Brachan, O Celta

(por Robert E. Howard)


Outrora, eu fui Brachan, o celta...

Se você me perguntar como sei, só posso responder lhe perguntando como sabe que você foi você ontem, ou mês passado, ou ano passado. E, se não puder me contar como sabe, por que lembra, o fato continua inalterado; e, por eu não poder lhe dizer como me lembro das inumeráveis formas que carregaram meu espírito pela longa corrente de reencarnações, essa memória não é, de modo algum, menos vital e existente. Sou James Allison e fui Brachan. Isso é suficiente.

Foi há muito tempo. Essa afirmação é indefinida, mas não pode ser aperfeiçoada. Quantos milênios se passaram desde que Brachan andou pelo mundo, eu não sei, porque não há pontos divisórios em minha lembrança da vida de Brachan para fixar seu século. Só posso dizer que foi há muito tempo, na juventude do mundo como nós o conhecemos.

Eu era Brachan – alto, de cabelos amarelos e olhos azuis, esplendidamente musculoso, membro de uma das grandes raças básicas, agora extinta. Digo extinta, porque não há hoje no mundo um só ariano de sangue puro. Mas, na época de Brachan, a raça ainda era não-miscigenada. Foi talvez Brachan quem começou aquela mistura e miscigenação de raças; Brachan, o companheiro de Taramis, de cujos quadris nasceram tribos e nações.

Nasci bem a leste da terra na qual cresci até a idade viril, nas estepes abertas, às margens do grande mar interno, o qual, naquela época indistinta, se estendia do Oceano Ártico até o Mar Índico, separando os primeiros arianos dos primeiros mongóis. Lá, nas margens ocidentais daquele grande mar, meu povo já vivia em grandes grupos, seguindo a pastagem norte no verão, e a sul no inverno. Mas nós não tínhamos rebanhos na época; eram as grandes manadas de comedores de pasto que seguíamos – o gado selvagem, o bisão e os cavalos, aos quais homem nenhum havia montado ainda. Éramos caçadores, pescadores e saqueadores. E já nos dividíamos em tribos que perambulavam para oeste e sul, em hégiras seculares.

Assim, as estepes, com suas agitadas expansões de capim ondulante, e as tendas de pele de cavalo, ao longo das praias do mar interno, permanecem apenas como vagas lembranças em minha memória. Pois, quando criança, fui levado na longa jornada para oeste, a qual trouxe a cultura do bronze para as praias do distante Atlântico... Posso ouvir o clamor crescente dos historiadores, os quais querem me contestar.

Sei muito bem do curioso erro que eles cometem, ao datarem a invasão dos primeiros arianos para dentro da Europa Ocidental, e o advento da Idade do Bronze. Viemos, eles dizem, em toscas carroças puxadas por bois. Já havíamos domesticado cães e éramos cavaleiros. Naquela época, dizem os historiadores, os primórdios da civilização eram evidentes ao longo das margens do Mediterrâneo, e dos vales dos grandes rios meridionais.

Só posso relatar fatos. Eu era uma criança no primeiro clã ariano a chegar à Europa ocidental, na época uma grande terra desocupada, cheia de florestas e rios, habitada apenas por tribos dispersas de aborígenes de pele escura. Éramos chamados Celtas, o que era meramente a denominação de nosso clã. Nem na aparência, nem na linguagem, nós éramos diferentes de nossos parentes do leste distante. Não havíamos aprendido a domesticar cães, nem montar cavalos, nem construir roda de carroça. Marchávamos a pé, e viajamos por dez anos. Todavia, usávamos armas e instrumentos de bronze, e conhecíamos a arte de fazer cestas com juncos entrelaçados e roupas de linho.

Se estes fatos tendem a abalar concepções e teorias científicas, sinto muito, mas não vejo o que posso fazer a respeito. Os historiadores indubitavelmente confundem as primeiras migrações arianas com a migração dos gauleses, a qual ocorreu séculos depois. Eles eram nossos parentes arianos, e encontraram o inicialmente não muito vasto clã Celta desenvolvido em várias tribos e espalhado por muitas terras. Nossas linguagens diferiam apenas como o Saxão difere do Inglês moderno, e casamos uns com os outros e miscigenamos uns com os outros até nos tornarmos uma raça, e as palavras celta e gaulês se tornarem sinônimas.

Mas o clã Celta foi o primeiro de todos os arianos a colocar o pé na Europa. Minhas lembranças mais claras são de colinas onduladas, cobertas por carvalhos e abetos, com ricos vales de capim entre elas, se estendendo até penhascos onde o mar azul se quebrava em incessantes vagalhões – lá, eu cresci da infância até o início da idade viril; e foi como um homem jovem que eu finalmente me desviei do alcance de meu clã e perambulei em direção ao sul, para onde, bem longe das sonhadoras colinas azuis que rodeavam o horizonte enevoado, me esperavam o amor de Taramis e o horror do Peludo.

Por que deixei as terras natais de meu clã, eu não sei; talvez o anseio inquieto de perambular ardesse mais forte em mim do que nos homens de minha tribo. Fui para o sul... Era um mundo estranho e feroz, naquela época obscura. Numa ilha sem nome, no Mediterrâneo, um grupo de pescadores morenos em roupas de pele vivia num agrupamento de rudes cabanas de barro, o qual se tornaria, séculos depois, Knossos do Portal do Leão. Mas, onde hoje rolam as ondas do Mediterrâneo, havia apenas grandes lagos e rios. Havia um lago oriental e um ocidental, e uma alta borda de terra evitava que o oceano distante irrompesse para dentro do vasto vale, que era a bacia para o Mediterrâneo naqueles dias. O mar já estava atormentando aquela borda, e quando invadiu... mas ele não invadiu enquanto Brachan era vivo, embora, em outra vida posterior, eu testemunhei aquele cataclismo que varreu uma próspera civilização e deu origem a um ciclo de narrativas nas quais o mundo é destruído por um dilúvio...

Mas desculpe minhas divagações. Minhas lembranças se aglomeram tão abundantemente em mim, de tantas vidas, que sou propenso a me desviar, perambular por canais irrelevantes. É difícil seguir o curso de uma vida, entre as muitas que lembro, como você lembra os dias que se amontoam abundantemente em seus calcanhares.

Ah, foi uma longa perambulação que finalmente me levou à aldeia dos amelianos. Viajei a pé e sozinho, caçando e sendo caçado, matando e combatendo matadores. O caminho por onde andei não era fácil, e não havia nada que não se opusesse. Leões vagavam por onde hoje é a Europa; animais imensos, maiores e mais ferozes que qualquer um existente hoje. Havia ursos das cavernas, tigres dentes de sabre, alces e búfalos gigantes, panteras... mas, como sempre, o caçador mais implacável, o mais feroz animal predador era o homem.

Mesmo na aldeia de Amelia, com suas cabanas de madeira e seus tetos de palha se erguendo acima da paliçada, encontrei uma boa acolhida. Não sei o que se apossou do Rei Jogah de Amelia para receber a mim, um estranho, ou porque ele não ordenou a seus guerreiros que me emplumassem com flechas das seteiras, enquanto eu saía da floresta a passos largos, pelos campos de cevada, em direção ao portão maciço. Talvez curiosidade. Nenhum homem de Amelia tinha visto um homem como eu, nem eles haviam sonhado que tal homem vivesse no mundo, pois a migração celta ainda não havia alcançado aqueles vales meridionais.

Os homens de Amelia eram duros, fortes, magros e vigorosos; do contrário não conseguiriam viver naquela era, mesmo com todos os seus arcos e sua alta paliçada. Mas eles não tinham meu peso nem a força de meus músculos. Eram brancos, mas de cabelos negros e olhos escuros, e suas peles eram de uma cor levemente oliva. Seus velhos tinham barbas escassas, o que era grandemente estimado.

Mas como falarei de Taramis? Posso lhe dizer que o corpo dela era um poema em rima flexível, que sua pele era uma rica e saborosa oliva, que suas abundantes e brilhantes madeixas negras caíam sobre ombros delicadamente moldados; que seus olhos escuros luziam e queimavam com a vigorosa vida do primitivo; que seus membros eram macios e maduros de jovem feminilidade – mas não pintei mais do que um vago retrato da figura vibrante que era Taramis, a filha do Rei Jogah.

Desde o momento em que a vi pela primeira vez, carregando água da fonte, a cabaça sobre sua cabeça brilhante, seu corpo esguio balançando numa poesia de ritmo, eu a amei – eu a desejei – com toda a paixão selvagem de minha raça. Para o povo dela, Taramis era bonita; para mim, esta mulher de cabelos negros dos estrangeiros era a suprema realização de todo o desejo. Quando a olhei – simplesmente a olhei –, meu cérebro teve vertigens e meu sangue pulsou como tambores de guerra em meus ouvidos. Amor? Desejo? O que James Allison sabe das palavras? O que vocês, o que qualquer fraca pessoa moderna sabe? Cinzas de paixão se apagavam quando a terra era jovem – pálidos e vagos reflexos de uma chama que outrora sacudiu os mundos –; paixão que derruba reinos, massacra tribos, faz cidades sucumbirem e arranca montanhas... isto nós sabíamos na juventude da terra. Ah, amei tanto quanto matei e perambulei em meu tempo, quando eu era Homem na juventude do mundo. Renunciei a coroas para ganhar a mulher de minha escolha, e destruí impérios pela mesma razão; acasalei-me em fumegantes campos de batalha, com o vermelho da matança ainda coagulado em meus dedos e os gritos dos moribundos ressoando em meus ouvidos. Mas basta. É de uma era anterior e mais simples que falarei – do amor de Taramis e do horror do Peludo.

Quando consegui falar a linguagem de Amelia – e isso não demorou, pois ela era simples e os celtas sempre foram lingüistas, mesmo naqueles dias obscuros –, eu pedi por ela – pedi? Um celta não pede por coisa alguma, exceto de seu próprio chefe. Eu a exigi, e se o pai dela risse de mim por eu ser um aventureiro sem presente, eu estaria pronto para fazer uma matança sangrenta em sua cabana-palácio, antes que os números me derrotassem. Pois o desejo por Taramis era um tição em brasa branca no meu peito.

Mas o velho Rei Jogah não riu. Ele puxou fortemente a longa barba e me encarou, e encarou seus guerreiros. Então, ele me encarregou de uma tarefa. E nisso ele não conseguiria perder, pois se eu falhasse, ele ia se livrar de um convidado turbulento; e, se eu ganhasse, ele se livraria de um horror que assombrava a terra desde tempos imemoriais.

Freqüentemente me perguntei, como James Allison, em qual terra distante os homens de Amelia haviam vivido. Eles tinham vagas lendas de uma viagem distante, desde o sudeste; e nos anos seguintes, em minhas distantes perambulações, me deparei novamente com pessoas do sangue deles. No entanto, havia diferenças – e hoje, em todo o mundo moderno, não há raça que mostre suas características; mesmo mestiça, como nos tornamos.

Mas é certo que seus ancestrais chegaram aos vales de Amelia séculos antes, e lá encontraram uma raça que já os dominava – uma raça feroz e peluda, semelhante a homens, embora horrendamente diferente. A guerra fora longa e horrível, mas finalmente os homens verdadeiros venceram, os homens-fera fugiram para dentro das colinas áridas, para de lá empreenderem uma guerra irregular por outro século.

No final de uma raça, seus sobreviventes às vezes assumem formas estranhas e terríveis. Assim, esta sub-raça culminou no Peludo. Era assim que o chamavam. O último de toda a sua raça, ele se escondia no alto das colinas sombrias, um horror pavoroso demais para se sonhar com ele, um retrocesso de uma raça horrivelmente baixa na escala do desenvolvimento humano – ainda que horrivelmente avançada em certos ramos estremecedores.

Ele pairava no alto das colinas, descendo de tempos em tempos para fazer ataques-surpresa, com a astúcia e ferocidade de um demônio. Grupos que saíam para matá-lo nunca voltavam, ou seus sobreviventes recuavam, loucos de medo diante do que viam. A cabeça deste demônio pré-histórico era o preço que eu pagaria por Taramis.

Ao amanhecer, à primeira luz fosca da aurora, saí da aldeia de Amelia, e os rapazes tocaram, em flautas de caniço, a lastimosa nênia para os mortos. Mas eu era Brachan, um celta e um espadachim, e ri enquanto os portões da aldeia se fechavam atrás de mim.

Eu levava somente uma arma: a espada à qual os homens chamavam de Cortadora de Crânios. Ah, eu poderia cantar uma saga inteira sobre essa lâmina reluzente! Ela brilhou através da história, como uma estrela de guerra e matança. Não há lâmina como ela, nem nunca houve. Foi a espada de Golias, e com ela Davi decepou a cabeça do gigante naquele sangrento campo de batalha. Ela foi a espada de dois gumes do Islã, e lampejou na mão inconstante de Maomé, o Profeta; sim, e por meios tortuosos antecedeu os muçulmanos Europa adentro; e com ela nas mãos, Roland morreu na passagem de Roncesvalles. Richard, o Coração de Leão, a usou, sem sonhar que manejava o próprio ferro quente de Durandal, do qual Blondin cantou. Akbar talhou com ela uma estrada para um império; foi a espada de Átila; e hoje está pendurada no palácio de algum príncipe afegão, aguardando o dia em que o destino irá conduzi-la novamente, para beber intensamente do vinho vermelho do sangue.

Eu mesmo a forjei; eu, Brachan o celta, misturando no bronze o sangue dos homens e dos tigres e, através de um estranho processo, que nunca será duplicado, o bronze adquiriu a resistência e força do aço de Damasco – inquebrável e imperecível. Tinha a largura de uma mão, abaixo da guarda, se afilando até uma ponta afiada, com um curioso declive curvo que dava às duas lâminas uma beirada quase côncava. O botão do punho da espada era uma pesada bola de bronze... mas a Cortadora de Crânios era uma espada entre espadas. Não consigo descrever a beleza dela, seu balanço e sua rapidez elástica, mais do que a beleza de minha outra senhora: Taramis.

Adentrei as colinas com a Cortadora de Crânios pendurada em meus ombros. Segui meu caminho através de um labirinto de ravinas e penhascos, até chegar a um alto rochedo; e lá em cima, sobre ele, vi uma caverna. E, subindo o rochedo até aquela caverna, havia degraus escavados na rocha – laboriosamente, talvez, com um machado de mão, feito de sílex, agarrado por uma mão peluda e abrutalhada.

Eu, James Allison, me espanto diante da incrível indiferença de Brachan, a qual era inacreditável, mesmo num celta. Subi a vertiginosa escada, sem saber o que me esperava acima, nem se ele dormia ou estava acordado. Mas eu havia seguido as sangrentas pegadas disformes, desde um campo no qual ele havia rasgado um homem, membro a membro, e sugado-lhe o sangue, e acreditei que ele estava vagaroso e sonolento, devido à matança e satisfação.

Entrei na caverna nas pontas dos pés e levemente. A Cortadora de Crânios estava em minha mão, e vi o monstro dormindo horrivelmente, feito um homem, numa grande laje de rocha, apoiando a cabeça no braço. Fiquei olhando por um momento, assombrado. O Peludo parecia muito mais com um macaco, embora não fosse mais macaco do que eu. Era mais alto do que eu – ereto sobre suas pernas nodosas e curvas, estou certo que ele mediria mais de 2,10m de altura. Estava coberto por pêlos desgrenhados e negros, raiados de prata. Tinha uma cabeça estranha e grotesca, mas não era a cabeça de um macaco. A testa era muito baixa e inclinada, mas a parte de trás da cabeça era grande e bem desenvolvida. O nariz era um tanto achatado, as narinas alargadas; as orelhas eram pregadas, e contorcidas em seu sono; a boca era larga e os lábios, frouxos.

Então, quando ele acordou com um sobressalto, antes que pudesse se levantar, girei minha espada e cortei fora a cabeça daqueles gigantescos ombros inclinados. A cabeça caiu até o chão de pedra da caverna, o corpo sem cabeça ficou de pé e ereto, jorrando sangue, e logo cambaleou e desabou, agarrando horrivelmente o ar vazio. Não demorei. Um horror sem nome pairava sobre aquela caverna. O Peludo morto era mais terrível para mim do que o Peludo vivo. Mas eu era obrigado a carregar parte daquele terror comigo. Peguei a cabeça decepada, coloquei-a dentro de um saco de couro que eu carregava e retornei à aldeia de Amelia. Lá, reivindiquei meu prêmio, Taramis, e o velho Jogah e seu povo de Amelia nos deram uma grande festa de casamento. Deixe-me descrever a cabana-palácio de Jogah. Em primeiro lugar, era uma casa de proporções nada humildes, construída com pranchas serradas, com incrível esforço, de enormes troncos de árvores, com um teto coberto de palha. Era tosca e poderosamente construída; poderia suportar a investida de um furacão. Era uma longa construção, e um corredor lhe atravessava a primeira metade, com quartos de cada lado, cada quarto possuindo uma janela externa e uma porta, a qual se abria para o corredor. Nestes quartos dormiam os guerreiros ligados à corte pessoal de Jogah. Num deles, Taramis e eu fomos dormir. Passando por entre estes quartos, o corredor se abria para uma enorme câmara, semelhante a um salão. Uma grande mesa ocupava a parte central deste salão, com bancos arrumados ao redor dela, e bancos também enfileirados nas paredes, onde pessoas menos importantes poderiam se sentar e festejar. Na cabeceira da mesa, de frente para a entrada, ficava o trono entalhado de Jogah. Atrás daquele trono, havia outros cômodos – três, lado a lado; ele ocupava o quarto central, com sua esposa mais velha, enquanto suas duas outras esposas tinham, cada uma, um quarto ao lado. Atrás destes cômodos, havia outros aposentos, onde dormiam os filhos do rei e as várias esposas dele. O chão era de madeira, atapetado apenas por juncos.




Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: The “New” Howard Reader #1.

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Deuce Richardson, moderador do site “The REH Forum” (www.conan.com/invboard).
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