Lobos Além da Fronteira (fragmento/sinopse)

(por Robert E. Howard)



1)

Foi o murmúrio de um tambor que me acordou. Eu me deitava, imóvel, entre os arbustos onde havia me refugiado, forçando meus ouvidos para localizá-lo, pois tais sons são ilusórios na floresta escura. Na densa mata ao meu redor, não havia som. Acima de mim, as videiras e sarças emaranhadas se curvavam próximas umas às outras para formar um teto espesso; e acima delas, avultava o arco, mais alto e mais melancólico, dos galhos das grandes árvores. Nenhuma estrela brilhava através daquela abóbada de folhas. Nuvens baixas pareciam comprimir o alto daquelas árvores. Não havia lua. A noite estava escura como o ódio de uma bruxa.

Melhor para mim. Se eu não podia ver meus inimigos, eles também não podiam me ver. Mas o sussurro daquele tambor agourento penetrava a noite: “Thrum! Thrum! Thrum!”. Uma inabalável monotonia que grunhia e rosnava segredos sem nome. O som me era inconfundível. Somente um tambor no mundo faz com exatidão aquele ribombar profundo, ameaçador e sombrio: um tambor de guerra picto, nas mãos daqueles ferozes selvagens pintados, que assombravam as Selvas além da fronteira Oeste.

E eu estava além daquela fronteira, sozinho e oculto num esconderijo espinhoso, no meio da grande floresta onde aqueles demônios nus têm reinado desde as mais antigas auroras do Tempo.

Agora localizei o som: o tambor estava tocando a oeste de minha posição, e eu acreditava não estar muito distante. Rapidamente apertei meu cinto, firmei o machado de guerra e a faca em suas bainhas enfeitadas com contas, estiquei a corda de meu arco pesado e me certifiquei de que minha aljava estava em seu lugar, no meu quadril esquerdo – tateando com meus dedos na total escuridão –, e então me arrastei da mata fechada e fui cautelosamente em direção ao som do tambor.

Eu não acreditava que aquilo particularmente me preocupasse. Se os homens da floresta me descobrissem, sua descoberta seria anunciada por uma súbita facada em minha garganta, não por um tambor soando à distância. Mas o pulsar do tambor de guerra tinha um significado que nenhum patrulheiro da floresta poderia ignorar. Era um aviso e uma ameaça; uma promessa de ruína para aqueles invasores de pele branca, cujas cabanas solitárias e clareiras abertas por machados ameaçavam a solidão imemorial da selva. Aquilo significava fogo e tortura, flechas flamejantes caindo como estrelas cadentes pela escuridão, e o machado vermelho rangendo dentro dos crânios de homens, mulheres e crianças.

Deste modo, segui através da escuridão da floresta, apalpando delicadamente por entre os enormes troncos de árvores, às vezes engatinhando, e de vez em quando com meu coração na garganta quando um réptil me roçava o rosto ou minha mão que tateava. Pois há enormes serpentes nessa floresta, as quais às vezes se penduram dos galhos pela cauda, e então apanham suas presas. Mas as criaturas que vi eram mais terríveis que qualquer serpente e, à medida que o tambor ficava mais alto, eu seguia tão cautelosamente quanto se pisasse em espadas desembainhadas. Logo, vislumbrei uma fraca luz vermelha entre as árvores, e ouvi um murmúrio de vozes bárbaras, misturado com o rosnar do tambor.

Fosse qual fosse a cerimônia sobrenatural que estivesse acontecendo lá, sob as árvores negras, era provável que eles tivessem sentinelas espalhadas pelo local, e eu sabia o quão silencioso e imóvel um picto poderia ficar, se incorporando à vegetação natural da floresta – mesmo na luz fraca –, e se mantendo insuspeitado até a sua lâmina estar atravessada no coração de sua vítima. Minha pele se arrepiava ao pensar em me colidir com um desses guardas sombrios na escuridão; puxei minha faca e a estendi diante de mim. Mas eu sabia que nem mesmo um picto poderia me ver naquela negritude, de teto de galhos e folhas emaranhados, e de céu nublado.

A luz se revelou na forma de uma fogueira, diante da qual silhuetas escuras se moviam como demônios negros contra o fogo vermelho do inferno, e logo me agachei perto dali, em meio aos densos lariços, e olhei para dentro de uma clareira de paredes negras e para as figuras que se moviam lá dentro.

Havia 40 ou 50 pictos, vestindo apenas tangas e horrendamente pintados, que se acocoravam num largo semi-círculo, de frente para a fogueira e de costas para mim. Pelas penas de falcão em suas abundantes cabeleiras negras, eu os reconheci como sendo do Clã do Falcão, ou Onayaga. No meio da clareira, havia um altar tosco, feito de pedras ásperas amontoadas, e ao ver isto, minha pele se arrepiou de novo. Pois eu já tinha visto altares pictos antes, todos chamuscados de fogo e manchados de sangue, em clareiras vazias na floresta; e, embora nunca houvesse testemunhado os rituais para os quais estas coisas eram usadas, ouvi as narrativas contadas sobre elas, por homens que haviam sido prisioneiros entre os pictos, ou espionado-os como eu estava fazendo.

Um xamã emplumado estava dançando entre a fogueira e o altar; uma dança lenta e com os pés arrastados, indescritivelmente grotesca, a qual fazia suas plumas balançarem e se inclinarem ao seu redor. Suas feições estavam ocultas por uma sorridente máscara escarlate, que parecia o rosto de um demônio da floresta.

Em meio ao semi-círculo de guerreiros, se acocorava um, com o grande tambor entre os joelhos, e, quando ele o batia com o punho cerrado, produzia aquele estrondo baixo e rosnante, que se assemelha ao murmúrio de um trovão distante.

Entre os guerreiros e o xamã que dançava, havia um que não era picto. Pois ele era alto como eu, e sua pele era clara à luz da fogueira. Mas ele vestia apenas uma tanga de pele de corça e mocassins, seu corpo estava pintado e havia uma pena de falcão em seu cabelo, de modo que percebi que ele devia ser um liguriano – um daqueles selvagens de pele clara que moram em pequenos clãs na grande floresta, geralmente em guerra com os pictos, mas às vezes em paz e aliados a eles. Suas peles são brancas como as dos aquilonianos. Os pictos também são uma raça branca, pois não são negros, marrons nem amarelos, mas têm olhos e cabelos negros, e pele escura, e nem eles nem os ligurianos são chamados de “brancos” pelo povo da Fronteira Oeste, que só chama assim a um homem de sangue hiboriano.

Agora, enquanto observava, eu vi três guerreiros arrastando um homem para dentro do anel de luz da fogueira – outro picto, nu e manchado de sangue, que ainda usava, na cabeleira emaranhada, uma pena que o identificava como membro do Clã do Corvo, com o qual os Falcões estavam sempre em guerra. Seus captores o colocaram sobre o altar, com as mãos e pés amarrados, e eu vi seus músculos se distenderem e torcerem à luz da fogueira, enquanto ele tentava em vão romper as tiras de couro cru que o aprisionavam.

Então o xamã começou a dançar novamente, fazendo desenhos complicados ao redor do altar e do homem sobre ele. E o que batia o tambor trabalhava num elevado frenesi, tamborilando como se estivesse possuído por um demônio. E de repente, descendo de um galho pendente, veio uma daquelas grandes serpentes das quais eu havia falado. A luz do fogo brilhava em suas escamas, enquanto ela se dirigia sinuosamente até o altar, os olhos em forma de contas cintilando, e sua língua bifurcada se movendo rapidamente para dentro e para fora – mas os guerreiros não demonstravam medo, embora ela passasse a pouca distância de alguns deles. E aquilo era estranho, pois normalmente estas serpentes são as únicas criaturas vivas às quais os pictos temem.

O monstro ergueu a cabeça sobre o pescoço curvado, acima do altar; e ele e o xamã encararam um ao outro, através do corpo prostrado do prisioneiro. O xamã dançava contorcendo o corpo e os braços, mal movendo os pés; e, à medida que dançava, a grande serpente dançava com ele, se entrelaçando e balançando como se hipnotizada. E, da máscara do xamã, se ergueu um estranho lamento, que estremeceu como o vento soprando pelos juncos secos, ao longo dos pântanos marinhos. E, devagar, o grande réptil se erguia cada vez mais, e começou a fazer curvas sobre o altar e o homem em cima deste, até o corpo do homem ficar escondido sob seus anéis tremeluzentes, e somente sua cabeça ficar visível, com aquela outra cabeça terrível balançando logo acima.

O guincho do xamã se ergueu a um tom de triunfo infernal, e ele lançou algo dentro da fogueira. Uma grande nuvem verde de fumaça se elevou e rolou ao redor do altar, de modo que quase ocultou o par sobre ele, deixando seus contornos indistintos e ilusórios. Mas, em meio àquela nuvem, vi um terrível retorcer e mudar – seus contornos se dissolviam e fundiam horrivelmente; e, por um momento, eu não conseguia dizer quem era a serpente e quem era o homem. Um suspiro estremecido percorreu os pictos reunidos, como um vento gemendo através de galhos noturnos.

Então, a fumaça clareou, e homem e serpente jaziam flácidos, e eu pensei que ambos estivessem mortos. Mas o xamã agarrou o pescoço e deixou o grande réptil ir lentamente ao chão, e derrubou o corpo do homem sobre as pedras, para cair ao lado do monstro, e cortou as cordas de couro cru que amarravam pulsos e tornozelos.

Logo, ele começou uma dança sinuosa ao redor deles, cantando enquanto dançava e balançando os braços em gestos loucos. Dali a pouco, o homem se mexeu. Mas não se levantava. Sua cabeça balançava de um lado a outro, e eu via sua língua se mover rapidamente para fora e novamente para dentro. E, por Mitra, ele começou a se retorcer para longe do fogo, se contorcendo sobre o ventre, como uma cobra rastejando!

E a serpente foi subitamente sacudida por convulsões; curvava o pescoço, se erguia até quase todo o seu comprimento e depois caía para trás, anel sobre anel, e se erguia novamente em vão – horrivelmente, como um homem tentando se levantar, ficar em pé e andar ereto após ser privado dos membros.

O uivo selvagem dos pictos sacudia a noite, tive náuseas no local onde eu me agachava, por entre as moitas, e fiz força para não vomitar. Agora eu entendia o significado desta horrível cerimônia. Eu ouvira histórias sobre ela. Através da negra e primordial feitiçaria, que brotava e florescia nas profundezas desta negra floresta primitiva, aquele xamã pintado havia transferido a alma de um inimigo capturado para o repugnante corpo de uma serpente. Era a vingança de um demônio. E o grito dos pictos loucos por sangue era como o brado de todos os demônios do Inferno.

E as vítimas se contorciam em angústia lado a lado, o homem e a serpente, até uma espada reluzir na mão do xamã e ambas as cabeças caírem juntas – e, pelos deuses, foi o tronco da serpente que só fez tremer e se sacudir um pouco, para depois jazer imóvel; e o corpo do homem que rolou, se emaranhou e debateu como uma serpente decapitada. Uma tontura e fraqueza mortal tomaram conta de mim, pois qual homem branco poderia assistir tal diabolismo negro com indiferença? E estes selvagens pintados, lambuzados com pintura de guerra, uivando em atitude de triunfo sobre o fim medonho de um rival, não me pareciam nada humanos, mas demônios repugnantes do mundo negro, para os quais matar é um direito e um dever.

O xamã se ergueu de um pulo e olhou para o anel de guerreiros. E, arrancando a máscara, ergueu a cabeça e uivou como um lobo. E quando a luz da fogueira lhe iluminou o rosto, eu o reconheci e, com aquele reconhecimento, todo o horror e repulsa deram lugar a uma fúria vermelha; e todo pensamento de perigo pessoal e lembrança de minha missão, a qual era minha obrigação principal, desapareceu. Pois o xamã era o velho Teyanoga, dos Falcões do Sul, que havia queimado vivo meu amigo, Jon filho de Galter.

Na ânsia de meu ódio, agi quase instintivamente – levantei meu arco, encaixei uma flecha e a atirei, tudo num instante. A luz da fogueira era precária, mas a distância não era grande, e nós, da Fronteira Oeste, vivemos pelo esticar do arco. O velho Teyanoga berrou feito um gato e cambaleou para trás, e seus guerreiros uivaram de surpresa ao verem uma flecha vibrando subitamente no peito dele. O guerreiro alto, de pele clara, girou e, pela primeira vez, eu vi seu rosto – e, por Mitra, era um homem branco!

O horrível choque daquela surpresa me deixou paralisado por um momento, e quase me arruinou. Pois os pictos imediatamente se levantaram e correram para dentro da floresta, como panteras, em busca do inimigo que disparou a flecha. Haviam alcançado a primeira orla de arbustos, quando deixei de lado meu êxtase de surpresa e horror, me ergui de um pulo e saí correndo na escuridão, mergulhando e me esquivando entre árvores – as quais eu evitava mais por instinto que por qualquer outra coisa, pois estava escuro como nunca. Mas eu sabia que os pictos não podiam achar meu rastro, embora pudessem caçar tão cegamente quanto eu fugia. E, dali a pouco, enquanto eu fugia para norte, ouvi atrás de mim um horrendo uivo, cuja fúria louca por sangue era suficiente para congelar até mesmo o sangue de um batedor da floresta. E acreditei que eles haviam arrancado minha flecha do peito do xamã, e descoberto que era o dardo de um homem branco. Aquilo os colocaria atrás de mim com uma sede de sangue ainda mais furiosa do que nunca.

Eu fugia, meu coração batendo de medo e agitação, e do horror do pesadelo que eu havia testemunhado. E o fato de um homem branco, um hiboriano, estar lá como um convidado bem-vindo e evidentemente honrado – pois estava armado (vi uma faca e uma machadinha em seu cinto) –, era tão monstruoso que eu me perguntava se, afinal de contas, aquilo tudo era um pesadelo. Pois, nunca antes, um branco havia observado a Dança da Serpente Mutante, a não ser feito prisioneiro, ou como espião, como fiz. E que coisa monstruosa aquilo pressagiava, eu não sabia, mas fui abalado por pressentimento e horror ao pensar nisso.

E por causa de meu horror, segui com menos cuidado que o meu habitual, buscando rapidez às custas da dissimulação, e ocasionalmente tropeçando numa árvore que eu poderia evitar se tivesse tomado mais cuidado. E não duvido que tenha sido o barulho deste avanço aos tropeços o que trouxe os pictos sobre mim, pois eles não conseguiam me ver naquela escuridão de breu.

Atrás de mim já não soavam mais gritos, mas eu sabia que os pictos estavam se agrupando como lobos pela floresta, se espalhando num vasto semi-círculo e vasculhando enquanto corriam. O fato de não terem achado minha trilha era evidente, pelo silêncio deles, pois eles nunca gritam, exceto quando crêem estar a uma curta distância, e têm certeza de sua presa.

O guerreiro que ouviu os ruídos de minha fuga não devia pertencer àquele grupo, pois estava muito à frente deles. Devia ser um batedor, percorrendo a floresta para proteger seus companheiros de serem surpreendidos pelo norte.

Seja como for, me ouviu correndo próximo a ele, e veio feito um demônio da noite negra. Eu o percebi primeiramente apenas pelo rápido e fraco som de seu pé nu, e quando girei, não conseguia nem perceber-lhe a massa indistinta, mas somente ouvia o suave bater daqueles pés implacáveis, se aproximando de mim, invisíveis na escuridão.

Eles enxergam como gatos no escuro, e eu sei que ele viu bem o bastante para me localizar, embora eu sem dúvida fosse apenas uma mancha vaga na escuridão. Mas meu machado, girando cegamente para cima, encontrou sua faca que descia e ele se espetou em minha faca enquanto investia, seu grito de morte ressoando como sinos do juízo final sob o teto da floresta. E foi respondido por uma feroz gritaria ao sul, poucas centenas de metros a distância, e logo eles estavam correndo pelas moitas, ganindo feito lobos, certos de sua caça.

Corri seriamente agora, abandonando totalmente a furtividade em prol da velocidade, e confiando à sorte que eu não espatifaria meus miolos num tronco de árvore nas trevas.

Mas aqui a floresta se abria um pouco; não havia vegetação rasteira, e algo quase como luz se infiltrava pelos galhos, pois as nuvens estavam se afastando um pouco. E, através desta floresta, fugi como uma alma penada perseguida por demônios, ouvindo os gritos – a princípio cada vez mais altos, num triunfo sangrento, e depois se aguçando com fúria e ódio à medida que ficavam mais fracos e diminuíam atrás de mim, pois numa corrida direta, nenhum picto consegue igualar as pernas de um batedor branco da floresta. O risco temerário era o de que ali houvesse outros batedores e grupos de guerra à minha frente, os quais pudessem me cortar, ouvindo minha fuga; mas era um risco que eu tinha de correr. Mas nenhuma figura pintada apareceu como um fantasma das sombras diante de mim, e logo, através da vegetação espessa que indicava a proximidade de uma enseada, vi um bruxulear através das árvores lá na minha frente, e percebi que era a luz do Forte Kwanyara, o posto mais meridional de Schohira.


2)

Talvez, antes de continuar com esta crônica dos anos sangrentos, seja melhor dar uma explicação sobre mim mesmo, e a razão pela qual atravessei a Selva Picta, à noite e sozinho.

Eu sou Gault, filho de Hagar. Nasci na província de Conajohara. Mas quando eu tinha 10 anos de idade, os pictos atravessaram o Rio Negro e atacaram o Forte Tuscelan; mataram todos lá dentro, exceto um homem, e expulsaram todos os colonos da província para leste do Rio Trovão. Conajohara se tornou novamente parte da Selva, povoada apenas por feras e homens selvagens. O povo de Conajohara se espalhou por toda a Fronteira Oeste, em Schohira, Conawaga ou Oriskawny, mas muitos deles foram para o sul e se instalaram perto do Forte Thandara, um posto isolado do Rio do Cavalo de Guerra – a minha família estava entre estes últimos. Lá foram mais tarde incorporados por outros colonos, para os quais as províncias mais velhas estavam muito cheias, e logo se desenvolveu lá a região conhecida como a Província Livre de Thandara, porque ela não era como as outras províncias – terras dadas pelo rei a grandes lordes a leste das fronteiras e instaladas por eles –, mas talhadas na selva pelos próprios colonizadores, sem a ajuda da nobreza aquiloniana. Não pagávamos taxas a barão algum. Nosso governante não era indicado por nenhum lorde, mas nós mesmos o escolhíamos, do nosso povo, e ele era responsável apenas ao rei. Nós mesmos equipávamos e construíamos nossos fortes, e nos sustentávamos na guerra ou na paz. E Mitra sabe que a guerra era algo constante, pois nunca houve paz entre nós e nossos ferozes vizinhos: os Panteras Selvagens, Crocodilos e outras tribos de pictos.

Mas nós prosperávamos, e raramente perguntávamos o que acontecia a leste das fronteiras, no reino de onde os nossos antepassados haviam chegado. Contudo, eventos na Aquilônia finalmente nos alcançaram na selva. Vieram notícias de uma guerra civil, e de um lutador que se insurgiu para arrebatar o trono da antiga dinastia. E fagulhas daquela revolução incendiaram a fronteira, colocando vizinho contra vizinho e irmão contra irmão. E foi porque cavaleiros em seu aço reluzente estavam lutando e matando nas planícies da Aquilônia, que eu corria sozinho pela extensão de selva que separava Thandara de Schohira, com notícias que poderiam mudar consideravelmente o destino de toda a Fronteira Oeste.

O Forte Kwanyara era um pequeno posto, uma fortaleza quadrada, feita com troncos de árvores como paliçada, na margem da Enseada da Faca. Vi sua bandeira ondulando contra o rosa pálido do céu da manhã, e percebi que apenas a bandeira da província pairava ali. O estandarte real, que deveria estar sobre ela, exibindo a serpente dourada, não estava em evidência. Aquilo poderia significar muito ou nada. Nós, da fronteira, não damos muita importância à delicadeza e meticulosidade de costumes e etiquetas, que tanto significam para os cavaleiros além das fronteiras.

Atravessei a Enseada da Faca no início do amanhecer, andando com dificuldade pelos bancos de areia, e fui parado por um guarda no outro lado – um homem alto, que vestia as curtidas peles de gamo de um patrulheiro da floresta. Quando ele soube que eu era de Thandara:

- Por Mitra! – disse ele – Seu assunto deve ser urgente, para você cruzar a selva ao invés de tomar a estrada mais longa.

Thandara era separado das outras províncias, como eu havia dito, e a Pequena Selva ficava entre ele e as fronteiras bossonianas. Todavia, uma estrada segura corria através dela para dentro das fronteiras, e de lá para as outras províncias; mas era um caminho longo e tedioso.

Então, ele perguntou por notícias de Thandara, mas eu disse a ele que sabia pouco sobre os últimos acontecimentos, tendo acabado de retornar de uma longa exploração dentro da região dos Lontras, o que era mentira; mas eu não tinha como saber a bandeira política de Schohira, e não estava disposto a revelar a minha própria até que eu soubesse. Então, perguntei a ele se Hakon, filho de Strom estava no Forte Kwanyara, e ele me disse que o homem a quem eu procurava não estava no forte, mas na cidade de Schondara, a qual ficava algumas milhas a leste do forte.

- Espero que Thandara se pronuncie a favor de Conan – ele disse, praguejando –, pois lhe digo honestamente que esse é o nosso caráter político. E é minha maldita sorte que me deixa aqui, com o punhado de patrulheiros que vigia a fronteira contra pictos invasores. Eu daria meu arco e camisa de caça para estar com seu exército, que se encontra agora mesmo em Thenitea, na Enseada de Ogaha, esperando o furioso ataque de Brocas de Toth com seus malditos renegados.

Não falei nada, mas eu estava pasmado. Eram mesmo novidades. Pois o Barão de Toth era lorde de Conawaga, não de Schohira, cujo patrão era o Lorde Thasperas de Kormon.

- Onde está Thasperas? – perguntei, e o patrulheiro respondeu, num pensamento rápido:

- Na Aquilônia, lutando por Conan.

E ele me olhou estreitamente, como se tivesse começado a se perguntar se eu era um espião.

- Há um homem em Schohira – comecei a falar –, com tamanha ligação com os pictos, que vive nu e pintado, entre eles, e assiste às suas cerimônias sangrentas e...

Detive-me, diante da fúria que contorceu as feições do schohirano.

- Maldito! – disse ele, asfixiado de fúria – O que pretende, vindo aqui nos insultar deste modo?

De fato, chamar um homem de renegado era o mais terrível insulto que poderia ser feito ao longo da Fronteira Oeste, embora eu não o tenha pretendido. Mas vi que o homem ignorava qualquer coisa a respeito do renegado que eu vira, e, não desejando emitir informações, simplesmente disse a ele que não havia entendido o que eu quis dizer.

- Entendi bem o bastante! – ele disse, tremendo de ira – Mas, pela sua pele morena e sotaque do sul, acho que você é um espião vindo de Conawaga. Mas, espião ou não, você não pode insultar os homens de Schohira desta forma. Se eu não estivesse no meu dever militar, largaria meu cinto de armas ao chão e lhe mostraria os modos dos homens que geramos em Schohira.

- Não quero briga. – eu disse – Mas estou indo para Schondara, onde não será difícil você me encontrar, se quiser.

- Estarei lá dentro em pouco. – ele disse sombriamente – Sou Storm, filho de Gorm, e eles me conhecem em Schohira.

Eu o deixei percorrendo seu posto ao longo da margem, e agarrando os cabos da faca e do machado, como se ansioso em acertar a lâmina em minha cabeça, e saí dando uma enorme volta longe do pequeno forte, para evitar outros batedores ou vigias. Pois nestes tempos agitados, a suspeita de que eu fosse um espião poderia cair facilmente sobre mim. Não, este Storm filho de Gorm estava começando a ter tais pensamentos em seu cérebro obtuso, quando estes foram varridos por seu ressentimento pessoal ao que ele confundiu com um insulto. E, tendo se desentendido comigo, seu senso de honra não o permitiria me prender, na suspeita de que eu fosse um espião – mesmo que ele tivesse pensado nisto. Em tempos comuns, ninguém pensaria em deter ou fazer perguntas a um homem que cruzava a fronteira – mas tudo agora era um louco turbilhão; e deveria ser, se o dono de Conawaga estava invadindo os domínios de seus vizinhos.

A floresta havia sido desmatada ao redor do forte por umas poucas centenas de metros a cada lado, formando uma sólida muralha verde. Permaneci dentro desta muralha, quando contornei a clareira artificial, e não encontrei ninguém, mesmo enquanto cruzava vários caminhos que levavam ao forte. Evitei clareiras e fazendas. Segui para leste, e o sol ainda não estava alto no céu, quando avistei os tetos de Schondara.

A floresta só chegava a uns 800 metros de distância da cidade, a qual era bonita para uma povoação da fronteira, com casas simples e elegantes, quase todas feitas de toras retangulares – algumas pintadas –; mas também algumas de estrutura refinada, o que é algo que não temos em Thandara. Mas não havia fosso nem paliçada ao redor da povoação, o que me era estranho. Pois nós, de Thandara, construímos nossas moradias tanto para defesa quanto para abrigo, embora lá não haja uma povoação ao redor da província; mas cada cabana é como se fosse um pequeno forte.

À direita da povoação se erguia um forte, em meio a uma campina, com fosso e paliçada, um pouco maior que o Forte Kwanyara, mas vi poucas cabeças se mexendo sobre o parapeito, tanto com capacete quanto com gorro. Somente o desfraldado falcão alado de Schohira era açoitado pelo vento no estandarte. E me perguntei por que, se Schohira estava ao lado de Conan, não ergueu a bandeira que ele havia escolhido – o leão dourado num fundo preto, o estandarte do regimento que ele comandara como general mercenário da Aquilônia.

À esquerda, no limite da floresta, vi uma grande casa de pedra, situada entre jardins e pomares, e notei que era a propriedade de Lorde Valerian, o mais rico dono de terras em Schohira ocidental. Nunca tinha visto o homem, mas sabia que ele era rico e poderoso. Mas agora o Palácio, como era chamado, parecia abandonado.

A cidade também parecia curiosamente abandonada – pelo menos de homens, embora lá houvesse muitas mulheres e crianças, e me parecesse que os homens haviam reunido suas famílias aqui por segurança. Vi poucos homens robustos. Enquanto eu subia as ruas, vários olhos me acompanhavam com desconfiança, mas ninguém falava, exceto para responder brevemente às minhas perguntas.

Na taverna, somente uns poucos velhos e aleijados se reuniam ao redor das mesas manchadas de cerveja, e conversavam em voz baixa. Toda a conversa parou quando apareci na entrada, em minhas gastas peles de gamo, e todos se viraram para me encararem silenciosamente.

O silêncio foi ainda maior quando perguntei por Hakon, filho de Strom, e o dono da estalagem me contou que Hakon havia cavalgado para Tenitea, logo após o sol nascer, para onde o exército estava acampado, mas não voltaria logo. Então, faminto e cansado, comi uma refeição naquela taverna, ciente daqueles olhos interrogativos fixos em mim; depois me deitei num canto, sobre uma pele de urso que o estalajadeiro trouxe para mim, e dormi. E eu dormia quando Hakon, filho de Strom, retornou, quase ao pôr-do-sol.

Era um homem alto, de membros longos e ombros largos, como a maioria dos moradores das Terras Ocidentais, vestido com uma camisa-de-caça de pele de gamo, e perneiras e mocassins com franjas, feito eu. Meia dúzia de guardas estava com ele, e se sentaram a uma mesa próxima à porta e observaram a ele e a mim, sobre as beiradas de seus odres de cerveja.

Quando eu disse o meu nome e lhe falei que tinha algo para lhe contar, ele me olhou firmemente e me mandou sentar com ele numa mesa num canto, onde meu anfitrião nos trouxe cerveja espumante em odres de couro.

- Não chegou nenhuma notícia, através do local, sobre os assuntos em Thandara? – perguntei.

- Nada de concreto; só rumores.

- Muito bem. – eu disse – Trago notícias de Brant, filho de Drago, governador de Thandara, e do conselho de capitães; e por este sinal, você saberá que sou um homem leal.

E assim, mergulhei meu dedo na cerveja espumante, e com ele desenhei um símbolo na mesa, ao qual imediatamente apaguei. Ele assentiu com a cabeça, os olhos brilhando de interesse.

- Esta é a notícia que lhe trago. – eu disse – Thandara se pronunciou a favor de Conan, e está pronta para ajudar os amigos dele e enfrentar seus inimigos.

Diante disso, ele sorriu alegremente e apertou calorosamente minha mão marrom com os próprios dedos ásperos.

- Que bom! – ele exclamou – Mas não é mais do que eu esperava.

- Qual homem em Thandara poderia esquecer Conan? – eu disse – Não, eu era apenas uma criança em Conajohara, mas lembro quando ele era patrulheiro da floresta e um batedor lá. Quando o cavaleiro dele adentrou Thandara, nos contando que Poitain estava em revolta, com Conan lutando pelo trono, e pediu nosso apoio... não pedia por voluntários, somente por nossa lealdade... mandamos para ele um único recado: “Não nos esquecemos de Conajohara”. Logo, veio o Barão Attelius sobre as fronteiras contra nós, mas o emboscamos na Pequena Selva e lhe despedaçamos o exército. Agora acho que não precisamos temer invasões em Thandara.

- Gostaria de poder dizer o mesmo de Schohira. – ele disse sombriamente – O Barão Thasperas nos mandou dizer que podíamos fazer o que escolhêssemos. Ele se pronunciara a favor de Conan e se juntara ao exército rebelde. Mas não pediu tropas do oeste. Não... tanto ele quanto Conan sabem que a Fronteira Oeste precisa de todos os homens que tem para a guarnição fronteiriça.

“Contudo, ele removeu suas tropas dos fortes, e nós os equipamos com nossos próprios guardas florestais. Houve umas pequenas escaramuças entre nós, especialmente em cidades como Coyaga, onde moram donos de terras, pois alguns apóiam Namedides... bom, alguns desses legalistas fugiram para Conawaga com seus dependentes, enquanto outros se renderam e juraram permanecer neutros em seus castelos, como o Lorde Valerian de Schondara. Os legalistas que fugiram juraram voltar para cortarem nossas gargantas. E logo depois, o Lorde Brocas marchou sobre a fronteira.

“Em Conawaga, os donos de terra e Brocas estão a favor de Namedides, e ouvimos histórias deploráveis sobre o tratamento deles às pessoas comuns que apóiam Conan”.

Balancei a cabeça sem me surpreender. Conawaga era a maior, mais rica e mais bem-instalada província de toda a Fronteira Oeste, e tinha uma classe muito poderosa de proprietários com títulos de nobreza – o que não temos em Thandara, e pela graça de Mitra, nunca teremos

- É uma invasão para conquista. – disse Hakon – Brocas mandou que jurássemos lealdade a Namedides... aquele cão. Acho que aquele idiota planeja subjugar toda a Fronteira Oeste e governá-la como vice-rei de Namedides. Ele está em Coyaga, a 16 quilômetros da Enseada de Ogaha, com soldados aquilonianos, arqueiros bossonianos e renegados de Schohira. Thenitea está cheia de refugiados da região oriental, à qual ele devastou.

“Não temos medo dele, embora sejamos numericamente inferiores. Ele tem que atravessar a Enseada de Ogaha para nos atacar, e fortificamos a margem oeste e obstruímos a estrada contra sua cavalaria”.

- Isso tem a ver com minha missão. – eu disse – Estou autorizado a oferecer os serviços de 150 exploradores thandarianos. Todos pensamos igual em Thandara, e não temos lutas internas; e podemos poupar aqueles vários homens de nossa luta contra os pictos Panteras.

- Serão boas notícias para o comandante do Forte Kwanyara!

- O quê? – eu disse – Você não é o comandante?

- Não – ele disse –, é meu irmão, Dirk, filho de Strom.

- Se eu soubesse disso, teria dado minha mensagem a ele. – eu disse – Brant, filho de Drago pensou que você fosse o chefe de Kwanyara. Mas não importa.

- Outro odre de cerveja – disse Hakon –, e partiremos para o forte, a fim de que Dirk ouça suas notícias em primeira mão. Ao diabo com chefiar um forte. Um grupo de batedores é o bastante para mim.

E de fato, Hakon não era o homem ideal para comandar um posto ou qualquer grupo grande de homens, pois ele era muito temerário e impetuoso, embora fosse um homem valente e um velhaco alegre.

- Vocês deixaram uma tropa muito pequena para guardar a fronteira. – eu disse – E quanto aos pictos?

- Mantêm a paz a quem eles prometeram. – ele respondeu – Por alguns meses, tem havido paz ao longo da fronteira, exceto pelas corriqueiras escaramuças entre indivíduos de ambas as raças.

- O Palácio de Valerian parecia abandonado.

- Lorde Valerian mora lá sozinho, exceto por uns poucos criados. Se seus guerreiros vão embora, ninguém sabe. Mas ele os mandou. Se ele não tivesse nos dado sua garantia, acharíamos necessário colocá-lo sob vigilância, pois ele é um dos poucos brancos a quem os pictos atendem. Se quisesse jogá-los contra nossas fronteiras, seria difícil nos defendermos contra eles de um lado e Brocas do outro.

“Os Falcões, Gatos Selvagens e Tartarugas ouvem quando Valerian fala, e ele chegou inclusive a visitar os distritos dos pictos Lobos e regressou vivo”.

Se aquilo era verdade, era realmente estranho, pois todos os homens conheciam a ferocidade da grande confederação de clãs aliados, conhecida como a tribo do Lobo, que vivia a oeste, além dos territórios de caça das três tribos menores que ele mencionara. Geralmente, eles se mantêm afastados da fronteira, mas o ódio deles sempre foi uma ameaça ao longo das fronteiras de Schohira.

Hakon ergueu a vista, quando um homem alto, usando calças, botas e um manto escarlate, adentrou a taverna.

- Aí está Lorde Valerian. – ele disse.

Olhei fixamente, me sobressaltei e instantaneamente me levantei.

- Esse homem? – exclamei – Eu vi esse homem na noite passada, além da fronteira, num acampamento dos Falcões, assistindo à Dança da Serpente Mutante!

Valerian me ouviu e girou rapidamente, pálido. Seus olhos faiscaram como os de uma pantera.

Hakon também se levantou rapidamente.

- O que está dizendo? – ele gritou – Lorde Valerian deu sua palavra...

- Não me importa! – exclamei ferozmente, caminhando para a frente até confrontar o nobre alto – Eu o vi, enquanto me deitava entre os lariços. Esse rosto aquilino é inconfundível. Digo-lhe que ele estava lá, nu e pintado como um picto...

- Está mentindo, seu maldito! – gritou Valerian, lançando o manto para um lado e agarrando o cabo da espada.

Mas, antes que ele pudesse desembainhá-la, eu o agarrei e derrubei ao chão, onde ele agarrou minha garganta com ambas as mãos, blasfemando como um louco. Então, houve um rápido bater de pés, e os homens estavam nos separando, agarrando firmemente o meu lorde, que estava pálido e ofegante de fúria, ainda agarrando o lenço de meu pescoço, o qual havia sido arrancado durante a luta.

- Me soltem, seus cães! – ele rugiu – Tirem suas mãos camponesas de mim! Vou partir este mentiroso até o queixo...

- Não é mentira. – eu disse, com mais calma – Eu estava deitado no lariço noite passada, e vi quando o velho Teyanoga tirou a alma do corpo de um chefe dos Corvos e a enfiou no de uma serpente das árvores. Foi minha flecha que derrubou o xamã. E vi você lá... você, um homem branco, nu e pintado, acolhido como um membro do clã.

- Se isto for verdade... – Hakon começou a dizer.

- É verdade, e aí está a prova! – exclamei – Olhe! No peito dele!

Seu casaco e camisa haviam sido rasgados na luta, e lá, fosco em seu peito nu, estava visível o contorno da caveira branca, a qual os pictos só pintam quando pretendem guerrear contra os brancos. Ele havia tentado lavá-la de sua pele, mas a pintura picta deixa manchas fortes.

- Desarmem-no. – disse Hakon, pálido até os lábios.

- Me dê meu lenço do pescoço. – exigi, mas ele cuspiu em mim, e enfiou o lenço na camisa.

- Quando ele for devolvido a você, estará amarrado no laço de uma forca, ao redor de seu pescoço rebelde. – ele rosnou.

Hakon parecia indeciso.

- Vamos levá-lo ao forte. – eu disse – Deixem-no sob a guarda de um comandante. Não foi com boas intenções que ele participou da Dança da Serpente. Aqueles pictos estavam pintados para uma batalha. Esse símbolo em seu peito significa que ele pretendia participar da guerra para a qual dançavam.

- Mas... grande Mitra, isto é inacreditável! – exclamou Hakon – Um homem branco, soltando aqueles demônios pintados sobre seus amigos e vizinhos?

Meu lorde nada disse. Estava lá, entre os homens que agarravam seus braços; lívido, seus lábios finos virados para trás, mostrando os dentes; mas todo o inferno brilhava como fogo amarelo em seus olhos, nos quais eu parecia sentir luzes de loucura.

Mas Hakon estava hesitante. Ele não ousava soltar Valerian, e temia o efeito que poderia causar no povo, se este visse o lorde sendo levado como prisioneiro para o forte.

- Vão perguntar o motivo – ele argumentou –, e quando souberem que ele estava negociando com os pictos na pintura de guerra deles, podem ficar em pânico. Vamos trancá-lo na prisão, até que possamos trazer Dirk para cá, a fim de interrogá-lo.
- É perigoso se comprometer com uma situação como esta. – respondi francamente – Mas é você quem decide. Você está no comando aqui.

Então, levamos o lorde para fora, através da porta negra, e já escurecendo àquela hora, chegamos à prisão sem sermos notados pelo povo, que, em sua maioria, já estava de fato dentro de casa. A prisão era pequena e feita de troncos, um pouco afastada da cidade, com quatro celas, e apenas uma ocupada – esta, por um velhaco gordo, que havia sido preso durante a noite por embriaguez e por brigar na rua. Ele arregalou os olhos ao ver nosso prisioneiro. Lorde Valerian não disse uma só palavra, enquanto Hakon trancava a porta gradeada sobre ele e designava um dos homens para montar guarda. Mas um fogo demoníaco brilhava em seus olhos escuros, como se, por trás de seu rosto pálido, estivesse rindo de nós com triunfo diabólico.

- Vai pôr somente um homem de guarda? – perguntei a Hakon.

- Pra que mais? – ele disse – Valerian não pode sair, e não há ninguém para resgatá-lo.

Parecia-me que Hakon estava disposto a não ceder, mas, no final das contas, não era assunto meu, de modo que eu não disse mais nada.

Logo, Hakon e eu nos dirigimos ao forte, e lá conversei com Dirk, filho de Strom, o chefe que estava no comando da cidade, na ausência de Jon, filho de Storm, o governador apontado por Lorde Thasperas, o qual agora comandava o exército miliciano localizado em Thenitea. Parecia sereno quando ouviu minha história, e disse que iria até a prisão interrogar Lorde Valerian, assim que suas responsabilidades o permitissem, embora ele pouco acreditasse que meu senhor falaria, pois este vinha de uma raça teimosa e orgulhosa. Ele estava feliz em saber dos homens que Thandara ofereceu a ele, e me disse que poderia achar um homem para retornar a Thandara, aceitando a oferta, se eu quisesse permanecer em Schohira mais um pouco, o que fiz. Depois, retornei à taverna com Hakon, pois era nossa intenção dormir lá naquela noite, e partir para Thenitea de manhã. Batedores mantinham os schohiranos observando os movimentos de Brocas; e Hakon havia estado no acampamento naquele dia, e disse que Brocas não mostrava sinais de se mover contra nós, o que me fez acreditar que ele estava esperando que Valerian liderasse seus pictos contra a fronteira. Mas Hakon ainda vacilava, apesar de tudo o que eu havia lhe dito, acreditando que Valerian havia apenas visitado os pictos amigavelmente, como havia feito várias vezes. Mas salientei que nenhum homem branco, por mais amigável que fosse com os pictos, seria aceito para assistir a uma cerimônia como a Dança da Cobra. Ele teria que ser um irmão de sangue do clã.


3)

Acordei repentinamente e me sentei na cama. Minha janela estava aberta, tanto as persianas quanto o vidro, para refrescar, pois ficava num quarto de um andar superior, e não havia nenhuma árvore próxima, pela qual um ladrão pudesse ter acesso. Mas algum ruído havia me acordado, e agora, quando olhei para a janela, vi o céu estrelado ser coberto por uma figura volumosa e disforme. Girei minhas pernas para fora da cama, me perguntando o que era aquilo e procurando às cegas por meu machado; mas a coisa já estava sobre mim com velocidade assustadora e, antes que eu pudesse me levantar, alguma coisa envolvia meu pescoço, me asfixiando e estrangulando. Quase encostado em meu rosto, havia um semblante indistinto e medonho, mas tudo o que eu conseguia distinguir na escuridão era um par de flamejantes olhos vermelhos, e uma cabeça pontiaguda. Minhas narinas foram preenchidas por um fedor animal.

Peguei um dos pulsos da coisa, e era tão peludo quanto o de um macaco, e com músculos de ferro. Mas, naquele momento, eu havia encontrado o cabo de minha machadinha; levantei-a e rachei aquele crânio disforme num só golpe. Ele caiu para longe de mim, e eu me levantei, com ânsia de vômito e respirando convulsivamente, e com todos os membros trêmulos. Achei pederneira, aço e pavio, acendi uma vela e olhei feroz e selvagemente para a criatura que jazia no chão.

Sua forma era a de um homem nodoso e deformado, coberto com pêlos espessos. Suas unhas eram longas e negras, como as garras de uma fera; e sua cabeça, sem queixo e com testa baixa, era semelhante à de um macaco. A coisa era um Chakan, uma daquelas criaturas semi-humanas que moram nas profundezas das florestas.

Logo, bateram à minha porta, e a voz de Hakon gritou, para saber o que estava acontecendo, e mandei que ele entrasse. Entrou rapidamente, de machado na mão, e seus olhos se arregalaram ao verem a coisa no chão.

- Um Chakan! – sussurrou – Já os vi, bem a oeste, farejando rastros pelas florestas... malditos sabujos! O que é isso em seus dedos?

Um arrepio de horror percorreu minha espinha, quando vi a criatura ainda agarrando um lenço de pescoço em seus dedos... o pano que ele tentara amarrar como um laço de forca ao redor do meu pescoço.

- Ouvi dizer que xamãs pictos pegam estas criaturas, domesticam-nas e usam-nas para farejarem seus inimigos. – ele disse lentamente – Mas como Lorde Valerian conseguiu usar um?

- Não sei. – respondi – Mas esse lenço foi dado ao animal que, conforme sua natureza, farejou meu rastro e tentou quebrar meu pescoço. Vamos para a prisão, e rápido.

Hakon acordou seus exploradores, corremos para lá e encontramos o guarda, caído com a garganta cortada, diante da porta aberta da cela de Valerian. Hakon ficou como que petrificado, e então um fraco chamado fez com que nos virássemos e víssemos o rosto branco do bêbado que nos fitava da cela ao lado.

- Escapou. – ele disse – Lorde Valerian escapou. Há uma hora atrás, quando eu estava em minha cama, fui acordado por um som externo, e vi uma estranha mulher morena sair das sombras e caminhar até o guarda. Ele ergueu o arco e mandou que ela parasse, mas ela riu diante dele, o mirou fundo nos olhos e ele ficou como que em transe. Ele ficou com os olhos estupidamente arregalados... e, por Mitra, puxou a própria faca do cinto, cortou a própria garganta, caiu e morreu. Então, ela apanhou as chaves do cinto dele, abriu a porta e Valerian saiu, rindo feito um demônio do inferno, beijou a jovem e ela riu com ele. E não estava sozinha, pois algo se escondia nas sombras atrás dela – algum ser vago e monstruoso que, em momento algum, se dirigiu à luz da lanterna pendurada sobre a porta.

“Eu a ouvi dizer que era melhor matar o bêbado gordo na cela próxima, e, por Mitra, eu estava tão morto de terror, que eu nem sequer sabia se ainda estava vivo. Mas Valerian disse que eu estava completamente bêbado, e eu seria capaz de beijá-lo por ele ter dito aquilo. Então, eles foram embora e, enquanto partiam, ele disse que mandaria sua companheira numa missão; eles depois iriam para uma cabana na Enseada do Lince, e lá encontrariam seus dependentes, que estavam escondidos na floresta desde que ele os dispensou do Palácio de Valerian. Ele disse que Teyanoga os encontraria lá, eles cruzariam a fronteira, se misturariam aos pictos e os trariam de volta para cortarem as gargantas de todos nós”.

Hakon parecia pálido na luz da lanterna.

- Quem é essa mulher? – perguntei curioso.

- Sua amante mestiça de picto. – ele disse – Meio picta Falcão e meio liguriana. Já ouvi falar nela. Eles chamam-na a Bruxa de Skandaga. Eu nunca a tinha visto, e nunca antes acreditei nas histórias sussurradas sobre ela e Lorde Valerian. Mas é a pura verdade.

- Pensei que eu tivesse matado o velho Teyanoga. – murmurei – O velho demônio deve ter uma vida enfeitiçada... eu vi minha flecha vibrar no peito dele. E agora?

- Temos que ir à cabana na Enseada do Lince e matar todos eles. – disse Hakon – Se soltarem os pictos na fronteira, pagaremos muito caro. Não podemos utilizar homens do forte ou da cidade. Somos suficientes. Não sei quantos homens estarão na Enseada do Lince, e não me importo. Vamos atacá-los de surpresa.

Partimos imediatamente à luz das estrelas. A terra estava em silêncio e as luzes piscavam fracamente nas casas. Para oeste, avultava a floresta negra – silenciosa, primordial; uma ameaça meditativa para quem a desafiasse.

Seguimos em fila única, os arcos preparados em nossas mãos esquerdas e os machados balançando nas direitas. Nossos mocassins não faziam ruído na grama molhada de orvalho. Desaparecemos dentro da mata e encontramos uma trilha que serpenteava entre carvalhos e amieiros. Aqui, nos separamos a uma distância de uns quatros metros e meio uns dos outros; Hakon ia na frente, e dentro em pouco mergulhamos numa depressão coberta de capim, e vimos a luz se filtrar levemente das rachaduras e persianas que cobriam a janela de uma cabana.

Hakon nos parou e sussurrou para que os homens esperassem, enquanto nos arrastávamos para a frente e os espionávamos. Seguimos furtivamente para diante, e surpreendemos a sentinela – um renegado schohirano, que teria ouvido nossa aproximação furtiva, se não fosse o vinho em seu hálito. Nunca esquecerei o feroz assobio de satisfação que soprou entre os dentes cerrados de Hakon, quando ele enfiou a faca no coração do patife. Deixamos o corpo escondido na exuberante grama alta, subimos a própria parede da cabana e nos aventuramos a olhar por uma fresta. Lá estava Valerian, com os olhos ferozes faiscando; e uma jovem escura, de beleza selvagem, usando uma tanga de pele de corça e mocassins enfeitados com pérolas, e com o cabelo brilhante amarrado atrás por uma faixa dourada, com inscrições estranhas. E lá havia meia dúzia de renegados schohiranos – velhacos taciturnos, usando calças de lã e casacos de fazendeiros, com sabres em seus cintos –; três patrulheiros da floresta, homens de aspecto feroz usando calças de couro, e meia dúzia de guardas gunderlandeses – homens de constituição firme, com cabelos amarelos de corte reto em capacetes de aço, couraças de cota-de-malha e caneleiras polidas. Usavam espadas e adagas nos cintos – homens de cabelos amarelos, com pele clara, olhos de aço e um sotaque que diferia grandemente dos nativos da Fronteira Oeste. Eram lutadores fortes, impiedosos e bem-disciplinados, e muito apreciados como militares entre os donos de terra da fronteira.

Ouvíamos todos lá conversarem e rirem. Valerian, se gabando de sua fuga e jurando que havia mandado um visitante para aquele maldito thandariano que deveria se meter em seus próprios assuntos; os renegados, taciturnos, praguejando e amaldiçoando seus antigos amigos; os patrulheiros da floresta, silenciosos e atentos; os gunderlandeses, despreocupados e joviais, cuja jovialidade mal disfarçava sua natureza totalmente impiedosa. E a garota mestiça, a quem chamavam Kwarada, ria e brincava com Valerian, o qual parecia terrivelmente entretido. Hakon tremia de fúria enquanto o ouvíamos se gabar de como pretendia instigar os pictos e liderá-los pela fronteira para atacarem os schohiranos pelas costas, enquanto Brocas atacava de Coyaga.

Então, ouvimos leves passadas e nos apertamos contra a parede. Vimos a porta aberta, e sete pictos pintados – figuras horrorizantes, em tinta e penas. Eram guiados pelo velho Teyanoga, cujos músculos peitorais estavam enfaixados, e então percebi que minha seta havia apenas se cravado naqueles músculos compactos. E me perguntei se aquele velho demônio era mesmo um lobisomem, que não poderia ser morto pelas armas dos mortais, como ele se gabava e muitos acreditavam.

Estávamos próximos dali, Hakon e eu, e ouvi Teyanoga dizer que os Falcões, Gatos Selvagens e Tartarugas não ousariam atacar fronteira adentro, a menos que uma aliança com os poderosos Lobos pudesse ser selada, pois eles temiam que os Lobos devastassem a região deles, enquanto lutavam contra os schohiranos. Teyanoga disse que as três tribos menores encontraram os Lobos às margens do Pântano do Fantasma para uma assembléia; e que os Lobos aguardariam o conselho do Feiticeiro do Pântano.

Então, Valerian disse que iriam ao Pântano do Fantasma, ver se não conseguiriam convencer o Feiticeiro a induzir os Lobos a se juntarem aos outros. Diante disso, Hakon me disse para me arrastar de volta e buscar os outros, e percebi que estava em sua mente que deveríamos atacar; estávamos em desvantagem numérica, mas eu estava tão inflamado pelo plano infame que havíamos escutado, que fiquei tão impaciente quanto ele. Me movi furtivamente de volta e trouxe os outros; e, assim que nos ouviu chegar, ele se ergueu de um pulo e correu até a porta, para arrombá-la com seu machado de guerra.

Ao mesmo tempo, outros de nós entraram impetuosamente nas persianas e lançamos flechas para dentro da sala, derrubando alguns e ateando fogo na cabana.

Estavam confusos e não tentaram defender a cabana. As velas estavam derrubadas e se apagaram, mas o fogo emprestou uma fraca incandescência. Atravessaram correndo a porta, e alguns foram mortos lá; e outros, no corpo-a-corpo conosco. Mas, dentro em pouco, todos fugiram para dentro da mata, exceto aqueles que matamos – gunderlandeses, renegados e pictos pintados –, mas Valerian e a garota ainda estavam na cabana. Eles então avançaram, ela riu e arremessou no chão algo que explodiu e nos cegou com uma fumaça desagradável, através da qual escaparam.

Todos os nossos homens, exceto quatro, haviam sido mortos na luta desesperada, mas começamos instantaneamente uma perseguição, mandando um de nossos feridos de volta, para avisar a cidade.

O caminho levava para dentro da selva.

Seguimos, e em lutas e escaramuças, matamos vários outros; logo, todos os nossos homens estavam mortos, exceto Hakon e eu. Rastreamos Valerian pela fronteira e para dentro de um acampamento de tribos de guerra, próximo ao Pântano do Fantasma, onde os chefes iriam consultar o Feiticeiro, um xamã pré-picto.

Seguimos Valerian pântano adentro, ele indo secretamente dar instruções aos xamãs, e Hakon esperou no caminho, para matar Valerian, enquanto eu adentrava sorrateiramente o pântano para matar o Feiticeiro. Mas fomos capturados pelo Feiticeiro, que lhe deu consentimento para a guerra e deu a eles uma magia medonha para usar contra os homens brancos; e as tribos seguiram uivando em direção à fronteira. Mas Hakon e eu escapamos, matamos o Feiticeiro e seguimos a tempo de virar a magia deles contra eles próprios, e os derrotamos.



Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Digitação: Edilene Brito da Cruz.

Fonte: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Conan%2025%20-%20Wolves%20Beyond%20The%20Border%20-%20FF.txt?PHPSESSID=43318111a38addc37fe0e2ce6a035e68
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