Conan – Abutres sobre Albiona

Por Osvaldo Magalhães




CONAN, criado por Robert E. Howard.




INTRODUÇÃO


A idéia original para “Abutres Sobre Albiona” surgiu há cerca seis anos; tratava-se de uma aventura onde o Gigante de Bronze e a Guerreira de Fogo uniam-se à então Condessa Albiona e ao Conde Trocero, de Poitain, para retaliar uma invasão nemédia.

Apesar de ter escrito algumas boas páginas, não consegui concluir o conto e acabei desistindo dele – embora tenha guardado o manuscrito original.

Ora, recentemente, assistindo ao filme Coração de Cavaleiro, tive uma súbita inspiração e pus-me a alterar, quase que completamente, o fragmento original, até chegar ao resultado final – o conto que você irá ler.

Entretanto, a tarefa se mostrou mais árdua do que a princípio eu imaginara, afinal, eu estava escrevendo uma história sobre cavaleiros e duelos; algo não muito comum na Era Hiboriana.

Começou, então, o trabalho de garimpagem sobre a Era Medieval – o período dos grandes cavaleiros – em livros de história, sites de internet e alguns filmes sobre o assunto, que tive a oportunidade de ver.

Da miscelânea de informações surgiram vários fragmentos, os quais, tal qual um líquido de azougue esparramado, eu tive de juntar para formar um só contexto e criar um conto com características próprias.

O conto em si levou quase um mês para ser concluído, desde o processo de coleta de dados até a conclusão; foi um trabalho hercúleo, mas o resultado, ao menos para mim, foi satisfatório.

Espero que você aprecie este conto o tanto quanto eu apreciei escrevê-lo.

Deixo aqui meu muito obrigado ao conanmaníaco Fernando Neeser de Aragão, por suas preciosas dicas e pela análise cronológica do conto.

Cronologicamente, a aventura se passa pouco tempo após o Cerco de Sammárcia (a Espada Selvagem de Conan # 158), do qual Conan e Sonja participaram.

Acredito que neste período Marala ainda não era a Condessa de Albiona; e quanto ao rei Numedides, achei prudente mantê-lo fora do conto para evitar incongruências na saga de Conan.

* * *

Nas linhas abaixo segue um prospecto sobre os principais personagens desta aventura.

- Conan da Ciméria: Este dispensa apresentações;

- Sonja da Hirkânia: A bela ruiva já acompanhou o bárbaro cimério em diversas aventuras e, caso você ainda não saiba, é a maior guerreira da Era Hiboriana, encontrando adversário apenas em Conan.

- Marala: Ex-rainha de Ophir – pequeno mas significante reino hiboriano -, ela conheceu Conan quando este a libertou de uma torre em Ianthe, a capital ophiriana. Acompanhados pelo capitão Garus, ambos enfrentaram a morte próximos à fronteira de Ophir com a Aquilônia, até que, vitoriosos, seguiram rumos divergentes: Conan foi para o norte e Marala seguiu para as terras de seus parentes no condado de Albiona, na Aquilônia (ver a Espada Selvagem de Conan # 27, janeiro de 1987);

- Príncipe Numitor: primo do rei Numedides, sua única aparição nos quadrinhos se deu em a Espada Selvagem de Conan # 39 (Jan/89), durante a apócrifa saga de Conan, o Libertador, quando o Cimério avançava para conquistar o trono da Aquilônia;

- Lorde Marcius: este eu criei, não há referências sobre ele na saga de Conan.

- O Conde de Albiona: preferi não dar um nome próprio a ele. Eu apenas deduzi que os parentes de Marala, citados na ESC 27, fossem tios, mas isso não é uma certeza.

- Os demais personagens são apenas figurantes, portanto, não há necessidade de incluí-los neste prospecto.



* * *



ABUTRES SOBRE ALBIONA


1.

SONJA, A GUERREIRA RUIVA, estava em pé, banhada pela luz do sol. O ar era frio e úmido. Pássaros chilreavam em árvores enormes que se erguiam acima dela. Fachos de claridade atravessavam a densa folhagem, salpicando o chão. Ela estava parada sob um dos fachos, ao lado de uma estreita trilha lamacenta que serpenteava por uma floresta. Bem à frente, através de um intervalo entre as árvores, via-se uma aldeia.

Em primeiro plano havia um agrupamento de campos arados e choças, com colunas de fumaça cinzenta erguendo-se dos telhados de sapê. Seguiam-se um muro de pedra e os escuros telhados de pedra da cidade em si; e por fim, à distância, erguia-se o castelo com suas torres circulares.

Nos campos lá embaixo, os camponeses usavam malhas e túnicas remendadas em tom vermelho, azul, alaranjado e rosa. As cores vivas se destacavam contra a terra escura. A maior parte dos campos já fora plantada e os sulcos fechados.

Ficou vendo um campo novo sendo arado, com a lâmina negra de ferro puxada por dois bois. O arado revirava com perfeição a terra de ambos os lados do sulco. Ela reparou no anteparo baixo de madeira montado acima da lâmina. Aquilo era uma aiveca, e era característica daquela região da Aquilônia.

Caminhando atrás do homem que conduzia o arado, um camponês lançava as sementes balançando ritmicamente o braço. O saco de sementes pendia-lhe do ombro. A pouca distância atrás do semeador, pássaros pousavam nos sulcos, batendo as asas e comendo as sementes. Mas não por muito tempo.

Num campo vizinho, Sonja viu um homem montado num cavalo, arrastando atrás de si uma madeira em forma de T lastreada com uma pedra grande – o rastelo. O dispositivo fechava os sulcos, protegendo as sementes.

Tudo parecia se mover num ritmo suave e constante: a mão lançando as sementes, o arado revirando os sulcos, o rastelo raspando o solo. E quase não se ouvia ruído algum naquela manhã calma e nublada de fim de inverno, apenas o zumbido dos insetos e o chilreio dos passarinhos.

Além dos campos, Sonja viu a muralha de pedra de seis metros de altura que circundava a cidade de Tarântia, a capital da Aquilônia. As pedras eram de um cinza escuro e gasto pelo tempo. Num determinado trecho a muralha estava sendo consertada; as pedras novas eram de cor mais clara, um cinza amarelado. Havia pedreiros trabalhando ali, trabalhando com rapidez. Por cima da muralha em si, guardas com cotas de malha andavam de um lado para o outro, às vezes parando para lançar um olhar nervoso à distância.

E elevando-se acima de todo o resto, o castelo propriamente dito, com suas torres circulares e telhados negros de pedra. Bandeiras ondulavam nos torreões. Todas as bandeiras exibiam o mesmo emblema: uma águia negra sobre um escudo em cinza e grená.

Todas as casas tinham telhados lauzes, feitos de pedras pretas empilhadas. Tais telhados de pedra eram incrivelmente pesados e exigiam um madeirame interno muito forte.

Continuando a examinar o panorama, foi lentamente notando outros detalhes. Por exemplo, havia um grande número de cavalos; um número realmente grande, quando você levava em conta os cavalos nos campos, os cavalos na cidade, os cavalos andando pelas estradas de terra e os cavalos soltos para pastar. Devia haver uma centena de cavalos à vista só naquele momento, pensou ela. Nem na Hirkânia ela se lembrava de já ter visto tantos cavalos de uma só vez. Tudo que é tipo de cavalo, desde belos e musculosos corcéis até matungos escanifrados pelos campos.

E enquanto várias das pessoas trabalhando nos campos estavam pobremente vestidas, outras ostentavam cores tão vivas que quase lembravam Khitai. As roupas haviam sido remendadas e depois remendadas novamente, mas sempre com cores contrastantes, de modo que a miscelânea era visível até à distância. Aquilo, Sonja pensou, era uma espécie de estilo daquela região.

Ela percebeu também uma demarcação clara entre as áreas relativamente pequenas de habitação humana – as cidades e os campos – e a floresta que as cercava feito um tapete verde, denso e vasto, estendendo-se a perder de vista em todas as direções. Naquela paisagem, a floresta predominava. Dava a impressão de uma selva abrangente, na qual os seres humanos eram meros intrusos. E intrusos de pouca monta, ainda por cima.

Diante daquele panorama, Sonja se viu pensando em sua infância numa pequena fazenda na distante Hirkânia. E uma pantomima se lhe surgiu na mente. Lembrou-se do assassinato de seus pais e irmãos; da violência com que lhe tiraram a pureza; da deusa que lhe apareceu e lhe concedeu a suprema habilidade com a espada e do voto de só se entregar ao homem que a derrotar em um combate justo.

A guerreira suspirou, de repente se dando conta de que aquele devaneio todo não era uma atitude comum a ela. Empertigou-se e pôs-se a trote, limitando-se ao compasso de sua montaria.

A mata em volta transmitia uma sensação fresca e relaxante. Ela ficou escutando o chilrear dos passarinhos e o barulho suave dos passos de seu cavalo ao longo da trilha. De repente achou que ouvira mais alguma coisa. Retardou o passo para escutar.

Sim, havia um outro som: o de pés correndo. Parecia vir lá de baixo da ladeira. Ela ouviu alguém arquejando sem fôlego e também um barulho mais abafado, como um trovão ribombando ao longe. Estava tentando localizar esse tropel quando um garoto apareceu subitamente na curva, correndo na direção dela.

O garoto estava de malha preta, jaqueta acolchoada verde vivo e barrete preto. Estava vermelho por causa do esforço; claramente, vinha correndo havia algum tempo. Pareceu ficar espantado ao encontrá-la caminhando pela trilha. Ao se aproximar, exclamou:

- Abrigai-vos, senhora! Pela graça de Mitra! Abrigai-vos!

Nisso Sonja percebeu o que o tal tropel era.

Cavalos.

Galopando a toda velocidade naquela direção.

A ruiva, ignorando os apelos do garoto, enlaçou-o pelos ombros e o ergueu da trilha para a sela de seu cavalo, às suas costas e lançou o olhar pela trilha.

Subindo a ladeira a galope na direção deles viam-se seis cavaleiros armados para combate: elmos de aço, cotas de malha e mantos de tecido cinza e grená. Os cavalos ostentavam mantas negras com bordados prateados. O efeito era sinistro. O cavaleiro que os liderava, cujo elmo tinha uma pluma negra, apontou para frente e urrou: - Lá está ela!

Ela?, pensou Sonja, Será que estão me procurando?

Sem hesitar, Sonja deu meia volta com sua montaria e disparou trilha acima, embrenhando-se na escuridão da floresta através de uma azinhaga.

Logo já haviam percorrido cem metros, ou mais, entrando numa área acarpetada de botões-de-prata raquíticos e retorcidos. Ali o terreno era mais exposto e ensolarado porque havia menos árvores do lado direito, e Sonja percebeu que eles estavam cavalgando ao longo da borda de um penhasco de onde se avistava a cidade e um rio.

O barulho dos cavaleiros crescia.

A hirkaniana desviou-se da claridade do sol, voltando à floresta escura. Quase no mesmo instante encontrou uma árvore que lhe agradou, e fez sinal para que o garoto subisse nela.

O garoto deu um salto, agarrou o galho mais baixo e trepou rapidamente na árvore. Embora magro, era surpreendentemente forte, e movia-se de galho em galho com total segurança.

A ruiva ouviu um cavalo resfolegar suavemente e percebeu que o som viera dali de perto.

Bem perto.

Em surdina, seis cavaleiros avançavam lentamente pelo terreno. Ainda estavam a certa distância dali, mas já podiam ser vistos em meio à folhagem. Quando um dos cavalos resfolegava o cavaleiro inclinava-se à frente, afagando-lhe o pescoço para acalmá-lo.

Os cavaleiros sabiam que estavam próximos da presa. Inclinavam-se nas selas, olhando para ambos os lados e esquadrinhando o chão. Por sorte encontravam-se entre aqueles botões-de-prata baixos e raquíticos; não havia rastros visíveis ali.

Comunicando-se por meio de sinais manuais, foram se separando gradualmente enquanto avançavam.

Avançaram penetrando cada vez mais na floresta, e por fim um deles ergueu a voz. Era o cavaleiro com a pluma negra no elmo. Havia levantado a viseira.

- Já chega. Elas nos despistaram.

- Como? Caíram do penhasco?

O cavaleiro de negro abanou a cabeça. – A criança não é tão boba assim. – Sonja, agachada em uma moita com sua montaria, viu que seu rosto era escuro: pele escura e olhos escuros.

- Não se trata bem de uma criança, meu senhor.

- Se caiu, foi por engano. Não pode ter sido de outra forma. Mas acho que nós perdemos a pista. Voltemos por onde viemos.

- Sim, meu senhor.

Os cavaleiros viraram os cavalos e começaram a voltar e foram se distanciando, ainda largamente separados, em direção à claridade.

- Talvez sob melhor luz encontremos a pista delas.

Sonja soltou um longo suspiro de alívio; não tinha medo dos homens, mas eles pareciam ser soldados da cidade e a hirkaniana não queria problemas com a lei.

Levantou-se, olhou para cima, para o garoto trepado na árvore e balançou a cabeça como quem diz, Bom trabalho. Esperaram até que os cavaleiros estivessem a pelo menos cem metros de distância, quase fora do seu campo de visão. Aí o garoto deslizou silenciosamente árvore abaixo, mas, ao pular para a sela do cavalo, o infortúnio quis que o animal escolhesse aquele momento para relinchar.

Um dos cavaleiros ouvira.

Praga. Pensou Sonja.

Os cavaleiros giravam sobre as montarias, voltando o olhar para trás. O cavaleiro de negro voltou, cético. – Hein? Onde?

- não vejo ninguém lá atrás, meu senhor.

Os cavaleiros se viraram, olhando para trás, olhando em todas as direções, procurando...

E viram.

- Lá!

Os cavaleiros investiram.

Sonja e o garoto dispararam a toda sobre a montaria.

- Você sabe nadar? – berrou a ruiva.

- Nadar? – disse o garoto.

É claro que ele sabia nadar. Mas não era nisso que estava pensando. Porque naquele momento eles estavam galopando à toda velocidade direto para a clareira, direto para aquele intervalo entre as árvores.

Direto para o penhasco.

Ali o terreno descia, primeiro levemente e depois de forma mais íngreme. A cobertura vegetal era mais rala, com trechos expostos de calcário amarelo esbranquiçado. O sol brilhava fracamente entre as nuvens escuras.

O cavaleiro de negro urrou alguma coisa. Sonja não entendeu.

Chegaram por fim à borda da clareira. Sem hesitação, Sonja lançou-se no ar com seu cavalo e o garoto.

Viu o rio serpenteando lá embaixo. Flechas zuniam pela sua orelha.

O impacto com a água gelada foi melhor do que ela previra e logo já alcançava a margem do rio; o garoto também se safara e já estava também lhe alcançando, mas sua montaria estava sendo arrastada rio abaixo.

Os cavaleiros os observavam lá de cima do penhasco. As flechadas cessaram.

O garoto tinha o corpo coberto de arranhões, vergões e contusões. Mas a pele já estava secando, e o sol estava quente.

- Como se chama a senhora? – perguntou o garoto.

- Sonja, da Hirkânia.

- Hum. Sonja, da Hirkânia – disse o garoto, falando bem devagar. Parecia estar avaliando o nome de uma maneira que Sonja não compreendia. – Onde fica Hirkânia? Em terras do leste?

- Sim.

Um silêncio breve abateu-se sobre ela e o garoto, enquanto permaneciam sentados ao sol.

- Que rio é este? – perguntou Sonja por fim.

- É o Khorotas – respondeu o garoto. - A senhora é uma dama?

- Não. Sou uma guerreira.

Essa notícia fez o garoto piscar de surpresa.

- Fico muito feliz pela senhora ter ajudado a me salvar de Lorde Marcius e seu bando. – Apontou para o outro lado do rio, onde os seis cavaleiros em trajes escuros já estavam a observá-los da margem. Estavam dando de beber aos cavalos, mas seus olhos estavam fixados em Sonja e no garoto.

- Não tive escolha, garoto. Eles praticamente fizeram-me inimiga deles. Mas não quero problemas com a lei da Aquilônia.

- Devo-lhe minha vida, guerreira, e será meu prazer cuidar de suas necessidades quando chegarmos ao castelo.

Sonja disse: - Castelo?

* *

Seguindo o garoto, a ruiva chegou à entrada de Tarântia: portões duplos de madeira, fortemente reforçados com guarnições de ferro. Os portões estavam abertos, guardados por um soldado de manto cinza e grená. O guarda saudou-os dizendo: - Querem armar uma barraca? Ou vão estender um pano no chão? São cinco soldos para vender no mercado.

- Não somos mercadores – disse o garoto.

- Se são, têm que pagar. Cinco soldos agora, ou dez mais tarde.

O garoto abanou a cabeça. – Vê alguma mercadoria aqui, guarda?

- Por Mitra, não.

- Eis aí sua resposta.

Apesar da pouca idade, o garoto falava rispidamente, como que acostumado a comandar. O guarda simplesmente deu de ombros e se afastou. Sonja e o garoto passaram pelos portões e entraram na aldeia.

Do lado de dentro da muralha viam-se várias casas de fazenda e pequenos terrenos cercados. A área tinha um forte cheiro de suínos. Eles foram passando por casas de sapê e chiqueiros com porcos que grunhiam, e depois subiram uma escada que dava numa rua com calçamento de pedra e construções também de pedra de ambos os lados. Haviam chegado à cidade propriamente dita.

A rua era estreita e movimentada, e as construções tinham sobrados que se projetavam para fora, de modo que a luz do sol não chegava ao chão. No andar térreo, todas as construções tinham lojas abertas àquela hora: uma ferraria, uma carpintaria que também fabricava barris, uma alfaiataria e um açougue. O açougueiro, que usava um avental de encerado todo manchado, estava esquartejando um porco que gania no calçamento de pedra à frente da loja; Sonja e o garoto se desviaram do sangue que escorria e das pálidas tripas enroladas do bicho.

A rua era barulhenta e cheia de gente; o cheiro era quase insuportável para Sonja, que continuava sendo conduzida pelo garoto. Desembocaram numa praça com calçamento de pedra e um mercado coberto no centro.

Uma jovem bem-vestida, carregando uma cesta de verduras, apressou-se a cruzar a praça até o garoto, dizendo preocupada: - Meu caro mestre, sua longa ausência aborrece seu tio.

O garoto pareceu contrariado ao vê-la. Disse com irritação: - Pois diga a meu tio que em boa hora irei ter com ele.

- Ele ficará satisfeito ao saber disso – disse a jovem, apressando-se por uma viela estreita.

O garoto conduziu a ruiva em outra direção. Não fez referência àquela conversa; simplesmente foi em frente, murmurando consigo mesmo. Sonja, que já estava ficando impaciente, seguia simplesmente na esperança de um emprego como guarda-costas ou mercenária, já que o garoto parecia ser da nobreza.

Chegaram a um espaço aberto na frente do castelo. Era um lugar alegre e colorido, em que homens bem-vestidos desfilavam com suas belas mulheres.

Bem ali à frente via-se a ponte levadiça que levava ao castelo. A guerreira ergueu o olhar para as muralhas imponentes com altos torreões. Soldados caminhavam sobre os baluartes, observando a multidão. O garoto continuava conduzindo-a, sem hesitação.

Sonja ouviu o som cavo que suas passadas produziam na madeira da ponte levadiça. Havia dois guardas no portão. Ela sentiu o corpo retesar quando chegaram perto, e sua mão esquerda fechou-se sobre o punho de sua espada embainhada.

Mas os guardas não lhes deram atenção. Um deles meneou a cabeça distraidamente, apreciando os contornos da guerreira; o outro estava de costas, raspando a lama da bota. “Tempos de paz”, disse Sonja de si para consigo, “Pouca segurança”.

Ao passar pela entrada, ela ergueu o olhar para as pontas de ferro do portão da ponte levadiça – aquela enorme grade suspensa acima da sua cabeça. Sabia que a grade podia ser baixada num instante. E se fosse, não haveria mais como entrar no castelo. Nem como escapar.

Ela entrara no castelo com bastante facilidade. Mas não tinha certeza se seria tão fácil sair.

Chegaram a um grande pátio, todo de pedra. Havia muitos cavalos ali; soldados com mantos em cinza e grená estavam sentados em pequenos grupos fazendo a refeição do meio-dia. Lá no alto, Sonja viu umas passarelas de madeira que acompanhavam o contorno da muralha. E bem à sua frente viu outra construção, composta por uma muralha de pedra com três andares de altura encimada por torreões. Tratava-se de um segundo castelo dentro do primeiro. O garoto foi conduzindo-a naquela direção.

Uma porta lateral jazia aberta. Um guarda solitário mastigava um pedaço de frango. O garoto disse: - Viemos ter com Lady Marala. Ela deseja tomar esta guerreira a seu serviço.

- Que assim seja – grunhiu o guarda, desinteressado; e eles entraram.

- Lady Marala? – perguntou Sonja – Creio que já ouvi esse nome, dito por alguém, há muito tempo...

- Ela é sobrinha do Conde de Albiona e está em Tarântia a convite do Rei Numedides, mas já foi a rainha de Ophir.

- Hum! – murmurou a hirkaniana.

Logo adiante, Sonja viu um corredor abobadado que levava ao salão principal, onde um grupo de homens e mulheres conversava. Todos estavam ricamente vestidos; suas vozes ecoavam nas paredes de pedra.

Mas o garoto não lhe deu muita chance de ficar olhando. Conduziu a ruiva por uma escada estreita e tortuosa até o primeiro andar, passando depois por um corredor de pedra e chegando finalmente a um conjunto de aposentos.

Três damas de companhia, todas vestidas de branco, vieram correndo abraçar o garoto. Pareciam estar muito aliviadas. – Pela graça de Mitra a senhora está de volta!

Sonja disse: - A senhora?!

Assim que disse isso viu o garoto livrar-se do barrete preto e soltar uma cabeleira loura pelos ombros, fazendo uma pequena mesura que virou uma reverência. – Lamento de coração, e peço perdão por este pequeno embuste, Sonja da Hirkânia.

- Quem é você? – disse Sonja atordoada.

Ela ergueu-se da reverência e a encarou. Sonja ficou ali de boca aberta sem dizer nada. Não tinha idéia do que dizer, ou fazer. Sentia-se atarantada, sem jeito.

Em meio ao silêncio, uma das damas avançou, fez uma reverência e disse: - Se apraz minha senhora, esta é Lady Marala de Albiona, recém-enviuvada do Rei Moranthes II, grande senhor de Ophir. O Rei Moranthes morreu de idade e agora o Conde de Albiona, tio de Lady Marala, tomou minha senhora sob sua proteção. O Conde pensa que ela deve se casar novamente, e escolheu Lorde Marcius, de Galparan, um nobre bem conhecido nesta região. Mas tal união minha senhora rejeita.

Marala virou-se e lançou à menina um olhar de advertência. Mas ela não notou e continuou a tagarelar. – Minha senhora diz ao mundo todo que Lorde Marcius carece de meios para defender suas propriedades no norte. No entanto, seu tio quer receber sua comissão por essa união, e Marcius já...

- Elanne.

- Sim minha senhora – disse a moça, apressando-se a sair dali e juntando-se às outras damas, as quais ficaram sussurrando no canto, aparentemente ralhando com ela.

- Basta de conversa – disse Marala. – Eis minha salvadora de hoje, Sonja da Hirkânia. Resgatou-me das garras de Lorde Marcius, que tentava tomar à força o que não conseguiu conquistar livremente na corte.

Sonja não disse nada. Ela percebeu que as damas estavam olhando para ela, de boca aberta e olhos arregalados.

Talvez devido aos trajes que Sonja usava: uma blusa de cota de malha prateada, de mangas longas, e uma tanga do mesmo material. Sua vasta cabeleira ruiva caía-lhe sobre os ombros delgados e bronzeados. Do seu lado esquerdo, pendia-lhe do cinturão de couro cru uma espada embainhada; e ela usava botas para cavalgar e luvas de couro cozido. Ela era uma figura e tanto para aquelas damas.

- Deveras, ela é uma guerreira – disse Marala – pois ela vem das distantes terras do leste. Sonja realmente me salvou, e, portanto, irei apresentá-la a meu protetor assim que estiver alimentada e limpa. – virou-se para uma das damas. – Traga aqui uma refeição, mas ande depressa!

A menina saiu correndo no fito de desincumbir sua missão. Ao sair, passou por um senhor idoso e soturno que estava parado nas sombras observando tudo. Usava uma longa túnica ricamente ornamentada de veludo grená com flores-de-lis bordadas em prata e tinha gola de arminho. – Como está, minha querida sobrinha? – disse ele, avançando.

Ela fez uma reverência. – Bem, tio.

- Voltou em segurança?

- Dou graças a Mitra por isso.

O homem soturno soltou um muxoxo. Era alto, de olhos azuis e, assomando seu crânio reluzente, um chumaço de níveos cabelos – No que faz muito bem. Você abusa até da paciência Dele. E a excursão teve êxito equivalente aos perigos?

Marala mordeu o lábio. – Temo que não.

- Você esteve com Dexitheus?

Uma leve hesitação. – Não.

- Fale a verdade, Marala.

A moça abanou a cabeça. – Senhor, não estive. Ele saíra para caçar.

- Que pena – disse o Conde. – Por que não esperou?

- Não tive coragem, pois os homens de Lorde Marcius estavam no templo. Tive medo de ser descoberta, e fugi. Mas esbarrei com Marcius na saída, ele me reconheceu, e tive que me embrenhar pelos corredores. Ele me perseguiu e quase me alcançou, mas consegui escapar pela passagem que leva à floresta. Mas Marcius também conhece a passagem e voltou para seus homens na intenção de me emboscar na floresta. Era uma boa oportunidade para ele. Localizaram-me. Corri. E encontrei esta mulher – disse apontando para Sonja -, que me salvou e me ajudou a fugir. Mas creio que o senhor já sabe, pois estava aí o tempo todo.

O Conde ignorou a ironia, virou-se para Sonja e disse: - Creio que minha sobrinha quer tomá-la como sua protetora, já que seu predecessor, o capitão Garus, está preso por traição. Esta garota – disse e apontou para uma meninota de nove ou dez anos que estava parada atrás dele – a levará para meus aposentos, onde poderá se banhar e se limpar. Você se apresentará amanhã ao Príncipe Numitor, que está na regência do reino enquanto seu primo, o Rei Numedides, viaja em missões de paz pelos condados mais rebeldes.

Diante disso, Marala lançou-lhe um olhar duro. – Tio, não tente solapar meus planos.

- Alguma vez já fiz isso?

- O senhor sabe que já tentou. Se enviar Sonja a Numitor, esse vai querê-la a seu serviço e não como minha protetora.

- Querida criança – disse ele – minha única preocupação é com a sua segurança... e a sua honra.

- E minha honra, tio, ainda não foi prometida.

O Conde tossiu e virou-se para a meninota. – Cuide da protetora de Lady Marala, e ajude-a no banho.

A meninota curvou-se para Sonja. Todos no aposento haviam silenciado. Aparentemente era a deixa para que Sonja se retirasse. Ela meneou a cabeça. O Conde respondeu gelidamente da mesma maneira, e Sonja deixou o aposento.

* *

Sonja estava sentada nua sobre um banquinho no pequeno apartamento do Conde de Albiona. Havia uma bacia de água fumegante ao seu lado, juntamente com uma toalha de mão. A meninota subira com a bacia de água lá da cozinha, carregando-a como se fosse de ouro; seus modos indicavam que era um sinal de prestígio ter direito a água quente.

Sonja se esfregara conscienciosamente, recusando as ofertas de auxílio da meninota.

Lavou os longos cabelos vermelhos com um sabão de agradável odor. Em seguida, pondo-se de pé, passou a cuidar do corpo. Primeiro os seios, brancos e firmes; depois foi descendo pela barriga até as pernas fortes e macias.

Sentou-se novamente. A bacia era grande, mas a água logo enegrecera. Mas ela acabara conseguindo raspar a lama das unhas, do corpo e do rosto, com a ajuda de um diminuto espelho metálico que a meninota lhe entregara.

Por fim, declarara-se satisfeita. Mas a outra, com uma expressão de aflição, dissera: - A senhora não está limpa ainda. – e insistira em fazer o resto.

E assim Sonja sentara-se novamente na bacia e a meninota passara o que parecera ser a hora seguinte a esfregá-la. Sonja estava perplexa; aquelas pessoas pareciam ter verdadeira mania de limpeza. Todo mundo que ela via no castelo estava limpo, e não se sentia fedor algum.

Até o toalete, que a meninota insistira que ela usasse antes do banho, não era tão horrível. Levando-se em conta os banheiros que Sonja já utilizara em suas raras visitas a castelos. Localizado atrás de uma porta de madeira no quarto, era um armário estreito onde um assento de pedra fora colocado por cima de uma bacia que escoava dentro de um cano. Aparentemente, o esgoto fluía até o andar térreo do castelo, de onde era retirado diariamente. A meninota explicou que toda manhã um criado lavava a bacia com água perfumada, e depois pendurava um buquê de ervas aromáticas num grampo na parede, de modo que o fedor não chegava a ser problema.

E ainda por cima, aquela gente se limpava com faixas de linho branco! Não, pensou ela, as coisas ali não eram como ela estava acostumada. Ela até poderia gostar daqueles confortos por algum tempo.

A vantagem de ter que ficar sentada ali era poder tentar conversar. A meninota era paciente e respondia a Sonja bem devagar.

Sonja ainda estava sentada na bacia quando o Conde entrou no aposento. Trazia roupas muito bem dobradas, vistosas e aparentemente caras. Colocou-as sobre a cama.

- Então, Sonja da Hirkânia. Você se envolveu com nossa esperta beldade.

- Apenas procurei proteger quem eu achei ser um garoto indefeso, sendo perseguido por cavaleiros com intenções assassinas. – disse a hirkaniana, enquanto procurava manter os seios submersos. E o Conde pareceu assentir.

- Espero que isso não lhe traga problemas.

- Problemas?

O Conde suspirou – Ela me diz, amiga Sonja, que a senhora é uma excelente guerreira. O que não duvido. Mas vou lhe dizer em que circunstâncias nos encontramos. – ele continuou: - Eu preciso de ouro para pagar meus soldados e manter meu condado. De modo que agora preciso que Marala se case, para que eu possa receber minha comissão. Marcius de Galparan fez uma bela oferta, que muito me agradou. Mas ele não é rico, e só poderá honrar a comissão se hipotecar parte de suas propriedades. Com isto não concorda ele.

Sonja não disse nada.

- Há outra barreira a essa união. – Continuou o Conde – Marala odeia Marcius, pois desconfia que ele participou da prisão de seu ex-protetor, o capitão Garus. Marcius acusou Garus de traição ao reino. Mas ninguém sabe ao certo o que ocorreu, embora corram boatos, muitos boatos.

- Entendi – disse Sonja.

- Será mesmo? Duvido. Pois consideremos: Amanhã iremos apresentá-la ao Príncipe Numitor que, como já disse, responde como regente do reino enquanto Numedides está fora. Marala dirá que você é a nova campeã dela e Lorde Marcius será obrigado a desafiá-la a um duelo. De acordo com os costumes, se você vencer, Marala está livre e o derrotado deve pagar com suas terras e posses. Se você perder o duelo, Marala casa-se com Marcius e eu recebo minha comissão, o que muito me convém. Mas se você recusar o duelo, terei eu que enfrentar Marcius ou então ceder minhas terras e tornar-me subordinado de Marcius. Dexitheus, o sacerdote de Mitra, é o único que pode intervir em favor de Marala, tomando-a como serva do templo; o que impede que ela se case novamente. Mas Dexitheus teme que isso enfureça Marcius, fazendo com que ele use seus privilégios com o rei para prejudicar o velho sacerdote, que já está perdendo prestígio graças a um estranho mago que agora é conselheiro do rei Numedides.

Sonja permaneceu impávida, com seus olhos verdes faiscantes pousados sobre o velho lorde. Então disse: - E Numitor, o que pensa disso?

- Ele é amigo pessoal de Marcius. Mas não irá intervir. Nem a favor, nem contra. É o tipo de homem que segue fielmente as regras da cavalaria. – O Conde suspirou. Começou a andar de um lado para o outro. – Vista estas roupas, para se apresentar ao Príncipe como convém.

- Trajes femininos como esses, Conde – disse Sonja, apontando para as vestes –, não me agradam, pois sou uma guerreira e não uma dama. Perdoe-me, mas permanecerei com meu traje de malha.

- Que seja, então. - Assim dizendo, o velho virou-se e saiu do aposento. Sonja olhou para a meninota, que já parara de esfregar.

- Que problemas? – disse. E riu.


2.

ALHURES:

A ondulante região de florestas ao sul de Tarântia, a capital da Aquilônia, estava coberta de uma camada uniforme de brancura, que arredondava as árvores sem folhas das florestas de faias que marginavam a Estrada dos Reis.

Um cavaleiro surgiu, então, com o trote lento de sua montaria, que fazia transparecer a sua fadiga.

Um outro viandante, que passasse por ali, notaria que aquele não era um viajante comum arriscando-se entre Elymia e Tarântia. Não, aquele homem parecia não ser civilizado, mas sim um bárbaro de alguma terra lendária do norte.

Apesar de cansado, tinha o porte altivo de um guerreiro confiante. Seus olhos azuis perscrutavam a estrada, atentos a cada movimento, e destacavam-se em seu rosto moreno coberto de cicatrizes esbranquiçadas. A luz pálida da lua banhava seu poderoso corpo bronzeado; seu peito era largo e encerrado por ombros vigorosos; os músculos dos braços assemelhavam-se a pesadas bolas de bronze. Sua mão esquerda, grande e calejada, repousava sobre a empunhadura de sua espada embainhada, enquanto a direita segurava as rédeas que guiava sua montaria. Ele era alto e musculoso; seus trajes eram compostos de uma capa de pele – uma proteção adicional contra o inverno aquiloniano; uma camisa surrada de algodão; uma calça de couro cozido e botas de couro preto.

Seu corcel, entretanto, levava apenas as rédeas e a sela costumeira. Mas era um animal formidável: de pêlo negro e brilhante, e poderosos músculos.

A noite era fria e nevoenta depois de um breve escurecer que ele não tinha percebido. Abaixo das nuvens, a neve brilhava sob as árvores e um vento frio descia das montanhas.

Num dia de sol forte, a estrada que corria pela planície fértil e pelos montes e vales cobertos de vegetação era pitoresca. Numa noite áspera, em que o gelo se formava nas depressões da superfície da estrada e com a neblina a condensar-se nos vales, a sinuosa estrada macadamizada era perigosíssima. Duas vezes, o pesado cavalo de Conan quase escorregou para uma vala e duas vezes o Cimério teve de convencer-se de que não havia pressa.

Ao norte, ficavam as montanhas, atravessadas pela estrada para Tarântia, silenciosas e brancas sob o espesso tapete de neve que cobria os rochedos e amortalhava as milhas e mais milhas de florestas de pinheiros. O céu estava claro, mas um vento gelado prometia neve durante aquela noite.

Conan entrou pela estrada lateral para Tarântia, contornou os flancos de uma imponente montanha e tomou uma estrada que levava para a aldeia em derredor da capital aquiloniana. Nos flancos da montanha, o vento gemia através dos pinheiros, com o timbre elevando-se quase a um uivo por entre os galhos pesados de neve.

Seguiu para a praça do mercado, à procura de um lugar para jantar. Depois de passar por duas ou três casas-de-pasto aquilônias tradicionais, viu a fumaça voluteando, para o frio céu noturno, do teto vermelho da pequena salsicharia num canto da praça, em frente a um pequeno templo, o qual Conan não conseguiu identificar a que deus pertencia. Era um lugar muito simpático, tendo à frente um terraço marginado com caixas de urze púrpura de que o cuidadoso proprietário varrera a neve da manhã.

No interior, o calor e a animação da freguesia atingiram-no como uma onda. As mesas de madeira estavam quase todas ocupadas, mas um casal estava saindo de uma mesa no canto e ele a ocupou. Pediu a especialidade da casa, as pequenas salsichas condimentadas de Poitain, uma dúzia num prato, dando-se ao prazer de acompanhá-las com uma garrafa do vinho local.

Depois da comida, continuou sentado, tomando demoradamente o vinho e fazendo-o descer com pedaços de queijo. Não estava com sono e era agradável ficar ali a olhar os troncos que crepitavam na lareira aberta e escutar o grupo no canto que entoava uma canção báquica aquiloniana de braços dados, balançando-se de um lado para outro ao compasso da música, com as vozes e os copos subindo muito ao fim de cada estrofe.

Em um canto bem iluminado, à direita do Cimério, havia um homem de trajes abastados que o observava.

Era um homem grande e rude, de olhos azuis e um chumaço de cabelos brancos no alto do crânio. Era idoso, mas, apesar da estação, tinha o tom sadio e corado dos homens que passam a vida nas montanhas, entre o vento, o sol e o ar.

Ele se levantou e caminhou na direção do bárbaro. Usava uma camisa de linho branco que lhe batia nas coxas, e um camisão maior, chamado gibão, feito de feltro acolchoado. Também carregava uma adaga presa numa corrente de aço. Conan inquietou-se e aguardou até que o estranho parasse à sua frente.

- Olá viajante. – disse o homem idoso – Vejo que você é um guerreiro forte, por isso vou direto ao assunto.

Conan permaneceu calado, observando o homem com seus flamejantes olhos azuis.

- Preciso que me faça um serviço. Rápido. Sem complicações. Interessado?

- Quem eu tenho de matar? – perguntou o Cimério, à maneira franca e direta de seu povo.

- Preciso que participe de um duelo e não que mate alguém. Apenas se for necessário, claro.

- Um duelo? – perguntou o Cimério.

- Sim. No castelo em Tarântia.

- Não quero complicações com a nobreza, homem. – retorquiu o bárbaro – Por isso, sugiro que procure outra pessoa.

O outro jogou uma bolsa de couro sobre a mesa e algumas moedas de ouro ficaram à mostra. A veniaga aguçou a cobiça de Conan.

- Uma agora, outra após o duelo. Se você sobreviver, é claro. E então?

- Onde podemos conversar melhor? – perguntou Conan. O outro, sorrindo, pediu que o bárbaro o seguisse e saíram da taverna. Mas não antes de pagarem ao proprietário.

Saíram sob a neve que caía e caminharam até a praça do mercado. O Homem olhou para Conan e disse: - Sou o Conde de Albiona. Minha sobrinha, Marala, está prometida a um nobre aquiloniano, mas se recusa a casar-se. Em seu desespero, ela contratou uma guerreira para enfrentar seu pretendente em um duelo de lanças a cavalo. – ele fez uma pausa, como que para dar maior ênfase ao que acabara de dizer. Conan permaneceu calado, com os sobrolhos franzidos. – Acontece que o nobre pretendente em questão é muito habilidoso nesses duelos; provavelmente vai matar a guerreira e eu terei que ceder minhas terras a ele.

- Quem é essa guerreira? – interrompeu-o o cimério.

- Você saberá quem é se aceitar minha proposta.

- Estou aqui, não? Continue.

- Pois bem. Quero que você tome o lugar da ruiva. É minha única chance de manter meu condado.

- E o que faz você pensar que posso vencer esse tal nobre?

- Você me parece um guerreiro experimentado e forte. Isso basta. Er... você já duelou com lanças?

- Não. Mas já vi alguns duelos assim. Não me parece difícil. – Conan fez uma pausa - Essa sua sobrinha, Marala, é a mesma que foi rainha de Ophir?

- Sim. Por quê? – perguntou o conde.

- Eu a conheci há uns dez invernos.

- Ah! Claro. Você deve ser o bárbaro que a ajudou a fugir de Ophir. Como é mesmo seu nome?

- Conan, da Ciméria.

- Ora. Eis aí uma surpresa do destino. Meu bom Conan, minha sobrinha é minha única herdeira e tudo o que eu quero é o bem dela. Mas você deve entender que preciso manter meu condado, para mim e para ela. E agora, sabendo quem você é, tenho certeza de que poderei obter mais algumas terras e satisfazer os desejos de minha sobrinha. Procure-me amanhã, no castelo, mas seja discreto. Não quero que Marala saiba de sua presença em Tarântia, pois isso pode incorrer em fracasso para o meu plano.

- Por mim tudo bem. – volveu o Cimério. – Até amanhã, então. – E, assim dizendo, o bárbaro seguiu para uma pensão próxima.


3.

SONJA ENTROU NO SALÃO PRINCIPAL do castelo. Foi andando em meio à multidão, seguindo Marala e o Conde. E arregalou os olhos, atordoada pela riqueza e pelo caos exibidos à sua frente.

O salão principal cintilava como uma enorme jóia. Penetrando pelas altas janelas, a luz matutina do sol iluminava paredes que ostentavam tapeçarias bordadas a ouro, fazendo seus reflexos dançarem no teto pintado de vermelho e dourado. De um lado do salão pendia uma enorme tapeçaria: águias negras sobre um fundo cinza. Na parede oposta havia outra tapeçaria, retratando uma batalha entre cavaleiros paramentados com armaduras prateadas e mantos azuis e brancos ou vermelhos e dourados, além de bandeiras ondulantes bordadas a ouro.

No final do aposento havia uma enorme lareira, alta o suficiente para acomodar uma pessoa ereta, e um reluzente consolo de madeira dourada. À frente do fogo erguia-se um enorme biombo de vime, também dourado. E acima do consolo pendia uma tapeçaria ornamentada, com cisnes voando sobre um campo de flores rendilhadas, vermelhas e douradas.

O aposento fora concebido com elegância, e construído com riqueza e beleza – sendo também bastante feminino aos olhos de Sonja. Sua beleza e refinamento contrastavam fortemente com a conduta das pessoas ali presentes, a qual era ruidosa, turbulenta e grosseira. Sonja gostava mais daquilo.

À frente do fogo ficava a mesa principal, forrada com uma toalha de linho branco e com pratos de ouro, todos cobertos por montes de comida. Vários cachorrinhos pululavam pela mesa, servindo-se de comida à vontade – até que o homem no centro da mesa os espantasse com um palavrão.

O Príncipe Numitor tinha cerca de quarenta anos, olhos miúdos e um rosto carnudo e lascivo. Sua boca estava permanentemente virada para baixo num sorriso de escárnio, e ele tendia a manter os lábios comprimidos por lhe faltarem vários dentes. Suas roupas eram tão enfeitadas quanto o aposento; uma túnica azul e dourada, com gola alta dourada. Seu colar era composto por pedras azuis do tamanho de ovos de codorna. Vários dos seus dedos ostentavam enormes gemas ovais engastadas em pesados anéis de ouro. Ele espetava a comida com a faca e comia ruidosamente, grunhindo para os comensais.

Mas apesar dos acessórios elegantes, a impressão que transmitia era de perigosa arrogância – seus olhos avermelhados percorriam o aposento enquanto ele comia, atentos a qualquer insulto, ávidos por uma briga. Numitor era nervoso e de pavio curto; quando um dos cachorrinhos voltou para comer mais um pouco, ele não hesitou em espetá-lo com a faca na anca; o bicho deu um pulo e fugiu do aposento ganindo e sangrando.

Numitor riu, limpou o sangue do cachorro da ponta da faca e continuou a comer.

Os homens sentados à mesa riram com a pilhéria. Pela aparência, eram todos soldados da idade de Numitor e estavam elegantemente vestidos – embora nenhum igualasse o luxo do líder. E três ou quatro mulheres de ar devasso – jovens e bonitas, com vestidos justos e cabeleiras desgrenhadas – completavam a cena, rindo e deslizando as mãos por baixo da mesa.

Um cajado de madeira ressoou no chão e um arauto exclamou: - Meu senhor! Lady Marala de Albiona, acompanhada de Sonja da Hirkânia, sua protetora.

Sonja e Marala passaram pela multidão e encaminharam-se diretamente para a mesa do centro, onde foram recebidas pelo Príncipe Numitor com uma expressão de flagrante desprazer. Quando notou isso, a jovem curvou-se profundamente e assim permaneceu, perto do chão, com a cabeça inclinada em submissão.

- Ora vamos – disse o Príncipe em tom irritado, agitando uma coxa de frango. – Tal subserviência não combina com a senhora.

- Meu senhor. – Ela ergueu-se.

Numitor soltou um bufo de desdém. – E o que a senhora arrastou para cá hoje? Uma mulher que quer ser homem?

- Se apraz a meu senhor, apresento Sonja da Hirkânia, uma guerreira do leste que hoje me salvou de vilões que teriam me raptado, ou coisa pior.

- Hein? Vilões? Raptado? – Achando graça, o Príncipe Numitor olhou para seus cavaleiros à mesa. – Lorde Marcius? Que me diz disso?

Um homem moreno ergueu-se irritado. Marcius de Galparan vestia-se inteiramente de negro – cota de malha negra e manto negro, com uma águia negra, bordada em linhas prateadas, no peito. – Meu senhor, temo que Lady Marala esteja se divertindo assaz às nossas custas. Pois ela sabe muito bem que mandei meus homens salvá-la, vendo que estava sozinha e em perigo. – Marcius foi na direção de Sonja, olhando com raiva para ela. – Foi esta mulher, meu senhor, que colocou a vida dela em risco. Não posso conceber que ela a defenda agora, a não ser como demonstração de seu humor incomum.

- Hein? – disse Numitor. – Humor? Lady Marala, que humor há aqui?

A jovem deu de ombros diante do achaque. – Só os mal-humorados, senhor, vêem humor onde humor não há.

O cavaleiro moreno soltou um muxoxo. – Palavras ágeis, para ocultar com agilidade o que jaz por trás. – Marcius foi até Sonja e encarou-a frontalmente, deixando poucos centímetros entre os dois. Olhando intensamente para ela, foi tirando com deliberada lentidão a luva coberta por uma malha metálica. – Sonja, é assim que você se chama?

A ruiva, ciente da animosidade, não disse nada; apenas assentiu. Ela estava tranqüila. Apesar de enredada numa situação atípica, cercada por soldados sanguinários do nível de marginais de esquina, e confrontada por aquele biltre, moreno e raivoso, cujo hálito fedia a dentes podres, alho e vinho.

Lorde Marcius aguçou o olhar para ela. – Fiz uma pergunta, mulher. Você vai responder? – Continuou tirando a luva, e Sonja teve certeza de que ela iria dar-lhe um soco com o punho enluvado.

Sonja respirou fundo, tentando controlar a raiva que lhe subia à cabeça. Sentiu que talvez pulasse sobre aquele sujeito e lhe quebrasse o pescoço. Mas fez o que pôde para se acalmar. Respirou fundo novamente. Segundo Marala, o segredo era ficar em silêncio para ser desafiada.

O cavaleiro, cheio de ódio, terminou de retirar a luva de cota de malha e jogou-a ao chão, abanando com desprezo a cabeça. A luva caiu com um ruído metálico aos pés de Sonja. Lorde Marcius virou-se com arrogância e dirigiu-se para a mesa.

Todos no salão ficaram olhando para Sonja.

A hirkaniana abaixou-se e apanhou a luva. Pesava na sua mão. Olhou para Marala e essa disse: - Cavaleiro, minha salvadora aceitou seu desafio.

Lorde Marcius disse imediatamente: - Três lanças sem ponteira! – Então virou-se para o Príncipe Numitor na mesa principal. – Se apraz meu senhor, que o duelo comece ainda hoje.

- Assim será – disse Numitor.

O Conde de Albiona avançou em meio à multidão e curvou-se. – Príncipe, minha sobrinha levou esta brincadeira longe demais, com resultados funestos. Talvez ela pense ser divertido provocar Lorde Marcius, um cavaleiro de renome, a desafiar uma mera mulher e ser desonrado por fazê-lo. Mas não convém a ele cair nesta artimanha.

- Será? – disse Numitor olhando para o cavaleiro moreno.

Lorde Marcius de Galparan cuspiu no chão e conspurcou: – Uma mulher? Ora, não se trata de uma simples mulher. Trata-se de uma cadela, uma rameira e uma aproveitadora. Irei matá-la ainda hoje. A não ser que ela tenha medo de lutar comigo.

Sonja, já farta de toda aquela conversa, disse: - Não temo homem algum e menos ainda um que persegue mulheres! Sou mulher, sim! – continuou ela – mas até hoje nunca encontrei um homem que me vencesse em combate. – em seguida a hirkaniana cuspiu ao chão bem à frente de Marcius.

Diante disso, Lady Marala sorriu abertamente para Sonja. E isso pareceu irritar Lorde Marcius.

- Príncipe Numitor – disse o Conde de Albiona curvando-se com agilidade -, para fazer justiça, peço que o senhor permita que ela indique um campeão para enfrentar o desafio em seu lugar.

- Hein? Campeão? Que campeão? Não conheço quem possa desafiar Lorde Marcius.

- Se apraz meu senhor, apresento-lhe Conan da Ciméria, que está sob meu serviço. – disse o Conde e apontou para o enorme Cimério que saiu do meio dos circunstantes e avançou à mesa.

Sonja, espantada, viu que Lady Marala observava Conan com indisfarçável interesse. Conan devolveu a ela um rápido olhar antes de se dirigir à súcia e, por conseguinte, dizer: - Senhores, sou Conan, um cimério. Ofereço meus préstimos para doravante ser campeão de Sonja da Hirkânia e, se Crom quiser, hei de sair-me bem diante deste nobre cavaleiro.

O Príncipe Numitor esfregou o queixo, pensando.

Ao ver aquela indecisão, o Conde de Albiona avançou. – Meu senhor, começar o duelo com um combate desigual não valoriza o dia, nem o torna memorável nas mentes dos homens. Creio que Conan proporcionará diversão melhor.

Numitor pareceu se divertir com essa nova complicação. – Que me diz, Lorde Marcius?

- De fé – disse o cavaleiro moreno – concedo que Conan pode até ser um valoroso segundo, se nele o braço tiver o valor da língua. Mas como segundo, convém que ele enfrente o meu segundo, Lorde Gaune.

Um homem alto ergueu-se na ponta da mesa. Tinha o rosto pálido, nariz achatado e olhos cor-de-rosa; parecia um cão de caça. Falou em tom desdenhoso: - Serei segundo, com prazer.

Conan fez uma última tentativa. – Mas então – disse – parece que Lorde Marcius teme lutar comigo primeiro.

- Não tenho medo de nenhum homem – disse Marcius – e muito menos de um que venha da Ciméria. Se você sobreviver a meu segundo, coisa de que muito duvido, terei prazer em enfrentá-lo depois e pôr cabo a esta insolência. Mesmo que me manche a honra enfrentar um bruto cimério como você!

- A lâmina afiada não precisa brilhar. – volveu Conan lacônico.

- Assim seja – vaticinou o Príncipe Numitor, desviando o olhar. Seu tom indicava que a discussão chegara ao fim.


4.

CONAN E SONJA ASSISTIAM aos preparativos do duelo encostados numa cerca baixa. O campo de duelo parecia imenso para Sonja e as damas já começavam a se sentar dos dois lados onde as arquibancadas haviam sido erigidas. Uma platéia de campônios, barulhentos e vestidos grosseiramente, enfileirava-se junto à cerca.

Conan disse: - Como se envolveu nisso? Pensei que tinha voltado à Nemédia após o cerco de Sammárcia.

Sonja deu de ombros e começou a contar os eventos que haviam ocorrido até o momento em que Conan adentrara o castelo. – E você? Ainda não me contou como surgiu, assim de repente, em toda essa confusão.

- Hum. Eu estava em uma taverna, na aldeia, quando o Conde de Albiona contratou meus serviços e me disse que deveria participar de um duelo. Não sabia que você estava lá. Conquanto soubesse, eu teria aceito de qualquer forma. – o Cimério riu intimamente e continuou – Você foi posta em uma cilada por uma mulher desesperada. Mas acho que dá para você sobreviver. No entanto, vai precisar fazer exatamente o que eu mandar.

- Está bem. – disse Sonja, resignada.

- A única coisa que você tem que fazer – disse Conan – é conseguir ficar montada no cavalo até sofrer o golpe. Quando Lorde Marcius se aproximar, não vai ter escolha a não ser mirar no peito, porque esse é o alvo maior e mais fixo num cavaleiro a galope. Eu quero que você receba a lança dele bem no meio do peitoral. Entendeu?

- Recebo a lança no peito – disse Sonja consternada.

- Quando a lança bater, quero que você seja derrubada do cavalo. Isso não deve ser muito difícil. Caia no chão e não se mexa, para parecer que você desmaiou. Coisa que talvez aconteça mesmo. Não se levante de maneira nenhuma entendeu?

- Eu não me levanto.

- É isso aí, guria. Aconteça o que acontecer, continue deitada ali. Se você for derrubada por Lorde Marcius e depois desmaiar, a luta acaba. Mas se você levantar, ou ele vai pedir outra lança ou vai querer duelar com espadas no chão. Não acho que ele possa te matar, mas não podemos arriscar.

- Eu não me levanto – repetiu Sonja.

- É isso aí – disse Conan. – Aconteça o que acontecer. Não se levante. – Deu um tapinha no ombro de Sonja. – Com sorte, você vai até sobreviver.

- Por Tarim, Conan! – explodiu a ruiva – Eu não gosto de lutar assim. Eu nada sei de duelos com lança. Por que o maldito do Marcius foi escolher logo essa modalidade?

- Dizem que ele é imbatível – Conan respondeu. – O importante é que eu consiga vencer o segundo dele para ter a oportunidade de derrotá-lo. Assim, Marala volta para seu condado, seu tio se livra das dívidas e nós recebemos o que nos é devido. Crom, eu nunca entendi os costumes dos civilizados, mesmo depois de todos esses anos. Vamos – continuou o Cimério – precisamos vestir nossas armaduras.

Deixando o campo para trás, eles foram passando pelas tendas já armadas ao lado do campo de duelos. As tendas eram pequenas e redondas, vistosamente coloridas com listas e desenhos em ziguezague. Flâmulas ondulavam no ar acima de cada tenda. Entraram numa tenda onde havia três pajens esperando. Um fogo aconchegante ardia num canto; a armadura estava estendida sobre um pano no chão. Conan inspecionou-a rapidamente e disse: - Está ótima. – Virou-se para sair.

- Onde você vai?

- Para outra tenda, me vestir.

- Mas eu não sei como...

- Os pajens vão vestir você.

A armadura jazia desmontada no chão; Sonja ficou olhando para o elmo, que tinha um daqueles bicos pontudos, feito um pato grande. Havia apenas uma pequena fenda para os olhos. Mas ao lado havia outro elmo, com aspecto mais comum, e Sonja achou que...

- Minha boa senhora, se lhe apraz. – O pajem-mór, um pouco mais velho e mais bem vestido do que os outros, estava falando com ela. Era um rapazola com cerca de catorze anos. – Rogo-lhe que se poste ali e tire sua armadura de cota de malha. – Apontou para um canto da tenda onde havia um pequeno biombo.

Sonja foi até lá, tirou sua armadura e vestiu uma malha e sobre ela uma camisa de linho.

Eles começaram a vesti-la sem dizer nada. Primeiro uma grossa meia-calça de feltro, e depois uma camiseta de mangas compridas, pesadamente acolchoada, que abotoava na frente. Mandaram-na dobrar os braços. Ela quase não conseguiu fazê-lo, de tão grosso que era o tecido.

- Está duro por ter sido lavado, mas logo ficará mais fácil – disse um deles.

Sonja não achava isso. Mitra, pensou ela, quase não consigo me mexer, e eles ainda nem colocaram a armadura. Estavam amarrando placas metálicas nas suas coxas, panturrilhas e joelhos. Depois passaram para os braços. Pediam-lhe que mexesse os membros sempre que uma peça nova era colocada, para terem certeza de que as correias não estavam apertadas demais.

A seguir uma cota de malha foi baixada por cima da sua cabeça. Pesava-lhe nos ombros. Enquanto o peitoral era amarrado, o pajem-mór fez várias perguntas, nenhuma das quais Sonja soube responder.

- A senhora prefere ficar em pé nos estribos ou sentada na patilha?

- Irá encaixar a lança, ou descansá-la?

- Amarra o arção da sela, ou senta livre?

- Coloca os estribos no alto ou para frente?

Sonja fez uns ruídos neutros. Depois disso, mais peças da armadura foram acrescentadas, com mais perguntas.

- Escarpe firme ou flexionado?

- Braçal ou escarcela?

- Espada à direita ou à esquerda?

- Basinete sob o elmo ou não?

Seu fardo aumentava à medida que cada peso era acrescentado, e ela sentia-se mais desajeitada à medida que cada junta era aprisionada no metal. Os pajens trabalhavam com rapidez, e em poucos minutos ela estava completamente vestida. Eles se afastaram para examiná-la.

- Está do seu agrado, guerreira?

- Está – disse ela.

- Agora o elmo. – Ela já estava com uma espécie de touca metálica, mas eles trouxeram o elmo com o bico pontudo e o colocaram na sua cabeça. Sonja mergulhou na escuridão, e sentiu o peso do elmo sobre os ombros. Só conseguia enxergar o que estava diretamente à sua frente, através de uma fenda horizontal.

Seu coração disparou. Não havia ar ali dentro. Ela não conseguia respirar. Puxou o elmo tentando erguer a viseira, a qual não se mexeu. Ela estava presa ali dentro. Ouvia a própria respiração amplificada pelo metal. O calor do seu hálito aquecia os limites estreitos do elmo. Ela estava sufocando. Não havia ar ali dentro. Agarrou o elmo, lutando para movê-lo.

Os pajens o tiraram da sua cabeça, olhando para ela curiosamente.

- Está tudo bem, senhora?

Sonja tossiu e assentiu, insegura quanto ao que dizer. Nunca mais queria ter aquela coisa sobre a cabeça. Eles a conduziram para fora da tenda, onde um cavalo aguardava.

Sagrado Mitra, pensou ela.

O cavalo era gigantesco, e estava coberto por mais metal ainda do que ela. Tinha uma placa ornamentada sobre a cabeça, e outras placas no peito e nos flancos. Mesmo de armadura, o animal mostrava-se arisco e voluntarioso, resfolegando e puxando as rédeas que o pajem segurava. Era um verdadeiro cavalo de batalha, um corcel, e muito mais voluntarioso do que qualquer cavalo que ela já montara. Mas não era isso que a preocupava. O que a preocupava era o tamanho – o maldito cavalo era tão grande que não dava para ver nada por cima do seu dorso. E a sela de madeira era elevada, tornando-o mais alto ainda. Os pajens a fitaram com expectativa no olhar. Esperando. Que ela fizesse o quê? Que subisse, provavelmente.

Sonja estendeu a mão, mas mal conseguia alcançar o arção, um retângulo de madeira trabalhada na frente da sela. Fechou os dedos ao redor da madeira, levantou o joelho e enfiou o pé no estribo. Ela elevou-se, passou o pé por cima e aterrissou com um clangor metálico na sela.

Trombetas soaram: várias notas prolongadas.

- É a primeira chamada às armas – disse o pajem. – Temos que ir para o campo de torneio.

Pegaram as rédeas do cavalo e levaram Sonja para o campo gramado.


5.

ATRAVÉS DA FENDA ESTREITA na viseira do elmo, Sonja da Hyrkânia podia ver que as arquibancadas do campo estavam cheias – quase que inteiramente de damas – e que ao longo das cercas havia dez fileiras de plebeus. Todos gritavam para o duelo começar. Sonja encontrava-se na ponta leste do campo, cercada pelos pajens e tentando controlar o cavalo, o qual parecia perturbado pela gritaria da multidão e começara a corcovear e recuar. Os pajens tentavam entregar-lhe uma lança listada, absurdamente comprida e difícil de manobrar. Sonja pegou-a, mas deixou-a cair quando o cavalo resfolegou e bateu com as patas no chão nitrindo.

Viu Marala sentada na arquibancada, misturada a outras damas. Ela sorriu à guisa de incentivo, mas o cavalo continuou se virando e girando, de modo que Sonja não conseguiu devolver o olhar dela.

E não muito longe dali, cercado por pajens, viu o vulto de Conan com sua armadura.

Quando o cavalo de Sonja girou mais uma vez – por que os pajens não agarravam as rédeas? – ela viu a ponta oposta do campo, onde Marcius de Galparan postara-se calmamente sobre a sua montaria. Estava colocando o elmo com a pluma negra.

O cavalo de Sonja corcoveou de novo e ficou girando em círculos. Ela ouviu as trombetas novamente, e todos os espectadores se viraram para as arquibancadas. Sonja percebeu vagamente que o Príncipe Numitor estava ocupando seu lugar em meio a aplausos esparsos.

Aí as trombetas ressoaram mais uma vez.

É o seu sinal, guerreira – disse um pajem, estendendo-lhe a lança novamente. Dessa vez ela conseguiu segurá-la por tempo suficiente para apoiá-la num entalhe no arção, de forma que ela cruzava o dorso do cavalo e apontava à frente para esquerda. Aí o cavalo virou de novo, e os pajens se dispersaram aos gritos quando a lança descreveu um arco sobre as suas cabeças.

Mais trombetas.

Quase sem conseguir enxergar, Sonja puxou as rédeas, tentando controlar o cavalo. Entreviu Lorde Marcius observando-a da ponta oposta do campo, com o cavalo perfeitamente imóvel. Sonja queria acabar logo com aquilo, mas o cavalo estava tremendamente agitado. Irritada e frustrada, ela deu um último puxão forte nas rédeas. – Praga, anda, vai!

Ouvindo isso, o cavalo jogou a cabeça para cima e para baixo em dois movimentos rápidos. As orelhas achataram para trás.

E ele arremeteu.

* *

Tenso, Conan ficou observando o ataque. Não contara tudo a Sonja; não fazia sentido assustá-la mais do que o necessário. Apesar de Sonja ser uma excelente guerreira, aquilo era tudo novo demais para ela. Mas Marcius certamente tentaria matar Sonja, o que significava que apontaria a lança para a cabeça. Sonja estava quicando loucamente na sela, com a lança sacudindo para cima e para baixo e o corpo balançando de um lado para o outro. Era um alvo difícil, mas se Marcius fosse habilidoso – e isso para Conan era indubitável – poderia mirar na cabeça, arriscando-se a errar na primeira passada mas tentando um golpe fatal.

Viu Sonja ir aos trancos e barrancos pelo campo, segurando-se precariamente na sela. E viu Lorde Marcius investindo contra ela, com controle perfeito, o corpo inclinado à frente e a lança apoiada na dobra do braço.

Bom, pensou Conan, ao menos havia alguma chance de Sonja sobreviver.

* *

Sonja não conseguia enxergar muita coisa. Balançando loucamente na sela, via apenas imagens confusas das arquibancadas, do chão e do outro cavaleiro que se aproximava. Pelo que lobrigava, não podia avaliar a que distância Marcius se encontrava, nem quanto tempo faltava para o impacto. Ouvia os cascos trovejantes e o resfolegar ritmado do cavalo. Quicava na sela e tentava segurar a lança. Aquilo estava demorando muito mais do que ela esperava. Sentia-se como se estivesse cavalgando havia uma hora.

De repente ela viu Marcius muito perto, aproximando-se a uma velocidade apavorante. Então a lança deu um coice na sua mão, chocando-se dolorosamente contra o lado direito do seu corpo; ela sentiu um impacto que a entortou na sela e uma dor aguda no ombro esquerdo, e ouviu ao mesmo tempo um estalo forte de madeira rachando.

A multidão urrou.

O cavalo continuou galopando até a ponta oposta do campo. Sonja estava atordoada. O que acontecera? Seu ombro ardia ferozmente. A lança fora rachada ao meio.

E ela ainda estava sentada na sela.

Praga.

* *

Conan assistiu a tudo com um olhar triste. Era muito azar; o impacto fora apenas de raspão, insuficiente para derrubar Sonja. Agora eles teriam de investir mais uma vez. Olhou para Lorde Marcius, que praguejava ao pegar uma nova lança das mãos dos pajens, girando o cavalo e preparando-se para atacar novamente.

Na outra ponta do campo, Sonja tentava controlar a lança nova, que oscilava loucamente no ar feito uma pena ao vento. Por fim conseguiu apoiá-la na sela, mas o cavalo continuou corcoveando e se contorcendo.

Marcius fora humilhado, e se irritara. Estava impaciente e não esperou. Esporeando o cavalo, investiu pelo campo.

Seu cão, pensou Conan.

* *

A multidão urrou de surpresa diante do ataque desleal. Sonja ouviu o barulho, e viu que Marcius vinha galopando em sua direção à toda velocidade. Seu próprio cavalo ainda se contorcia, rebelde. Ela puxou as rédeas e nesse momento ouviu o som do chicote de um dos cavalariços no flanco do cavalo.

O bicho relinchou. As orelhas achataram.

O cavalo investiu campo afora.

O segundo ataque foi pior – porque dessa vez ela sabia o que estava por vir.

* *

O impacto a abalou, com a dor espalhando-se pelo seu peito enquanto ela era erguida no ar. Tudo ficou muito lento. Primeiro ela viu a sela se afastar; depois os flancos do cavalo apareceram, enquanto ela recuava; e aí viu-se inclinada para trás, olhando para o céu.

Bateu com estrondo no chão, deitada de costas. A cabeça chocou-se com o elmo. Ela viu uns pontos azuis que se espalharam, aumentaram e depois ficaram cinzentos. Mentalmente, pensou ouvir Conan falar: - Agora fica aí!

E ouviu trombetas distantes reboando em algum lugar, enquanto o mundo esmaecia delicadamente, tragado pela escuridão.

* *

Na ponta oposta do campo, Marcius girava o cavalo preparando-se para outra investida, mas as trombetas já haviam soado anunciando a dupla seguinte.

Conan baixou a lança, esporeou o ginete e avançou galopando. Viu o adversário, Lorde Gaune, correndo em sua direção. Ouvia o tropel ritmado do cavalo e a gritaria cada vez mais forte da multidão – pois todo mundo sabia que aquele duelo seria bom – enquanto arremetia a galope. O cavalo corria incrivelmente depressa. Lorde Gaune vinha atacando à mesma velocidade.

* *

Segundo o Mestre Sennan, seu antigo professor de combate em Aghrapur, na distante Turan – e grande admirador desta modalidade de duelo – o grande desafio do duelo não era carregar a lança, ou apontá-la para este ou aquele alvo. O grande desafio era manter a linha de ataque e não se desviar do impacto – não ceder ao pânico que se abatia sobre quase todos os cavaleiros ao galoparem na direção do adversário.

Conan prestara atenção nos ensinamentos de seu mestre, mas só chegou a compreendê-los naquele momento: sentia-se frágil e frouxo, com os membros fracos e as coxas trêmulas ao apertarem a montaria. Esforçou-se para se concentrar, para entrar em foco, para apontar a lança para Lorde Gaune. Mas a ponta da lança balançava para cima e para baixo enquanto ele corria. Ele ergueu-a do arção, apoiando-se na dobra do braço. Mais firme. Sua respiração melhorara. Sentiu as forças voltando. Alinhou a lança. Faltavam oitenta metros.

Atacando à toda.

Viu Gaune ajeitar a lança, inclinando-se para cima. Iria tentar a cabeça. Ou seria uma finta? Cavaleiros em duelo eram conhecidos por mudar de alvo no último instante. Seria isso?

Sessenta metros.

O golpe na cabeça era arriscado se ambos os cavaleiros não o tentassem ao mesmo tempo. A lança apontada diretamente para o peito atingia seu alvo uma fração de segundo antes da lança apontada para a cabeça; era uma questão de angulação. O primeiro impacto deslocava ambos os cavaleiros, tornando o golpe de cabeça mais errático. Mas um cavaleiro habilidoso podia estender sua lança à frente, tirando-a da posição de apoio, a fim de ganhar um antebraço de extensão e atingir o adversário antes. Era preciso ter uma enorme força no braço para absorver o instante do impacto e controlar o coice da lança, a fim de que o cavalo suportasse o baque; mas assim tinha mais chance de prejudicar a mira e o ritmo do adversário.

Cinqüenta metros.

Lorde Gaune ainda mantinha a lança elevada. Mas aí apoiou-a, inclinando-se à frente na sela. Tinha mais controle sobre a lança assim. Iria fintar novamente?

Quarenta metros.

Não havia como saber. Conan resolver mirar no peito. Colocou a lança em posição. Não a moveria mais.

Trinta metros.

Ouviu o trovejar dos cascos e a gritaria da multidão. Sennan sempre advertia: “Não feche os olhos no momento do impacto. Mantenha os olhos abertos para acertar o alvo”. Muito tempo se passou desde aqueles dias, mas Conan nunca esqueceu os ensinamentos de Sennan.

Vinte metros.

Seus olhos estavam abertos.

Dez.

O canalha ergueu a lança.

Ia tentar a cabeça.

Impacto.

* *

A madeira rachou com um barulho parecido com o de um raio. Conan sentiu uma dor no ombro esquerdo, apunhalando-o para cima com muita força. Cavalgou até o final do campo, largou a lança estilhaçada e estendeu a mão para outra. Mas os pajens ficaram parados, olhando para o campo lá atrás.

Lançando o olhar por cima do ombro, ele viu que Lorde Gaune estava estendido no chão, imóvel.

E aí viu que Lorde Marcius estava fazendo seu cavalo pular e girar em torno do corpo caído de Sonja. Essa seria a solução dele, pensou Conan. Pisotear Sonja até matá-la.

Conan virou-se e desembainhou a espada. Ergueu-a no ar.

Entoando o horripilante grito-de-guerra cimério, esporeou o cavalo pelo campo.

* *

A multidão berrava e socava a cerca feito um tambor. Lorde Marcius virou-se e viu Conan se aproximando. Lançou o olhar por cima do ombro para Sonja e esporeou o cavalo, deslocando-o lateralmente para pisotear o corpo caído.

- Uuuu! Uuuu! – vaiava a multidão, e até o Príncipe Numitor pôs-se de pé, horrorizado em meio à bulha.

Mas aí Conan alcançou Marcius; não conseguiu deter o cavalo, mas passou por ele, gritou – Desgraçado! – e golpeou Marcius na cabeça com o lado da espada. Sabia que aquilo não o feriria, mas era um golpe insultuoso e o faria largar Sonja. Coisa que aconteceu.

Lorde Marcius abandonou Sonja imediatamente, enquanto Conan freava segurando a espada. Lorde Marcius desembainhou sua espada e desferiu um golpe violentíssimo, com a lâmina sibilando no ar e chocando-se com um clangor contra a de Conan, que sentiu a própria espada vibrar com o impacto e contra-atacou com um golpe de revés, tentando atingir a cabeça. Marcius aparou o golpe, os cavalos giraram; as espadas se chocaram novamente, várias vezes.

O combate começara. Seria uma luta mortal.

* *

Marala assistia ao combate lá da arquibancada. Conan estava indo bem, e sua força física era superior, mas era fácil ver que sua destreza sobre o cavalo não era superior à de Marcius. Seus golpes eram menos precisos, sua postura menos segura. Talvez pelo uso da armadura, pensou ela.

Conan parecia saber disso, assim como Lorde Marcius, que ficava recuando o cavalo a fim de abrir espaço para golpes maiores. De sua parte, o Cimério tentava se aproximar, mantendo pouca distância entre eles.

Mas ela viu que Conan não poderia continuar fazendo aquilo eternamente. Mais cedo ou mais tarde, Marcius abriria distância suficiente, ainda que por um breve instante, e desferiria um golpe letal.

* *

O cabelo de Conan estava empapado de suor dentro do elmo. Gotas ardentes caíam-lhe amiúde nos olhos. Ele não podia fazer nada para melhorar a situação. Sacudiu a cabeça, tentando clarear a visão. Não adiantou muito.

Logo estava arquejando, sem fôlego. Através da fenda no elmo, Lorde Marcius parecia incansável e implacável, atacando sempre, golpeando com destreza e em ritmo constante. Conan percebeu que ele tinha que fazer alguma coisa logo, antes de ficar cansado demais. Tinha que quebrar o ritmo do adversário.

Sua mão direita, a que segurava a espada, já ardia devido ao esforço constante. A esquerda, porém, continuava forte. Por que não usar a mão esquerda?

Valia a pena tentar. Afinal, seu braço esquerdo era quase tão bom quanto o direito.

Esporeando o cavalo, Conan se aproximou até ficar peito a peito com Marcius. Esperou até aparar um golpe com a espada, e com a base da mão esquerda deu um soco para cima no elmo de Lorde Marcius. O elmo foi jogado para trás; Conan ficou satisfeito ao sentir que a cabeça de Marcius batera na frente do elmo.

Virou imediatamente a espada ao contrário e bateu com a empunhadura no elmo de Marcius. Ouviu-se um forte estrugido, e o corpo de Marcius pulou da sela. Seus ombros descaíram momentaneamente. Conan golpeou de novo, batendo no elmo com mais força ainda. Sabia que aquilo o estava machucando.

Mas não o suficiente.

Tarde demais, viu a espada de Marcius sibilar num arco largo em direção às suas costas. Conan sentiu uma ardência brutal nas espáduas, feito uma chicotada. A cota de malha agüentara? Ele fora ferido? Ainda conseguia mexer os braços. Brandiu a própria lâmina com força contra a parte de trás do elmo de Marcius, que nada fez para se desviar do golpe, o qual ressoou feito um gongo. Ele devia estar atordoado, pensou Conan.

Golpeou novamente, e depois fez o cavalo girar; aí desferiu um golpe largo na direção do pescoço. Marcius o aparou, mas a força do impacto lançou-o para trás. Ele balançou, escorregou de lado na sela e tentou agarrar-se ao arção, mas acabou caindo ao chão.

Conan parou e começou a desmontar. A multidão urrou novamente; olhando para trás, ele viu que Marcius pusera-se de pé agilmente, pois apenas fingira estar ferido. Vinha brandindo a espada na direção de Conan, que ainda estava desmontando. Com um dos pés ainda no estribo, Conan aparou o golpe desajeitadamente, livrou-se de qualquer jeito do cavalo e golpeou de volta. Lorde Marcius estava forte e seguro de si.

Conan percebeu que sua situação ficara ainda pior do que antes. Seu ombro esquerdo doía e suas espáduas ardiam. Ainda assim, atacou com ferocidade, mas Marcius recuou facilmente, com um jogo de pernas ágil e veloz. Conan já estava com a respiração entrecortada e ofegante dentro do elmo; tinha certeza de que Marcius podia ouvi-lo e saberia o que aquilo significava.

Conan estava se cansando.

Lorde Marcius só precisava continuar recuando até Conan se exaurir.

A menos que...

À esquerda deles, Sonja continuava estendida de costas no chão, inconsciente.

Conan foi atacando Marcius, movendo-se para a direita com cada golpe. Marcius continuou afastando-se lepidamente. Mas agora Conan estava empurrando-o para trás – na direção de Sonja.

* *

Sonja despertou lentamente, ouvindo o barulho de espadas. Ainda meio tonta, tentou se situar. Estava deitada de costas, olhando para o azul plúmbeo do céu. Mas estava viva. O que acontecera? Virou a cabeça dentro do elmo negro. Com apenas uma fenda estreita para a visão, era quente, abafado e claustrofóbico ali dentro.

Ela começou a ficar enjoada.

A sensação de náusea aumentou rapidamente. Ela não queria vomitar dentro do elmo. Era muito apertado ali dentro; ela se afogaria no próprio vômito. Tinha que tirar o elmo. Ainda deitada, ergueu os braços e agarrou o elmo com ambas as mãos.

Puxou.

O elmo não se mexeu. Por quê? Será que haviam amarrado o troço nela? Ou porque ela estava deitada?

Ia vomitar dentro do maldito elmo.

Tarim.

Começou a rolar freneticamente pelo chão.

* *

Conan brandia a espada em desespero. Viu Sonja começar a se mexer atrás de Lorde Marcius. Quis gritar para Sonja ficar parada, mas já não tinha fôlego para falar.

Golpeou de novo, e depois de novo.

Sonja estava puxando o elmo, tentando tirá-lo. Marcius ainda estava a dez metros dela. Dançando para trás, divertindo-se, aparando os golpes de Conan com facilidade.

Conan sabia que chegara ao limite de suas forças. Seus golpes estavam cada vez mais fracos.

Maldita armadura!

Marcius ainda lutava com força e agilidade. Só recuando e aparando. Esperando sua oportunidade.

Cinco metros.

Sonja pusera-se de barriga para baixo, e começara a levantar. Estava de quatro. Com a cabeça caída. Nesse momento, ouviu-se uma golfada de vômito.

Marcius ouviu-a também, virou a cabeça para dar uma olhada...

Conan atacou, dando-lhe uma cabeçada no peitoral; ele cambaleou para trás, tropeçou em Sonja e caiu.

Rolou rapidamente pelo chão, mas Conan já estava em cima dele, pisando na mão de Marcius para prender a espada, e depois passando a outra perna para prender o ombro oposto. Conan aí ergueu a espada, pronto para golpear.

A multidão calou-se.

Marcius ficou imóvel.

Conan abaixou lentamente a espada, cortou os cordões do elmo de Marcius e empurrou-o para trás com a ponta da arma. A cabeça de Marcius ficou exposta. Conan viu que a orelha esquerda dele sangrava abundantemente.

Marcius lançou-lhe um olhar sanhoso e deu-lhe uma cusparada.

Conan ergueu a espada novamente. Estava furioso, exausto e ardido de suor, com os braços doloridos e a visão avermelhada. Tensionou as mãos, preparando-se para golpear e arrancar aquela cabeça do corpo.

Marcius percebeu e capitulou.

- Piedade!

Deu um grito para que todos ouvissem.

- Peço piedade! – exclamou. – Em nome de Mitra e de Ishtar! Piedade! Piedade!

A multidão manteve-se em silêncio.

Esperando.

* *

Conan não sabia ao certo o que fazer. No fundo de sua mente, uma voz dizia, “Mata esse cão agora para não se arrepender mais tarde”. Sabia que tinha que resolver logo; quanto mais tempo ficasse parado ali em cima de Lorde Marcius, mais depressa perderia a coragem, porque ele não gostava de matar inimigos caídos, mesmo naquela situação.

Olhou para a multidão apinhada junto à cerca. Ninguém se mexia; estavam todos transfixados. Olhou para as arquibancadas, onde o Príncipe Numitor estava sentado com as damas. Estavam todos imóveis. Numitor parecia congelado. Conan olhou para o grupo de pajens parados junto à cerca. Também estavam congelados. Aí, num movimento quase subliminar, um dos pajens ergueu a mão até o peito e fez um gesto rápido com o pulso: corta fora.

Ele está lhe dando um bom conselho, pensou Conan.

Mas hesitou. Havia um silêncio absoluto no campo, interrompido apenas pelas golfadas e gemidos de Sonja. No final, foi uma dessas golfadas que quebrou o impasse. Lembrando-se do que Marcius tentara fazer à ruiva, Conan assestou sua espada e baixou-a com força.

A cabeça de Lorde Marcius rolou pelo chão gramado e sulcado.


6.

O REGATO SERPENTEAVA por um gramado coberto de musgo e flores do campo que por ali medravam. Sonja ajoelhara-se e enfiara o rosto na água. Levantou-se engasgando e tossindo. Olhou para Conan, que estava acocorado ao seu lado com o olhar perdido no espaço.

- Estou farta – disse Sonja. – Estou farta.

- Eu imagino que você esteja.

- Eu podia ter morrido – disse Sonja. – Eles chamam aquilo de duelo? Você sabe o que é aquilo? É suicídio a cavalo. Esse povo é insano. – Mergulhou a cabeça na água novamente.

- Sonja.

- Eu detesto vomitar. Detesto.

- Sonja.

- O quê? O que foi agora? Você vai me dizer que assim eu vou enferrujar a armadura? Porque eu não me importo, Conan.

- Não. - Disse Conan. – Vou dizer que assim o feltro da sua camisa de baixo vai inchar, e vai ficar mais difícil de tirar a armadura.

- É mesmo? Bom, dane-se. Aqueles pajens vão vir tirar esses troços de cima de mim. – Sonja recostou-se no musgo e tossiu. – Mitra, não consigo me livrar desse cheiro. Preciso tomar um banho, alguma coisa assim.

Conan ficou ali sentado sem dizer nada. Simplesmente deixou-se relaxar. As mãos de Sonja tremiam quando ela falava. Era melhor ela botar tudo para fora, pensou.

* *

Arqueiros vestidos de cinza e grená treinavam no campo lá embaixo. Disparavam pacientemente contra os alvos, recuavam e disparavam de novo. Era exatamente como dizem por aí, pensou Sonja: os arqueiros bossonianos são altamente disciplinados e treinam todo dia.

- Aqueles homens ali são o novo poder militar – disse Conan. – São eles que decidem as batalhas agora. Olha só para eles.

Sonja apoiou-se num dos cotovelos. – Você tem razão – disse. Os arqueiros já estavam a mais de duzentos metros dos alvos circulares. Seus vultos pareciam muito pequenos àquela distância, e ainda assim eles flexionavam confiantemente os arcos, apontando para o céu.

O céu enegreceu-se com as flechas sibilantes, as quais ou atingiam os alvos ou caíam bem perto, ficando espetadas na grama.

Outra tremenda saraivada fez-se ao ar quase imediatamente. E outra, e mais outra. Conan estava contando em silêncio, como costumava fazer há meia década na Fronteira Oeste, entre a Aquilônia e as Terras Pictas. Três segundos entre as saraivadas.

- Uma carga de cavalaria não resiste a um ataque desses – disse Conan. – Isso mata os cavaleiros e mata os cavalos. É por isso que os cavaleiros aquilonianos desmontam para lutar. Os argoseanos e nemédios ainda atacam à moda antiga, e são simplesmente massacrados muito antes de se aproximarem dos aquilonianos.

- Por que os argoseanos e nemédios não mudam de tática? Não percebem o que está acontecendo?

- Percebem, mas isso significa o fim de todo um estilo de vida, de toda uma cultura, na verdade – disse Conan. – Todos os cavaleiros são da nobreza; o estilo de vida deles é dispendioso demais para um plebeu. Os cavaleiros têm que comprar as armaduras e pelo menos três cavalos de batalha, além de sustentar um séqüito de pajens e auxiliares. E até aqui esses cavaleiros nobres vêm sendo o fator determinante nas guerras. Mas isso está acabando. – Ele apontou para os arqueiros no campo. – Aqueles homens ali são plebeus. Vencem por meio de coordenação e disciplina. Não se trata de bravura pessoal. Eles recebem um soldo; prestam um serviço. Mas são o futuro da guerra: tropas pagas, disciplinadas e sem rosto. Os cavaleiros estão acabados.

Sonja olhou para o campo do duelo lá atrás. E disse: - Bom, já estava na hora!

Conan virou-se e viu Marala e seu tio aproximando-se na companhia de dois pajens. – Finalmente vou me livrar dessa lataria. – disse a ruiva.

Sonja e Conan ergueram-se e empertigaram-se quando o grupo chegou. Marala disse: - Vocês salvaram minha vida. Com a morte de Marcius, já não tenho mais pretendente. O que era dele, agora é de meu tio. Em breve voltaremos para o condado. Não querem vir conosco?

Conan ficou por um momento admirando Marala, percebendo o quanto ela ainda era bela - Não, Marala. – ele disse - A Aquilônia já está tranqüila demais para mim. Pretendo seguir para a Ciméria e rever alguns amigos.

Marala pareceu contristada. – E você, Sonja? Não quer vir comigo? Meu tio lhe dará um bom cargo em Albiona.

- Penso que seguirei meu amigo cimério para o norte, Marala. – Corroborou Sonja – Dizem que a fronteira picta anda meio conturbada e talvez eu fique por lá algum tempo, ao menos até surgir uma guerra no sul onde eu possa vender minha espada por um bom preço.

- Com efeito – disse Marala, e olhando para Conan: - Bom, ao menos permaneçam alguns dias para descansar, porque ainda pretendemos lhes pagar pela ajuda prestada. E aposto que Garus iria gostar muito de revê-lo, Conan. Afinal, já faz dez anos que nos despedimos na fronteira de Ophir.

- É uma boa idéia, garota! Acho que podemos esvaziar algumas garrafas de vinho da adega de Numedides, e escorropichá-las antes que o inverno acabe de vez.

E, rindo juntos, eles foram descendo em direção ao castelo. A essa altura a neve começara a cair e as nuvens escuras e pesadas pairavam sobre as colinas distantes.


FIM
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