INTRODUÇÃO
“São poucas as palavras capazes de provocar tanto rebuliço em nossa imaginação quanto a palavra pirata: o tapa-olho, a perna de pau, a faca presa nos dentes na hora da abordagem, o rugir dos canhões, o tilintar das espadas e, lá em cima, no mais alto mastro, o sorriso tétrico da caveira estampada na bandeira negra...”.
(do livro Contos de Piratas, Corsários e Bandidos – editora Ática, 1991).
Começamos a escrever este conto há cerca de cinco anos, mas ele permaneceu encubado até mais ou menos um ano atrás. Houve uma vez em que disponibilizamos o trecho original no site Crônicas da Ciméria, para que outros fãs o concluíssem, mas isso não aconteceu em definitivo, porque apenas um conanmaníaco enviou uma continuação do conto, mas nunca mais entrou em contato e sua continuação se perdeu. Infelizmente, já que era ótima.
O original começava, quase que inteiramente, a partir do item 2 deste conto e ia até o encontro de Conan e o oficial inimigo, após a abordagem pirata. O conto, a princípio, mostrava Conan como membro da Irmandade Vermelha, no Mar Vilayet, enfrentando turanianos em uma ilha povoada de monstros e detentora de um magnífico tesouro.
Todavia, há cerca de um ano, decidimos dar continuidade ao conto e aproveitamos uma sugestão de um trecho de uma matéria de Dale Rippke para situá-lo em uma ilha chamada Negari. Essa matéria de Rippke dava detalhes sobre alguns Reinos Negros da era de Conan e suscitava a existência de um reino chamado Negari, em uma ilha no Mar do Oeste, contradizendo a aventura de Conan e Solomon (ou Salomão) Kane no reino homônimo, como vimos nas ESCs 133 e 134, onde o cimério e o puritano enfrentavam os descendentes dos atlantes em algum ponto no interior dos Reinos Negros.
Mas o material disponível nas histórias de Conan sobre a Atlântida não era suficiente para embasar nosso novo conto; por isso começamos a pesquisar na Internet e em livros. E um dos mais interessantes livros que lemos sobre o assunto foi Atlântida – O Oitavo Continente, de Charles Berlitz, da Editora Nova Fronteira S/A, de 1984, do qual extraímos muitas referências sobre a arquitetura de Negari e algumas das citações que iniciam os capítulos.
Nesse livro tem um trecho em que o autor informa que os antigos cartagineses faziam comércio, ou com a Atlântida ou com algum posto avançado dela, e mantinham segredo absoluto disso. Diante dessa informação, resolvemos fazer algo semelhante no conto, colocando Argos como negociador com Negari e Conan, acidentalmente, descobrindo isso quando aborda o navio argoseano, agindo, assim, não como emissário de Zíngara, mas como um pirata em busca de riquezas.
Uma outra inspiração para este conto com temática atlante foi a notória carta IN MEMORIAM, extraída do site Fio da Navalha (que pode ser acessado pelo endereço: http://www.sde.com.pt/biografiaREHoward.htm), de H. P. Lovecraft, onde ele louva Robert Ervin Howard após sua morte. E o trecho mais marcante para o conto é esse:
“O Sr. Howard vinha de uma família de plantadores do Sul – de origem Escocês-Irlandesa, a maioria dos seus antecessores viviam na Geórgia e Carolina do Norte no século XVIII. (...)
“O Sr. Howard tinha quase um metro e oitenta de altura, com uma estrutura massiva de um lutador nato. Ele era, salvo os seus olhos azuis celtas, de aparência morena; e nos anos mais tardios pesava cerca de noventa quilos. Sempre um discípulo da impetuosidade e vida enérgica, alvitrava mais do que a sua personagem mais famosa – o intrépido guerreiro, aventureiro, conquistador de tronos, Conan, o cimério”.
Temos aí uma certa semelhança física entre criador e criatura. Mas, o que isso tem de semelhante com a Atlântida? Bom, conforme nossas pesquisas os antigos gauleses, assim como os irlandeses, os galeses e os celtas britânicos, acreditavam que seus antepassados tinham vindo de um continente que afundou no mar Ocidental. Sem contar que, na própria ficção howardiana, os irlandeses e escoceses são descendentes puros dos cimérios!
Ou seja, Howard, como descendente de irlandeses tinha sangue supostamente atlante, assim como os cimérios da Era Hiboriana. E Conan parece ser uma cópia guerreira de Robert Howard, algo que o próprio autor sempre sonhou ser, conforme seus vários diálogos sobre a nobreza da barbárie e a decadência da civilização.
Destarte, diante de todas essas informações, juntamos tudo em um conto sobre piratas, tesouros e civilizações perdidas, contextualizado na vida pregressa de Conan da Ciméria, o maior de todos os bárbaros já imaginado pela mente humana, criado pelo maior contador de histórias de todos os tempos, na nossa opinião: Robert Ervin Howard.
O conto é um tanto detalhista sobre a vida de pirata, não somente para enriquecer o texto, mas porque sempre sentimos uma carência de detalhes sobre essa importante fase da vida de Conan, onde os trechos sobre suas aventuras no mar eram mais voltados para ações em terra firme e pouco para as lutas e abordagens em navios e sobre o dia-a-dia de um pirata. Conquanto, todas essas informações são frutos de uma extensa pesquisa na internet e em livros sobre o mar, e não pura invenção destes singelos cronistas.
Por fim, resta informar que o trecho final do capítulo 1, quando Conan e Sigurd conversam na cobertura principal do Esbanjador, foi extraído de Conan, O Bucaneiro, de L. Sprague DeCamp e Lin Carter. Como esta aventura é continuação imediata dessa novela de DeCamp, não vimos problemas em copiar o texto original, uma vez que estamos informando isso. Outro trecho que copiamos e adaptamos foi a parte em que Conan encontra os guerreiros negros, foge e despenca em um abismo. Retiramos essa seqüência da edição 133 de A Espada Selvagem de Conan, que mostra a chegada de Conan em Negari.
Abaixo temos um pequeno glossário sobre alguns termos marítimos, usados ou não no conto, para melhor compreensão do texto:
ADRIÇA – cabo para içar velas ou bandeira.
AMARRAS – cabo ou corrente que prende o navio à âncora.
AMURADA – pequeno muro que fica acima do convés do navio.
ÂNCORA – peça com um formato e com um peso adequados para parar o navio e mantê-lo fixo num lugar.
A TODO O PANO – com as velas abertas, de maneira a dar ao navio a velocidade máxima.
BOMBORDO – lado esquerdo do navio, olhado este da popa à proa (de costas para a parte traseira do navio).
BORESTE – o mesmo que estibordo.
BUCANEIRO – os primeiros homens brancos que se estabeleceram nas Antilhas no século XVI tinham o hábito de defumar a carne do gado, que ali vivia em estado selvagem; por isso, receberam dos nativos o nome de boucanier, que, em francês, quer dizer “defumar”. Em português eles eram chamados de “bucaneiros”, denominação que, com o tempo, se estendeu a todos os piratas.
BUJARRONA – vela triangular da proa do navio.
BUTIM – produto do saque, aquilo que se apropriou do inimigo.
CABO – qualquer corda utilizada a bordo de um navio.
CASCO – parte do navio formada pela quilha (parte inferior do navio, espécie de “coluna vertebral” onde as outras peças se apóiam) e o costado (conjunto de chapas ou pranchas que revestem a parte de baixo do navio).
COBERTA – cada um dos diferentes andares ou pavimentos de um navio.
CONVÉS – a área da primeira coberta do navio.
CORSÁRIOS – piratas que possuíam uma carta (ou patente) de corso, dada por um rei, que os autorizava a saquear navios e colônias das nações com que seu reino estivesse em guerra. Com o fim da “pirataria patrocinada”, porém, os corsários foram se transformando em piratas comuns, até desaparecerem totalmente da América Latina.
DESFRALDAR AS VELAS – abrir as velas, soltá-las ao vento, deixando-as prontas para serem usadas. (O mesmo que largar o pano.).
ESCOTILHA – abertura dos navios que dá passagem do convés para outras coberturas ou para o porão do navio.
ESCUNA – embarcação a vela muito leve, pois tem apenas um ou dois mastros.
ESTIBORDO – direita do navio, para quem olha da popa para a proa (de costas para a parte traseira do navio); o mesmo que boreste.
FLIBUSTEIRO – do inglês freebooters (“saqueadores livres”) e, depois, do francês flibustier; o mesmo que pirata, ou seja, aqueles que saqueiam por sua própria conta.
FRAGATA – antigamente, eram assim chamados os navios da marinha de guerra que tinham três mastros.
GALEÃO – grande navio antigo, armado para a guerra, que servia para transportar ouro, prata e outras mercadorias que Portugal e Espanha mandavam buscar em suas colônias. Os galeões eram muito pesados e lentos e, por isso, sofriam muitos ataques dos piratas e corsários, que possuíam embarcações mais rápidas.
GANCHOS DE ABORDAGEM – ganchos usados no momento da abordagem para prenderem o navio atacante ao que seria atacado, de maneira que se pudesse saltar com segurança de um ao outro navio.
GÁVEA – espécie de gaiola ou plataforma que fica no alto dos mastros de um navio e que serva para diversos fins, inclusive como posto de observação.
GELOSIA – grade de madeira que se colocava antigamente em janelas e portas de casa.
GURUPÉS – mastro na extremidade da proa do navio.
IÇAR AS VELAS – alçar, erguer, levantar as velas de um navio para que possam ser usadas.
LANÇAR ÂNCORA – ancorar; lançar a âncora ao mar para parar o navio.
LEVANTAR A ÂNCORA – retirá-la do mar, de maneira a soltar o navio preparando-o para a partida.
NAVIO ATRAVESSADO – diz-se do navio que está em posição perpendicular (lado a lado, na mesma direção) à direção do vento.
NAU – antiga embarcação a vela, com três mastros e numerosas bocas de fogo; por extensão, passou-se a chamar de nau qualquer navio.
NÓ – unidade usada para medir a velocidade de embarcações.
POPA – parte traseira de um navio.
PROA – parte anterior de um navio.
TIMÃO – peça instalada na popa da embarcação e que serve para dirigi-la.
TIMONEIRO – aquele que controla o timão da embarcação.
TOMBADILHO – a parte mais alta de um navio, entre a popa e o mastro.
TRAQUETE – vela grande que fica no mastro da proa do navio.
VELA – tecido em formato triangular, quadrangular ou redonda, que trabalha a velocidade do navio e a direção do vento no sentido de proa a popa (isto é, da parte da frente para a traseira do navio; as velas redondas dirigem o vento no sentido bombordo a boreste, isto é, do lado esquerdo para o direito do navio).
VELA MESTRA – vela principal.
VELAME – conjunto de velas de um navio ou de um de seus mastros.
VERGA – pau atravessado no mastro e a que se prende a vela do navio.
NEGARI – A ILHA DA MORTE
(Por Osvaldo Magalhães de Oliveira e Fernando Neeser de Aragão)
1. SIGURD DE VANAHEIM
AGITAÇÃO E FUMAÇA ENCHIAM A TAVERNA. Prostitutas e vagabundos vindos de todas as partes do mundo – cuja nacionalidade nenhuma nação reivindicaria –, trajados de acordo com a moda entre os piratas, sentavam-se, em mesas espalhadas pelo grande espaço da espelunca fumarenta. Mulheres de longas e torneadas pernas serviam bebidas a piratas de longos rostos, que davam risadas de todos os tons. Cheiro de vinho, cerveja e suor misturando-se. Este era o sabor da fumaça de um lugar decadente, em uma época de profunda decadência. Apesar disso, atraente como a última festa antes do último dia do mundo.
Ao longo da parede, curvas e arcos orientais cruzavam-se, formando compartimentos privados ou balcões elevados. O recinto das bebidas ficava atrás, ladeado por duas estátuas gigantescas talhadas em madeira: chefes guerreiros kushitas relaxavam em seus tronos, ostentando montantes dourados e sorrindo friamente, como se presidissem as festividades.
Observando esse ambiente, mas sem demonstrar interesse, Conan, o cimério, desceu a curta escada que levava ao salão, os olhos vasculhando o local como os de um gato precavido.
Era a taverna Nove Espadas, onde, dias antes, Conan se alojara para planejar uma invasão ao palácio real de Zingara, junto com a princesa Chabela e Sigurd, o vanir.
Alguma coisa estava acontecendo no balcão naquele momento, onde se encontrava a maior parte da clientela. Alguma espécie de competição alcoólica. Diversas canecas estavam alinhadas sobre o balcão. Um homem imenso, gritando com um sotaque zíngaro, cambaleava contra o balcão, enquanto levantava a mão e tateava às cegas em busca do próximo drinque.
Conan chegou mais perto. Era de fato uma competição de bebida. E ele ficou imaginando quem poderia ser o oponente do zíngaro. Abriu caminho através da multidão, tentando dar uma olhada. Quando viu, não ficou surpreso.
Sigurd, o vanir!
Ali estava ele, seu amigo de recentes batalhas, envolvido naquela competição de beber com um gigante zíngaro.
O zíngaro, com um quisto no nariz, não usava camisa e sua pele era de um castanho escuro; a barriga era estofada e sem cabelos. O homem tinha mais de 1,90m, como Sigurd, e os braços pareciam troncos, pendendo de ombros imensos; a cabeça era encimada por cabelos negros, ralos e desgrenhados. Dois olhos pequenos, de pestanas escuras, como buracos negros por cima das faces globulares, contemplaram rancorosamente o homem do Norte. Era evidente que ele não estava muito satisfeito.
Conan ficou observando, enquanto a multidão em torno do balcão fazia apostas. Mesmo para o mais inocente dos espectadores, devia parecer altamente improvável que o zíngaro pudesse ser vencido pelo vanir, que nem era de uma raça beberrona – ao menos não tanto quanto os zíngaros, no entender destes. Mas o vanir estava entornando as taças, enfrentando o zíngaro caneca a caneca.
Sigurd tomou outra taça. A multidão rugiu estrondosamente. Mais moedas foram jogadas sobre o balcão. Outro rugido. O zíngaro cambaleou para trás, estendeu a mão para uma taça, errou e tombou para trás, como uma árvore cortada. Conan estava impressionado. Ficou observando enquanto Sigurd pegava as moedas em cima do balcão e gritava para os bebedores em zíngaro, com seu sotaque de bárbaro do Norte, dizendo que a brincadeira acabara por aquela noite. Mas restava uma última caneca em cima do balcão, e eles não se afastariam enquanto ele não a bebesse. Sigurd olhou ao redor e depois disse:
– Vagabundos... – e tomou a última caneca. A multidão tornou a rugir. Sigurd acenou com os braços levantados e a multidão começou a dispersar-se, contrariada, encaminhando-se para suas respectivas mesas.
Sigurd foi para uma mesa baixa de madeira, num canto escuro e discreto. Uma sombra projetada pelas velas o fez levantar o rosto avermelhado pelo vinho.
– Olá, Barba-Ruiva. – disse Conan – Espero que essa brincadeira não o impeça de embarcar amanhã.
– Pelas barbas brancas de Heimdal e as tetas caídas de Badb, cimério... ainda não bebi o suficiente nem para me sentir enjoado com o balanço do mar. Ou já esqueceu que os vanires bebem e cantam por dias e noites, embalados pela espuma saborosa da cerveja e o doce e picante sabor do vinho?
– Há! Não, seu chacal do Norte!
Conan puxou uma cadeira, cujo espaldar há muito se quebrara, e sentou-se confortavelmente, encostando as largas costas na parede enfumaçada. Na mesa ao lado havia um grupo de negros gigantescos, talvez de Kush ou Zimbabo. Mais adiante, uma mesa de yamatanos – reconhecíveis por sua sujeira e pilhéria. Ao contrário dos khitaianos, que se comportam em qualquer circunstância com uma higiene rigorosa, até mesmo exagerada, os homens de Yamatai comem com voracidade, gargalham com a boca aberta espalhando pedaços de comida em volta, cospem no chão, assoam o nariz com os dedos – agem como verdadeiros porcos. E o pior é que são porcos que trabalham muito bem em um navio; e como Conan, eles estão bastante longe de casa.
A um canto, um grupo de piratas entoava canções lentas, de uma tristeza infinita. Isso divertia os yamatanos, que os rodeavam soltando gritos embriagados.
Sobre algumas mesas, umas dez garotas se balançavam lentamente ao som de uma espécie de harpa. Algumas estavam de tangas de seda com os seios cobertos, outras haviam tirado a parte de cima para ficar só de tanga. Todas elas eram jovens, todas elas tinham a pele morena e dourada, todas elas tinham um corpo excitante e solto. Um velho argoseano estava sentado à esquerda diante de uma jarra de vinho: a única coisa que vestia era uma calça esfarrapada. O corpo era magro e bronzeado, vigoroso, sem o menor vestígio de gordura. Feixes de músculos envelhecidos sobressaíam nos braços e peito. Os olhos eram semicerrados, numa expressão fixa permanente, que escavara sulcos profundos na pele bronzeada e ressequida das faces e da testa. Cabelos brancos caíam-lhe pela nuca, bastante compridos. Ao perceber que Conan o observava, ele sorriu para o cimério, revelando gengivas mal cuidadas, nas quais apareciam, a intervalos, uns poucos dentes lascados e amarelados. Depois, voltando-se para onde estava olhando, fitava os jovens corpos que se sacudiam diante dos seus olhos, completamente hipnotizado; sua imobilidade era tão exagerada que por um instante Conan pensou que estava morto.
Havia um estranho amontoado de bêbados a um canto, composto do mais variado sortimento de nacionalidades que se podia imaginar. Era como se algum deus louco tivesse pegado uma concha, metido num jarro repleto de tipos étnicos misturados e derramado ali, naquela taverna barulhenta. Tudo o que o mundo civilizado conseguira produzir em termos de vagabundos estava reunido ali: havia marinheiros argoseanos, zíngaros, turanianos e até stígios, e tantos outros da Nemédia, da Aquilônia, de Koth e de Zamora, todas nações sem mar. Havia shemitas barbados e de narizes curvos como bicos de águias que pareciam ter caído de uma escada no estado em que se encontravam; sem contar com alguns poucos vendhianos e hirkanianos e vários outros tipos furtivos, sem qualquer origem nacional óbvia.
“Assim é Kordava, a capital de Zingara”, pensou Conan, “e estes são os andarilhos do mar”.
Agora, o vanir à sua frente, Sigurd, era um homem alto e forte, de músculos firmes e cabelos e barba vermelhos como o sangue. Tinha o peito largo, e quando andava era empertigado e vigoroso como um tigre. Seus braços e mãos bem podiam ter sido transplantados de um urso. Os olhos, de um azul profundo, metálico, eram estreitados e irradiavam uma estranha combinação de calor e sensibilidade, enquanto seus lábios, que pareciam eternamente abertos num sorriso irônico e amigável, revelavam dentes brancos e regulares. A pele clara de seu rosto era bronzeada e desgastada, como convinha a um apreciador da vida ao ar livre, que preferia o sol do mar à luz dos lampiões das cidades ou o clima cinzento do norte.
Um sujeito insinuante, enfim, que circulava com desenvoltura entre os nobres e os poderosos, mas que preferia a companhia de homens e mulheres que iam direto ao assunto e gostavam de pôr a mão na massa.
Junto com Conan, aventurara-se por mares e selvas, vivendo, em poucos dias, mais experiências fantásticas do que a maioria dos homens viveria em dez existências. Encontrara o cimério em uma ilha sem nome, no sul do Mar do Oeste, depois que seu navio bateu em uns recifes e naufragou, ao sul da ilha.
Conan fora parar naquela ilha enquanto perseguia Zarono Negro, seu velho inimigo, que havia sido contratado por Villagro, duque de Kordava, para interceptar o navio que levava a princesa Chabela, filha do rei Ferdrugo, de Zingara, a Asgalun, a capital de Pelishtia, onde iria buscar ajuda para seu pai junto a seu tio.
Conan descobriu a trama e, já que Zarono também lhe roubou um mapa do tesouro, saiu em perseguição do bucaneiro. Em um templo semi-arruinado na ilha indicada no mapa, o cimério descobriu que o misterioso tesouro, seja qual fosse, já fora removido por Zarono. O cimério acidentalmente despertou Tsathoggua, guardião do local, uma criatura parecida com um sapo e dura como rocha. O monstro, porém, acabou sendo eliminado, e Conan, Chabela e alguns marinheiros argoseanos, abandonados na ilha, que estavam sob o comando de Sigurd de Vanaheim, formaram uma aliança para recuperar o tesouro e, conseqüentemente, tornar seguro o trono de Zingara.
Menkara, sacerdote de Set, convenceu Zarono de que ele e sua tripulação precisavam da ajuda do grande feiticeiro Thoth-Amon, se pretendessem levar a cabo sua missão para o duque de Kordava. Thoth-Amon estava furioso por Zarono ter levado apenas uma cópia do Livro de Skelos do Templo do Sapo – sem perceber que um tesouro ainda maior, a Coroa da Cobra, estava embaixo do ídolo. Conan é quem estava com a coroa brilhante, apesar de não ter noção de seu valor além das jóias que carregava. Desembarcando para recolher suprimentos em uma praia tropical ao norte da Ilha Sem Nome, o Cimério encontrou seu velho amigo Juma, agora um chefe na costa kushita. Porém, um guerreiro traidor de Juma roubou a Coroa da Cobra e fugiu pela floresta. Ao persegui-lo, Conan e Chabela terminaram como escravos das amazonas negras da cidade de pedra de Gamburu, capital do longínquo reino de Amazon. A princesa foi transformada em escrava e o Bárbaro tornou-se amante de Nzinga, a rainha das amazonas. Entretanto, infeliz diante dos sentimentos de Conan em relação a Chabela, Nzinga o drogou e decidiu executar os dois.
Nzinga estava alegremente torturando Chabela quando Thoth-Amon materializou-se misticamente e a derrubou. Ignorando a princesa, o feiticeiro partiu com a Coroa da Cobra. Conan e Chabela tentaram escapar, mas foram recapturados e amarrados às Árvores Kulamtu – plantas carnívoras que o cimério venceu com sua força bruta. Antes que as amazonas pudessem atingi-lo com suas lanças, Juma chegou com um contingente de guerreiros e conquistou a cidade. Conan, Chabela e Sigurd resolveram seguir imediatamente para Kordava, na esperança de salvar o rei Ferdrugo. O trio (além dos argoseanos de Sigurd) reencontrou-se com a tripulação do Esbanjador, que fora queimado por Zarono. Juma e seus homens ajudaram a reparar o navio, e Conan chegou a Kordava no instante em que o manipulador duque Villagro conseguiu a Coroa da Cobra e a colocou na cabeça – apenas para sucumbir aos poderes dela ativados pelo stígio Menkara, que logo depois também acabou sendo morto. Conan e companhia, com o auxílio de Chabela, conseguiram unir os zíngaros contra as forças de Thoth-Amon e Zarono Negro, e os dois vilões fugiram.
Relembrando estes fatos, o cimério também se recorda do jantar, na noite anterior, com o rei e sua filha. Então, tomando de uma caneca, encheu-a de vinho e tomou tudo em um só gole. Depois, dirigindo o olhar sombrio para o vanir à sua frente, um homem de uma raça que, assim como a dos pictos, é inimiga figadal de seu povo desde tempos há muito esquecidos, ele sorriu, e disse:
- Sabe, ruivo, você me falou, no dia em que nos conhecemos, que era imediato de um navio que havia afundado ao sul da Ilha Sem Nome, e que, pouco depois, o capitão adoeceu e morreu, mas nunca me disse mais nada sobre sua vida junto aos barachos. Você tem muita experiência com o mar e seus perigos?
- Ah, Conan, em alto-mar, os arrogantes e presunçosos não conseguem impor sua empáfia com pura bazófia. Ali, só estabelece autoridade quem conhece seu compasso, quem sabe o que, a quem e como mandar ou comandar. Os piratas são homens rudes, violentos, que quase sempre odeiam os oficiais e também são odiados por estes. O capitão, conquanto seja um homem competente, tem que ser feroz na maneira de tratar os seus homens. Tem que conhecer, ou usar, pelo menos, apenas dois argumentos para tratar com eles, o cacete ou a espada, e é pouco provável que seus comandados compreendam outros.
“Cercado de água por todos os lados, o bom capitão precisa usar a cabeça o tempo todo. Dormir com um olho aberto, passar o dia alerta, ter mente rápida e muita presença de espírito. É posto para quem tem um entendimento imediato das coisas navais”.
O vanir fez uma pausa, levou uma taça de vinho aos lábios, tomou um gole generoso e continuou:
- Um comandante como você também deve ter muita experiência em navios de todos os tipos, muita prática na administração dos afazeres de viagem, ter conhecimentos de navegação, intuição e coração de marinheiro para entender seus companheiros, além de dominar a arte de mandar e saber reconhecer a covardia, seus truques e vilanias. E nisso eu posso te ajudar... se você quiser, é claro.
“Oh, Conan, manter a ordem num navio cheio de bandidos é muito difícil, por isso existem as leis piratas. E ai de quem quebrar o trato! Porque, como dependem uns dos outros, a traição é o pior crime entre os piratas. Quem engana o seu companheiro é abandonado numa ilha deserta apenas com um barril de água e uma espada.
“Entre os barachos existem punições piores: ficar sem comida ou levar cem chibatadas com o gato-de-nove-rabos. Você sabe, é aquele pedaço de pau com nove nós de corda amarrados na ponta. Mais dura, e quase sempre mortal, é a de ser amarrado a uma corda e arrastado roçando dentro da água por baixo do casco do navio, de uma ponta à outra.
“Existem aqueles que cometem uma falta que deve ser punida com a morte. Esses infelizes devem andar na prancha, para servirem de refeição aos tubarões.
“Você conhece bem o tubarão, cimério? O tubarão é semelhante ao nosso peixe-cão ou cação, mas muito maior. Vi uns com oito ou nove pés de comprimento. A cabeça é larga e achatada. A boca fica no meio e por baixo, como a da arraia. Precisa levantar a cabeça para abrir a boca. Assim, o tubarão não consegue abocanhar nada que esteja à sua frente. Ele só morde de lado, dando um bote ou meia-volta. Nisto, é ajudado pelo rabo, que lhe serve de leme”.
O cimério sorriu. Ele conhecia tubarões tão bem quanto Sigurd, mas preferiu deixar que o jovem vanir continuasse seu relato.
- A pele do tubarão é áspera como a de alguns peixes, menos na barriga, onde é completamente branco. – prosseguiu Sigurd – Ele é o mais odiado de todos os peixes. Os marinheiros vêem-nos como uma ameaça, quando surge de surpresa perto da costa, e um mau agouro quando se mostra ao longe em alto-mar. A maioria acredita nas superstições mais tolas, dizendo que raramente um navio seguido por tubarões chega a seu destino.
“Também não se tem notícia de peixe mais voraz e devorador. O tubarão engole tudo que encontra no caminho. Estraçalha tudo que fique pendurado nas laterais do navio. Mais de uma vez, ao abrirem a barriga de um, vi tirarem chapéus, capotes, botas, camisas, ossadas, pedaços de braços, pernas de pau, restos de cordas e muitas outras coisas. Sua boca corta como se tivesse lâminas nas mandíbulas. Na verdade, são três fileiras de dentes em cima e três embaixo, afiados como agulhas. Alguns garantem que estes dentes dão bons palitos.
“Mas vou lhe dizer como cheguei naquela ilha maldita: depois de uma tempestade, perdemos as costas de Zingara de vista, o vento começou a variar, trazendo nevoeiro e chuva fina. Fomos forçados a usar só as velas menores. O mau tempo continuou por três dias, com o vento nunca soprando na mesma direção e o nevoeiro nunca nos deixando ver a linha da costa.
“Orientamos as velas rumo à costa de Argos. Pouco antes do sol se pôr, vimos uma caravela a cerca de uma légua a nossa frente. Velejava contra o vento e parecia vir de Kush.
“Por negligência do piloto ou descuido do vigia pendurado no mastro, a caravela viajava cada vez mais a sotavento da costa. A tripulação ia despreocupada de tudo neste mundo e, certamente, o que menos esperava na vida era encontrar um navio inimigo.
“O piloto também não demonstrou notar a nossa presença. Talvez estivesse convencido de que a contrariedade do vento exigiria muito esforço de todo barco que tentasse alcançá-lo vindo de mar aberto. Além disso, deveria pensar que, ao ver um navio suspeito querendo aproximar-se, sempre poderia buscar refúgio na costa. Autoconfiante e desatento, ele só nos viu quando já estávamos perto demais da caravela.
“Fizemos um belo massacre, pela mão de Nergal!
“Então, após abandonarmos o navio saqueado, seguimos rumo ao sul de Argos, onde a maior parte do trajeto é de navegação tranqüila, quase sem manobras inesperadas. Assim, o capitão aproveitou para comandar uma limpeza geral no navio. Mais do que tirar o peso morto de sujeiras e restos, ele queria manter a tripulação ocupada com tarefas úteis. Sabia, por experiência própria, que todos a bordo continuariam com saúde, enquanto se mantivessem ativos. Nesses países quentes, muita moleza não é bom nem proveitoso, muito menos saudável, para o equilíbrio do corpo.
“O capitão era um tipo corpulento, como um urso, com um bigode negro e façanhudo e o forte pescoço de touro entre enormes ombros maciços. Homem de quase dois metros de altura, tinha o rosto nobre e decidido; a pele bronzeada e curtida pelo sol demonstrava seu gosto pelas constantes viagens por países de climas ardentes e tropicais. As negras sobrancelhas, sempre em movimento, davam a impressão de que se tratava de um homem impulsivo e imperioso, e, ao mesmo tempo, cheio de benevolência.
“O trabalho também servia para desviar os homens das recordações de casa. As atividades decorrentes do ócio tendem a não exigir maior esforço. Sem o desgaste físico, o vigor da juventude faz com que muitos percam a cabeça, causando grandes alterações e perturbações, altamente prejudiciais à harmonia dos homens a bordo. Assim, como de hábito, o capitão dividia a tripulação em dois grupos, o da limpeza e o da observação. Enquanto metade da companhia vigiava ou limpava e trabalhava, a outra metade dormia ou descansava.
“O capitão delimitou tarefas para três dias da semana, empregando os homens da seguinte maneira: no primeiro dia, limpar armas, treinar seu manuseio e melhorar o fio das espadas; no segundo dia, conservar e preservar o navio, atividades como arejar o porão, arrumar as cabines, remendar velas, fazer cordas de camisas velhas, trançar redes, verificar a calafetação das juntas mais gastas, substituir os paus e ferros tortos ou imperfeitos no convés, fortificar escadas, portas, tampos, consertando tudo que fosse necessário; no terceiro dia mandou todo mundo tomar banho, num dia de limpeza geral de roupas e corpos. Depois tiveram que remendar, recortar e costurar panos úteis, como camisas, calças e calções.
“Um vento discreto, mas constante, ajudou-nos a viver sem maiores preocupações. Nem notamos a passagem de dias e dias, até avistarmos a costa de Kush, uma terra que começa ao sul da Stygia, mais de mil milhas ao sul de Argos. Antes de chegarmos a um cabo, recolhemos as velas, soltamos as âncoras e preparamos as linhas, amarrando ganchos e pregos tortos para pescar.
“O mar de Kush tem uma abundância enorme dos mais diversos tipos de peixe, com predominância do pargo, que também chamamos de brema, diferentes dos lofolátilos, bacalhaus, vermelhos, sáveis e diversas outras espécies das águas mais frias da costa hiboriana.
“Mais uma vez, Mitra estendeu-nos a mão, espantando da costa bandos de pássaros estranhos, feito pequenos galináceos ou narcejas de caça, que vieram até o nosso navio saciar nossa fome. Estes voadores vivem pelas rochas das terras recortadas da costa e se mantêm horas e horas no ar sem maior esforço. Assim, conseguimos carne fresca sem que homem algum tivesse que passar trabalho ou correr perigo, arriscando a pele em terra incógnita.
“Resolvemos continuar e progredíamos lentamente a oeste-sudoeste, quando a tripulação começou a ficar doente. Um por um, os homens foram atacados por um tipo de edema ou inchaço, que os marinheiros se acostumaram a chamar de escorbuto. Esta doença é sempre mencionada como um perigo predominante das zonas tórridas e dos países de clima quente.
“Em alto-mar, o escorbuto aumenta o mal-estar dos homens com uma tormenta por dentro do corpo, que é dominado por uma indolência insuportável. Ficam sem energia até para comer e só se sentem melhor descansando o dia inteiro na sombra. Na hora de dormir, muitos só conseguem se mover carregados nos braços. Outros são enlouquecidos pelo desespero e pedem sem parar que uma alma caridosa os ponha a dormir para sempre com uma estocada.
“Entre navegantes, não se conhece inimigo pior do que o escorbuto, pois deixa um navio sem mãos capazes de trabalhar. A doença também provoca um desejo insaciável de beber água, causando um inchaço geral do corpo, principalmente nas pernas e nas gengivas. Muitos vêem seus dentes se soltarem da queixada sem sentirem qualquer dor.
“Mas não irei me aprofundar neste assunto, deixo os remédios para os médicos e as punções para os cirurgiões. Por Badb!
“Bom, continuando... Fluímos ao longo da barra por um dia inteiro. Mesmo à distância da costa, estávamos quase tocando o fundo. Todos pensavam que, tendo cruzado a arrebentação, estavam em mar aberto, com 17 ou 18 braças de água, antes de tocar no fundo, como acontece em grande parte das ilhas do sul. Parecia-nos, porém, que nos aproximávamos de um ancoradouro ao sul. Assim, aprendemos algo novo sobre os mares do sul: todo cuidado é pouco ao passar na boca de muita baía bonita.
“Vistas de longe, elas enganam os pilotos, parecendo um porto perfeito e de bom calado. De perto, levam os navios em busca de ancoradouros a atoladouros e maus agouros. Em muitos destes recortes da costa kushita, quem quiser acompanhar os contornos da terra deve afastar-se um bom quarto de légua, porque uns recifes de pedras gigantes se escondem embaixo d’água, bem na entrada dessas baías. Algumas rochas deixam só a ponta inofensiva para fora. Em certos pontos, um homem mal consegue passar entres as pedras submersas. Mesmo em barcos menores, precisa proteger o casco com os remos.
“Desta maneira, por mais que quiséssemos pisar em terra firme, mantivemos distância de toda boa paragem que se oferecesse ao nosso barco.
“No dia seguinte vimos uma ilha arenosa, não muito perto de terra à vista, que parecia um ancoradouro seguro para nos reabastecermos. Além de água e madeira, frutas, caças e pesca para repor nossos estoques, poderíamos reparar o navio.
“Mas uma maldita tempestade que se aproximava nos pegou antes de baixarmos âncora. Era noite e o capitão esquadrinhou a escuridão. Além da proa, menos de cinqüenta metros à frente, uma linha irregular de arrebentação assinalava o local em que estavam os recifes. Confuso, doente, quase cego pela chuva, o capitão deixara que o navio se desviasse na direção errada.
“Ele girou o leme para bombordo e o navio começou a se virar contra o vento. Por um momento, o capitão chegou a pensar que escaparia aos recifes. Mas logo sentiu o primeiro rangido assustador da madeira sendo dilacerada pelo coral. O navio deu um solavanco e parou, depois saltou para a frente. Parou novamente, avançou outra vez. A proa se ergueu, depois pareceu subitamente afundar. A coberta no meio do navio levantou-se bruscamente, a popa descaiu para bombordo. O capitão tropeçou, estendeu os braços para agarrar-se ao timão e errou. O braço se enfiou entre os raios do timão, a girar sem parar. Por um instante, o capitão procurou freneticamente libertar o braço. E quebrou o cotovelo. O braço ficou livre, mas, depois disso, já era tarde demais, o navio estava indo a pique. Alguns homens, apavorados, foram se jogando ao mar e o vento furioso açoitava sem parar. Durante a confusão, conseguimos salvar a maior parte dos nossos equipamentos e provisões. Baixamos alguns escaleres e tratamos de sair daquela loucura toda.
“Enfim, conseguimos chegar à ilha, mas, logo em seguida, o capitão, doente como estava de escorbuto, ficou muito mal, delirando por causa da doença e do choque pela perda de seu navio. Como eu era seu segundo-em-comando, fui nomeado o novo chefe do bando, até que o capitão se recuperasse, e imediatamente mandei um grupo armar tendas e cabanas. Outro grupo ficou percorrendo a linha da praia à cata de comida: frutas, ovos, aves, caça e peixe, pescado com rede, flechas ou linhas com ganchos na ponta. Tínhamos abundância de anzóis, que nos proviam todo tipo de alimento.
“Infelizmente, cimério, nosso capitão morreu alguns dias depois. Mas, perto dessa ilha, existem duas grandes rochas, ou pequenos territórios adjacentes, e ali, encontramos grandes reservas de filhotes de mergulhão ainda no ninho, cuja carne tenra comemos naquele dia. Esta ave, bem lavada e fervida dava um bom ensopado. Acho que o capitão teria gostado de experimentar... o pobre diabo.
“Na ilha, encontramos algumas reservas de frutas pequeninas, coloridas, doces e suculentas. A mais abundante era um tipo de cereja, que cresce numa árvore parecida com a ameixeira vermelha. A fruta tem um caroço por dentro e, por fora, é muito diferente da ameixa. Não é totalmente redonda, mas dentada. O sabor é muito agradável e é uma das melhores coisas que já comi em todas as ilhas do sul, mas aqui vale a regra geral para todas as partes do mundo selvagem: uma fruta é boa e sadia de acordo com quem a come. Aquilo que servir de alimento às aves e às bestas, o homem pode comer cru e sem receio.
“Quando encontrei Chabela, eu estava num bosque de azinheiras, de copas muito altas. O bosque terminava às margens de um grande pântano, onde um pequeno riacho corria, mansamente, por entre os juncos. Patos selvagens pousavam aqui e acolá. Súbito, um deles levantou vôo e logo a seguir outros o acompanharam, fazendo grande alarido.
“’Deve ser alguém que se aproxima’, pensei.
“Ouvi passos e, por precaução, resolvi esconder-me. Agachei-me entre a densa folhagem e esperei. Foi quando avistei Chabela, caída entre umas raízes.
“De resto, cimério, você já conhece a história a partir do momento em que nos encontramos naquela maldita ilha”.
***
O sol, como uma grande fruta intumescida, pairava solene sobre o porto de Kordava. O calor do verão era intenso e o céu, cor de cobalto; o mar estava encapelado e os cimos das montanhas zíngaras nadavam numa névoa matutina. Uma brisa soprava mansamente e, de cada beco ou pátio do porto, emanavam odores de peixe e de água salgada. Por todo canto, o rio inquieto da vida movia-se e fluía constantemente de uma via para a outra do porto. Os homens apressados de Kordava, de pele morena e olhos castanhos ariscos, cabelos escuros e lisos, e a velhacaria estampada em cada feição, acotovelavam-se inquietos nos seus afazeres de marinheiros, ignorando os gritos dos vendedores ambulantes e dos artistas de rua, assim como as lamúrias dos mendigos.
Aqui e acolá as lojas irradiavam luz e cores. Chegadas ao mercado em barcaças, montanhas de frutas – pêssegos, ameixas, uvas, laranjas, limões, maçãs, bananas, todos os tipos de melões – brilhavam nas barracas, atraindo nuvens de moscas. Aqui, uma loja exibia pequenos tapetes tecidos à mão; acolá, outra vendia bijuteria barata; outras atraíam muita gente com vinho barato e bolinhos sem tempero, exibiam sandálias, facas, selas e cintos enfeitados com tachinhas, ou vendiam doces e pastéis e fatias de carne suculenta diretamente de fornos abertos com carvão ardente. A multidão maior reunira-se em volta de um ambulante que apregoava os grandes benefícios sexuais produzidos por uma determinada poção. Por toda a parte havia barulho, sujeira, calor, confusão. Cães e gatos magros farejavam os calcanhares da turba.
Nesse porto, que também funcionava como um mercado, dois homens altos e robustos do norte, Conan e Sigurd, com o olhar firme e o andar cadenciado dos bárbaros, seguiam a pé, caminhando pelo cais. Eles puderam então observar, quase ao seu alcance, navios de vários calados, tipos e bandeiras. Em alguns deles, os marujos cantavam em coro, enquanto trabalhavam; noutros trepados nos velames, amarravam cordas que vistas de baixo pareciam teias de aranha. Viram também velhos marinheiros de argolas nas orelhas, de grandes costeletas e compridas tranças besuntadas de piche. Outros corsários usavam apenas um lenço colorido, que servia para ensopar o suor – ou o sangue – durante as lutas, de modo a que nada escorresse para os olhos e os atrapalhasse.
O navio de Conan, o Esbanjador, estava ancorado, tão imóvel como se estivesse preso à superfície da água. Normalmente não acontecia isso, pois a agitação no fundo do mar faria com que o navio subisse e descesse, mudando constantemente o ponto de referência no horizonte.
Vistas da praia ou do convés de um navio, as ondas pareciam lisas e arredondadas, quando na verdade eram formadas por sucessivos altos e baixos, como montes e vales em constante movimento.
O céu agora estava completamente limpo: nem mesmo uma nuvem esvoaçante; e o sol nascente, batendo na água fazia com que ela parecesse de aço.
Para o oeste, uma pequena elevação fazia-se notar, destacando-se um milímetro sobre a orla do mundo: a imagem de uma pequena ilha ao longe, no horizonte. Para o sul, nada a não ser a brisa que soprava, dançando.
Conan e seus homens haviam há pouco embarcado, mas já iam bastante ao largo, quando Sigurd aproximou-se de Conan.
O sol se erguera mais um pouco no céu, projetando uma avenida dourada no mar sereno. Sigurd via os contornos de Conan à sua frente: um vulto alto e largo, que se movia com agilidade e segurança, mesmo no balanço do mar.
A brisa fresca do amanhecer bateu-lhes no rosto. Arrastava consigo um suave odor de salitre, e esticou as velas do Esbanjador, quando este deixou o porto de Kordava, rumo ao alto-mar.
Na cobertura principal, com a cabeleira desgrenhada e o rosto recém-barbeado, vestindo roupas limpas da cabeça aos pés, Conan encheu os pulmões de ar e logo exalou um profundo suspiro de satisfação. Ele já estava mais do que farto de toda aquela magia fedorenta e de lutar contra sombras sem substância! Com um barco resistente, uma boa tripulação de homens robustos e audazes, uma espada pendurada ao cinto e um tesouro para conquistar, era capaz de se sentir o homem mais feliz da Terra.
– Por Ishtar, amigo! Ainda continuo achando que você está louco. – grunhiu o ruivo Sigurd.
– Por quê? Porque não me casei com Chabela? – perguntou Conan com um sorriso.
O homem do norte assentiu, com um movimento da cabeça.
– É uma mulher magnífica, que lhe daria filhos fortes. Além do mais, o trono de Zingara seria seu, com um simples pedido. Depois de tudo o que ocorreu, o rei Ferdrugo não durará muito. Então, essa garota herdará a coroa e todo o reino!
– Obrigado, mas não tenho a menor intenção de me transformar em rei-consorte. – respondeu Conan – Me cansei da própria vida em Gamburu, embora lá eu não tivesse outro jeito senão suportá-la. E Nzinga era uma mulher sensual e magnífica em todos os sentidos, e não uma jovem romântica e tola, com metade da minha idade. Além disso, Ferdrugo pode durar mais do que você pensa. Agora que não é vítima das bruxarias do stígio, parece ter dez anos a menos e conduz seus problemas com muita sensatez. A primeira coisa que fez foi anular a proclama, através da qual abdicaria e casaria sua filha com Thoth-Amon.
Conan parou e olhou para o horizonte, pensativo. Sigurd não disse nada. O gigantesco cimério logo continuou:
– Quanto a Chabela, eu lhe digo: gosto dela. Até a quero, paternalmente. Cá entre nós, eu poderia ter aceitado a oferta dela, se não percebesse a tempo qual seria meu futuro.
– Seu futuro?
– Aconteceu enquanto me curavam os ferimentos, nos dias seguintes à batalha. Almocei e jantei várias vezes com o rei e sua filha. Chabela me encheu a cabeça de coisas e de projetos para me transformar, segundo dizia, em alguém importante. Declarou várias vezes que eu devia mudar minha forma de falar, meus modos e minhas idéias a respeito de diversão. Eu teria que me transformar no perfeito cavalheiro zíngaro, que passa um lenço perfumado sob o nariz enquanto contempla a atuação do balé real.
Houve outra pausa, e Conan sorriu pensativo. Olhou para o marinheiro ruivo e deu-lhe um tapa amigável no ombro, enquanto acrescentava:
– Não, amigo Sigurd. Talvez eu não seja tão sábio quanto Godrigo, o filósofo do rei, mas pelo menos sei o que quero. Algum dia, ganharei um trono com força e determinação, se Crom quiser, mas o ganharei com a espada, e não como presente de casamento. Por outro lado, Ferdrugo se comportou muito bem comigo. Me presenteou com a Coroa da Cobra, que logo vendi a Julio, o ourives. Aqui estou: ainda não completei quarenta anos, e já estou me tornando um homem prudente! Como sempre, não tenho dinheiro, de modo que será melhor continuar me dedicando ao ofício de bucaneiro, antes que seja tarde demais.
Sigurd sorriu, assentiu com a cabeça e murmurou:
– De acordo, capitão.
– Isso de economizar dinheiro, ou de ter reinos, não é uma tarefa adequada para velhacos honrados como nós. – concluiu Conan – Estou certo de que há muitos navios mercantes cheios, saindo de Argos e de Shem. Esqueça suas idéias sobre eu me casar com uma jovem maravilhosa, e pensemos nos negócios. Vamos consultar os mapas que estão em minha cabine.
Em seguida, Conan ergueu a voz e exclamou:
– Auxiliar Zeltran! Venha à minha cabine, quando puder.
E se afastou a passos largos. Por um momento, o marinheiro ruivo ficou encarando-o, com a boca aberta. Logo, levantou as mãos num gesto de desesperança e seguiu seu capitão.
– Pelas barbas verdes de Llyr e pelo martelo de Thor! – exclamou – Não dá pra discutir com um cimério!
O aparelho rangeu alegremente, a proa do barco cortou as águas com firmeza, e as gaivotas gritaram quando o Esbanjador se pôs na direção sul, levando Conan para novas aventuras.
O navio flutuava de velas abertas ao vento. Navegava a todo pano, com duas velas de proa e a vela mestra desfraldada. Os cabos, tensos como cordas de aço, pareciam prestes a partir-se.
O vento estava a favor, fazendo com que o navio deslizasse serenamente. A paisagem mudava de instante a instante, sempre bela e luminosa, recortada contra o céu azul.
2. CONAN DA CIMÉRIA
O SOL CHEGARA AO HORIZONTE no Mar do Oeste e descia lentamente, parecendo um enorme escudo querendo varar o oceano. O horizonte era uma linha límpida ao longe, sem nuvens. O sol já tinha quase sumido e a luz desaparecera do céu, derramando-se no oeste, deixando um manto azul-escuro pontilhado de estrelas. Nessa hora, os marujos costumam acompanhar sua descida até o fim. Sempre deslumbrados com a beleza dos tons vermelhos nas ondas tingidas de azul.
Ao longe, na pouca luz que esmaecia, pássaros marinhos mergulhavam e circulavam sobre o mar, pequenos pontos prateados na distância. Para os pescadores, um forte sinal de que algum cardume está passando naquele ponto. As pequenas aves circulavam incansavelmente a seis ou sete metros acima do mar, cabeças abaixadas, asas esticadas, até que os olhos aguçados divisavam algum brilho entre as colinas de água. Mergulhavam então, as asas esticadas para trás, o bico penetrando primeiro na água. Um segundo depois, a mesma ave emergia com uma mancha prateada a se debater no bico e desaparecendo pela goela um instante mais tarde. A busca daquelas aves era tão interminável quanto sua energia.
O Esbanjador avançava entre grandes ondas; os piratas ficavam olhando para grandes muralhas de água por todos os lados, encostas em movimento, alegremente iluminadas pela lua que se elevava e o sol que ainda insistia em espiar sobre a borda do mundo, parecendo negar a força terrível que havia por baixo. Nas cristas, podiam contemplar o mar por quilômetros ao redor, as espumas brancas no alto de cada onda. Para leste, quase na linha do horizonte, podiam divisar os contornos da costa zíngara.
As ondas estavam vindo do oeste, uma depois da outra, como gigantescos soldados esverdeados marchando contra a costa e indo morrer na cavalaria dos recifes.
Afastado dos marujos – homens fortes, tisnados pelo sol, com expressões brutais –, sem disposição para frivolidades, um homem alto e bronzeado, de cabelos negros, sobrancelhas espessas e feições angulosas se destacava, em pé sobre o tombadilho.
Conan contemplou as águas e sentiu o respeito que paira à beira do medo, um companheiro quase constante dos homens que viajam em pequenas embarcações. Uma embarcação pode ser orgulhosa, impressiva e forte nas águas serenas de um porto, admirada pela multidão que passa. Em pleno oceano, no entanto, a embarcação é uma pobre criatura unida por pregos e madeiras, um frágil casulo lançando a sua força mínima contra um poder inconcebível, um brinquedo na palma de um gigante.
Mesmo com outros seres humanos ali perto, Conan pôde sentir a própria insignificância, a pequenez impertinente do navio, a solidão que o mar sempre inspira. Os que já viajaram sozinhos pelo mar, através de grandes planícies cobertas de neve ou por desertos intermináveis, conhecem a sensação. Tudo é vasto, implacável, mas o mais terrível é o mar, porque se mexe.
Mas, embora exibisse um ar de indiferença, como se pudesse receber uma sentença de prisão ou encontrar um tesouro perdido com a mesma naturalidade, o olhar penetrante de Conan o denunciava. Enquanto a maioria dos homens se entretinha em ver as coisas com olhares vagos e inexpressivos, ele fixava as coisas ou os homens e mulheres com um olhar tão abrasador quanto os raios solares. Ele denunciava ao primeiro olhar a espantosa combinação de enorme força e de prodigiosa agilidade. Era uma perfeita combinação do homem caçador e do guerreiro.
A aparência de Conan era ao mesmo tempo vistosa e singular. Tinha uma altura muito acima da mediana, era extremamente musculoso e a pele curtida conservava o acobreado escuro de quem passou grande parte da vida sob as intempéries. Tinha cicatrizes de fogo, lança e espada pelos braços, pernas e costas. O homem tinha quase dois metros de altura, e o peito tão imenso que as costuras da camisa de seda estavam quase rompidas. Era na realidade uma estranha figura de guerreiro, com os longos cabelos negros, como a juba de um leão, caídos sobre os ombros, atrás, e aparados à frente para não lhe taparem os olhos. O nariz, comprido e fino, era levemente arqueado no meio. O rosto era retangular, os malares eram largos e salientes; a boca, de lábios finos, e o queixo quadrado. A única característica que traía a presença de outro sangue que não apenas o bárbaro era a cor dos olhos, de um azul-esmalte. O seu vulto direito, esbelto, musculado como teria talvez sido o mais forte dos semi-deuses do panteão de alguma religião antiga e perdida no tempo. A nobre cabeça leonina, sobre os largos ombros, e o brilho de viva inteligência nos olhos azuis, davam-lhe o aspecto de um personagem lendário, ou de um herói de um povo de guerreiros.
Ele respirou o ar salgado, fazendo seu peito largo e fundo estufar e esticar ainda mais a pele bronzeada. Seus olhos azuis percorreram o horizonte... Despreocupados... Ele observou seus homens debruçados sobre a amurada do navio como se fossem pegas a palrar... O vigia atento no alto da gávea... Olhando para o norte, ele deteve seu olhar... Parece que foi ontem que deixou sua nativa Ciméria, descendo as montanhas para abrir seu caminho em meio às quentes terras do sul. Ele já foi muitas coisas depois disso, foi ladrão, mercenário, líder kozaki, pirata baracho e muitas outras coisas que podem ser consideradas divertidas, de acordo com seu rude conceito de vida. Agora, ele é capitão de um navio e pertence ao ramo dos bucaneiros zíngaros, que tinham a autorização de sua Majestade, o rei de Zingara, para assaltar navios, mas que também eram marinheiros da frota Real. Não eram piratas, pois pirataria se resume aos navegadores que cansados de servir à sua pátria, e viverem sob duras regras da marinha, e sem dinheiro, resolvem pegar um navio (na maioria das vezes roubado), ou fazer um motim, e seguir uma vida de aventuras (que geralmente não era uma vida muito longa).
Sua única preocupação é sempre encontrar navios mercantes para abordar, matar seus tripulantes e saquear seus tesouros. Sem isso, a vida não pode fazer sentido para um pirata ou para um bárbaro como ele. De repente, um grito:
- Atenção, lobos do mar! – explodiu Riego, o vigia na gávea – Vela à vista a estibordo e se aproximando rápido!
Todos se voltam para o leste e observam por alguns minutos, até que um dos marujos reconhece a nau como sendo um galeão-de-guerra da marinha argoseana. O capitão bárbaro ordena a todos que tomem posição de abordagem, pois não é do feitio dos piratas fugirem a uma luta. Além disso, ele sabe que um capitão covarde não fica muito tempo no comando. E todos eles odeiam os soldados argoseanos, de qualquer forma. Mesmo os outrora piratas barachos, também nascidos em Argos.
Os momentos que antecedem a abordagem são tensos. Os piratas se inquietam... Eles estranham o fato de serem atacados tão longe da costa, ainda mais à noite, pois o sol já está sumindo às suas costas, lançando sombras ondulantes sobre as águas revoltas. O capitão permanece no tombadilho, empunhando na mão direita sua enorme espada de aço azulado, e na esquerda, um punhal longo. Os bucaneiros sabem que têm uma boa vantagem na luta quando seu capitão usa aquelas duas armas. Eles nunca viram um guerreiro tão feroz quanto aquele bárbaro! Quando ele luta, os corpos dos inimigos se amontoam a seus pés e os gritos dos feridos são terríveis! A espada se assemelha a um pêndulo mortífero em arcos rubros da esquerda para a direita, e da direita para a esquerda; enquanto o punhal dá cabo daqueles que tentam derrubá-lo agarrando suas pernas, mordendo ou arranhando.
A alguns metros à sua frente, os soldados do navio argoseano gritam e brandem suas armas, enquanto a distância diminui entre as duas naus. Os piratas permanecem calados, embora tensos, estóicos como estátuas de bronze sob a luz pálida da lua. Então, os selvagens gritos de guerra estouram na noite, com os dois grupos se insultando, enquanto o capitão bárbaro grita um comando, acima do barulho da turba:
- Timoneiro! Tudo a estibordo, agora! – brada Conan.
A ordem é executada instantaneamente, como se aquilo fosse comum para os piratas. O que é verdade, realmente. O capitão bárbaro – os piratas sabem – já navegou com os Corsários Negros, e com eles aprendeu muitos truques desconhecidos pelos bucaneiros zíngaros e argoseanos. Um deles é o que acabaram de executar. Eles sempre aguardam uma abordagem de lado, passando a impressão de que podem ter o navio partido ao meio pela quilha de alguma nave inimiga, mas esperam até o último instante possível para girar a nave, lançando a popa para frente. Um navio que vem em grande velocidade não tem como manobrar evasivamente, e sempre acaba batendo de lado e não de frente, o que faz com que balance muito e desequilibre todos a bordo. É então que os piratas atacam pelas cordas, rápidos como ripinas, liquidando boa parte dos surpresos adversários no primeiro instante.
Então, num rompante explosivo tem início o ataque pirata. Agora não há mais comandos; apenas gritos – tanto de dor quanto de júbilo – e o som do aço contra aço, de corpos contra corpos. Os argoseanos são bravos e experientes, lutando com um vigor impressionante, estimulado pelos gritos selvagens de seu comandante, um alto e esguio guerreiro – um tipo físico pouco comum em Argos, onde a maioria dos homens é atarracada –, que usa o aço com disciplina e fúria ao mesmo tempo.
Zeltran, o imediato pirata, está retirando sua espada do corpo de um argoseano quando avista o comandante inimigo avançando às costas de seu capitão. Ele grita, mas não tão alto para que seu líder escute em meio ao caos.
Zeltran era um zíngaro de baixa estatura, robusto e com um enorme bigode negro, de rosto cor de cobre e com trança nos cabelos, muito usada entre os marinheiros, que lhe caía pela nuca, roçando a casaca de couro surrado, cheia de manchas. Apesar de gordo, se movia com a agilidade de um gato.
De costas para o mastro de mezena, o capitão pirata executa seu ofício por opção, isto é, mata seus inimigos sem piedade. Muitos corpos se espalham a seu redor, com entranhas e miolos espargidos pelo tombadilho. Um argoseano mais ousado avança à sua direita, quando o bárbaro executa um golpe decepante no sentido contrário. Mas, ao avançar ele olha surpreso para seu comandante, que corre à sua esquerda. Quando olha para frente novamente, não vê mais nada. O pirata de bronze percebeu seu olhar de relance, fazendo com que sua espada, na volta, abrisse o crânio do soldado argoseano ao meio, enquanto girou sobre os calcanhares para a esquerda, agachando e atingindo o comandante na perna esquerda, enterrando seu punhal até o cabo, um pouco acima do joelho inimigo. O argoseano urrou de dor, mas sua espada continuou a descer velozmente, até ser parada a meio caminho, fincando-se no mastro, num sentido transversal. Os argoseanos assistiram àquela impressionante seqüência, estupefatos, até quebrarem o choque avançando outra vez. O que ia à frente foi atingido por um punhal que atravessou seu pescoço. Ele viu que o punhal que havia sido fincado na perna de seu comandante já não estava mais lá; e viu quando o bárbaro de cabelos negros, ainda agachado, dobrou seu líder sobre o joelho direito e quebrou sua espinha, num estalido seco e breve. Então, o bárbaro se voltou e pegou a sua espada, empurrando-o em seguida. Ele também viu, em sua agonia, que seus companheiros rendiam suas armas; à sua direita ele viu que mais alguns imitavam o ato. Eles eram tantos... Mas ainda assim foram vencidos... Pois que homem tem ímpeto em lutar, quando vê seu líder ser morto de forma tão rápida e fulminante? Então, ele não vê mais nada...
Zeltran se aproximou de seu capitão e disse:
- Conan, os homens querem saber o que fazer com os prisioneiros... – seu tom é pausado – Devemos investigar o galeão?
- Recolha as armas e suprimentos deles e descubra se há algum oficial argoseano a bordo.
Zeltran se afasta e começa a delegar instruções aos outros piratas. Depois de algum tempo, um argoseano é levado à presença do capitão bárbaro. Três piratas o conduzem à cabina do capitão, um cômodo rústico e simples, na proa da embarcação. Ao entrar, o argoseano observa um catre à sua esquerda... Uma mesa quadrada à frente, com alguns mapas velhos e uma jarra de vinho sobre ela... Uma cadeira estofada de dois braços, ao lado da mesa... E, sentado na cadeira ele vê, sob a luz parda de uma lamparina pendurada ao teto, um homem gigantesco, bem maior que seu comandante. O peito nu era musculoso e rijo. O oficial olhou boquiaberto para as cicatrizes e reconheceu o gigante como o guerreiro que lutara no mastro, e sentiu um arrepio de medo lhe percorrer a espinha. À sua direita, em um canto escuro, ele vê outro catre, onde está sentado um homem enorme de cabelos e barba ruiva, de aparência bárbara. O ruivo se mantém em silêncio, como os outros homens. Nisso, dois piratas se retiram, restando ele e o outro que também o conduzira até ali. O homem o empurrou para frente bruscamente, ao tempo que retirou um punhal preso à sua cintura e o fincou na mesa de madeira à sua frente. O gigante, sentado na cadeira, esticou o musculoso braço direito sobre a mesa, mas não apanhou o punhal e sim a jarra de vinho. O argoseano reparou que em sua mão esquerda ele segurava uma taça dourada e ornamentada, zíngara sem dúvida... O gigante encheu a taça com impaciência e bebeu seu conteúdo de um só gole, deixando que escorresse um pouco do vinho pelo canto da boca, num ato de irritante indolência. O homem que o empurrara também pegou uma taça, um pouco mais simples, e a encheu de vinho. Deu dois goles pausados e depositou a taça sobre a mesa novamente. O silêncio era perturbador, apenas quebrado pelo som das ondas batendo no casco do navio em que se encontravam.
Empurrou um copo e a jarra de barro com vinho tinto para o outro homem, que serviu-se, bebeu e fez um gesto apreciativo. Vinho tinto rascante. Jamais veria as mesas dos ricos. Vinho de marinheiros e de soldados.
– Você é um oficial, não? – perguntou rispidamente o gigante de cabelos negros e olhos azuis.
– Sim, sou. – responde o argoseano.
– Há mais de vocês vasculhando estas águas?
– Não. Fazíamos apenas uma patrulha de rotina. – o oficial argoseano fez uma pausa e continuou – O que pretende fazer com o que sobrou da minha companhia?
– Usarei todos como reféns, caso encontre mais algum navio argoseano. – respondeu o bárbaro. – Vi os lingotes de ouro e as peças de prata que estavam no porão de seu navio, homem. Vocês vinham do sul, provavelmente dos Reinos Negros... mas eu não tenho conhecimento de peças tão bem trabalhadas por aquelas bandas. De onde veio tanto ouro e prata?
– Não tenho permissão para dizer isso, senhor.
– Por Crom, homem! Estamos em alto-mar, aqui há permissão para tudo. Vamos, desembuche de uma vez, praga! O que há nas águas do sul que você não quer dizer?
O homem hesitou.
Sigurd levantou-se de repente e disse:
– O homem tem a cabeça mais dura do que o machado de Odin, Conan. Vamos jogá-lo aos tubarões logo de uma vez e ver o que o cozinheiro tem para nós, por Ymir.
– Não, Sigurd. Tenho certeza de que nosso amigo vai cooperar conosco. Não é, cão? – Conan lançou um olhar de gelo para o oficial. Mas o homem não se convenceu.
– Eu não posso, capitão. Tenho ordens explícitas do rei de Argos. Não posso trair a confiança do meu soberano. Antes eu me mato!
– Vamos trazer um dos homens dele e torturar o infeliz. – sugeriu o vanir – Aposto que um marinheiro comum não vai segurar a língua por muito tempo.
– Gostei da idéia, ruivo. Mas vamos dar mais uma chance para o nosso amigo oficial, aqui. Não seja burro, homem. Você já perdeu toda a riqueza que transportava. Se perder seus homens, também será enforcado e amaldiçoado se voltar a Argos. Pense bem... estou oferecendo a vida para você e seus subordinados em troca de uma simples informação. Basta nos levar ao local de onde retiraram aquele ouro, e poderá voltar para sua nação com todas as partes do corpo intactas. E então?
O oficial estava pálido. A idéia de trair seu rei o deixava horrorizado. Era um oficial argoseano, descendente de uma família que sempre comandou no mar, e que sempre foi fiel a Argos. Não seria ele, Arzil, de Messântia, filho de Arzov, que trairia seu rei. Mas sua situação não era nada simples. Se não cedesse e informasse tudo ao capitão pirata, provavelmente seria assassinado ou coisa pior. E mais: todos os seus homens seriam passados no fio da espada diante de seus olhos. E não há destino pior para um comandante do que ver seus homens mortos. Falhar com a segurança dos seus subordinados é algo impensável para um homem honrado como ele. Então, ele decidiu:
– Está bem. Irei lhes contar o que sei e guiarei vocês até a ilha de Negari.
– Negari? Nunca ouvi falar. – disse Sigurd.
– Eu também, não. – concluiu Conan.
– Realmente, pouca gente sabe dessa ilha no extremo oeste dos Reinos Negros. Argos negocia com Negari já há alguns anos em absoluto segredo. É uma ilha governada por negros. Mas Negari já foi um posto avançado da lendária e submersa Atlântida. Não sei como tudo começou ou quem descobriu essa ilha, mas sei que os homens de lá são guerreiros implacáveis, governados por uma mulher sedenta de poder e conquista. Existem nativos naquela ilha que são tão atrasados quanto a maioria dos reinos negros. Mas a cidade é de um esplendor elefantino, adornada com metais que desconheço. Entretanto, apesar de já ter ido lá duas vezes, nunca vi o tesouro e não posso afirmar sua quantidade.
Conan e Sigurd ouviram atentamente a narrativa do argoseano. E foi Conan quem levantou e disse:
– Por Mitra. Nós iremos até essa ilha e daremos um jeito de invadir o lugar e carregar todo o ouro que existir por lá.
3. O MAR DO OESTE
O SOL HAVIA SE DESLOCADO APENAS UM QUARTO de seu trajeto naquela manhã, quando Conan percebeu que o vento amainara.
Em sua cabina, folheando um antigo mapa zíngaro, ele sentiu uma mudança no movimento do navio, um atenuar do silvo do casco se deslocando pela água, o adejar distante das velas à bolina. Ele levantou-se do catre, espreguiçou-se e foi até a porta da cabina.
Ele foi para o convés e seguiu para a popa, sentindo a brisa preguiçosa enquanto esquadrinhava o horizonte. O céu estava claro, mas uma neblina amarelada turvava o ar. Conan semicerrou os olhos. Muito longe, filetes de cirros desfilavam pelo céu.
O segundo-piloto, um shemita jovem e barbado, estava no timão, levando o navio por entre ondas intermináveis. Ele acenou com a cabeça, quando o capitão Conan se aproximou.
- A vela-mestra está ajustada? – perguntou o capitão.
- Está. E a mezena também. Estão bem frouxas.
- Não vão poder ficar assim por muito tempo. Vamos pegar um tempo ruim.
- Muito forte?
- Não sei dizer. Mas eu diria que não deve ser pouca coisa.
Conan tornou a olhar para o céu e murmurou:
- Espero que esta banheira velha possa nos levar tranqüilamente a nosso destino.
Quando o sol começou a ultrapassar o zênite, estratos espessos e cinzentos cobriam inteiramente o céu. O vento aumentara, açoitando a crista das ondas, pontilhando o oceano de espuma branca, jogando as ondas contra a proa do navio e fazendo estremecer todo o casco de madeira. Houvera duas rajadas curtas de chuva intensa. Outra massa de nuvens negras avançava de sudeste.
O capitão Conan, envergando agora uma capa, estava parado ao lado do primeiro-piloto – que assumira seu posto diante da iminente tempestade –, que se esforçava para manter um curso firme. Era um homem pequeno e vigoroso, sem camisa e todo molhado.
As primeiras gotas de chuva caíram no rosto do capitão, que se virou para o piloto e disse:
- Mantenha o curso. Vou recolher as velas mais um pouco. Se não estou enganado, o desgraçado nem começou a soprar.
Subitamente, o vento tornou a mudar de direção, soprando de sudeste. E soprava cada vez mais forte, uivando pelo cordame, impelindo a chuva furiosamente. A proa do navio bateu de encontro a uma onda. Em algum lugar, na frente do navio, um pedaço de madeira do gurupes foi arrancado de seu lugar e voou para a popa, batendo entre os estais.
A nau avançou com dificuldade na direção nordeste por mais uma hora, dando guinadas violentas sob a força do vento. A cada impacto de onda, o casco rangia e estalava. Algumas horas depois, o vento amainou um pouco. A chuva, que batia contra o navio quase na horizontal, passou a cair mais verticalmente. O céu, de uma cinzenta cor de chumbo, começou a clarear.
O capitão mudou o curso, seguindo para sudeste por algum tempo, numa tentativa de alcançar a rota original para a ilha de Negari.
- Ainda podemos vencer esse maldito vento – gritou o capitão para o piloto, que sorriu e passou a língua pelos lábios, removendo a espuma salgada.
Uma hora depois, a tempestade explodiu de nordeste.
O vento se abatia, rugindo, sobre o navio, espumando a crista das ondas, criando montanhas negras que se elevavam acima dos mastros. Apenas duas velas ainda estavam içadas. A vela do traquete foi a primeira a sumir, arrancada violentamente dos estais, deixando apenas farrapos que assoviavam ao vento.
Uma onda gigantesca ergueu a proa e o resto do navio na direção do céu. Na crista da onda, o capitão avistou ao longe, no horizonte, vagamente, a linha escura, o primeiro sinal da ilha. O capitão Conan virou-se para gritar alguma coisa para o piloto, no momento em que o navio deslizava do outro lado da crista, para o abismo entre as ondas. Uma muralha de água abateu-se sobre o navio, varrendo o convés e derrubando Conan, que caiu de joelhos. Ele se debateu freneticamente, procurando algum lugar onde se agarrar. Seus braços encontraram a base do timão e ele se firmou ali, desesperadamente. Ouvindo um grito, levantou os olhos. O timão girava livremente, enquanto o piloto era inexoravelmente arrastado para a escuridão espumante. Conan levantou-se com dificuldade e agarrou o timão.
O navio ergueu-se na crista de outra onda, e ele tornou a ver a ilha.
A mezena continuava firme. Adernando através das ondas, o navio começou a deslocar-se para o norte. Na crista de cada onda, Conan protegia os olhos, com uma das mãos, contra as alfinetadas da chuva e da espuma. Ele apontou a proa para alguns pontos a boreste da ilha.
De repente, o navio balançou e afundou a proa, num movimento incerto.
O navio mergulhou a proa outra vez, espirrando água, e Conan cambaleou. Outra onda o atingiu e o pirata dobrou o corpo, gritou e agarrou-se firme ao timão. Mas tudo estava acontecendo depressa demais, o mundo virou de cabeça para baixo e girou em volta dele, sua cabeça bateu na amurada e então ele se viu caindo, despencando no espaço. Viu a popa do navio passar por ele, viu o oceano verde erguendo-se à sua frente e um frio gelado o envolveu, quando mergulhou no mar revolto e afundou na escuridão.
Com esforço, ele chegou à superfície, mas tudo o que viu foi água – ondas de quatro metros erguiam-se acima da sua cabeça por todos os lados. Era imensa a força do oceano. O movimento da água o levava para a frente e para trás, e, não obstante sua enorme força, ele não tinha como resistir. Não via o navio, só o mar com a espuma branca das ondas. Não via a ilha, só água. Só água. Lutou contra a tremenda sensação de desorientação.
Tentou bater as pernas contra a corrente, mas suas sandálias pareciam de chumbo e a capa pesava, puxando-o para trás. Precisava tirar as sandálias e a capa. Respirou, prendeu o ar, mergulhou a cabeça e tentou desatar os cordões das sandálias. Seus pulmões queimavam. O oceano o levava de um lado para o outro, incessantemente.
Tirou uma das sandálias, voltou para respirar e mergulhou a cabeça outra vez. Com os dedos ficando rígidos pelo frio, começou a desatar o cordão do outro pé. No fim do que para ele pareceram horas, suas pernas estavam livres e leves, e ele começou a mover os braços e as pernas para ficar na superfície, amarrando as sandálias de couro no cinturão e desvencilhando-se da pesada capa. O movimento do mar o levantava e deixava cair. Ele não via a ilha. Sentiu-se desorientado outra vez. Então avistou a ilha.
Os penhascos nus estavam assustadoramente próximos. As ondas batiam com estrondo nas rochas. Ele não estava a mais de cinqüenta metros da costa, levado inexoravelmente pelas ondas para as pedras. Quando a onda seguinte o ergueu, viu uma saliência, cem metros à sua direita. Tentou nadar para ela, mas era impossível. Não tinha forças para fazer nenhum movimento naquele mar encapelado. Só sentia a força do mar, levando-o para os rochedos.
Uma onda de fúria tomou conta de seu coração. Sabia que seria morto instantaneamente. Uma onda se ergueu sobre sua cabeça, ele engoliu água e tossiu. Sua vista ficou turva e ele sentiu náusea.
Lembrou-se, então, de uma oração pirata curta e simples:
“Se eu tiver de receber uma estocada, que seja.
Se eu tiver de tomar uma machadada, azar meu.
Mas por favor, Mitra, não permita que eu jamais me afogue lá embaixo”.
Todo pirata tem pavor de morrer afogado, embora viva quase que inteiramente sobre a água. Apesar de não temer morte alguma, mas prezar a vida, abaixou a cabeça e começou a nadar – uma braçada depois da outra, batendo os pés com a maior força possível. Não tinha a sensação de movimento, só a força da corrente puxando-o para o lado. Não ousava olhar para cima. Continuou a nadar. Quando ergueu a cabeça para respirar, viu que tinha avançado um pouco – não muito, mas um pouco – para o norte. Estava mais perto da saliência.
Isso o animou, mas continuava cansado. Estava perdendo as forças. Seus braços e suas pernas doíam com o esforço, os pulmões estavam em fogo. A respiração curta e áspera. Conan sentia sua resistência se dissolver, e ao mesmo tempo, sua vontade se reconstituir como as margens de um rio, que muda inexoravelmente com a torrente da monção e continua sendo o mesmo rio, ainda que com o curso alterado. Tossiu outra vez, respirou fundo, abaixou a cabeça e continuou a nadar.
Mesmo com a cabeça na água, ele ouviu o ruído surdo das ondas contra o rochedo e a fúria da procela. Nadou com todas as forças. A corrente e as ondas o levavam para a direita e para a esquerda, para a frente e para trás. Era inútil. Mesmo assim, ele tentou.
Aos poucos, a dor aguda nos músculos se transformou numa dor surda e contínua. Era como se tivesse vivido com ela toda a sua vida. Já não a notava mais. Continuou a nadar, sem pensar em nada.
Quando a marola o levantou outra vez, ergueu a cabeça para respirar. Surpreso, viu que a saliência estava muito perto. Mais algumas braçadas e a água o carregaria para ela. Imaginou que, perto da saliência, a corrente devia ser mais fraca. Mas não era: nos dois lados, as ondas batiam com força, subindo pela rocha e voltando no repuxo.
Abaixou a cabeça outra vez e nadou, usando suas últimas forças, e de repente uma marola imensa o apanhou, erguendo-o e levando-o para as pedras. Já não tinha mais forças para resistir. Levantou a cabeça e viu que havia sido jogado exatamente onde queria: sobre a saliência.
Reunindo as forças que restavam, ele se arrastou para mais perto do paredão e encostou seu corpo dolorido na rocha. Fraco demais, ele deitou de costas na saliência rochosa, olhando para o céu noturno, agora ainda mais escuro de nuvens e chuva, para o imenso paredão que se destacava quase acima das nuvens, tentando fazer a respiração voltar ao normal.
A tempestade havia amainado e o sol da manhã, tímido e assustado com a força dos trovões que povoaram a noite, surgiu entre as nuvens pálidas. Conan não sabia quanto tempo ficara ali, naquela frágil saliência na base do rochedo, mas sentia sua força voltar. Olhou para cima, segurou nas bordas e, sem hesitar, começou a subir.
4. A SELVA DE NEGARI
CONAN DA CIMÉRIA ENCOSTOU O ROSTO NA ROCHA, agora quente, e parou para tomar fôlego. Cento e cinqüenta metros abaixo, estava o oceano, as ondas cintilantes batendo com força nas rochas escuras.
Conan ergueu os braços, estendendo as mãos para o próximo ponto de apoio. Segurou a rocha, pequenas pedras se soltaram, e sua mão deslizou para baixo. Ele agarrou outra vez e ergueu o corpo, com a respiração ofegante por causa do esforço.
À medida que se aproximava do topo do rochedo, o vento ficava mais forte, assobiando nos seus ouvidos, puxando-o como se quisesse arrancá-lo da rocha. Olhou para cima e viu a folhagem densa que chegava até a margem da face da pedra.
“Quase chegando”, pensou. “Quase”.
Então, com um impulso final para cima, chegou ao topo e ficou imóvel, olhando para as imensas samambaias acima da sua cabeça.
Olhou para a selva. Era uma floresta primitiva, não tocada pela mão do homem. Ele ouviu o som do vento, o farfalhar das folhas das palmeiras, com as gotas de água pingando no seu rosto. Então, retirou as sandálias presas ao cinto, calçou-as, desembainhou a espada e começou a descer a encosta, afastando-se do rochedo. Quase imediatamente, suas vestes sumárias ficaram completamente molhadas em contato com a folhagem. Estava no meio da selva densa, e mesmo Conan só enxergava alguns metros à frente. As folhas das samambaias eram enormes, longas e largas, com a envergadura de um homem. As plantas tinham três metros de altura e hastes ásperas e pontiagudas. E no alto, acima das samambaias, as copas das árvores bloqueavam quase completamente a luz do sol. Movia-se no escuro, em silêncio, na terra úmida e esponjosa.
Naquele momento, o cimério percebeu que se encontrava numa ilha a oeste do país de Kush, a qual ele já visitara uma vez, ao lado de Bêlit, em busca de água e comida. Mas tanto ele quanto a saudosa rainha-pirata – por nunca a terem adentrado, nem terem passado mais do que algumas horas nela – imaginavam-na inabitada. “Então, é esta a ilha de Negari, da qual aquele argoseano me falou!”, pensou Conan.
Seguia para oeste, descendo uma encosta íngreme, na direção do interior da ilha. A sensação de isolamento, de estar de volta ao mundo primitivo, era palpável e Conan se sentia em casa ali.
Desceu a encosta, atravessou um regato cheio de musgo e começou a subir novamente. No topo da cordilheira seguinte, havia uma abertura na folhagem e uma brisa reparadora. De onde estava, no alto, Conan via a outra extremidade da ilha, uma linha de rochedos negros, a quilômetros de distância. Entre ele e os rochedos, via apenas a selva ondulante.
Conan desceu da pequena elevação e começou a descer a encosta, penetrando mais no interior da selva.
Ele caminhava rapidamente, olhando para o chão por causa das cobras. Logo chegou a uma trilha paralela, há muito tempo tomada pela relva e pelas samambaias, mas perfeitamente visível. É claro que seguiu por ela. Andaria muito mais depressa numa estrada.
Em silêncio, seguiu pela trilha. Ele sabia que aquele caminho tinha sido trilhado pelo homem. E ficou contente, porque era um sinal de que a ilha já fora habitada. Ou ainda é.
Os arredores aqui eram exuberantes e envoltos em vapor. As copas chegavam a trinta metros de altura, tão espessas que o sol mal penetrava e o próprio ar parecia assumir uma forte coloração verde dourada. Seringueiras enormes abundavam, enroladas em musgos e cipós. Por toda parte espalhavam-se exóticas árvores frutíferas, samambaias, palmeiras e salgueiros.
A trilha era intermitente. De vez em quando, Conan tinha que tirar um galho caído ou cortar uma gavinha para prosseguir.
Em certos lugares, mal podia ver as marcas da azinhaga, coberta pela vegetação espessa. Era evidente que ninguém transitava por ali há muito tempo e a selva estava sempre pronta para recuperar o espaço perdido.
Chegou a um regato com margens lamacentas nos dois lados. Conan parou. Na lama havia marcas definidas de pés humanos, com cinco dedos, algumas delas bem grandes.
Ele agachou na lama ao lado da água e examinou as marcas. Sua mão aberta não chegava a cobrir completamente as pegadas. Então, ele tocou o cabo da espada.
As marcas eram recentes.
As folhas farfalharam acima dele. Conan olhou para o dossel formado pelas árvores. Viu movimento na folhagem, no alto, animais invisíveis, saltando de galho em galho. Ouviu gritos e pios, definitivamente ruído de animais.
Então o silêncio.
Sentado nos calcanhares, Conan ouviu um leve rangido à sua direita. Viu o movimento suave das samambaias. Ficou imóvel, quase sem respirar. Todos os sentidos alertas. Então sentiu um cheiro leve e percebeu um movimento nos arbustos, no outro lado. Ouviu um grunhido surdo. Mais movimento entre os arbustos.
Por um breve momento, Conan lembrou que os carnívoros selvagens costumam caçar perto dos rios e regatos, aproveitando a vulnerabilidade da presa, inclinada para beber. Mas era tarde demais.
De repente, a floresta em volta dele explodiu em rugidos de animais assustados. Viu um vulto enorme saltando para ele. A sombra provocou-lhe um sobressalto. Cerrando os olhos, Conan olhou para cima. Lá estavam oito guerreiros negros, fitando-o, os rostos pintados com as cores de guerra, as compridas lanças de bambu apontadas para ele.
Ele se levantou devagar. Os olhos fixos nos guerreiros do outro lado do regato. Não eram de nenhuma raça de negros que ele conhecesse. Os guerreiros não emitiram nenhum som. Conan também ficou em silêncio, observando aqueles homens semelhantes a panteras negras. Nenhum media menos de um metro e oitenta de altura; e todos pareciam ser jovens, ágeis e de uma robustez selvagem, conseqüência da perpétua rigidez da selva. Usavam coroas de plumas negras sobre a cabeça e trajavam tangas feitas de peles de felinos, de onde pendiam os rabos desses animais. Colares de dentes felinos pendiam de seus peitos de ébano; como armas, usavam azagaias semelhantes às que Conan já vira na Costa Negra, e também tinham facas enormes de ferro encabadas com ossos.
Então, rápido como o bote de uma serpente, um dos guerreiros negros ergueu sua lança e a arremeteu contra o cimério. Conan, ao invés de se agachar ou recuar, saltou contra os negros, desviando-se da lança e girando sua espada num arco amplo que rompeu as carnes do peito do homem que tentara atingi-lo. Um outro guerreiro teve o braço esquerdo decepado. O bárbaro, ao atingir a outra margem lamacenta, rolou e levantou-se como uma mola, matando mais dois guerreiros negros, ainda estupefatos com sua rapidez. Mas uma lança passou raspando por seu peito, e Conan girou e se embrenhou na mata, continuando para oeste, com lanças de bambu voando sobre sua cabeça.
Continuou correndo pela trilha. Naquele trecho, a selva se projetava por um desfiladeiro. A trilha passava entre os paredões do desfiladeiro, como uma antiga cicatriz. Névoas tênues erguiam-se agora do solo, vapores que ele sabia que se tornariam mais espessos e densos à medida que o dia avançasse. As névoas ficariam encerradas no desfiladeiro, quase como se fossem teias tecidas pelas próprias árvores.
O lugar era repleto de sons, também: gorjeios, grasnidos, rosnados, gritos, cacarejos. Mas ele sabia o bastante para olhar ocasionalmente de um lado para outro, quase imperceptivelmente, na expectativa de que a selva revelasse a qualquer momento uma nova ameaça, um perigo ainda maior do que os nativos que o perseguiam. O súbito movimento de uma moita ou o estalar de um graveto... eram esses os sinais, os pontos cardeais de sua bússola de perigo. Ao parar para certificar-se de que ainda estava sendo seguido, e enxugar o suor da testa, uma imensa ave, tão colorida quanto um arco-íris intenso, alçou vôo gritando de uma moita, elevou-se entre as árvores, surpreendendo Conan por um instante.
Ele não ouvia mais o som de seus perseguidores. Era improvável que os tenha despistado, mas Conan não tinha opção, a não ser seguir em frente. Contudo, seu objetivo em estar na ilha continuava sendo encontrar a cidade perdida de Negari, o último posto avançado da Atlântida, e o suposto tesouro que suas câmaras encerravam.
Então, quando ele começou a divisar o crepúsculo entre as copas das árvores, colinas rochosas se ergueram diante dele como as torres negras das muralhas de Khemi, na Stygia.
Ele começou a subir entre as rochas. Mal dera cinco passos, e uma lança resvalou na rocha à sua direita.
Os nativos!
Ele forçou sua subida, como só um montanhês poderia forçar. Olhando por sob o ombro direito, ele divisou os quatro nativos restantes em seu encalço. Eles não queriam perder mais tempo atirando lanças contra o bárbaro, e também se empenhavam na subida. Conan divisou uma ponte natural de rocha que atravessava um abismo à sua frente. Ele praguejou pela má sorte, pois teria que atravessar a ponte devagar, para não perder o equilíbrio diante do forte vento naquelas alturas.
Ao pisar na ponte, Conan olhou para baixo. Se havia um fundo naquele negrume que se abria faminto aos seus pés, seus olhos de falcão não conseguiam avistar.
Conan caminhara até o meio da ponte, quando seus perseguidores pararam no início dela, temerosos da travessia.
Também não atiraram suas lanças, pois a distância e o vento não permitiam uma mira precisa.
Um dos nativos mandou os outros prosseguirem, mas não obteve sucesso. Então, ele mesmo avançou pelo arco de rocha cinzenta.
Conan recuava devagar, de costas. A espada em posição de defesa, empunhada com ambas as mãos. Estava quase chegando ao outro lado quando o nativo lançou sua lança sobre a ponte. Conan desviou, mas a precariedade de espaço e o vento o fizeram desequilibrar-se e ele escorregou pela ponte. Num movimento desesperado, ele conseguiu se firmar com a mão esquerda em uma estreita borda da ponte. A mão direita permanecia a empunhar a longa espada de aço. O gigante negro que arremessara a lança aproximou-se. O triunfo estava estampado em seus olhos de pantera. Ele retirou a faca da cintura para cortar a mão de Conan, e, quando agachou-se para realizar seu intento, o cimério jogou o braço direito para cima, enfiando sua espada através da garganta do nativo.
O homem gorgolejou, levou as mãos à garganta, como que para estancar o sangue que lhe jorrava abundante do ferimento, e tombou para frente, despencando no abismo. Mas, ao passar por Conan, o homem conseguiu agarrar-se de alguma forma ao cinto de couro do cimério que, com o peso extra, não conseguiu se manter agarrado à ponte e também foi tragado pelo negrume.
***
Conan podia sentir a escuridão, recendendo a umidade e decomposição, subindo a seu encontro. Estendeu as mãos, procurando alguma coisa para segurar, alguma beirada que pudesse sustentá-lo. A espada caindo bateu em alguma coisa abaixo e ele sentiu as pontas dos dedos se cravarem na beirada de uma saliência, a beira desmoronando. Tentou erguer o corpo, enquanto a beirada cedia, desmoronava, e pedras caíam no abismo. Levantou as pernas, as mãos se agarrando desesperadamente, lutando como um peixe encalhado, procurando sair dali, chegar a qualquer lugar que pudesse representar a segurança. Tornou a balançar as pernas, chutou, procurando por algum lugar que lhe proporcionasse um ponto de apoio, qualquer coisa, não importava o quê. E a beirada continuava a desmoronar. Conan grunhia, cravava os dedos na beirada lá em cima, contraía-se todo, até pensar que os músculos poderiam arrebentar de tanto esforço, os vasos sangüíneos estourarem, levantando-se lentamente, enquanto ouvia as unhas se quebrarem ao peso do corpo.
“Com mais força!”, pensou ele. “Tente com mais força!”.
Conan fez mais força, o suor ofuscando-o, os nervos começando a tremer. Ele fez uma pausa, procurando concentrar as forças, recuperar as energias que se desvaneciam. E depois tornou a se alçar para cima, com um esforço ingente, árduo, por alguns centímetros.
Conseguiu finalmente passar a perna pela beira do poço, deslizando para a segurança relativa do chão... um chão que estava tremendo, ameaçando abrir-se a qualquer momento.
Conan ficou de pé, trêmulo, olhando para a sombra e a escuridão à sua frente, que se abriam numa bocarra escancarada do que parecia ser um túnel.
Um diminuto ponto de luz bruxuleava lugubremente ao fundo do túnel mergulhado em escuridão. Conan avançou, arrastando as sandálias de couro no chão irregular e acabou chutando a própria espada que havia caído junto com ele. Pegou-a e, sentindo-se mais confiante, continuou. Pouco a pouco, o túnel alargava-se, desembocando numa vasta galeria cujo teto abobadado, com mais de nove metros de altura; decompunha-se numa série de arcos naturais que lhe davam sustentação estrutural. Não fosse a fraca luz que se infiltrava de uma falha no teto da câmara natural, o local medonho poderia ser confundido com uma das catacumbas sob as pirâmides da Stygia.
O cheiro era o do acúmulo dos séculos, os odores aprisionados em anos de silêncio e trevas, de umidade fluindo da selva, deterioração das plantas. A água pingava do teto, escorria pelos musgos que haviam crescido ali. A passagem sussurrava com as patas a correr dos ratos. E o ar... o ar era inesperadamente frio, quase sem ser tocado pelos raios do Sol, eternamente na sombra. Conan avançava, escutando os ecos dos próprios passos. Eram sons estranhos, pensou ele. Uma perturbação dos mortos... e por um momento, ele foi dominado pela sensação de estar no lugar errado, no momento errado, como um saqueador, um profanador, alguém com a intenção de danificar coisas que haviam permanecido em paz por muito tempo.
De repente, ele parou. De algum lugar à sua frente, veio um estranho e indefinível farfalhar. Sem aviso, alguma coisa golpeou seu rosto e açoitou selvagemente. Tudo a seu redor fazia soar os lúgubres murmúrios de muitas asas pequenas, e repentinamente Conan sorriu de forma falsa, divertida, aliviada e humilhada. Morcegos, é claro. A caverna estava apinhada deles.
Vendo que os arcos naturais que sustentavam a galeria não davam em lugar nenhum, ele desceu um outro corredor, caminhando ao longo das paredes cinzentas. Então, ouviu um murmúrio baixo, que aumentava à medida que se aproximava da entrada da câmara, movendo-se com a cautela instintiva do caçador que fareja o perigo no vento, que sente o perigo antes que possa perceber qualquer sinal.
Então, ele se encostou à parede, ao perceber do que se tratava.
Na frente, vinham cinqüenta guerreiros negros, armados com delgadas lanças de madeira, cujas pontas eram endurecidas a fogo lento, e longos arcos e flechas. Às costas traziam escudos ovais, enquanto da lã crespa e escura da cabeça se erguiam tufos de penas coloridas. Tinham, tatuadas na fronte, três linhas paralelas, de cores diferentes, e em cada peito três círculos concêntricos.
Não adiantava se esconder. Se Conan recuasse, morreria com uma lança nas costas, enquanto fugia. Então, ele avançou, decidido, em direção aos guerreiros que se aproximavam.
O primeiro a vê-lo foi o primeiro a morrer: teve a lança cortada ao meio e foi estripado com um golpe ascendente da espada do cimério, antes que pudesse soltar seu grito de guerra negari.
Percebendo a presença do invasor e refeitos da surpresa em verem um homem não-negro naquele corredor, os negaris soltaram seu grito de guerra e partiram para o ataque. O primeiro ergueu a lança contra Conan, que, mais ágil ainda, decepou-lhe os dois braços no primeiro golpe e abriu-lhe o negro ventre torneado no segundo. O guerreiro seguinte caiu com o ombro partido em dois, ao mesmo tempo em que outros cinco ergueram as lanças para atirarem-nas contra o cimério, enquanto mais sete armaram seus arcos. Conan se jogou rapidamente no chão, apoiando-se na mão esquerda, ao mesmo tempo em que as lanças e flechas assobiavam para a frente, poucos centímetros acima de suas costas, e ele decepava um par de pernas negras. Levantando-se no momento seguinte, o bucaneiro bárbaro acertou um negari, com a ponta da espada entre o pescoço e o queixo do negro, penetrando-lhe o cérebro.
O corredor era estreito o bastante para que só passasse um ou dois guerreiros por vez. Do contrário, Conan já estaria morto. Contudo, o grito de guerra daqueles lanceiros havia chamado outros trinta guerreiros negros, que vinham do outro lado da longa passagem. Encostando-se à parede – não por medo, mas para proteger as próprias costas –, o cimério se defendeu do ataque das lanças da melhor forma possível: talhando as lanças e os corpos dos guerreiros cor-de-ébano.
Súbito, um deles gritou uma frase em tom imperativo, e foi obedecido quando, no momento seguinte, os guerreiros negros se afastaram, apontando as lanças, e novamente as flechas, para o bucaneiro, a fim de matarem-no à distância.
Como no dia em que enfrentara os Corsários Negros de Bêlit, no Tigresa, o cimério se preparou para saltar, de espada em punho para aqueles guerreiros, disposto a morrer sem se entregar. Mas, no instante seguinte, soou uma voz feminina numa língua desconhecida. Se ele soubesse o idioma dos negaris, entenderia a frase como:
- Não o matem!
Atendendo ao pedido, um lanceiro acertou o bucaneiro pelo lado, com uma pedra na têmpora, deixando-o semi-inconsciente. Outra pedra, lançada na nuca no momento em que este se virou, fez o bárbaro do norte cair sem sentidos.
5. NEGARI DA CAVEIRA
"Terras perdidas, precipícios.
Faz-se sacrifícios, se imolam mil virgens,
uma por uma, milhares de dias".
(Cazuza, em "Ritual” / 1987).
A PENÍNSULA ERA MUITO DIFERENTE da selva abafada que compunha a maior parte da ilha. Salientava-se da costa principal como a lâmina triangular de uma adaga, a parte que ligava à selva protegida pela cadeia de montanhas que alguma força primordial vomitara milhões de anos atrás.
A cadeia de montanhas corria de mar a mar, e em cada extremidade afundava na água azul em penhascos verticais.
Todo o perímetro da muralha que circundava a parte externa era revestido por uma camada de bronze, enquanto o perímetro da muralha seguinte era revestido de estanho, e terceira, que cercava a cidadela, reluzia com o brilho vermelho do oricalco, a lendária liga de metal atlante, leve e dura. Toda a parte exterior do palácio era revestida por placas de prata, salvo os pináculos, que eram revestidos de ouro.
Os negaris ofereciam um exemplo de desintegração cultural, efeito geralmente notado entre sobreviventes de culturas interrompidas. Possuíam inscrições em pedras que já não conseguiam ler, antigas casas de pedra que não se davam mais ao trabalho de reconstruir e, o que é mais surpreendente ainda em se tratando de ilhéus, não possuíam barcos por causa do seu compreensível medo de um mar que havia devorado as terras, muito mais extensas, de seus ancestrais.
No silencio misterioso da noite, na torre ereta, enorme, alta como as árvores gigantescas que povoam a selva externa, a caveira de Nakura contemplava a paisagem sinistra da cidade de Negari, como se esperasse que alguma presença desconhecida a trouxesse à vida. Inflexível, rígida, tinha o duro rosto realçado pela lua cheia.
Até milhares de anos antes, aquela caveira sustentava o rosto de Nakura. Nakura... a caveira do mal, o símbolo da morte que os negaris cultuavam. Nakura foi o último grande mago da Negari atlante. Ele era um renegado, que conspirara contra seu próprio povo e ajudara a revolta dos selvagens. Eles o seguiram quando vivo, e o deificaram depois de morto. No alto da Torre da Morte, se encontra sua caveira sem carne. A caveira de Nakura tem sido, por milênios, o símbolo do poder deles, a evidência de suas grandezas.
A estrada cerimonial da Torre da Morte era uma avenida reta e longa de pedra, com grandes pedras achatadas escoradas nos seus cantos por grandes pedras aprumadas. Uma extremidade do complexo volteava num canto recurvo antes de desaparecer atrás da torre.
Muitas dessas pedras eram de micrita dura como calhau. As fileiras de pedras muito bem encaixadas eram retas, paralelas entre si, e terminavam em pedras angulares.
Então, Gradlon, sacerdote mestiço de negros com atlantes – como todos da sua classe –, levou uma linda jovem de puro sangue negro – uma garota de apenas 15 anos – para o altar. Era tão inocente, que ignorava o propósito para o qual Gradlon a levava à antiqüíssima mesa de pedra, e o seguira voluntariamente.
Erguendo as mãos acima da cabeça, esticou os braços na direção do céu escuro. No mesmo instante, quatro nativos negros trajando apenas mantos brancos presos ao pescoço aproximaram-se, vindo um de cada lado, e rapidamente subjugaram a vítima, que se paralisou de espanto. Carregaram-na para o altar de pedra entalhado com as caveiras e a atiraram de costas, segurando-a pelos braços e pernas.
A princípio, a garota sentira-se atordoada demais para protestar, e tão incrédula com o choque que não compreendera a intenção do sacerdote. Quando percebeu, horrorizada, gritou:
- Oh, deuses! Não! Não!
Frio, o sacerdote ignorou o terror nos olhos da vítima. Ao lado do altar, fez um movimento de cabeça a um dos homens, que rasgou a túnica da garota, expondo-lhe os seios escuros.
- Não faça isso! – implorou a garota.
Uma faca de obsidiana afiada como navalha pareceu materializar-se na mão esquerda do sacerdote. Quando ele a ergueu, o luar refletiu-se na lâmina negra, vítrea.
A menina gritou; o último som que emitiu.
Então, a faca mergulhou.
A alta torre e sua caveira branca menosprezaram o ato sanguinário com indiferença empedernida. Haviam testemunhado horríveis demonstrações de crueldade desumana por vezes sem conta, desde milhares de anos antes. Seus gastos olhos vazios não se apiedaram quando a garota teve o coração, ainda pulsante, arrancado do peito.
E foi com extremo regozijo que o sacerdote bebeu, numa cuia, o sangue da menina morta e, sorridente, mandou que cozinhassem o coração da vítima.
“Por Valka, que este coração, junto com o sangue que bebi, irá renovar minha magia e força!”, pensou Gradlon.
6. A RAINHA DE NEGARI
“Então as águas foram agitadas pela vontade de Hurakán, e uma grande inundação desabou sobre as cabeças dessas criaturas... Elas foram tragadas e uma nebulosidade resinosa desceu do céu... a face da Terra ficou sombria e uma pesada chuva que tudo escurecia começou a cair – chuva de dia e chuva de noite... Ouviu-se um grande barulho acima de suas cabeças, como se produzido pelo fogo. Então se viram homens correndo, empurrando-se, cheios de desespero; quiseram subir em suas casas, e as casas, desmoronando, caíram por terra; quiseram trepar nas árvores, e as árvores fizeram com que eles caíssem; quiseram entrar nas cavernas, e as cavernas se fecharam à sua frente... Água e fogo contribuíram para a ruína universal no momento do último grande cataclismo que precedeu a quarta criação”.
O Popul Vuh, antigo manuscrito maia.
LENTA E DOLOROSAMENTE, a consciência de Conan retornou. Em meio às névoas que desapareciam dos seus sentidos e mente, o cimério se ergueu e ouviu alguém falar em Argoseano, com um sotaque indefinível:
- Quem ousa invadir o último posto avançado da Atlântida?
- O sangue da Atlântida corre pelas veias do meu povo, os cimérios. – ele respondeu, percebendo que estava com os pulsos amarrados atrás. Mesmo sua força era incapaz de arrebentar as cordas.
Então, o homem que lhe fez a pergunta – um lanceiro de alto posto – disse ao bárbaro:
- Explique isto para Sua Majestade, a Rainha Mahu. Agora, vamos!
Havia momentos, Conan pensou, em que ele na verdade não queria ser considerado um homem branco. Era como se sentia sendo levado para a sala do trono de Negari, com os pulsos firmemente amarrados pelas cordas pesadas de cânhamo. Parecia haver só homens na cidadela, que vinham correndo e gritando para ver quem tinha chegado. Mas havia mulheres também, algumas delas velhas, que olhavam curiosas para sua altura e seus olhos azuis e se aproximavam, espetando-o com o dedo, para ver se era real. Conan imaginou que se Negari fazia negócios com Argos, provavelmente era às escondidas, porque aquelas pessoas pareciam nunca ter visto homens de outras terras.
Foi levado a um dos grandes salões, com um amplo espaço aberto, uma espécie de sala central com uma altura impressionante. O cimério olhava fixamente, fascinado. Nem mesmo nas cortes hiborianas, ele tinha visto tamanha grandeza. A câmara e todos os seus equipamentos, das serpentes gêmeas esculpidas sobre as bases dos pilares aos dragões mal-divisados das sombras do teto, estavam moldados numa escala gigantesca. O esplendor era mesmo elefantino, como dissera Arzil – inumanamente gigantesco e quase paralisante para a mente que tentasse medir e compreender a magnitude daquilo. Para Conan, parecia que aquilo havia sido mais trabalho de deuses que de homens, pois nesta única câmara sozinha, conseguiria caber muitos dos castelos que ele conhecera nos países hiborianos. Era a sala do trono, toda ornamentado com ouro, prata e oricalco; todas as paredes, os pilares e o chão eram raiados com oricalco. No centro do grande salão, ao lado de um fogo aceso, sentada em um trono, estava uma mulher negra.
Aparentemente era a rainha. Fora empurrado para a frente dela, e a mulher olhou maliciosamente para ele. Para Conan, era evidente – ele tinha instinto para essas coisas – que ela estava interessada nele.
- Aproximem-no.
Empurraram Conan mais para a frente.
Mahu, a rainha de Negari era a mulher mais atraente que Conan jamais vira. Não um tipo de beleza clássica, mas uma mulher vibrante, excitante. Os cabelos eram negros, crespos e cheios, desbotados pelo sol. Ela era de estatura elevada, beirando um metro e oitenta. A pele era macia e perfeita. A cor negra do corpo era totalmente uniforme. Conan imaginava que os únicos trechos de pele que não eram cor de ébano eram os espaços entre os dedos dos pés, as palmas da mão e as solas dos pés. As pernas e os braços eram compridos e flexíveis. Os olhos eram de um azeviche profundo, luminosos como os da stígia Thalis, de Xuthal, observou o cimério. Notou-lhe a curva sinuosa da coxa e do tornozelo. Talvez caminhasse de modo arrogante e confiante demais para uma mulher, mas os músculos sob a pele lustrosa eram rijos como os de um homem. Suas vestes, de brocado de ouro, mal ocultavam a curva arredondada do seio e os ombros macios. O cabelo estava entremeado de pérolas e na cabeça trazia a coroa de Negari, com uma brilhante gema no centro da tiara.
Finalmente, os olhos dela pousaram na figura que se destacava imperialmente acima das outras, alta e hercúlea, com uma juba negra eriçada sobre uma cabeça altiva. Ela viu, com uma emoção inexplicável, uma fisionomia vigorosa, quase da tonalidade do bronze. Seu corpo magnífico vestia trajes de homens do mar, com cores vivas. Seus braços gigantescos ostentavam músculos firmes e poderosos. A despeito das suas vestes bárbaras, havia um ar de nobreza no seu rosto e na sua conduta que o distinguia dos outros homens; e Mahu notou os olhos azuis, frios como os de um animal selvagem.
***
- Há incontáveis eras atrás – disse Mahu bruscamente, repassando a história que o sacerdote Gradlon lhe contara e falando o Argoseano com um sotaque indefinível –, o arrogante império da vil raça atlante se erguia orgulhosamente sobre as ondas. Numa grande terra a oeste, suas cidades se erguiam. Suas torres douradas arranhavam as estrelas; as proas púrpuras de suas galés rompiam as ondas ao redor do mundo, pilhando os tesouros do sol poente e as riquezas do nascente.
“Suas legiões avançavam para o norte e o sul, leste e oeste; e ninguém era capaz de resistir a elas. Eles espalharam suas colônias por todas as terras para subjugar homens de todas as cores, e escravizá-los, assim como a nós, que vivíamos da caça e da pesca nesta ilha. Trabalhamos para eles nas minas e nos remos das galés. Por todo o mundo, o povo da Atlântida reinava supremo. Era um povo marinho, e investigavam as profundezas de todos os oceanos. Os mistérios lhes eram conhecidos, e as coisas secretas da terra, do mar e do céu. Eles liam as estrelas e eram sábios. Filhos do mar, eles o exaltavam acima de tudo.
“Os atlantes adoravam Valka, Hotah, Honen e Golgor, e nos impuseram a ferro e fogo a crença em seus deuses, sem se importarem com a nossa religião. Isso foi há tanto tempo, que já esquecemos quem eram os deuses anteriores de nossos ancestrais. Muitas virgens, muitos jovens fortes, morreram nos altares dos deuses que eles impuseram a nós, e a fumaça de seus santuários ocultava o sol. Então, o mar se ergueu e sacudiu. Ele trovejou do abismo, e os tronos do mundo caíram diante dele! Novas terras se ergueram das profundezas, e Atlântida e Mu foram engolidas pelo abismo. O mar verde rugiu pelos templos e castelos, e as ondas do mar se incrustaram nas cúpulas douradas e torres de topázio. O império da Atlântida desapareceu e foi esquecido, submergindo no abismo eterno do tempo e do esquecimento. Da mesma forma, as cidades coloniais em terras bárbaras, isoladas de seu reino materno, pereceram. Os ‘bárbaros selvagens’, como os atlantes chamavam pessoas como nós, se insurgiram, queimaram e destruíram no mundo todo. Apenas a cidade colonial de Negari permaneceu como símbolo do império perdido.
“Aqui, os descendentes dos vis reis de pele branca da Atlântida governaram como reis, e os nossos ancestrais se ajoelharam como seus escravos. Anos se passaram, se transformando em séculos. O governo dos atlantes decaiu. Tribo após tribo se revoltou e arrebentou os grilhões, requisitando as linhas de volta do mar, até que finalmente os filhos da Atlântida recuaram completamente e se retiraram pra dentro desta ilha... a última fortaleza da raça maldita da qual você também descende. Não eram mais conquistadores, estavam encurralados por tribos ferozes, embora eles tenham mantido aquelas tribos acuadas por mil anos. Negari era invencível: suas paredes se mantiveram firmes; mas influências internas trabalhavam.
“Os filhos da Atlântida haviam trazido seus escravos com eles para dentro da cidade. Os governantes eram guerreiros, eruditos, sacerdotes e artesãos; eles não faziam trabalhos subalternos. Para isso, eles confiavam nos escravos. Havia mais escravos do que senhores. E nós, que éramos os escravos, crescíamos, enquanto os filhos da Atlântida diminuíam.
“Eles se miscigenavam cada vez mais conosco, enquanto nossa raça se degenerava, até que finalmente, só os sacerdotes estavam sem a bênção do sangue negro. Governantes que possuíam um pouco do sangue maldito da Atlântida, se sentaram no trono de Negari, e permitiram cada vez mais que heróicos homens tribais entrassem na cidade como servos, mercenários e amigos.
“Então, veio um dia em que estes escravos ferozes, com a ajuda de Nakura, o último grande sacerdote da Negari atlante, se revoltaram e mataram todos os que tinham um traço de sangue da Atlântida, exceto os sacerdotes e suas famílias. Apesar de ter ajudado a conspirar contra o próprio povo, ele também era um sacerdote. Aos sacerdotes e suas famílias, nós aprisionamos como povo-talismã. Nós seguimos Nakura enquanto vivo, e depois de morto ele se tornou nosso deus. No alto da Torre da Morte, encontra-se a sua antiqüíssima caveira sem carne. Por milhares de anos, nós, de puro sangue negro, governamos Negari, com os reis e rainhas orientados pelos sacerdotes cativos”.
Conan ouvia fascinado. Parecia estar escutando um complemento da história que Yag-Kosha lhe contara há muitos anos na Torre do Elefante. Ele não sabia se as pessoas ali presentes já conheciam aquela história narrada por Mahu, ou se aquela era a primeira vez em que ela a contava em público. Súbito, a rainha acrescentou – também em Argoseano, para que o bárbaro pudesse entender:
- Desamarrem-no e levem-no aos meus aposentos! – ela disse, confirmando as suspeitas do cimério.
***
Assim como o lobo traiçoeiro e faminto da estepe observa a ovelha desgarrada se perdendo entre as rochas, Conan da Ciméria observava a mulher negra à sua frente, com o olhar lascivo e o desejo de se saciar naquelas carnes tenras.
Com olhos negros da cor do azeviche, impecável cútis de ébano e bastos cabelos lanosos, tão pretos quanto a lã de um carneiro selvagem, que caíam sobre seus ombros, Mahu ostentava um pescoço longo, traços selvagens, e ao mesmo tempo belos, e olhar persistente. Esbelta, tinha um corpo gracioso, o qual no momento era realçado por um vestido justo, decorado nas costas, bordado com pequeninas jóias negras que cintilavam ao menor movimento. Os seios cheios realçavam-se sensualmente, assim como os quadris delgados e roliços. As pernas eram compridas e provocantes, e se movimentavam com uma languidez irresistível.
Num acesso de timidez, Mahu baixou o olhar; então, devagar, como se atraída por uma força irresistível, voltou a encará-lo, com os olhos faiscando sob os cílios longos e negros. Os olhos azuis de Conan eram tão penetrantes que ela, sentindo as pernas fracas e mãos trêmulas, enrubesceu.
“Que bobagem!”, reconsiderou. Planejara a sedução com toda a calma, começando pelo vinho certo, passando pelo vestido e terminando com o tentador convite para ir a seu quarto. Agora, via-se assolada pela confusão e pela dúvida. Não imaginara que as coisas fossem andar tão rápido! Afinal, Conan era um guerreiro desconhecido que surgira em sua cidade. Não sabia nada sobre esse gigante de olhar severo, mas tinha sido arrebatada pelo desejo quando o viu pela primeira vez.
Mas essa rainha de Negari sabia que Conan era um homem que nenhuma mulher jamais possuiria por completo. Ele amava o desafio do desconhecido além do horizonte, um mistério que acenava como uma sereia sedutora a que só ele ouvia. Aquele era um homem que uma mulher desejava para um caso apaixonado, mas com quem nunca se casaria. Sendo o relacionamento passageiro, pretendia aproveitar cada momento que lhe restava até, qualquer dia, acordar e descobrir que ele partira na busca da aventura que aguardava além da próxima colina.
Ela queria Conan como seu consorte, para governar Negari a seu lado, e faria tudo para convencê-lo.
Sem uma palavra, Conan afastou as alças dos ombros dela, deixando o vestido de jóias negras cair, numa poça de luz instável, ao redor de seus pés. Deslizando uma das mãos ao redor da cintura nua e a outra para trás dos joelhos, levantou-a nos braços com um movimento harmonioso.
Enquanto a carregava para o leito, ela enterrou o rosto em seu peito.
– Estou me sentindo uma mulher comum. – sussurrou.
Com ternura, Conan pousou-a no leito e contemplou-a. A visão daquele corpo incendiou-o por dentro.
– Pois é melhor que se comporte como tal. – sentenciou com a voz rouca.
O luar inundava o quarto, como um reflexo prateado projetado pelas asas de uma gigantesca mariposa. Ela não se mexeu. A claridade projetava sombras suaves em torno de sua boca carnuda.
Linda... Ela estava linda, deitada ali, parecendo extremamente vulnerável. Uma linda mulher nua e o contato do luar... uma combinação inebriante.
A rainha não disse nada, enquanto Conan abaixava o rosto e a beijava na boca. O beijo que ele recebeu em retribuição foi apaixonado e voluptuoso.
Conan a beijava e a acariciava com toda a delicadeza possível para seu enorme tamanho. Seus beijos eram fogosos e selvagens, e o sexo de Mahu já estava úmido quando Conan deslizou a mão para tocá-lo. Ela se deitou na cama e abriu as coxas. Conan ajoelhou-se em frente a ela e pousou a boca na sua vagina. A fenda estava úmida, aberta, cheirava bem. Seu ventre foi percorrido por contrações ardentes, Mahu sentia que seu espírito deslizava pelos espaços infinitos do firmamento; nunca imaginara a existência de semelhante prazer.
Depois, Mahu se ajoelhou diante de Conan, abaixou sua bermuda e pôs seu pênis entre os lábios. Ela avançou os lábios e separou a glande com pequenos golpes de língua. Conan fechou os olhos; uma vertigem lhe percorreu. Teve a impressão de que ia ter um orgasmo na boca da garota.
Conan deitou-se e, enquanto o chupava, ela apertava seus mamilos. Olhou para baixo e a viu escarranchada em cima de suas pernas, com a cabeça curvada sobre seu corpo. Os seios balançavam-se, soltos. Ela estendeu os braços para cima, pegou as mãos dele e puxou-as para baixo, colocando-as sobre seus seios.
Tinha seios perfeitos, com os mamilos duros sob seu toque. Gemeu. Com o corpo contorcendo-se, assim escarranchada. Sentiu seu calor. Havia um zumbido em seus ouvidos, um calor difuso e embriagador em seu rosto, enquanto os ruídos se amorteciam e o quarto parecia distante, como se não existisse mais nada no mundo além daquela mulher, do seu corpo, do desejo que sentia por ela.
Naquele momento teve um ímpeto incontrolável de desejo e agarrou delicadamente o cabelo de Mahu, erguendo-lhe a cabeça e torcendo seu corpo. Ela o olhou nos olhos e percebeu tudo, imediatamente.
- Sim! – disse, e se moveu para um lado. Ele deslizou a mão entre suas pernas. Sentiu um calor. Ela se retorceu, ajudando-o. Suas mãos acariciavam o cabelo dele, tinha os lábios em seu ouvido.
- Sim. – ela sussurrou – Sim!
Ele a beijou com força, pressionando os seios dela contra seu peito nu. Sentiu o seu calor pelo corpo inteiro. Movimentou os dedos, tateando entre os lábios dela. Ela arquejava, enquanto se beijavam, fazendo sim com a cabeça. Depois, os dedos dele entraram nela. Na urgência da carne, ela movia seu corpo contra sua mão, mudando de posição para ter certeza de que ele tocaria no lugar certo. Estava molhada, seus lábios inchavam. Abriu mais as pernas para ele. Respirava com muita força, acariciando-o com seus dedos.
Seu corpo estava tenso, preparado. Os duros mamilos de Mahu roçavam seu peito. Os dedos dela o acariciavam. Ela lambeu a parte de baixo do lóbulo da orelha dele, com um rápido movimento da língua, e, instantaneamente, só seu desejo passou a existir para ele, quente e raivoso.
Ela parou de repente e ficou de quatro sobre o leito. Sua vulva era acolhedora, rodeada de pêlos muito escuros; parecia um presente. Conan começou a penetrá-la e ela sentiu uma vívida e quente sensação de prazer, e ali, naquele quarto banhado pelo luar, ela voltou a amar.
Então ela o montou e sabia bem como usar o corpo: começou bem suave, com pequenas contrações na glande; depois desceu alguns centímetros, apertando mais forte. Conan gemeu de prazer e Mahu ficou contente com o seu poder, e depois continuou a descer, contraindo as paredes da vagina com pressões fortes e lentas; ao mesmo tempo, olhava nos olhos de Conan com evidente prazer.
Entre os grunhidos de prazer e o suor de seus movimentos, a rainha empertigou o corpo e gemeu num orgasmo vivaz, tão vibrante e real que ela quase poderia tocá-lo, e até mesmo guardá-lo, como uma fugaz lembrança para os dias vindouros.
Conan, por sua vez, ergueu a mulher sobre seus joelhos e a abraçou, atingindo o clímax num espasmódico e sonoro orgasmo. Sentiu as paredes do sexo da mulher fechando-se sobre o seu. Teve a impressão de desvanecer no espaço, e foi atravessado por uma onda de prazer incrivelmente violenta, como breves relâmpagos. Ejaculou profusamente, várias vezes. O prazer era intenso, quase inebriante, ele respirava muito lentamente para se controlar.
Abrindo os vívidos olhos negros, a rainha sorriu para Conan com a boca aberta lânguida e sensualmente, e começou a lamber os bicos dos próprios seios, deixando o extasiado cimério tão excitado quanto no início do enlace. Assim, Conan a deitou novamente no leito, sugando-lhe novamente os seios e acariciando-os com a imensa mão riscada de cicatrizes, ao mesmo tempo em que voltou a adentrá-la. Mahu mudou de posição e ficou empertigada, estremecendo o corpo até ambos alcançarem o segundo clímax de prazer.
Após o segundo orgasmo, a rainha se deixou desmoronar, arfante, sobre o musculoso peito nu do cimério, onde ela agora descansava, com os olhos fechados e a boca aberta.
Poucos minutos depois, Mahu adormeceu profundamente, na mesma posição em que relaxara – com a cabeça apoiada no musculoso peito peludo de Conan. Este, por sua vez, não se lembrava da última vez em que tivera uma amante tão experiente quanto aquela rainha. Nem as prostitutas dos bordéis de Tortage e Shar – as mais recentes com as quais se deleitara – dominavam tão bem quanto Mahu a técnica de contrair as paredes vaginais ao redor de seu falo, durante a penetração – embora qualquer experiente mulher de taberna fizesse sexo oral tão bem quanto a rainha de Negari.
***
Horas depois, o cimério acordou. Mahu havia, durante o sono, se virado para um lado. Ainda era madrugada, mas Conan estava sem sono. Ele ainda tinha energia suficiente para deixar a rainha ocupada com ele na cama, até o sol raiar. Mas o bárbaro percebeu que o sono da negari era muito profundo, e preferiu não incomodá-la, enquanto se dirigia à janela para olhar a paisagem da ilha.
Conan inclinou-se na balaustrada para observar o rio; a lua estava alta e se espelhava nas águas. Distinguia-se confusamente, em frente, a massa escura da selva; de vez em quando, ouvia-se o grito rouco de algum pássaro noturno. Depois, um grito breve, mas atroz, ergueu-se da floresta; provavelmente um mamífero pequeno acabava de viver seus últimos instantes.
Tangidos pela corrente, tufos de plantas desciam o rio. O canto dos pássaros recomeçava, erguendo-se da selva levemente brumosa. Bem na direção sul, onde o vale desembocava, os estranhos contornos das montanhas desenhavam-se ao longe.
Naquele momento, ele estava pensando sobre o esplendor daquela cidade perdida e em – assim como pretendia fazer em Yanaidar, anos antes – se tornar rei de Negari, casando-se com Mahu (muito embora a capital perdida do Drujistão não tivesse rainha).
Ele não se importaria em governar uma simples ilha, que vivia praticamente isolada do resto do mundo – o esplendor das construções, vegetação e rainha lhe eram suficientes. Só lhe restava uma coisa: o tesouro. Com ele em mãos, talvez o cimério conseguisse convencer seus piratas (apesar da intolerância dos negaris contra estrangeiros) a se tornarem seus súditos. Como Mahu – embora ele não soubesse – pretendia convencê-lo a ser seu consorte, o bucaneiro cimério não teria dificuldade em – com a vontade da rainha, sua própria habilidade como lutador e estrategista, e a proteção de seus lobos-do-mar como sua guarda real particular – se tornar o primeiro rei branco de Negari após milhares de anos.
Com a ajuda de seus bucaneiros, que nasceram para a vida marítima, o cimério ampliaria o comércio de Negari para outros reinos, e tentaria ensinar o povo daquela cidade a perder o medo do mar e navegar. Mas, para isso, ele ainda precisaria, não apenas falar com Mahu, mas entrar em acordo com seus piratas. Conan já recusara a coroa de Zingara, devido às condições impostas a ele por Ferdrugo e Chabela. O cimério também jamais aceitaria ser rei de Amazon, caso Nzinga lhe fizesse tal proposta. Só que aqui, em Negari, não havia imposições de frescuras “civilizadas”, nem amigas escravizadas.
***
Conan da Ciméria já havia dormido por mais algumas horas e, ao acordar, excitado com o forte hálito matinal de Mahu, fizera amor novamente com ela. Nesta terceira relação sexual, o cimério e a negari, ao invés das convencionais penetrações, preferiram ter orgasmo na boca um do outro, numa felação recíproca. Para deleite do bárbaro, a rainha engolira todo o produto da ejaculação de Conan.
Pouco depois, dois servos bateram à porta dos aposentos da rainha e serviram o desjejum ao casal. Eram travessas de carne, com frutas e inhame. Enquanto comiam, Mahu perguntou, curiosa, onde o cimério aprendera a fazer tais carícias. Isso fez Conan se lembrar de Nzinga, que recentemente, perguntara a ele sobre as mulheres com as quais partilhara o leito. Como o tom na pergunta de Mahu não era de ciúmes, como o da rainha de Amazon, ele resolveu se vangloriar um pouco das experiências sexuais do passado – só que, ao invés de falar nas experiências mais recentes, em Tortage, Shar e na capital de Amazon (a cidade de Gamburu), o filho da saudosa Maeve (apelido dado a Gresham, vez que “maeve” significa “filha da loira” na língua ciméria) preferiu relatar a sua primeira noite de amor, como fizera há muitos anos para a princesa Stefanya:
- Quando tinha quinze anos, numa tarde em que a neblina estava particularmente espessa, eu me perdi, caçando e enfrentando o desconhecido em meu ritual de maioridade; fui forçado a atravessar corredores de avalanche. Lembro principalmente das nuvens cinzentas, muito baixas, e do silêncio absoluto das montanhas. Sabia que aquelas massas de neve podiam se desprender de repente, por causa de um movimento brusco de minha parte ou mesmo sem razão aparente, como uma lufada de vento. Eu seria arrastado na queda, jogado de uma imensa altura, até abaixo das cristas rochosas; e morreria, provavelmente, na mesma hora. No entanto não sentia nenhum medo. Estava contrariado, porque as coisas estavam acontecendo daquela maneira, contrariado por mim e pelos outros membros de minha tribo, que aguardavam meu retorno glorioso ou uma morte digna. Preferiria uma morte mais bem-preparada, de certa maneira mais oficial, com uma espada, uma estocada e urros de dor, meus e do inimigo. O que mais lamentava, para dizer a verdade, era não ter conhecido um corpo de mulher. Mas isso logo foi resolvido, quando encontrei uma bruxa da floresta...
“Ela estava ladeada por dois enormes ursos brancos, de uma espécie que só existia nos países a norte de minha Ciméria natal... Seus longos cabelos negros esvoaçavam sob as lufadas dos ventos setentrionais; aqueles calmos olhos cinzentos me observavam como se contemplassem minha alma. O corpo escultural daquela sacerdotisa estava envolto na pele branca de um outro urso. Jamais eu vira uma mulher tão linda... exceto por você, é claro. – ele acrescentou, olhando para Mahu, que lhe retribuiu o olhar – A sacerdotisa sorriu... talvez por me ver boquiaberto... e depois estendeu a mão. Perguntou qual o meu nome e de onde eu vinha. Acho que respondi, embora me lembre apenas das palavras dela que das minhas. A curiosidade me levara até lá; e, enfeitiçado por aquele lindo rosto alvo, açoitado pela escura cabeleira ao vento, acho que a respondi... provavelmente com alguma tolice.
“A moça, cujo nome era Ursla, me conduziu até sua casa... era uma enorme cabana de madeira, um pouco maior que a maioria das que meu povo ainda faz... e eu a acompanhei, confiando cegamente nela. Só ocasionalmente olhei para trás, preocupado com os enormes ursos, cujos passos pesados ecoavam na nossa retaguarda. Graças a Crom, eles ficaram fora da cabana. Ela tirou sua pesada roupa de pele de urso, enquanto eu tirava minha capa de pele, e então me convidou para jantar e ‘partilhar alguns brindes’ à minha coragem. Há! Acho que fiz muitas perguntas a ela... quem era ela, por que vivia sozinha no alto das colinas... por que não tinha um marido. Eu era muito jovem e tolo demais na época.
“Ela me sorriu ternamente, e disse que era uma sacerdotisa da floresta; que, em outros lugares do mundo... regiões remotas... existiam outras como ela; e que, de acordo com a região que habitassem, podiam ‘ser vistas na companhia de cervos, lobos ou leões’. Os serviçais dela eram os ursos que lá viviam. Mas ela permitia que alguns homens, de tempos em tempos, chegassem até ela. Na minha tolice juvenil, perguntei: ‘Por quê?’. Ela riu de forma franca e melodiosa, disse que eu era muito jovem, mas que eu era grande para a minha pouca idade... de fato, aos 15 anos, eu já tinha a altura da maioria dos cimérios adultos... Também me disse que eu era atraente, e decidiu que eu já podia me tornar um homem.
“Enquanto ela soltava os cabelos, erguida diante de mim, não consegui desviar o meu olhar daquela beldade. Ela acariciou meu rosto, me deitou nas almofadas, nossos lábios se encontraram e... ela foi a primeira de muitas. Foi ela e as ‘muitas’, vindas depois dela, que me ensinaram a fazer tudo o que fiz com você, Mahu”.
A rainha sorriu, admirada, contemplando o agigantado cimério diante dela.
- Já falei de minha primeira experiência na cama... E você, Mahu? Como foi sua primeira vez?
A rainha sorriu novamente, e falou sobre o sacerdote Gradlon, que a ensinara tudo o que ela havia feito. Ao ouvir a narrativa e a descrição física que Mahu fez de Gradlon, Conan percebeu por que, apesar de ser negra, a rainha de Negari sentiu-se atraída pelo cimério. Havia certa semelhança física entre ele e o sacerdote de Valka e Golgor. Embora mestiço de negro, Gradlon tinha traços que lembravam os atlantes – povo do qual os cimérios descendiam.
***
Enquanto passeava com Mahu pelas ruas de Negari, Conan admirava a população. Por um momento, ele se lembrou mais uma vez de Nzinga e da cidade de Gamburu, capital de Amazon. Só que, ao contrário de Gamburu, Negari não era um local de opressão feminista, como Amazon, nem machista, como as cidades shemitas que conhecera. Havia uma igualdade de condições entre homens e mulheres. Os direitos eram iguais, e as tarefas eram diferenciadas, não pelo sexo, mas pela aptidão de cada um. As mulheres que tinham jeito para a guerra, por exemplo, eram treinadas como guerreiras. Os homens que tinham habilidade para serem cozinheiros, ao invés de caçadores, aprendiam a fazer as maiores iguarias negaris. E isto não tirava nada da feminilidade ou masculinidade dos habitantes daquela ilha – embora, como Mahu lhe narrara pouco após o desjejum, a homossexualidade não fosse alvo de discriminação naquele reino.
O próprio Conan, embora heterossexual, também não era de criticar as preferências sexuais alheias. O convívio com pessoas com todo tipo de gosto, em Shadizar e outras cidades do mundo, aliado ao fato de ter visto duas ex-companheiras de sua fase kozaki se tornarem parceiras de cama, o tornou mais tolerante com aqueles que tinham opções diferentes da sua.
Durante o passeio, Mahu finalmente fez a proposta:
- E então, Conan da Ciméria, o que acha de casar comigo e governar esta ilha ao meu lado? Por Valka, um homem que já liderou guerreiros e piratas daria um grande rei. Que se dane o fato de ser branco! – ela acrescentou, sorrindo – Você é muito bonito, masculino... cá entre nós, muito bom na cama... e parece ter muito carisma para a liderança. O que acha? Seja o rei de Negari, meu homem! – ela concluiu, num tom de paixão, quase abraçando-o em público.
A pergunta surpreendeu o cimério. Ele esperava que Mahu fosse demorar um pouco mais para fazer aquela proposta. De qualquer forma, ele respondeu:
- Tem certeza de que o povo não vai reprovar um branco de ascendência atlante no trono de Negari? – ele perguntou, com bom humor e muito menos preocupado do que talvez parecesse.
- De quem se colocar contra isso, eu cuido, meu Conan. – respondeu Mahu, sorridente – Se quiser, nós anunciamos ainda hoje o nosso noivado e, dentro de alguns dias, nos casamos.
Claro que Conan aprovava a idéia! Só havia uma condição:
- Eu estava liderando uma embarcação de piratas, quando uma tempestade me fez parar aqui. Meus amigos devem estar me procurando pela ilha. Gostaria que eles fossem nossos súditos, caso queiram ficar aqui. O único meio de convencê-los, caso me encontrem, é mostrando-lhes o tesouro de Negari.
A rainha sorri e acena positivamente:
- Vou lhe mostrar onde fica a câmara do tesouro, Conan. Primeiro, vou avisar os guerreiros do reino para que, caso encontrem seus amigos piratas, que eles sejam bem-recebidos e levados até a nossa presença.
Então, a rainha negari se dirigiu a um guerreiro mestiço, presente naquelas ruas, no seu próprio idioma. Era um homem tão alto e musculoso quanto Conan, de pele moreno-escura, olhos verdes, barba e cabelos cacheados, e lábios meio grossos – um típico descendente mestiço de negaris com atlantes. Embora o cimério não entendesse quase nada da língua Negari, ele estranhou o olhar contrariado daquele homem, que, a julgar pela aparência, devia ser um sacerdote. Percebendo isso, Conan perguntou a Mahu quem era aquele homem.
- O sacerdote Gradlon. – ela respondeu ao surpreso cimério – Ele vai ter que lhe aceitar. Você é muito mais carinhoso do que ele, e não voltarei mais a amá-lo.
***
A curva ocidental da ilha de Negari era formada por um pequeno espinhaço que avançava para a água e terminava em uma ponta rochosa. O lado externo do espinhaço se aplanava, formando um platô rochoso a uns quinze metros acima da praia que fazia uma curva para oeste. O platô era protegido por árvores altas.
Era ali que Sigurd e os homens de Conan queriam chegar. O grupo escalava penosamente a encosta arborizada que se erguia íngreme da praia. Era uma caminhada surpreendentemente difícil. Subiam em fila indiana e tinham de ter cuidado, porque o solo estava coberto de lama. Zeltran já tinha escorregado, descendo alguns metros. Todo seu lado esquerdo estava coberto de lama negra. E Sigurd viu uma sanguessuga gorda na nuca dele, mas resolveu não dizer nada por enquanto.
Ninguém falava. Conduzida por Arzil, a equipe subia em silêncio, tentando fazer o mínimo de barulho possível. A despeito desse esforço, faziam um bocado de barulho, o solo estalava sob seus pés, pequenos galhos se partiam quando procuravam se segurar neles.
O ar parado era úmido e letargicamente quente. A selva vibrava com o zumbido incessante dos insetos. Quando estavam no meio da encosta, começou a chover, pouco a princípio, mas depois com um aguaceiro estupendo. Em questão de minutos, estavam todos encharcados. A água corria pela encosta. O solo ficou mais escorregadio do que nunca.
Agora estavam sessenta metros acima da praia, e a possibilidade de escorregar os deixava nervosos. Zeltran olhou para cima, para Sigurd, logo à sua frente, que o havia ultrapassado alguns metros abaixo. Ele se movia com a habitual agilidade e rapidez. Parecia estar caminhando na encosta. Quase não recorria à ajuda dos galhos, ao passo que Zeltran se agarrava neles a todo momento, ficando em pânico quando seus dedos escorregavam nos fungos que cobriam as cascas das árvores. Observando Sigurd, tinha a impressão de que ele era quase habilidoso demais naquilo. Escalando aquela encosta traiçoeira na selva, ele irradiava uma espécie de indiferença, como se tudo aquilo fosse esperado. Tinha a atitude de um montanhês, duro, experiente, condicionado. Muito incomum, ele pensou, para um marinheiro. Mais do que incomum. Mas, pensando bem, ele era um bárbaro, assim como Conan, embora Zeltran soubesse que em Vanaheim não havia tantas montanhas como na Ciméria de Conan, conforme os relatos ouvidos dos dois bárbaros.
A cerca de novecentos metros de altura, sentiram uma brisa fraca, e logo depois chegaram ao topo. A vegetação era tão densa que não podiam ver nada lá embaixo, do outro lado do paredão, na baía onde a cidade de Negari estava localizada.
Zeltran olhava para a selva. O ar era quente e parado, preso entre as árvores enormes que se erguiam à sua frente. As árvores, com doze a quinze metros de altura, eram cobertas de cipós entrelaçados. E ao nível do chão, no escuro, sob o dossel lá em cima, samambaias imensas, tão espessas que formavam uma barreira impenetrável, uma parede verde sólida.
Ele pensou: Pode-se entrar nessa selva e se perder para sempre. Nunca encontraria a saída.
Sigurd subiu rapidamente em uma árvore. Lá de cima olhou para o vale. Desceu e apontou para uma colina que levava à baía. Balançou a cabeça: íngreme demais naquele ponto. Indicou que deviam dar a volta e descer uma encosta mais suave.
Então recomeçaram a andar, seguindo a curva do espinhaço na direção da baía. A maior parte do tempo, tudo que viam eram as samambaias de quase dois metros pingando água. Depois de meia hora, apareceu uma abertura na mata e tiveram uma vista panorâmica da baía de Negari.
De longe, à direita e à esquerda, avultavam grandes penhascos negros e se erguiam castelos e torres de pedra, de estranha arquitetura – era como se gigantes de algum outro planeta tivessem erguido-os numa selvagem e caótica orgia de criação. Estas construções eram solidamente apoiadas contra os rochedos. Arzil sabia que o palácio de Mahu estava construído dentro da parede do penhasco que se erguia atrás, e informou os piratas. Eles estavam na frente daquele palácio, num tipo de minarete construído na parede externa. Mas havia apenas uma janela nele, e suas visões estavam limitadas. A leste, norte e sul, os rochedos formavam uma muralha natural; apenas a oeste havia um muro artificial.
Era a hora do crepúsculo. Por entre uma fenda fugidia nas nuvens, uma estrela vespertina espiava desoladamente para a Torre da Morte e para uma cidade ominosamente quieta.
Então eles viram: bem distante na beira da selva lá embaixo, um homem branco e uma mulher negra entrando na abertura do que parecia uma caverna.
- Por Ymir e Ishtar, é Conan! – exclamou Sigurd, com sua visão de águia, quase tão aguda quanto a de seu amigo cimério.
O palácio erguia-se no centro da cidade cercado por grande muralha de pedra de cor branca, preta e vermelha. Era uma construção de grande esplendor, tinha sua superfície inteiramente revestida de prata, com um muro todo de ouro à entrada e o teto de marfim ornamentado de ouro, prata e oricalco.
Na praia que separava o palácio do mar, havia um enorme nevoeiro, feito por magia, para ocultar o palácio da visão de quem ali desembarcasse. Este era um dos motivos pelos quais os pescadores do reino próximo de Kush – assim como Conan, em sua época de pirata com Bêlit – nunca viram aquela construção de proporções gigantescas.
A descida que se seguiu foi quase tão árdua quanto a subida, mas bem mais rápida. Enquanto observavam aquele último refúgio da civilização atlante, Sigurd retirara a sanguessuga que havia grudado na nuca do amigo Zeltran. Ao terminarem a descida, Arzil, sem dizer uma só palavra, levou o indicador aos lábios, ao mesmo tempo em que apontava para a caverna, onde ele e os piratas haviam avistado a negra e o branco entrarem. Pelo visto, o silêncio – caso os piratas desejassem ver Conan – era agora mais necessário do que nunca. Embora Mahu conhecesse Arzil pessoalmente – pois era com o argoseano que ela e uns poucos nobres negaris faziam as trocas comerciais –, o mesmo não poderia ser dito da maioria dos guerreiros daquela ilha.
Após cruzarem a floresta, porém, o som furtivo de pés descalços deslizando pelo solo daquela selva – em cujo final se encontrava, não apenas a câmara, mas também era o ponto mais eqüidistante entre a mata, o tesouro e o navio escondido –, fez com que todos os piratas agarrassem os cabos de suas espadas. Então, eles avistaram os guerreiros que se aproximavam: o fato de serem negros não surpreendia os bucaneiros que desembainhavam e preparavam suas armas, vez que aquela ilha não era muito distante da costa do país de Kush. Entretanto, a chuva de flechas – esquivada pelas espadas, agilidade e escudos dos piratas –, aliada ao aspecto das lanças endurecidas a fogo lento, aos cocares coloridos, às retas tatuagens paralelas nas testas dos negros e aos triplos círculos concêntricos nos musculosos peitos destes, indicava algo bastante óbvio a Arzil: eram os guerreiros da guarda real de Negari. Como Mahu sabia que os bucaneiros estavam lá? E por que o homem, a quem Sigurd identificara como Conan, estava na companhia de uma mulher que aparentava ser a rainha? Arzil não sabia se aquilo partira do cimério ou da negari, mas de uma coisa ele tinha certeza: havia uma grande traição no ar.
Esta conclusão foi confirmada no momento seguinte, quando o líder dos lanceiros viu e reconheceu Arzil, mas nem por isso deteve o ataque em massa.
Mas não restava mais tempo para refletir; só para matar antes que fosse morto. E o primeiro a agir foi Sigurd, com sua grande espada de aço azulado, abrindo os peitos dos primeiros negaris a se aproximarem, os quais caíram prostrados ao chão. O lanceiro seguinte a atacar o vanir, teve seu longo dardo aparado pelo escudo do ruivo, que, erguendo a pesada espada, abriu o rosto de ébano do adversário numa sangrenta e disforme máscara de sangue e miolos.
Zeltran, por sua vez, se aproveitava do fato de ser mais baixo que os atacantes negaris e, com sua agilidade felina, abria os musculosos ventres de outros dois que o atacavam, para no instante seguinte destroçar as costelas de um terceiro, que caiu de joelhos ao chão, com um pulmão aberto. Arcos zuniam e lanças voavam, enquanto espadas achavam bainhas de carne em seus giros e estocadas.
Mas, uma parte dos piratas também morria, vítima de uma lança ou flecha negari. Entretanto, apesar do elemento-surpresa dos nativos no início do ataque, os piratas – e até mesmo o temporariamente perplexo Arzil – logo adquiriram vantagem, graças à mais disciplinada organização militar dos bucaneiros zíngaros de Conan – naquele momento liderados por Zeltran –, aos seus aliados barachos comandados por Sigurd, e à habilidade espadachim de Arzil de Messântia.
Pouco a pouco, os piratas reduziam sua desvantagem numérica contra aquela massa de soldados do palácio real de Negari, abrindo caminho, palmo a palmo, até a caverna onde, segundo Arzil, ficava a câmara do tesouro.
***
E então, à luz bruxuleante da tocha, Conan viu que um bocado da muralha, do feitio e tamanho de uma porta, se ia erguendo lentamente do solo, e desaparecendo em cima na rocha, onde devia existir uma cavidade para recebê-la. Não pesava menos, aquela massa de pedra, de vinte a trinta toneladas e era certamente movida por algum maquinismo, fundado num equilíbrio de peso que uma mola, colocada num lugar secreto da muralha, punha em movimento. Nem se lembrou, nesse momento, de perguntar à rainha o segredo da mola, que erguia a pedra! Pasmado, via a imensa massa subir, devagar, muito devagar, até que desapareceu, deixando diante de si um grande buraco negro.
Estava enfim aberto, para nele penetrar, o caminho que levava aos tesouros de Negari. Estava, pois, a seu alcance, destinada a si, as maiores riquezas que jamais um rei acumulou na terra? Poderia ele ver, tocar, agarrar e mostrar aos seus amigos, o tesouro que fora de Nakura, lenda dos sacerdotes santos de Negari? Assim parecia, e para isso bastava dar um passo.
Conan deu esse passo, e com explicável sofreguidão. Mas a rainha defendia ainda com os braços o buraco negro:
- Escutai, homem do norte! Escutai o que é necessário saber! As pedras que brilham, que vós ides ver, foram tiradas da cova circular não sei por quem, e guardadas aqui não sei por quem. A gente que, de geração em geração, tem vivido nesta ilha, sabia da existência do tesouro, mas ninguém conhecia o segredo para abrir a porta de pedra, senão os descendentes de Atlântida! Por fim aconteceu que um escravo descobriu esse tão velado segredo. Ele percorreu estas cavernas; e sucedeu que o escravo encheu de pedras um saco pequeno de couro, onde ele levava de comer. Ao sair, o homem agarrou na mão outra pedra, maior que todas...
E aqui a rainha parou, com os olhos coruscantes cravados em Conan.
- Continue! – exclamou o bárbaro, que escutara sem respirar – O homem era quem? Que se passou mais?...
A mulher recuou espantada.
- Pois bem, ninguém pode dizer o que sucedeu. Mas o homem teve medo de repente, atirou para o chão o saco cheio de pedras, e fugiu, levando só agarrada a pedra maior que tinha na mão. É a que trago no diadema!
- E ninguém mais entrou aqui?
- Ninguém. Mas os reis ficaram sabendo o segredo da porta... Nenhum, porém, entrou; porque, dizem profecias, já muito antigas, que aquele que aqui entrar morrerá antes de uma lua nova. Esta é a verdade, homem das neves. Entrai agora! Se eu não menti a respeito do homem que antes entrara aí, vós encontrareis no chão, à entrada da porta, caído, o saco de couro cheio de pedras... E se as profecias mentem ou não, sobre a morte que espera a quem aqui penetrar, vós mais tarde o sabereis...
E sem mais, ela mergulhou no corredor tenebroso, erguendo ao alto a pálida tocha. Conan, no entanto, olhava para os lados com hesitação, quase com medo, bem natural de resto, em nervos abalados por tantas emoções estranhas. Então pensou, corajoso:
“Por Crom! Não cheguei até aqui para recuar diante de lendas do passado!”.
E avançou, em silêncio. Uns quinze passos adiante, deu de repente com uma porta de madeira, curiosamente pintada a cores, e toda aberta para trás. E, no limiar da porta, lá estava, caído no chão, um pequeno saco de couro que parecia cheio de seixos!
Conan ergueu o saco. Era pesado e tinia.
- Crom! Está cheio de brilhantes! – balbuciou ele.
E com efeito! A idéia, de um saco de couro repleto de diamantes, é de causar medo!
Com súbita impaciência, o bárbaro seguiu adiante e transpôs a porta. Estava dentro do tesouro de Negari.
Durante um momento, olhou vagamente em redor, num silêncio apavorado; a mão esquerda ainda amparando o escudo quase esquecido. À luz débil e mortiça da lâmpada, só percebeu, a princípio, que o quarto ou câmara era escavado na rocha viva. Depois, a um dos lados, viu distintamente alvejar, sobrepostos em camadas até à abóbada, uma porção imensa de dentes de elefante, de inigualável riqueza. Haveria talvez uns quinhentos ou seiscentos dentes. Só aquele marfim o poderia tornar rico para sempre.
- Ali estão os diamantes! – percebeu Conan.
Correu para o recanto que a luz indicava. E a lâmpada que baixara mostrou umas dez ou doze caixas de madeira, estreitas e muito compridas, pintadas de escarlate. A tampa de uma era tão antiga que, mesmo naquele ar seco de caverna, tinha apodrecido e apresentava vestígios de arrombamento. Pelo menos, no meio havia um buraco. Enterrou a mão através, e tirou-a cheia, não de diamantes, mas de moedas de ouro, como nunca vira, com símbolos desconhecidos e montanhas e torres em relevo no cunho; rutilantes escudos de ouro brilhavam com reflexos fulvos e lingotes mal polidos e mal arrumados, jaziam por entre as jóias; ele revolveu as mãos em pérolas e rubis, os quais, transformados em cascata cintilante, faziam, ao cair uns sobre os outros, o ruído do granizo nos vidros.
Ficou, mudo, olhando. Sentia um estranho torpor, como se a alma ficasse bruscamente reduzida diante da fabulosa infinidade daquela riqueza.
- Crom! – murmurou sufocado – Aqui devem estar os resgates dos reis da terra! Com isso e os diamantes, meus piratas serão nossos súditos, Mahu!! – ele acrescentou, sorrindo para a rainha.
Naturalmente era a fortuna para pagar a vida de seus sonhos... Estaria ele a sonhar?
- Mas os diamantes... – exclamou Conan, percorrendo sofregamente o quarto – Onde estão, por fim, os diamantes?
E então, ele avistou três arcas de pedra que lhe davam pela cintura, ocupando os três lados de uma espécie de alcova tenebrosa. Duas estavam fechadas com imensas tampas de pedra. A tampa da terceira estava encostada à muralha. Baixou a lâmpada para dentro. Não pôde distinguir nada a princípio, deslumbrado por uma vaga refração prateada que faiscava e tremia. Quando os olhos se habituaram àquele brilho estranho, viu que a arca imensa estava cheia até ao meio de diamantes brutos! Mergulhou as mãos neles. Com efeito! Eram diamantes. Uma arca cheia de diamantes! Não havia dúvida! Bem sentia ele, entre os dedos, aquele macio especial que em Ophir, nas minas, chamavam saponáceo! Era uma arca cheia de diamantes!
Havia, também, milhares de diamantes em estado bruto. O diamante bruto não brilha como a pedra cortada e polida que aparece no fim do processo. Parece um pedaço de vidro sem brilho, com superfície opaca e leitosa. Mas não pode ser confundido com vidro por um examinador de habilidade e experiência moderadas.
A superfície dos diamantes verdadeiros possui uma textura especial, em forma de sabão, imune à água. Quando um pedaço de vidro é mergulhado na água, as gotas do líquido permanecem alguns segundos sobre sua superfície. No diamante, elas escorrem imediatamente, deixando a pedra completamente seca.
Ficou, mudo, olhando. Era um torpor, como se a alma ficasse bruscamente esmagada, sob a fabulosa infinidade daquela riqueza.
De repente, sentiu por trás uma risada que o estarreceu. Era a rainha. Ela ia, vinha, às voltas, na sala escura, como um morcego, de braço estendido para ele:
- Ha, ha, ha! Aí está satisfeito o desejo vil do vosso coração, homem das neves! Quantas pedras brancas! Milhares delas! E todas vossas! Agarrai nelas! Rolai por cima delas! Comei as pedras! Bebei as pedras!
“Abri as outras arcas! – gania ela – Estão também cheias! Todas as pedras são vossas! Fartai-vos, fartai-vos!”.
Em silêncio, com uma sofreguidão brutal, Conan arremessou-se sobre as outras arcas, quebrando os selos, empuxando as tampas, num desesperado esforço! Mitra! Cheias também! Cheias até em cima!... Não, a terceira estava quase vazia. Mas todas as pedras que continha eram escolhidas, de um peso e tamanho inacreditáveis. Havia-as como ovos pequenos. As maiores, todavia, postas contra a luz, apresentavam um vago tom amarelo. Eram "diamantes de cor", como eles diziam em Ophir, nas minas. Tinha ele um destes na mão, enorme, quando, de repente, ouviu gritos aflitos do lado do corredor. Era a voz da rainha:
- Mate-o! Mate-o! Mate este vil descendente puro dos atlantes!
E então ele o viu. Um homem tão alto e musculoso quanto ele, de pele moreno-escura, olhos verdes, barba e cabelos cacheados, e lábios meio grossos – um típico descendente mestiço de negaris com atlantes: Gradlon, o sacerdote-guerreiro de Negari, avançando contra ele e disparando flechas de seu enorme arco.
Conan rolou pelo chão e ergueu seu escudo para se proteger. Gradlon largou o arco e, emitindo um rugido bestial, enciumado por Mahu tê-lo trocado por aquele homem, ergueu sua perigosa espada de oricalco e lançou-se sobre o cimério.
Protegido pelo escudo, Conan saltou como uma cascavel na direção de Gradlon, o sacerdote de Nakura, golpeando-o vigorosamente com a espada. Sentiu a borda da lâmina bater contra o metal, antes de atingir algo macio. Gradlon emitiu um grunhido horripilante. Embora tivesse agido rápido, o choque ante a visão de Conan custara-lhe um precioso segundo. Vendo a investida de Conan com o rabo do olho, pudera apenas se esquivar muito mal e erguer sua espada, antes que a lâmina da espada de Conan ultrapassasse a guarda da arma e lhe atingisse a mão, amputando o polegar e os outros dedos bem atrás dos nós.
A espada caiu no duro chão de calcário, quase em cima dos dedos decepados do sacerdote, mas ele recuperou-se o bastante para se esquivar do golpe seguinte, e então, num violento movimento rotatório, saltar sobre o cimério.
Conan até tentou se esquivar para o lado, mas sua perna direita falhou. Só então, percebeu que uma das flechas disparadas contra ele atingira sua perna direita de raspão, mas acertando alguma veia, fazendo o sangue escorrer abundante e quente. Antes que pudesse se recuperar, o sacerdote, com seus reflexos e força animados por magia, caiu sobre ele como uma pantera.
Com um golpe, o sacerdote arrancou-lhe o punho da espada, mantendo-lhe o outro braço preso sob as tiras internas do escudo. Então, lenta e deliberadamente, levou a mão boa, com escudo e tudo, a seu pescoço.
- Mate-o! – gritava a rainha de Negari, sem parar, como uma louca – Mate-o!
Erguendo-se num repelão, Conan livrou o punho do escudo e acertou o pomo-de-adão do sacerdote. Com a cartilagem da laringe esmagada, a maioria dos homens teria sufocado até morrer ou, pelo menos, perdido a consciência. Com o sacerdote, não acontecera nem uma coisa, nem outra. Simplesmente levou a mão boa ao pescoço, emitiu um horrível som gorgolejante e recuou.
Ambos lutaram para se pôr de pé: Conan, pulando numa perna só, e o sacerdote tentando respirar, com a mão direita pendendo inútil. Parados, encararam-se como touros em luta, recuperando o fôlego antes do próximo ataque, observando-se com cautela para ver qual dos dois faria o primeiro movimento.
O sacerdote olhava para Conan como uma cobra para um mangusto, enquanto recuperava a espada caída.
Conan riu, ferozmente; e os dois homens ficaram frente a frente. O primeiro ataque foi o de Conan, que lançou sobre o sacerdote a espada a toda a força. Com um salto, o sacerdote esquivou um corte, e arremessou outro com a mão ainda boa, em resposta, sobre Conan, que o aparou no escudo. E, durante um momento, houve assim uma viva e faiscante troca de golpes, que ora bruscos saltos evitavam, ora os broquéis defendiam.
Os piratas – que haviam chegado lá, no início do duelo, guiados por Sigurd – nem respiravam. O regimento dos nativos, esquecida a disciplina, fizera círculo, e soltava gritos, batendo palmas a cada golpe vibrado.
Subitamente, de uma pancada, o sacerdote cortara a extremidade superior do escudo de Conan, que atirou os restos lascados para longe e, esquecendo a sua própria espada, atirou-se sobre Gradlon. Conan e o inimigo, agarrados um ao outro como dois gatos bravos, estavam rolando no chão, e Conan, com um desesperado esforço, procurava arrancar ao adversário a espada que ele tinha firme na mão esquerda. Pareceu uma eternidade o tempo em que eles assim rolaram um sobre o outro, nesta furiosa luta pela posse da espada de oricalco. Finalmente com um último e furioso arranque, o cimério, desprendendo-se do sacerdote, ergueu-se de um salto, com a espada na mão. Num instante, Gradlon estava também de pé, e ambos tinham as faces a escorrer sangue. Foi o negari-atlante, que, mais rápido, arrancou do cinto um facalhão que levava embainhado por trás e o vibrou contra o peito do bárbaro. O valente cimério cambaleou, mas a couraça de malha repeliu a facada. De novo, o sacerdote arremeteu com a lâmina, e então o cimério, retesando-se todo num esforço, alçou a espada, no momento mesmo em que o mestiço se inclinava, e deixou-lhe cair um golpe, com tremenda força, sobre o pescoço.
Houve um grito enorme. E, coisa pavorosa, viu-se a cabeça do sacerdote saltar-lhe dos ombros, dar como uma péla dois pulos pelo chão, e rolar até aos pés da rainha! Durante um segundo, o corpo ficou ereto, com o sangue saindo em grossos borbotões e a fumegar. De repente tombou, com um ruído surdo. Assim terminava a vida do sanguinário Gradlon, cujas ordens que recebera da rainha, faladas na língua Negari nas ruas da cidade, eram as de exterminar os piratas a quem Conan pretendia transformar em súditos.
Então, apanhando sua espada caída, o cimério se arremessou entre os negaris que atacavam os bucaneiros naquela câmara. Conan estava tão preocupado com as vidas de seus companheiros de aventuras marinhas, que esqueceu de pegar qualquer pequena fração do tesouro, e até mesmo de usar a enlouquecida Mahu como refém para ajudá-los a fugirem.
7. FUGA DE NEGARI
“Ah Mucencab veio e obscureceu a face dos Céus... a Terra começou a despertar. Ninguém sabia o que ia acontecer. De repente, fogos subterrâneos irromperam subindo Firmamento adentro e choveu fogo do alto, e despencaram cinzas, e pedras e árvores foram lançadas para baixo, e madeiras e pedras se despedaçaram umas contra as outras.
Então o Céu foi agarrado e afastado à força. A face do Céu foi fustigada de um lado para o outro e atirada para trás... as pessoas foram todas esmigalhadas; seus corações pararam enquanto elas ainda viviam. Então elas foram enterradas nas areias, no mar.
Numa enorme e repentina torrente de água, a Grande Serpente foi arrebatada do Céu. O Firmamento caiu e a Terra afundou quando os quatro deuses, os Bacabs, apresentaram quem trouxe a destruição do mundo”.
(O Livro de Chilam Balaam)
ERA COMO SE AS COLINAS FERVILHASSEM DE FORMIGAS. Mais de mil nativos, homens e mulheres, armados de arco e flechas, escudos de couro e lanças de ponta de obsidiana lascada, olhavam para os intrusos em sua ilha. Os homens trajavam apenas tangas e alguns portavam clavas, feitas com uma pedra atada a um curto cabo de madeira. Mantinham-se num silêncio opressivo, ferozes e tão ameaçadores quanto uma tempestade em aproximação.
Em dias normais, haveria, àquela hora, homens e mulheres dançando e fazendo amor ao som de tambores, pelo palácio e ruas da cidade. Mas a chegada dos bucaneiros terminou mudando a rotina – e o humor – do povo de Negari.
- Uma outra força de bárbaros se concentrou entre nós e o navio! – gritou Zeltran.
Os nativos, em vez de se lançarem ao ataque, avançaram devagar e, pouco a pouco, cercaram os piratas. Por fim, com um bramido que cresceu e morreu como a arrebentação se quebrando, correram pelo declive, crestado pelo sol, e caíram sobre os piratas. A primeira avalancha foi dizimada, atravessada pelas longas lanças e flechas dos estrangeiros – as quais não foram antes utilizadas contra a guarda real, devido à rapidez com que esta encurtara a distância com os piratas. A segunda precipitou-se para a frente, colidiu com o grupo pouco numeroso e foi cortada como milho ante uma foice. As espadas reluzentes embaciaram-se, tingindo-se de vermelho com o sangue dos nativos.
A formação passou a progredir rastejando, à medida que os inimigos pressionavam de todos os lados, supridos por contínuas reservas. Surgiram grandes manchas vermelhas no cascalho da ladeira árida. Mais e mais corpos seminus caíam sem vida. Os bárbaros que avançavam de trás lutavam sobre os cadáveres dos companheiros, cortando os pés descalços nas armas quebradas; lançavam a carne contra as terríveis pontas de ferro das lanças civilizadas, que espetavam peitos e abdomes, para tombar em seguida sobre a pilha de mortos. De perto, não eram páreos para a disciplina daqueles homens da civilização.
Mas um dos piratas, um gigantesco zíngaro, com um joelho e coxa feridos, não conseguia acompanhar a formação em avanço. Ficando para trás, logo atraiu um grupo de vinte nativos, que o rodearam prontamente. Encurralado, girou a espada como a pá de um moinho de vento e cortou três deles ao meio antes que o resto recuasse, hesitando ante sua força espantosa. Ao ver que recuavam, gritou e gesticulou para que se aproximassem e lutassem.
Os bárbaros, tendo aprendido a lição à própria custa, recusaram o combate corpo a corpo. Mantendo-se afastados, dispararam uma torrente de lanças contra o zíngaro. Dali a segundos, o sangue jorrava de cinco ferimentos em seu corpo. Ele ainda agarrou as hastes e puxou as pontas, mas um inimigo aproximou-se correndo e arremessou sua lança, atingindo-o na garganta e, pouco a pouco, o zíngaro enfraqueceu com a perda de sangue e caiu no cascalho. As mulheres bárbaras avançaram como uma alcatéia de lobos raivosos e, com golpes de pedra, reduziram-no a uma massa.
Mais adiante, Conan, equilibrando-se escarranchado sobre duas pernas, volteava a espada em golpes calculados, quase metronômicos. Quatro nativos caíram a seus pés. Derrubou outro, com a superfície plana da espada, e cortou a garganta de um que investira contra sua lateral. Então, a horda seminua e furiosa bateu em retirada do combate corpo a corpo.
De repente, porém, ouviu um imenso clamor à sua direita, e um clamor igual à sua esquerda. Eram as duas colunas circundantes que os atacavam. Imediatamente, a massa de homens diante deles rompeu avançando por aquela língua de planície, que penetrava em subida suave no interior da sua meia lua. Vinham num passo vivo, certo, elástico, que cadenciavam entoando um canto rouco. Os piratas começaram de novo a fazer fogo com suas flechas. Muitos nativos caíram. Mas era como se atirassem pedras a uma grande vaga de equinócio. A maré humana subia. Subia com grandes brados, repelindo os seus postos, colocados entre as rochas, à base da colina. A sua marcha, porém, diminuía de ímpeto, à maneira que a subida se convertia em ladeira, depois em íngreme pendor de monte. Aí onde começava o monte, estacionava a primeira linha de defesa pirata. Já de lado a lado, entre as forças, se começavam a atirar as tolas, grandes facas de arremesso que faiscavam no ar. Os que avançavam vinham bradando: “Negari, Negari! Nakura, Nakura!”. Os hiborianos replicavam: "Conan, Conan! Amra, Amra!". As primeiras azagaias entrechocaram-se; e, com o encontro, peito a peito, das duas massas de homens, na vertente da colina, a batalha começou. As forças que atacavam eram esmagadoras; e a primeira linha dos aliados de Conan, onde os homens caíam como folhas no outono, cedeu, e reentrou na segunda linha de defesa. A luta aqui foi terrível; mas os civilizados recuaram, e a terceira linha entrou em batalha à orla já do planalto. Conan, cujos olhos se acendiam, não se conteve mais. Brandindo o seu machado de guerra – agora que sua espada havia se quebrado –, arremessou-se para o meio do combate, seguido por Sigurd. Ao avistar a gigantesca figura do "homem das neves" que vinha em seu socorro, os lobos do mar lutaram com entusiasmo.
O plano de Conan, de resto, foi triunfalmente realizado. Os nativos avançaram naquela língua de terra que penetrava na meia lua dos piratas, e com admirável heroicidade, sustentaram os ataques de regimentos após regimentos, arremessados sobre eles pela rainha de Negari.
Quando dos nativos restava apenas metade, e a atenção de todo o exército inimigo estava concentrada nesta luta com o heróico regimento, as duas alas piratas, que tinham caminhado pelos dois cornos da meia lua, caíram sobre os flancos desprevenidos do inimigo, como um círculo de cães de caça sobre raposas descuidadas. Começou uma pavorosa matança. Conan carregou então de frente, com as reservas frescas, e decidiu a batalha. Sigurd fez parte dessa carga; e, sem saber como, achou-se aos pés de Conan, que parecia o verdadeiro deus da guerra, com os longos cabelos negros a esvoaçarem ao vento, todo ele vermelho de sangue, e soltando, a cada grande golpe de machado, o velho grito cimério de ataque: “Haii-yaah! Haii-yaah!”. Também lhe pareceu que avistou Zeltran na confusão, coberto com a sua cota de malha, arremessando as tolas, as facas enormes dos negaris, que dois guerreiros atrás dele traziam em sacos de couro. Lembrou-se ainda também de um chefe nativo, de nome Ngwen, que, em vez de escudo, erguia, para se defender, o cadáver de um pirata chamado Kurchat, e que combatia cantando. De resto, tudo se lhe confundiu na memória, o sangue correndo, os corpos tombando, um grande estridor de armas, um imenso esvoaçar de plumas. Parecia-lhe que todos esses medonhos conflitos de selvagens, mesmo travados com a disciplina dos zíngaros, se assemelhavam: é sempre uma vasta confusão de corpos escuros e emplumados, um estridente ruído de escudos entrechocando-se, azagaias reluzindo no ar, saltos, guinchos, uivos, clamores imensos, onde destaca uma nota assobiada, o “sgghi! sgghi!” que solta o selvagem, quando trespassa com o ferro o inimigo.
Como o plano consistia em resgatar Conan, e a mina estava totalmente inacessível devido à massa de guerreiros que bloqueava o caminho, os piratas foram recuando lenta e propositadamente, pondo-se na defensiva, com as fileiras frontais dando cobertura às posteriores.
De repente, um rebuliço entre os negros fez com que eles parassem a contenda, quase que indiferentes à batalha. Os piratas aproveitaram para retornarem mais rapidamente à praia, onde o Esbanjador estava ancorado. Conan, entretanto, não recuou de imediato, parando para ver o que acontecia. Foi quando o cimério, com seus olhos de águia, viu, assombrado, que uma das flechas disparadas pelos bucaneiros acertara o coração de Mahu – embora esta talvez não fosse a intenção dos zíngaros e argoseanos que vieram em seu auxílio.
Meio a contragosto, Conan da Ciméria – ainda atordoado e praguejando, por causa do enlouquecimento e morte da linda mulher com a qual passara uma noite inesquecível – correu para o navio. Só quando o cimério, acompanhado por Zeltran, Arzil e Sigurd, alcançou o Esbanjador, os negaris conseguiram se refazer do torpor causado pela morte repentina de sua rainha. Enlouquecidos de ódio e em busca de vingança, os bravos nativos investiram, como uma única massa, contra aqueles bucaneiros. Mas, outras lanças e flechas, atiradas contra os nativos, mantiveram-nos acuados pelo tempo suficiente para que o Esbanjador partisse.
***
O mar trazia um murmúrio como o suspiro de uma mulher mal-amada, um murmúrio inquieto e desesperado. A não ser por isso, um silêncio agourento enchia os ares.
Conan inspirou profundamente o ar noturno, franzindo o cenho inconscientemente ao sentir o cheiro salgado e cortante do mar. O vento fresco erguia e agitava-lhe os cabelos. Ele sentia-se livre e sem peias, como apenas se pode sentir quando se está no oceano. E depois, como uma punhalada, veio-lhe à cabeça a lembrança de Negari e suas colinas negras, e a certeza de que um imenso tesouro fora perdido. Não apenas o tesouro dos diamantes, jóias e ouro, mas também um outro sonho de monarquia. Há anos, às margens do Rio Zarkheba, ele perdera uma valorosa rainha. Horas atrás, acabava de perder outra, tão sensual, irresistível, e quase tão guerreira quanto a pirata shemita da costa dos Reinos Negros.
Próximo, os piratas cantavam melancolicamente. Ele escutava mal a letra da canção:
Perguntais por que choro, mulher?
Escutais o que te irei contar:
Choro pela donzela, há pouco sepultada,
Pela luz de seus olhos, desaparecida.
Pelos lábios que beijei, e que já não podem beijar.
Por tudo isso, mulher, estou a gemer e chorar.
Aquilo o fez lembrar de outra história, narrada por Mahu a caminho da caverna do tesouro:
“Quando todos os filhos da Atlântida, exceto os sacerdotes, morreram, um grande rei subiu ao trono da antiga Negari. Era um tigre, e seus guerreiros eram como leopardos. Ninguém pôde contê-los. Arrasaram a terra de mar a mar, e a fumaça da destruição ocultou as estrelas. Mesmo após a morte daquele rei, uma insanidade latente espreita nas mentes de cada um de seus descendentes. Saborearam tanta matança e vitória, que são como leopardos humanos, sempre sedentos de sangue”.
Só agora, o cimério entendia o que Mahu quis dizer com “insanidade latente”...
Lá no alto, um falcão solitário, trazido das montanhas pelo vento, como um floco de neve, olhou para baixo, observou cada detalhe com seus olhos incríveis e seu grito doloroso de alma penada desceu com o vento.
Se Conan soubesse que a rainha era conivente com os sacrifícios humanos negaris, os quais o cimério não vira – e nem sequer ouvira falar –, ele certamente não estaria tão melancólico... Mas, mesmo assim, puniria o assassino daquela linda mulher, caso descobrisse quem foi. De qualquer forma, a flecha que matara Mahu não era endereçada à bela rainha de Negari, de modo que nem mesmo quem a disparara estava consciente de que atingira a linda negra.
Poucos meses depois, outros navios zíngaros, não tão fiéis ao rei Ferdrugo e invejosos dos sucessos posteriores do bucaneiro cimério e de sua popularidade com o rei de Zingara, afundariam o navio Esbanjador. Só Conan e Sigurd sobreviveriam. Enquanto o cimério adentraria Shem e os Reinos Negros, o vanir seguiria para Argos. Os dois bárbaros só se reencontrariam décadas depois, já viúvos, em Messantia. Mas isto... é uma outra história.