Fragmento sem Título

(por Robert E. Howard)



O dinamarquês se aproximou velozmente, lançando o enorme corpo para diante com rapidez surpreendente, sua barba vermelha eriçada. Seu machado zunia enquanto ele atacava. Turlogh O’Brien, evitando a morte por pouco, sorriu levemente. Aqueles dois homens faziam um estranho contraste, enquanto jogavam um sombrio jogo de vida e morte naquela árida charneca de Wicklow. Havia pouca diferença em suas alturas – cada um media pouco mais de 1m80, mas a semelhança acabava aí. O’Brien era um homem grande, mas o dinamarquês era um gigante; o gaélico tinha membros longos, ombros largos e cintura fina – ele era todo como se fosse feito de molas de aço e osso de baleia. O dinamarquês era barrigudo, de pernas e braços volumosos, com uma grande quantidade de gordura. Parecia lento, mas se movia como um raio. Além do mais, Sigrel da Dinamarca era ruivo, com cabelo e barba flamejante, e um rosto vermelho. O proscrito do grande clã O’Brien era moreno. Seu cabelo era tão negro, que nenhum outro poderia ser mais negro, e sob espessas sobrancelhas negras, brilhavam um par de vulcânicos olhos azuis.

Naqueles dias, não precisava haver rixas pessoais para lançar um dinamarquês e um celta à garganta um do outro. Os vikings dominaram Dublin e Drogheda, e reivindicavam o domínio por toda Leinster e Munster, mas, como conquistadores futuros, achavam que a melhor prova desta reivindicação era uma eterna tarefa sangrenta. Mas estes homens conheciam um ao outro, e um elemento pessoal entrou.

- Renegado! – grunhiu Sigrel, rangendo os dentes enquanto dirigia o machado à cabeça de Turlogh – Bandido! Bodrir rirá, quando... eu... lhe enviar... seu crânio!

Turlogh se inclinou sob a morte que zunia, e o dinamarquês pulou para trás, se esquivando do ataque ascendente da mão do gaélico.

- Então, você terá de colocar um pouco de velocidade nessas pernas grandes, barba-ruiva. – zombou O’Brien – Venha... venha... está muito longe... aqui está minha cabeça... venha golpeá-la!

Ele deixou o machado cair e esticou zombeteiramente a cabeça – e, embora Sigrel fosse um lutador veterano, embora ele conhecesse a astúcia e habilidade dos O’Briens, ele se enfureceu e investiu selvagemente em direção àquele rosto debochado; tarde demais, ele percebeu que havia sido enganado, mas com essa descoberta veio o esquecimento, quando o machado mortífero de O’Brien lhe atravessou o crânio.

- O golpe dalcasiano, hein? – uma voz quebrou o silêncio repentino que se seguiu ao estrondo do aço.

Turlogh girou velozmente. Um homem alto e de aparência delicada se encontrava ao seu lado. Este homem era mais alto que O’Brien, mas não tão largo; suas feições eram bem proporcionadas e bastante afiladas, mais como as de um poeta que as de um lutador, mas sua roupa era a de um guerreiro. Não trazia machado, mas uma espada longa e fina pendia ao seu lado.

- Eu vejo, pelas suas cores, que você é um O’Donnell. – disse Turlogh cautelosamente – Posso perguntar o que está fazendo tão longe de Tir-conal e por que está completamente só?

- Pode perguntar – concordou O’Donnell –, mas eu posso não responder... pelo menos, não agora.

Turlogh encolheu os ombros.

- É o bastante; não há amor entre nossos clãs, mas o meu me exilou, de modo que não vejo razão para reiniciar velhas guerras, a menos que você esteja disposto.

- Quem é este homem? – perguntou O’Donnell abruptamente, apontando para o dinamarquês morto.

- E eu deveria saber o nome e condição de todo pirata de pé de remo em Leinster?

- Ele conhecia você.

- Então, você viu toda a luta, hein?

- E a ouvi... do primeiro ao último golpe.

- Bem, minha furtiva ave do pântano de Ulster, o nome deste dinamarquês era Sigrel, e ele era um pequeno chefe de classes nas terras dinamarquesas ao redor de Dublin. Ele me conhecia há muito, num pequeno assunto de intriga, no qual fui misturado sem meu conhecimento, como vê, e o qual me custou a reputação, tanto entre dinamarqueses quanto entre irlandeses, e que me levou a ser proscrito por meu clã... má sorte para ambos.

“Foi a má sorte dele, ou minha boa sorte, que nos levou a nos encontrarmos aqui hoje...”.

E, dito isso, mas mantendo, o tempo todo, um olhar desconfiado em O’Donnell, Turlogh examinou atentamente as vestimentas do dinamarquês, francamente empenhado no espólio. Ao ver uma sombra cruzar o rosto delgado de O’Donnell, Turlogh disse impacientemente:

- Você não está irritando sua alma de Ulster com meus assuntos? Um proscrito deve se sustentar sozinho, do jeito que puder. As moedas na bolsa deste dinamarquês morto não servirão para ele, mas me pouparão da necessidade de pegar comida e água à força de algum pobre fazendeiro...

Ele parou abruptamente e se endireitou, com um pequeno pergaminho enrolado na mão. Ele o desenrolou e examinou atentamente, e depois o lançou para O’Donnell.

- Talvez você consiga achar algum sentido nisto. Eu não consigo.

O’Donnell inclinou as sobrancelhas sobre o pergaminho, e logo, enrolando-o novamente, colocou o manuscrito entre as roupas. Seu rosto estava imóvel, mas os olhos lampejavam.

- Vamos conversar juntos. – disse o outro – Talvez possamos ajudar um ao outro.

Turlogh deixou a lâmina do machado cair ao solo e, se inclinando sobre a haste, olhou fixa e questionavelmente para o homem de Ulster.

- Meu nome – disse o último – é Murtagh O’Donnell, e minha categoria não é aqui nem lá, mas lhe direi por que cheguei sozinho a Leinster, como um lobo atrás de pilhagem.

“Há um chefe de Tyrone, e o nome dele é Maelmore O’Neill”.

Turlogh balançou afirmativamente a cabeça. Ele conhecia o nome, como um dos lutadores da Irlanda, dinamarquês ou gaélico, não?

- Agora preste bem atenção. Este O’Neill, ao chegar de Roma num navio mercante, caiu nas mãos de Swane Lodbrog, o qual domina a ilha de Mac Kir e não reconhece nenhum soberano. Suas galés tomaram o navio mercante e mataram todos, exceto O’Neill, o qual foi capturado como escravo. Agora eu soube, por meios tortuosos, que O’Neill é conhecido pelos vikings apenas como Maelmora More ou Big Myles (*), pois O’Neill não gostaria que sua verdadeira identidade fosse conhecida, a fim de que Swane não exija um enorme resgate ao clã dele.

“Swane é um louco, o qual acredita que pode construir um reino insular no pequeno pedaço de terra que é a ilha de Mac Kir. Ele está fortificando toda a ilha, na qual há muitas rochas, e ele tem centenas de escravos trabalhando em suas pedreiras. Lá está, labutando hoje como um kern comum, Maelmore O’Neill, segundo comandante dos Hui Neill, de Ulster”.

- Bom – disse Turlogh, colocando o machado no ombro –, sem dúvida, há alguma estupidez em mim, e desta forma não consigo ver que ligação existe entre um O’Neill trabalhando numa pedreira, numa ilha entre Leinster e a França, e um de seus inimigos hereditários se escondendo sozinho ao redor das charnecas de Wicklow.

Murtagh sorriu:

- Você verá. Os O’Neills têm como prisioneiro Conmac O’Donnell, o filho de meu irmão. Eles pedem como resgate mais do que podemos pagar. Por isso, vim sozinho a Leinster, e sozinho irei para Mac Kir e entrarei no serviço de Swane Lodbrog, se necessário. Ou negociarei com ele pelo seu escravo mais forte, como um homem que compra um escravo ordinário. Comprarei Maelmore O’Neill...

Turlogh abriu um sorriso largo, com a verdadeira apreciação céltica de uma artimanha.

- Pela barba de Mananan McLir! Compreendo sua sabedoria... mas por que me conta isto?

- Porque posso precisar da ajuda de um forte e implacável fora-da-lei. Ajude-me, e você nunca mais precisará pilhar os corpos de dinamarqueses mortos. Não será tão exorbitante quanto Swane talvez seja em relação ao resgate; o preço que os O’Neills pagarão pelo chefe deles será a entrega de Conmac O’Donnell, são e salvo.



Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco Aaron Smith, membro do site “The REH Forum” (www.conan.com/invboard)



(*) - Miles: Personagem da mitologia grega (Nota do Tradutor).
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