas. Este desabou inerte sobre a lama ensangüentada. Furioso, cravei minha longa adaga na clavícula do assassino de Urumbassa, com tal força que perfurei a cota-de-malha, pulmão e coração do selvagem. Após puxar o punhal do corpo do assassino do líder negro, despedacei os outros seis atacantes com apenas dois golpes de minha enorme cimitarra.

Enquanto isso, shemitas e egípcios enfrentavam pictos e atrianos num acirrado corpo-a-corpo; alguns pelishtios desviavam golpes de espadas pictas, ao mesmo tempo em que abriam as gargantas dos inimigos; outros aliados, do sul do Nilus, decepavam o braço de um picto ou atriano, só para receberam um golpe de escudo do outro braço do rival e serem retalhados por antagonistas que vinham por trás. Para cada picto ou atriano morto, um egípcio ou pelishtio também perecia em combate.

Mesmo assim, o rei mestiço do Egito não fazia feio. Compensando sua força relativamente menor com uma agilidade quase igual à minha, ele rasgava pescoços pictos, e ventres e peitos atrianos com sua espada. Houve um momento em que ele chegou a usar o próprio escudo de um inimigo para despedaçar os dentes do mesmo; e, após chutar-lhe os testículos, Menas lhe rachou o crânio num golpe descendente da espada.

Um escudo foi lançado em minha nuca; e, ao me virar, vi um atriano, cuja montaria fora morta por uma seta shemita, correr em sua direção, com a espada erguida e um grito nos lábios. Agarrei-lhe o punho com uma das mãos e, erguendo o atriano no ar pelo pescoço, eu o estrangulei até lhe quebrar o pescoço – como havia feito anteriormente com um dos pictos carniceiros.

Foi então que me vi, frente a frente, com o líder dos pictos. Ao vê-lo, a imagem da minha amiga imortal, com os seios chicoteados, bem como a do bravo Urumbassa morto e a dos escravos chacinados, queimaram como fogo em minha mente. O ódio por aquele homem tatuado me fazia vê-lo por entre uma nuvem vermelha. Louco de fúria, investi contra ele.

Minha maneira de lutar era tão instintiva quanto os movimentos de um lobo da floresta. As complexidades da técnica de lutar eram inúteis contra minha fúria primitiva. Mas o mesmo poderia ser dito do líder picto chamado Sagoyaga. O chefe picto era tão ágil quanto eu, como percebi logo nos primeiros golpes entre minha enorme cimitarra e o gládio de Sagoyaga. Mas minha força era bem maior que a da maioria dos guerreiros daquela época.

Sagoyaga havia cometido um erro ao pensar que, por eu ser muito mais corpulento que ele, poderia me cansar até ser morto por ele, e que a ausência de cota-de-malha em meu tronco – a qual fora despedaçada pelos inúmeros golpes de espadas e machados pictos – me tornara vulnerável. Num momento em que o líder inimigo – não conseguindo deter os golpes de minha cimitarra e subestimando minha resistência de aço – me agarrou o braço da espada, eu puxei meu punhal com minha esquerda e o cravei entre o pescoço e o queixo do maldito espancador daquela mulher imortal.

Então, erguendo-me sobre o cadáver de Sagoyaga, dei uma olhada ao redor...

Tudo parecia perdido, mas minha fúria era tamanha que eu só pensava em distribuir o máximo de morte aos inimigos, antes de cair.

Para nossa sorte, um inesperado exército, de dois mil atrianos – que, ao contrário dos que foram pagos pelos selvagens pintados, se aliaram a nós –, rompeu as fileiras pictas pela retaguarda, nos permitindo contra-atacar. Os atarracados guerreiros mestiços de Atriann que vieram em nosso auxílio usavam elmos e couraças metálicas – mais tarde, soubemos que eles haviam sido contratados pelos pelishtios, dos quais receberam aqueles capacetes e armaduras que seus parentes inimigos não possuíam.

Enquanto isso, na retaguarda do exército egípcio, lanceiros negros da longínqua cidade de Shumballa – que ficava a muitas centenas de quilômetros a sudoeste de Luxor – completaram o trabalho dos morenos shemitas e atrianos aliados. Os shumballanos eram homens acostumados a caçarem leões nos seus prados e savanas natais. Acertar alvos humanos era brincadeira de criança para aqueles bravos.

Os pictos tentaram desesperadamente incendiar os portões da cidade, mas foram exterminados pelos arqueiros de Luxor, que os atingiram pelas costas, e de Asgalun, que lhes acertaram pela frente.

Fosse qual fosse o poder da bela imortal – a qual ainda se encontrava na praia de Asgalun com meu irmão –, ele não fora necessário naquela luta encarniçada.

Dias depois, eu, ainda com um pouco do ouro que Menas me pagara, voltei a Luxor, enquanto a jovem imortal preferiu seguir para as tribos remanescentes shemitas do leste, onde, segundo ela, era adorada uma deusa com seu nome.

Por um momento, fiquei embasbacado, enquanto avistava aquele belo vulto feminino caminhar noite adentro, na direção oposta ao sol que acabava de se pôr. Seria aquela mulher imortal, de origem lemuriana, a deusa de meu pai, dos shemitas e do meu povo?


4)

Os poucos hirkanianos que não haviam fugido, séculos antes para leste do Mar Interno, haviam perdido, aos poucos, sua identidade cultural, e se miscigenavam cada vez mais com os shemitas tribais, originando um povo que se autodenominava orgulhosamente Filhos de Shumir – uma variante local de “Filhos de Shem”. Meu meio-irmão era um daqueles mestiços e, após a vitória contra os pictos em Shem, ele foi embora, acompanhando uma das migrações dos Filhos de Shumir para Leste, onde a cultura dos pelishtios, aos quais Menas e eu ajudamos, renasceria após um novo cataclismo, com os mesmos deuses e os mesmos zigurates – como aqueles que ornamentavam as muradas cidades shemitas que ficavam a norte e oeste do Nilus de então.

Embora eu tivesse trazido uma negra do leste – ex-escrava dos pictos – para ser minha concubina, a minha esposa predileta, dentre as duas, ainda era a bela mestiça Nefer-yedda. No início, eu receava que a irmã de Menas – por ser uma nobre, e ainda por cima, solteira – fosse inexperiente e cheia de tabus. Mas, graças a Ishtar, eu estava enganado. Por ser princesa de Luxor, Nefer-yedda havia sido, aos 15 anos, iniciada secretamente nos prazeres carnais num templo de Derketo. Embora tal prática houvesse sido proibida pelos vanires que dominaram o Egito, quando este ainda se chamava Stygia, ela ainda era passada secretamente, de geração em geração, às primeiras princesas egípcias. Vários milênios após o recuo das geleiras, esse costume ressurgiria, com todo vigor, na futura Babilônia, entre jovens noivas.

Assim, por incontáveis dias, eu e a princesa passeamos pelas pirâmides e Esfinge na margem leste do Nilus – sim, os famosos monumentos de Gizé foram construídos por stígios! –, nos banhamos juntos nos lagos floridos da região central do Egito (até mesmo no exuberante lago Zuad). Por incontáveis noites, explorei, com minha boca, as pétalas róseas por entre a dourada mata tropical úmida, sob o umbigo de Nefer-yedda; naquelas mesmas noites, ela grunhia de êxtases de prazer e satisfação, dirigindo, logo após, o meu falo de tição para borrifar-lhe o maduro rosto bronzeado com a minha ebúrnea semente da vida. Os dias de prazer se tornaram anos, e os anos viraram décadas. Embora eu fosse dez anos mais jovem que a princesa egípcia, a velhice me levou primeiro para a outra vida.

Por Isht... digo, Allah! Falei agora como Muhammad ibn Ahmed, e não como Bhar-Laam. De qualquer forma, séculos depois destes eventos, as águas azuis do oceano invadiram as florestas a norte do Egito, exterminando a próspera civilização das planícies ocidentais de Shem – e fazendo afundar incontáveis quilômetros quadrados de terra firme, além de criar, entre os sobreviventes da catástrofe, lendas sobre o dilúvio. O Mediterrâneo se formou ao norte do Egito, e enormes áreas emergiram do mar a oeste daquele país, formando a África como é hoje conhecida. Os canlams já haviam migrado mais ainda para o leste, se miscigenando ainda mais com shemitas, no que hoje é o Oriente Médio e dando origem aos semitas alpinos, ou cananeus. Já aqueles canlams que tinham uma quantidade maior de sangue negro – como eu havia sido quando era Bhar-Laam –, foram mais ainda para leste, formando os elamitas.

Milênios depois, as geleiras recuaram e os desertos ressurgiram. Depois disso, reencarnei entre os cananeus, justamente na época em que estes trocaram a bondosa Ishtar pelos sanguinários Moloch e Baal, aos quais se ofereciam abomináveis sacrifícios humanos. Estive novamente encarnado entre os Filhos de Canaã, séculos mais tarde, quando a antiqüíssima Jericó foi tomada pelo infame Josué, que massacrou quase todos os homens, mulheres, crianças, velhos e bebês da cidade, afirmando ser esta a vontade do “Deus Único”. Somente a maldita meretriz Raab – que, do mesmo modo que havia feito diversos cananeus casados traírem às suas esposas, também traiu o próprio povo aos israelitas – foi poupada, juntamente com a família, pelo sanguinário e etnocêntrico Josué – um homem tão carniceiro quanto seu antecessor Moisés (injustamente chamado de “protegido de Allah” pelo Alcorão). Morri em batalha, tentando vingar a minha família massacrada por Josué.

Muitos séculos depois, em Darfur, no Sudão, reencarnei no sexo feminino e resisti até a morte contra a primeira investida muçulmana ao povo negro local. Durante o início do imperialismo inglês, me indignei com os horrores do domínio europeu na África. No século XX, como cangaceira no Nordeste brasileiro, me revoltei contra a excessiva crueldade do líder de meu bando, e fui surrada e expulsa para longe do grupo de bandoleiros; morri, dias depois, emboscada por uma das patrulhas policiais daqueles sertões (que se autodenominavam “volantes”, e eram chamadas pejorativamente de “macacos” pelo povo). No início dos anos 70, perdi minha vida em tiroteio contra a polícia carioca, ao dar cobertura a Lúcio Flávio, que era meu amigo e estava fugindo da prisão. Pelos deuses! Agora percebo que a reencarnação não escolhe sexo.



5) “Somos todas filhas de alguém; somos todos filhos de alguém,
Até quando conseguimos olhar uns para os outros,
sob a mira de uma arma?
Você é a voz, tente e entenda!
Faça barulho e o faça claro!
Não vamos ficar em silêncio; não vamos viver com medo!”
(John Farnham, em “You’re the Voice”/ 1986).


Quanto tempo eu fiquei desacordado naquela trincheira, só Allah e os deuses sabem. A julgar pela posição do sol, foram poucos minutos. De qualquer modo, a explosão que me fizera desmaiar abriu uma brecha no fundo daquela vala, expondo um antigo sedimento e pondo à mostra um instrumento que eu não reconheceria, se não fosse a lembrança de que eu fora Bhar-Laam em outra encarnação: a espada de Shumir! A cimitarra empunhada por aquele que fora meu irmão em outra vida!!

O que vi a seguir, enquanto subia para fora da trincheira, com aquela arma branca na mão, espantou tanto a mim quanto aos inimigos que começavam a me cercar: a suposta feiticeira, a qual resgatei dos pictos há milênios, estava inteiramente nua, flutuando no ar, seus longos cabelos negros e espessa púbis da mesma cor contrastando com a pele de marfim. Seus belos seios não apresentavam nenhuma cicatriz, como na noite em que eu a conhecera. A um gesto dela, ondas de água salgada – que eu sabia serem do Mar Morto – afogaram os israelitas que me apontavam suas armas e trouxeram ninguém menos que Edward para a mira da cimitarra que eu segurava. Sem pensar duas vezes, lancei-a certeira no coração daquele maldito traficante loiro.

Então, antes que aparecessem outros israelenses, a bela imortal fez flutuar até minha direção uma enorme bolha de água, dentro da qual eu fiquei. Ela a içou em sua direção e entrou na mesma bolha, me acompanhando. Flutuamos nela, numa velocidade igual à do som e numa altura que impossibilitava qualquer radar de nos detectar, em direção às praias orientais do Mediterrâneo; cruzamos o Canal de Suez até alcançarmos o Mar Vermelho, e seguimos em direção ao sul e leste pelo Oceano Índico até o Pacífico. Lá, encontramos uma ilha de vegetação exuberante.

* * *

Acima e ao nosso redor, estava a espessa selva tropical daquela bela ilha, em sufocante e exótica fertilidade. Orquídeas flamejavam e sussurravam ao nosso redor. A admiração estava em meus olhos. Eu olhava entre destroçadas colunas de granito sobre um desagregado chão de mármore. As trepadeiras se entrelaçavam abundantemente, como serpentes verdes, entre aquelas colunas, e arrastavam suas extensões sinuosas pelo chão.

Um estranho ídolo, há muito caído de um pedestal quebrado, jazia sobre o chão e olhava para o alto com rubros olhos imóveis. Olhei para a outra coisa que jazia no chão de mármore, e encolhi os ombros. Eu e a beldade nua adentramos o santuário. Olhei para os entalhes nas bases das colunas sombrias, admirado com o aspecto profano e indefinível dos mesmos. Acima de tudo, o cheiro das orquídeas pairava como uma bruma pesada.

Esta pequena ilha, de pântanos luxuriantes, foi, segundo a mulher que me salvou, o ponto mais alto do arquipélago onde aquela ex-princesa havia nascido, e eu me perguntei que estranho povo havia erguido aquele templo... e deixado a coisa monstruosa jazendo diante do ídolo caído.

Tais pensamentos, contudo, foram descartados, quando a mulher imortal se dirigiu a mim:

- O tráfico de drogas na Palestina e em Israel está acabado; mas aquela guerra, infelizmente, durará muito tempo. – ela disse – Perdeste Nefer-yedda por duas vezes, Bhar-Laam. – ela prosseguiu – A primeira, quando partiste antes dela, nos primórdios do Egito; e a segunda, quando ela deu à luz seu falecido filho caçula na Palestina... mas irá reencontrá-la após sua morte. Enquanto este dia distante não chega... – acrescentou a mulher imortal, raiz e broto da Criação, com desejo na voz – Me ame!

Apesar de, no passado, ter reprimido a atração que sentira por ela, não resisti àquele apelo, de uma mulher que vivera milênios, mas que parecia ter conhecido pouco ou nada dos prazeres carnais. Sua forma alva arquejava de prazer, enquanto eu colava meu corpo no dela, durante o beijo que trocávamos.

Naquela distante ilha do Pacífico, onde, segundo ela, um mago lemuriano havia sido morto por um atlante – e cujos ossos dourados, eu não deveria (nem me atrevia) a tocar –, passei minhas últimas décadas de vida com a lemuriana, até reencontrar, na encarnação seguinte, a bela Nefer-yedda.





FIM

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