Os Filhos do Lobo Branco

(por Robert E. Howard)


originalmente publicado em dezembro/ 1936


1) O Estandarte de Batalha


O COMANDANTE DO posto-avançado turco de El Ashraf foi acordado antes do amanhecer, pelo bater de cascos de cavalos e o retinir de apetrechos. Ele se sentou e gritou para seu sentinela. Não houve resposta, e então ele se levantou, vestindo-se brusca e apressadamente, e andou a passos largos para fora do seu quartel-general manchado de barro. O que ele viu o deixou momentaneamente sem fala.

Seu comando estava montado, em total formação, aprumado perto da ferrovia que eles tinham a obrigação de defender. A planície à esquerda dos trilhos, onde as tendas e tropas haviam estado, se encontrava vazia. As tendas haviam sido colocadas nos camelos de bagagem, que estavam totalmente abarrotados e prontos para partirem. O comandante arregalou ferozmente os olhos, duvidando de seus próprios sentidos, até que seu olhar parou numa bandeira sustentada por um soldado de cavalaria. A flâmula ondulante não exibia a familiar lua crescente. O comandante ficou pálido.

- O que significa isto? – ele gritou, caminhando a passos largos para a frente. Seu lugar-tenente, Osman, olhava para ele, impenetrável. Osman era um homem alto, duro e flexível como aço, com um agudo rosto escuro.

- Motim, effendi. – ele respondeu calmamente – Estamos fartos desta guerra que lutamos pelos alemães. Estamos fartos de Djemal Pasha e daqueles outros imbecis do Conselho de União e Progresso, e, finalmente, de você. Por isso, iremos adentrar as colinas para construir nossa própria tribo.

- Loucura! – ofegou o oficial, puxando seu revólver. Enquanto ele o fazia, Osman o baleou na cabeça.

O lugar-tenente guardou a pistola fumegante e virou-se para os soldados. O exército era todo dele, obtido através de sua selvagem ambição, sob o próprio nariz do oficial que agora jazia com seus miolos escorrendo.

- Ouçam! – ele ordenou.

No tenso silêncio, todos eles ouviram o eco baixo e profundo a oeste.

- Armas britânicas! – disse Osman – Esmigalhando o Império Turco! Os novos turcos falharam! O que a Ásia precisa não é de uma nova facção, mas de uma nova raça! Há milhares de guerreiros entre a costa síria e as terras altas da Pérsia, prontos para serem erguidos por uma nova palavra, um novo profeta! O Leste está se movendo em seu sono. É nosso dever despertá-lo!

“Todos vocês juraram me seguir colinas adentro. Vamos retornar aos caminhos de nossos ancestrais pagãos, que adoravam o Lobo Branco nas estepes da Alta Ásia, antes que eles se curvassem ao credo de Maomé!

“Chegamos ao fim da Era Islâmica. Estamos rejeitando Alá como uma superstição fomentada por um epiléptico condutor de camelos de Meca. Nosso povo tem copiado os modos árabes há muito. Mas nós somos cem homens turcos! Queimamos o Alcorão. Não nos curvamos em direção a Meca, nem juramos pelo falso Profeta. E agora, sigam-me como planejamos: para nos estabelecermos em forte posição nas colinas e nos apossarmos de mulheres árabes para serem nossas esposas”.

- Nossos filhos serão meio árabes. – protestou alguém.

- Um homem é filho de seu pai. – retorquiu Osman – Nós, turcos, sempre pilhamos os haréns do mundo para obtermos mulheres, mas nossos filhos são sempre turcos.

“Venham! Temos armas, cavalos e suprimentos. Se demorarmos, seremos esmagados, com o restante do exército, entre os britânicos na costa e os árabes que o inglês Lawrence está trazendo do sul. Para El Awad! A espada para os prisioneiros, para as mulheres!”.

Sua voz estalava como um chicote, enquanto ele rugiu as ordens que puseram as linhas em movimento. Em perfeita ordem, eles partiram pelo luminoso amanhecer, em direção às colinas pontiagudas à distância. Atrás deles, o ar ainda vibrava com o distante estrondo da artilharia britânica. Acima deles, ondulava uma bandeira com a cabeça de um lobo branco – o estandarte de batalha da mais antiga Turan.


2) Massacre


QUANDO FRAULEIN OLGA VON BRUCKMANN, conhecida como uma famosa agente secreta alemã, chegou ao pequeno vilarejo árabe das colinas, chamado El Awad, havia um chuvisco que fazia do entardecer uma cortina cega sobre a cidade lamacenta.

Com seu acompanhante, um árabe chamado Ahmed, ela cavalgou para dentro da rua lamacenta, e os aldeões se moveram cuidadosamente de dentro de suas choupanas, para olharem, pasmados, a primeira mulher branca que muitos deles nunca viram.

Umas poucas palavras de Ahmed, e o sheik saudou e mostrou a ela a melhor cabana de barro do vilarejo. Os cavalos foram levados para serem alimentados e abrigados, e Ahmed fez uma pausa longa o suficiente para dizer à sua acompanhante:

- El Awad é hospitaleira com os turcos. Não tenha medo. Estarei por perto, para qualquer eventualidade.

- Procure e encontre cavalos novos. – ela frisou – Devo partir assim que puder.

- O sheik jura que não há, no vilarejo, um só cavalo em condições adequadas para ser montado. Ele pode estar mentindo. Mas, seja como for, nossos próprios cavalos descansarão o bastante para prosseguirem ao amanhecer. Mesmo com cavalos novos, seria inútil tentar percorrer qualquer distância esta noite. Nós nos perderíamos por entre as colinas, e nesta região há sempre o risco de se deparar com os invasores dos Beduínos de Lawrence.

Olga estava ciente de que Ahmed sabia que ela levava importantes documentos secretos de Bagdá para Damasco; e ela sabia, pela experiência, que poderia confiar na lealdade dele. Tirando apenas seu manto molhado e suas botas para montar, ela se estirou nos cobertores desbotados que serviam de cama. Estava exausta da cansativa viagem.

Ela foi a primeira mulher branca a tentar cavalgar de Bagdá para Damasco. Apenas a proteção, dada a uma confiável agente secreta pelo longo braço do governo alemão-turco, e o zelo e a astúcia de seu guia, trouxeram-na de tão longe em segurança.

Ela caiu no sono, pensando nas longas e penosas milhas que ainda seriam percorridas, e nos perigos ainda maiores, agora que ela adentrou a região onde os árabes lutavam contra seus senhores turcos. Os turcos ainda dominavam o país, naquele verão de 1917, mas incursores velozes apareciam subitamente pelo deserto, dinamitando trens, cruzando trilhos e chacinando os habitantes de postos isolados. Lawrence estava liderando as tribos para o norte, e com ele estava o misterioso americano El Borak, cujo nome era usado para silenciar crianças.


Ela nunca soube por quanto tempo dormira, mas acordou subitamente e sentou-se, assustada e perplexa. A chuva ainda batia no teto, mas, misturada a ela, havia gritos agudos de dor e medo, brados e o crepitar de fuzis. Ela se ergueu de um salto, acendeu uma vela e estava justamente calçando as botas, quando a porta foi violentamente aberta.

Ahmed cambaleou para dentro, com seu escuro rosto agora pálido e o sangue escorrendo pelos dedos que seguravam o peito.

- O vilarejo está sendo atacado! – ele gritou, asfixiado – Homens em uniformes turcos! Deve haver algum erro! Eles sabem que El Awad é amigável! Eu tentei dizer ao oficial deles que nós somos amigos, mas ele me baleou! Temos que partir rapidamente!

Um tiro estourou na porta aberta atrás dele, e um jato de fogo partiu da escuridão. Ahmed gemeu e caiu. Olga gritou de horror, encarando, com os olhos arregalados, a figura que se erguia diante dela. Um homem alto, magro e vigoroso, com uniforme turco, obstruía a porta. Ele tinha uma beleza escura e aquilina, e olhava para ela de um modo que a envergonhava.

- Por que matou aquele homem? – ela indagou – Ele era um empregado confiável de seu país.

- Não tenho país. – ele respondeu, caminhando em direção a ela. Lá fora, os disparos estavam se dissipando e o choro das mulheres se erguia – Construirei um, como meu ancestral Osman fez.

- Eu não sei do que está falando. – ela replicou – Mas, se você não me providenciar uma escolta para o posto mais próximo, vou lhe denunciar aos seus superiores e...

Ele riu selvagemente para ela:

- Eu não tenho superiores, sua pequena tola! Eu sou um construtor de um império, já disse! Tenho cem homens armados à minha disposição. Construirei uma nova raça nestas colinas.

Os olhos dele brilhavam, enquanto falava.

- Você é louco! – ela exclamou.

- Louco? Você é que é louca em não identificar as possibilidades que tenho! Esta guerra está sangrando a vida da Europa. Quando terminar, não importa quem ganhe, as nações cairão prostradas. Então, será a vez da Ásia!

“Se Lawrence pode construir um exército árabe para lutar por ele, então, certamente eu, um otomano, posso construir um reino entre minha própria gente! Milhares de soldados turcos têm desertado para os britânicos. Eles, e muito mais, desertarão novamente para mim, quando ouvirem que um turco está construído novamente o império da antiga Turan”.

- Faça o que quiser. – ela respondeu, acreditando que ele estava possuído pela loucura que freqüentemente acomete homens em tempos de guerra, quando o mundo parece se despedaçar e qualquer sonho selvagem parece possível – Mas, pelo menos, não interfira em minha missão. Se você não me dará uma escolta, prosseguirei sozinha.

- Você irá comigo! – ele replicou, olhando-a de cima a baixo com fria admiração.

Olga era uma bela jovem alta, delgada, porém macia, com abundantes e rebeldes cabelos dourados. Ela era tão completamente feminina, que nenhum disfarce faria com que parecesse um homem – nem mesmo as volumosas túnicas árabes, motivo pelo qual ela não procurou nenhuma. Ao invés disso, confiou na habilidade de Ahmed em conduzi-la a salvo pelo deserto.

- Está ouvindo esses gritos? Meus homens estão se abastecendo de esposas, para gerarem soldados para o novo império. Você terá a extraordinária honra de ser a primeira a entrar no harém do Sultão Osman!

- Você não ousaria!

Ela agarrou repentinamente uma pistola que trazia na blusa. Antes que pudesse apontá-la, ele arrancou-a dela com força brutal.

- Ousar! – ele riu diante de seus esforços inúteis – O que eu não ousaria? Eu lhe digo que um novo império está nascendo esta noite! Venha comigo! Não há tempo para fazer amor agora. Antes do amanhecer, deveremos estar marchando para as Muralhas de Sulaiman. A estrela do Lobo Branco se ergue!


3) O Apelo Sangrento


O SOL NÃO se erguera há muito tempo sobre as montanhas pontiagudas do leste, mas o calor já vitrificava o céu sem nuvens com a cor do aço quente e branco. Ao longo da estrada escura que cortava a imensidão do deserto, uma figura solitária se movia. A figura saiu das névoas quentes do sul e se transformou num homem a camelo.

O homem não era árabe. Suas botas, suas vestimentas cáqui, assim como a coronha do fuzil a se sobressair sob seu joelho, eram do Oeste. Mas, com seu rosto escuro e constituição firme, ele não parecia deslocado, mesmo naquela terra feroz. Era Francis Xavier Gordon, El Borak, a quem os homens amavam, temiam ou odiavam, a depender de suas naturezas políticas, desde o Chifre Dourado até as cabeceiras do Ganges.

Ele havia cavalgado grande parte da noite, mas sua estrutura férrea ainda não havia se aproximado dos limites da fadiga. Outra milha, e ele viu um caminho ainda obscuro, desviando-se do alto de uma fileira de colinas a leste. Alguma coisa vinha se aproximando ao longo deste caminho – algo rastejante, que deixava uma larga mancha escura nas pedras quentes.

Gordon dirigiu seu camelo até o caminho, e no momento seguinte, se curvou sobre o homem que jazia lá, ofegando em agonia. Era um jovem árabe, e o peito de seu abba estava encharcado de sangue.

- Yusef!

Gordon puxou para trás o abba molhado, olhou para o peito nu, e então o cobriu novamente. O sangue escorria inabalável, de um buraco de bala, com bordas azuis. Não havia nada que ele pudesse fazer. Os olhos do árabe já estavam vitrificando. Gordon olhou para o caminho, e não viu cavalo nem camelo em parte alguma. Mas o borrão escuro manchava as pedras até onde ele conseguia enxergar.

- Por Deus, homem, por quanto tempo você se arrastou nestas condições?

- Uma hora... várias horas... eu não sei! – ofegou Yusef – Fiquei tonto e caí da sela. Quando recuperei a consciência, eu estava caído na trilha e meu cavalo tinha ido embora. Mas eu sabia que você viria do sul, e então rastejei... rastejei. Alá, como essas pedras são ásperas!

Gordon colocou-lhe um cantil nos lábios, e Yusef bebeu ruidosamente. Então, ele agarrou fortemente a manga de Gordon com os dedos em forma de presas:

- El Borak, estou morrendo e isso não importa muito, mas a vingança é importante... não por mim, ya sidi, mas pelos inocentes. Você sabe que eu estava de licença no meu vilarejo de El Awad. Eu sou o único homem de El Awad que luta pela Arábia. Os primeiros eram hospitaleiros para com os turcos. Mas, na noite passada, os turcos queimaram El Awad! Eles chegaram lá antes da meia-noite, e o povo deu as boas-vindas a eles... enquanto eu me escondia num abrigo.

“Então, sem o menor aviso, eles começaram a matar! Os homens de El Awad estavam desarmados e indefesos. Eu mesmo só matei um soldado. Então, me balearam e eu me arrastei de lá... achei meu cavalo e cavalguei para lhe contar a história, antes de morrer. Ah, Alá, senti o gosto da perdição esta noite!”.

- Você reconheceu o comandante deles? – perguntou Gordon.

- Eu nunca o vi antes. Eles chamavam seu líder de Osman Pasha. A bandeira deles tinha a cabeça de um lobo branco. Eu a vi à luz das cabanas que queimavam. Meu povo gritava em vão que eles eram amigos.

“Havia uma alemã e um homem de Hauran, que chegaram a El Awad, vindos do leste, bem ao cair da noite. Acho que eram espiões. Os turcos balearam-no e levaram-na prisioneira. Era tudo sangue e loucura”.

- Loucura mesmo! – murmurou Gordon.

Yusef se apoiou num dos cotovelos e tateou por ele, com uma desesperada urgência na voz que enfraquecia:

- El Borak! Eu lutei favoravelmente pelo Emir Feisal, pelo effendi Lawrence, e por você! Estive em Yenbo, Wejh e Aqaba. Eu nunca pedi uma recompensa! Agora, eu peço: justiça e vingança! Conceda-me este pedido: mate os cães turcos que chacinaram meu povo!

Gordon não hesitou.

- Eles vão morrer. – respondeu.

Yusef sorriu ferozmente, e ofegou:

- Allaho akbat!

Então, ele desabou para trás, já morto.


Dentro de uma hora, Gordon cavalgava para leste. Os abutres já se acumulavam no céu, com seu assustador pressentimento de morte, e então voaram subitamente para longe do monte de pedras que ele amontoara sobre o morto Yusef.

Os negócios de Gordon no norte podiam esperar. Um dos motivos para seu domínio sobre os Orientais era o fato de que, em alguns aspectos, sua natureza se parecia bastante com a deles. Ele não apenas entendia o clamor pela vingança, mas simpatizava com ela. E ele sempre cumpria suas promessas.

Mas ele estava perplexo. A destruição de um vilarejo amigável não era algo comum, mesmo sendo feita pelos turcos, e eles certamente não costumavam maltratar os próprios espiões. Se eram desertores, estavam agindo de maneira nada comum, pois a maioria dos desertores abria caminho para Feisal. E aquela bandeira com cabeça de lobo?

Gordon sabia que certos fanáticos, no partido dos Novos Turcos, estavam tentando apagar, de sua civilização, todos os sinais da cultura árabe. Esta era uma tarefa impossível, uma vez que aquela própria civilização era baseada na cultura árabe; mas ele ouvira que, em Istambul, os radicais chegavam a defender o abandono ao Islã e o retorno ao paganismo de seus ancestrais. Mas ele nunca acreditara nessa história.

O sol estava se pondo sobre as montanhas de Edom, quando Gordon chegou à destruída El Awad, numa dobra das colinas nuas. Nas horas anteriores, ele havia marcado sua localização através de pequenas manchas negras, baixando no azul. O fato de não se reerguerem lhe indicou que o vilarejo estava deserto, exceto pelos mortos.

Enquanto cavalgava para dentro da rua poeirenta, vários abutres batiam pesadamente as asas. O sol quente havia secado a lama e coagulado as poças vermelhas na poeira. Ele se agachou por um tempo, fitando silenciosamente.

O trabalho de um turco não lhe era estranho. Ele tinha visto muito disso, na longa luta de Jeddah, no Mar Vermelho. Mas, mesmo assim, ficou nauseado. Os corpos jaziam na rua, decapitados, estripados; havia corpos despedaçados de crianças, velhas e homens. Uma bruma vermelha flutuava diante de seus olhos, de modo que, por um momento, o cenário parecia nadar em sangue. Os assassinos haviam partido; mas haviam deixado um caminho visível para ele seguir.

O que os sinais deixados não lhe mostravam, ele deduzia. Os assassinos haviam carregado suas mulheres cativas nos camelos de bagagem, em direção às colinas. Por que estavam seguindo aquela estrada, ele não conseguia imaginar, mas sabia para onde ela conduzia: para as há muito abandonadas Muralhas de Sulaiman, pelo Poço de Achmet.

Sem hesitar, seguiu o caminho. Ele não se afastara muitas milhas antes de passar diante de mais um dos trabalhos deles – um bebê, com os miolos escorrendo de sua cabeça quebrada. Alguma mulher seqüestrada havia escondido sua criança nas vestimentas, até esta lhe ter sido arrancada e tido os miolos arrebentados nas rochas, diante dos olhos dela.

A região ficava mais selvagem à medida que ele avançava. Não parou para comer, mas mastigou ruidosamente tâmaras secas de sua bolsa, enquanto cavalgava. Ele não perdeu tempo se preocupando com o perigo de sua empreitada – um americano solitário, rastreando a trilha rubra de um bando de saqueadores turcos.

Ele não tinha plano; suas ações posteriores dependeriam das circunstâncias que surgissem. Mas ele havia tomado a trilha mortal e não recuaria enquanto vivesse. Não era mais temerário que seu avô, que rastreara sozinho um grupo de guerreiros apaches, através dos Guadalupes, e voltara ao acampamento em Pecos, com escalpos pendurados no cinto.

O sol havia se posto, e a escuridão se aproximava, quando Gordon subiu uma serra e olhou pra baixo, em direção à planície onde se erguia o Poço de Achmet, com suas palmeiras fincadas irregularmente. À direita do agrupamento, se erguiam as tendas, as fileiras dos cavalos e as dos camelos de uma tropa bem organizada. À esquerda, se encontrava uma cabana usada por viajantes. A porta estava fechada e havia um guarda diante dela. Enquanto ele olhava, um homem saiu das tendas com uma tigela de comida, a qual entregou na porta.

Gordon não conseguia ver o ocupante, mas ele acreditou que fosse a jovem alemã da qual Yusef havia falado, embora o motivo deles prenderem um de seus próprios espiões fosse um dos mistérios desta estranha questão. Ele viu a bandeira deles, e pôde reconhecer um borrão branco, que devia ser a cabeça do lobo. Também viu as mulheres árabes – 35 ou 40 delas –, agrupadas num cercado improvisado por fardos e selas. Elas se encolhiam juntas, atordoadas por seus infortúnios.

Ele escondera o camelo sob a serra, no declive ocidental, e se deitou, escondido atrás de uma moita de arbustos raquíticos, até cair a noite. Então, ele desceu furtivamente o declive, se movendo em largos círculos para evitar a patrulha montada, a qual rondava despreocupada em redor do acampamento. Ele se escondeu atrás de um matacão até que ela passasse, e então se levantou e se moveu furtivamente em direção à cabana. Fogueiras brilhavam na escuridão sob as folhas das palmeiras, e ele ouviu o pranto da prisioneira.

A sentinela diante da porta da cabana não viu a sombra de pés felinos, que deslizava para a parede dos fundos. Quando Gordon se aproximou, ouviu vozes lá dentro. Eles falavam em Turco.

Havia uma janela na parede dos fundos. Faixas de madeira haviam sido fixadas sobre ela, para servirem tanto como vidraça quanto como trancas. Perscrutando entre elas, Gordon viu uma jovem esguia, com uma desgastada roupa de viagem a cavalo, diante de um homem de rosto escuro, com uniforme turco. Não havia emblema que lhe indicasse qual havia sido seu posto na hierarquia militar. O turco brincava com um chicote para cavalos, e seus olhos brilhavam cruelmente na luz de uma vela sobre uma mesa de acampamento.

- Que me importa a informação que você traz de Bagdá? – ele reclamava – Nem a Turquia nem a Alemanha significam coisa alguma para mim. Mas parece que você não conseguiu compreender minha posição. Eu comando, e você obedece! Você é minha prisioneira, minha cativa, minha escrava! É hora de entender o que isso significa. E o melhor mestre que conheço é o chicote!

Ele expeliu completamente a última palavra, e a moça empalideceu.

- Não ouse me sujeitar a esta indignidade! – ela sussurrou fracamente.

Gordon sabia que este homem deveria ser Osman Pasha. Puxou sua pesada pistola, da bainha sob sua axila, e apontou para o peito do turco, através da fenda na janela. Mas, mesmo enquanto seu dedo se fechava no gatilho, ele mudou de idéia. Havia o guarda na porta, e uma centena de outros homens armados, dentro das tendas e com os ouvidos atentos, aos quais o som de um tiro os traria correndo para lá. Ele agarrou as barras da janela e firmou as pernas.

- Vejo que devo dissipar suas ilusões. – resmungou Osman, se movendo em direção à garota, a qual se encolheu para trás, até ser detida pela parede. Seu rosto estava pálido. Ela já havia lidado com muitos homens perigosos em sua arriscada carreira, e não era uma pessoa fácil de se amedrontar. Mas ela nunca havia encontrado um homem como Osman. O rosto dele era uma aterradora máscara de crueldade: a ferocidade que se alegra diante da angústia de uma coisa mais fraca brilhava em seus olhos.

Súbito, ele a agarrou pelos cabelos, puxando-a para si e rindo de seu grito de dor. Naquele exato momento, Gordon arrancou as faixas da janela. O quebrar da madeira soou tão alto quanto um tiro de pistola, e Osman virou-se, puxando a arma, enquanto Gordon atravessava a janela.

O americano caiu de pé e apontou-lhe a pistola, detendo o movimento de Osman. O turco ficou congelado de medo, com sua pistola erguida à altura do ombro e apontada para o teto. Do outro lado, o guarda gritava aflito.

- Responda a ele! – rangeu Gordon, sussurrando – Diga a ele que está tudo bem. E largue essa arma!

A pistola caiu ao chão, e a garota pegou-a.

- Venha cá, Fraulein!

Ela correu até ele, mas, em sua pressa, cruzou a linha de fogo. Naquele momento fugaz, quando seu corpo protegeu o dele, Osman agiu. Ele chutou a mesa, e a vela caiu e se apagou, ao mesmo tempo em que ele se lançou ao chão. A pistola de Gordon rugiu de forma ensurdecedora, no exato momento em que a cabana mergulhou na escuridão. No momento seguinte, a porta se quebrou para dentro, e o guarda se destacou sob a luz das estrelas, para cair enquanto a pistola de Gordon disparava novamente, e outra vez novamente.

Com um rápido movimento de seu braço, Gordon encontrou a garota e puxou-a em direção à janela. Ele ergueu-a como se fosse uma criança, e subiu rapidamente depois dela. Ele não sabia se seu tiro às cegas havia atingido Osman ou não. O homem estava se agachando silenciosamente na escuridão, mas não havia tempo de acender um fósforo e ver se ele estava vivo ou morto. Mas, enquanto corriam pela planície sombria, eles ouviram a voz de Osman se erguer, furiosa.

Quando alcançaram o topo da duna, a garota tomou fôlego. Apenas o braço de Gordon ao redor de sua cintura, meio arrastando-a, meio carregando-a, permitiu que ela percorresse os últimos poucos metros do declive íngreme. A planície abaixo estava fervilhando de tochas e de homens gritando. Osman berrava para que eles detivessem os fugitivos, e sua voz chegava fraca a estes últimos, que já estavam na serra.

- Peguem-nos vivos, seus malditos! Se espalhem e encontrem-nos! É El Borak! – No instante seguinte, ele estava gritando com uma ponta de pânico na voz: – Esperem. Voltem! Protejam-se e se preparem para repelir um ataque! Ele deve ter uma horda de árabes consigo!

- Ele primeiro pensa nos próprios desejos, e só depois na segurança de seus próprios homens. – murmurou Gordon – Não acho que ele conseguirá ir longe. Vamos.

Ele seguiu o caminho até o camelo, ajudou a garota a montar, e então pulou sobre o dorso do animal. Uma palavra, um leve golpe de bastão no camelo, e o animal desceu silenciosamente a inclinação.

- Eu soube que Osman lhe capturou em El Awad. – disse Gordon – Mas, o que ele está fazendo? Qual o jogo dele?

- Ele era um lugar-tenente da estação de El Ashraf. – ela respondeu – Persuadiu seu batalhão a se amotinar, matou o comandante e desertou. Ele planeja fortificar as Muralhas de Sulaiman, e construir um novo império. No início, pensei que ele fosse louco, mas não. Ele é um demônio.

- As Muralhas de Sulaiman?

Gordon freou sua montaria e, por um momento, ficou parado sob a luz das estrelas.

- Você está disposta a cavalgar por toda a noite?

- Pra qualquer lugar! O mais longe possível de Osman! – havia uma insinuação de histeria na voz dela.

- Duvido que sua fuga mude os planos dele. Ele provavelmente ficará a noite inteira nos arredores de Achmet, protegido por armas, esperando um ataque. Pela manhã, perceberá que eu estava sozinho, e sairá em direção às Muralhas.

“Bem, eu descobri que há uma força árabe lá, aguardando uma ordem de Lawrence pra avançar para Ageyli. Trezentos Juheinas, montados a camelo, leais a Feisal. O suficiente para acabarem com o bando de Osman. O mensageiro de Lawrence deveria alcançá-los entre o amanhecer e o meio-dia. Há uma chance de chegarmos lá antes dos Juheinas partirem. Se pudermos, iremos liderá-los contra Osman e atacar a ele e a toda sua matilha.

“Isso não frustrará os planos de Lawrence, de os Juheinas chegarem a Ageyli no dia seguinte; e Osman deve ser destruído. Ele é um cão louco, correndo solto”.

- A ambição dele soa louca. – ela murmurou – Mas, quando fala dela, com os olhos resplandecentes, é fácil acreditar que ele pode até ser bem-sucedido.

- Você esquece que coisas mais loucas têm ocorrido no deserto. – ele respondeu, enquanto girava o camelo para leste – O mundo está sendo feito aqui, assim como na Europa. Não há como avaliar o prejuízo que esse Osman possa causar, se não for detido. O Império Turco está caindo aos pedaços, e novos impérios têm surgido das ruínas de antigos.

“Mas, se alcançarmos Sulaiman antes dos Juheinas partirem, conseguiremos freá-lo. Se já houverem partido, estaremos em apuros. Será uma aposta arriscada: nossas vidas contra a dele. Está disposta?”

- Até cair a última carta! – ela replicou.

O rosto dele era uma mancha indistinta à luz das estrelas, mas ela mais sentiu do que viu seu sombrio sorriso de aprovação.

Os cascos do camelo não fizeram o menor barulho, enquanto eles desceram o declive e deram uma volta para bem longe do acampamento turco. Como espectros num camelo fantasmagórico, eles se moveram através da planície sob as estrelas. Uma suave brisa agitou os cabelos da moça. Ela só falou depois que as fogueiras obscureceram às suas costas, e eles subiam novamente uma estrada nas colinas.

- Eu lhe conheço. Você é o americano a quem chamam de El Borak, O Veloz. Você desceu do Afeganistão quando a guerra começou. Você esteve com o Rei Hussein antes mesmo que Lawrence chegasse ao Egito. Sabe quem sou?

- Sim.

- Então, qual a minha situação? – ela perguntou – Você me resgatou ou me capturou? Eu sou uma prisioneira?

- Digamos... companheira, por enquanto. – ele sugeriu – Estamos juntos contra um inimigo comum. Não há motivo para não fazermos causa comum, não acha?

- Nenhum. – ela concordou e, inclinando a cabeça loira sobre seu rijo ombro, adormeceu profundamente.

Uma lua fraca se erguia, repelindo os horizontes, as altas escarpas e planícies poeirentas com um prateado morfético. A vastidão do deserto parecia zombar das figuras diminutas em seu entediado e fatigado camelo, enquanto cavalgavam cegamente para um Destino que eles não podiam imaginar.


4) Lobos do Deserto


OLGA ACORDOU ao raiar do dia. Ela estava fria e rígida, apesar do manto que Gordon lhe colocara ao redor, e estava com fome. Haviam cavalgado por um desfiladeiro seco, com encostas alastradas de rochas a ambos os lados, e o passo do camelo se tornara um andar cambaleante. Gordon o fez parar, desmontou sem fazê-lo ajoelhar e tomou-lhe as rédeas.

- Está quase acabado, mas as Muralhas não estão muito longe. Há muita água por lá; e comida, também, se os Juheinas ainda estiverem. Tem tâmaras naquela bolsa.

Se ele sentiu cansaço, não o demonstrou enquanto caminhava à frente do camelo. Olga esfregava as mãos frias e ansiava pelo nascer do sol.

- O Poço de Harith. – Gordon apontou para uma cerca murada – Os turcos construíram aquele muro, anos atrás, quando as Muralhas de Sulaiman eram uma guarnição. Depois, eles abandonaram ambas as posições.

O muro, feito de rochas e lama seca, estava em boa forma, e dentro do cercado, havia uma cabana parcialmente arruinada. O poço era pouco profundo, com um mero fio de água escorrendo pelo fundo.

- Eu acharia melhor desmontar e caminhar também. – sugeriu Olga.

- Estas pedras fariam em pedaços as suas botas e seus pés. Não está longe agora. E então, o camelo poderá descansar o tanto que ele precisar.

- E se os Juheinas não estiverem lá...

Ela deixou a frase inconclusa.

Ele deu de ombros.

- Talvez Osman não venha antes do camelo descansar.

- Creio que ele fará uma marcha forçada. – ela disse, não amedrontada, mas expondo calmamente uma opinião – Seus animais são bons. Se ele os conduzir firmemente, pode chegar aqui antes da meia-noite. Até lá, nosso camelo não estará descansado o bastante para nos carregar. E não conseguiríamos fugir a pé neste deserto.

Ele riu e, respeitando-lhe a coragem, tentou levar a sério a situação deles.

- Bom – ele disse tranqüilamente –, vamos esperar que os Juheinas ainda estejam lá!

Se eles não estivessem, ela e Gordon cairiam na cilada de um deserto hostil e sem água, mordido pelas longas armas de fogo de predatórios homens tribais.

Mais uns cinco quilômetros para leste, e o vale se estreitou e o solo se inclinou para o alto, pontilhado por arbustos secos e matacões. Gordon apontou subitamente para uma tênue tira de fumaça que subia em direção ao céu.

- Veja! Os Juheinas estão lá!

Olga soltou um profundo suspiro de alívio. Só então, ela percebeu o quão desesperadamente havia aguardado por algum sinal assim. Ela se sentiu como se estivesse sacudindo um punho triunfante para a desolação rochosa ao seu redor, como se fosse para um inimigo senciente, mal-humorado e enganado pela presa.

Outra milha, e eles subiram uma serra, e viram um grande cercado ao redor de um agrupamento de poços. Havia árabes acocorados ao redor de suas minúsculas fogueiras de cozinhar. Quando os viajantes ficaram subitamente à vista, a poucas centenas de metros, os beduínos se ergueram de um pulo, gritando. Gordon prendeu subitamente a respiração, entre dentes cerrados.

- Não são Juheinas! São Ruallas! Aliados dos turcos!

Tarde demais para baterem em retirada. Cento e cinqüenta homens selvagens estavam de pé, com os olhares ferozes e os fuzis engatilhados.

Gordon fez a próxima melhor coisa, e andou calmamente em direção a eles. Quem o olhasse, acharia que ele havia esperado encontrar estes homens aqui, sem aguardar nada, exceto uma recepção amigável. Olga tentou imitar-lhe a tranqüilidade, mas ela sabia que suas vidas pendiam no gancho de um dedo no gatilho. Estes homens deveriam ser aliados dela, mas sua experiência recente fez com que ela desconfiasse de orientais. A visão daquelas centenas de rostos lupinos encheu-a de temor doentio.

Eles hesitavam, com os fuzis erguidos, nervosos e incertos como lobos surpresos, e então:

- Alá! – uivou um guerreiro alto e cicatrizado – É El Borak!

Olga prendeu a respiração, enquanto via o dedo do homem tremer no gatilho de seu fuzil. Somente um ímpeto racial, de exultar diante de sua vítima, o impediu de balear o americano naquele momento e ali.

- El Borak!

O grito era uma onda que varria a multidão.

Ignorando o clamor e as espingardas ameaçadoras, Gordon fez o camelo se ajoelhar e desmontou Olga. Ela tentou, com êxito satisfatório, dissimular seu medo das figuras selvagens que se aglomeravam ao redor deles, mas sua pele se arrepiava diante da sede de sangue que brilhava, vermelha, em cada olhar lupino.

A espingarda de Gordon estava em sua caixa de bagagens, na sela; e sua pistola estava fora de vista, sob sua camisa. Ele teve o cuidado de não estender o braço para pegar o rifle – uma atitude que lhe traria uma saraivada de balas –, mas, tendo ajudado a garota a descer, ele se virou e encarou despreocupadamente a multidão, com as mãos vazias. Correndo o olhar pelos rostos ferozes, ele distinguiu um homem alto e imponente, com as ricas vestimentas de um sheik, e que se encontrava um pouco afastado.

- Você mantém uma péssima vigilância, Mitkhal ion Ali. – disse Gordon – Se eu fosse um salteador, seus homens já estariam caídos no próprio sangue.

Antes que o sheik pudesse responder, o primeiro homem que havia reconhecido Gordon se dirigiu violentamente para a frente, com o rosto crispado de ódio.

- Você esperava encontrar amigos aqui, El Borak! – ele exultou – Mas chegou muito tarde! Trezentos cães Juheinas se dirigiram para o norte, uma hora antes do amanhecer! Nós os vimos partirem, e subimos para cá depois que eles foram embora. Se soubessem da sua chegada, talvez ficassem para lhe dar as boas-vindas!

- Não é com você que falo, Zangi Khan, seu cão curdo – revidou Gordon, com desdém –, mas com os Ruallas: homens de honra e inimigos honestos!

Zangi Khan rosnou como um lobo e ergueu o fuzil, mas um beduíno magro pegou-lhe a arma.

- Espere! – rosnou este – Deixe El Borak falar. Suas palavras não são vento.

Um rumor de aprovação se ergueu dentre os árabes. Gordon tocara no feroz orgulho e vaidade deles. Aquilo não lhe salvaria a vida, mas eles queriam ouvi-lo antes de matá-lo.

- Se derem ouvidos, ele irá enganá-los com palavras ardilosas! – gritou furiosamente o enraivecido Zangi Khan – Matem-no agora, antes que ele possa nos prejudicar!

- É Zangi Khan o sheik dos Ruallas, para comandá-los enquanto Mitkhal fica em silêncio? – perguntou Gordon com ironia sarcástica.

Mitkhal reagiu ao seu sarcasmo exatamente como Gordon imaginou que ele o faria:

- Deixe El Borak falar! – ele ordenou – Eu mando aqui, Zangi Khan. Não esqueça.

- Não esqueço, ya sidi. – o curdo lhe garantiu, mas seus olhos brilharam, vermelhos, diante da reprimenda – Eu só falei zelando por sua segurança.

Mitkhal dirigiu-lhe um olhar demorado e penetrante, o qual mostrou a Gordon que não havia afeição entre os dois homens. A reputação de Zangi Khan como lutador significava muito para os guerreiros mais jovens. Mitkhal era mais raposa do que lobo, e ele evidentemente temia a influência do curdo sobre seus homens. Como agente do governo turco, a autoridade de Zangi era teoricamente igual à de Mitkhal.

Na verdade, isto pouco importava, mas os homens da tribo de Mitkhal só recebiam ordens de seu sheik. Entretanto, isto colocava Zangi em posição de usar seus talentos pessoais para ganhar uma ascensão – uma ascensão que Mitkhal temia relegá-lo a uma posição menor.

- Fale, El Borak. – ordenou Mitkhal – Mas fale rápido. É vontade de Alá que seus momentos de vida são poucos.

- A morte marcha do oeste. – disse Gordon abruptamente – Noite passada, cem turcos desertores massacraram o povo de El Awad.

- Wallah! – praguejou um dos homens da tribo – El Awad é hospitaleira com os turcos!

- Mentira! – gritou Zangi Khan – E, se for verdade, os cães desertores mataram o povo para ganharem a simpatia de Feisal.

- Quando foi que os homens chegaram até Feisal com o sangue de crianças nas mãos? – replicou Gordon – Eles renunciaram ao Islã e adoram o Lobo Branco. Arrebataram as mulheres jovens e velhas; aos homens e crianças, eles mataram como se fossem cães.

Um murmúrio de ira se ergueu entre os árabes. Os beduínos possuíam um rígido código de guerra, e não matavam mulheres ou crianças. Era a lei não-escrita do deserto, já velha quando Abraão saiu da Caldéia.

Mas Zangi Khan gritava em furioso escárnio, cego aos olhares ressentidos dirigidos a ele. Ele não entendia esse aspecto particular do código dos beduínos, pois seu povo não tinha tal proibição. Em guerra, os curdos matavam tanto mulheres quanto homens.

- O que significam para nós as mulheres de El Awad? – ele zombou.

- Eu já conheço seu coração. – respondeu Gordon, com frio desprezo – É com os Ruallas que eu falo.

- Um truque! – uivou o curdo – Uma mentira para nos enganar!

- Não é mentira! – Olga caminhou corajosamente para a frente – Zangi Khan, você sabe que sou uma agente do governo alemão. Osman Pasha, líder daqueles renegados, queimou El Awad na noite passada, como El Borak já disse. Osman assassinou Ahmed ibn Shalaan, meu guia, dentre outros. Ele é nosso inimigo tanto quanto dos britânicos.

Ela olhou para Mitkhal, em busca de ajuda, mas o sheik se mantinha à parte, como um ator assistindo a uma peça na qual ainda não havia recebido sua deixa.

- E se for verdade? – rosnou Zangi Khan, embriagado por seu ódio e medo da astúcia de El Borak – O que significa El Awad para nós?

Gordon o surpreendeu instantaneamente.

- Este curdo pergunta o que significa a destruição de um vilarejo amigável. Sem dúvida, nada para ele! Mas o que isso significa para vocês, que deixaram seus gados e famílias sem proteção? Se vocês deixarem aquele bando de cães loucos percorrerem a terra, como poderão ter certeza da segurança de suas mulheres e crianças?

- O que você faria, El Borak? – indagou um salteador de barba cinza.

- Armar uma cilada para aqueles turcos e matá-los. Vou lhes mostrar como.

Foi então que Zangi Khan perdeu totalmente a calma.

- Não dêem ouvidos a ele. – gritou – Dentro de uma hora, teremos que ir para o norte! Os turcos nos darão dez mil libras esterlinas por sua cabeça!

A cobiça brilhou por um instante nos olhos dos homens, para ser turvada pelo pensamento de que a recompensa, oferecida pela cabeça de El Borak, seria reivindicada pelo sheik e por Zangi. Eles não fizeram um só movimento, e Mitkhal permaneceu à parte, com ar de estar observando uma luta que não lhe dizia respeito.

- Peguem sua cabeça! – gritou Zangi, finalmente sentindo hostilidade, e cheio de pânico por causa dela.

Sua desmoralização foi completada pela risada sarcástica de Gordon.

- Você parece ser o único que quer minha cabeça, Zangi! Talvez você possa levá-la!

Zangi soltou um uivo incoerente, com seus olhos brilhando numa fúria vermelha, e então ergueu o rifle à altura do quadril. No exato momento em que a boca do fuzil se ergueu, a pistola de Gordon fez um estrondo trovejante. Ele a puxara tão rapidamente, que nenhum dos homens ali havia conseguido acompanhar o movimento. Zangi Khan cambaleou para trás sob o impacto do chumbo quente, desabou para um lado e jazeu imóvel.

Num instante, cem fuzis engatilhados cobriram Gordon.

Confundidos por vários sentimentos, os homens hesitaram pelo rápido instante que Mitkhal tomou para gritar:

- Parem! Não atirem!

Ele caminhou para a frente, com o ar de um homem pronto para finalmente tomar o centro do palco, embora não conseguisse disfarçar o brilho de satisfação em seus olhos astutos.

- Nenhum homem aqui é parente de Zangi Khan – ele disse, sem cerimônia – Não há motivo para rixas de sangue. Ele partilhou nosso sal, mas atacou nosso prisioneiro, a quem julgava desarmado.

Ele estendeu a mão em direção à pistola, mas Gordon não a rendeu.

- Não sou seu prisioneiro. – ele disse – Eu poderia matá-lo, antes que seus homens pudessem erguer um só dedo. Mas eu não vim para cá lutar contra você. Vim pedir ajuda para vingar as crianças e mulheres de meus inimigos. Arrisco minha vida por suas famílias. Vocês são cães, para fazerem menos?

A pergunta ficou suspensa no ar, sem resposta, mas ele havia batido na corda exata de seus peitos bárbaros, que estavam sempre prontos para se sensibilizarem com algum ato selvagem de indiferente cavalheirismo. Os olhos deles ardiam e miravam seu sheik em expectativa.

Mitkhal era um político perspicaz. A matança em El Awad significava tão pouco para ele quanto para seus guerreiros mais jovens. Ele era ligado aos homens ditos civilizados por tempo suficiente para perder muito da sua integridade primitiva. Mas ele sempre seguia o lado da opinião pública, e era esperto o bastante para liderar um movimento que não conseguisse deter. Mas ele não era de entrar impulsivamente numa aventura arriscada.

- Aqueles turcos podem ser fortes demais para nós. – ele objetou.

- Vou mostrar-lhe como destruí-los com pouco risco. – respondeu Gordon – Mas deve haver um pacto entre nós, Mitkhal.

- Esses turcos devem ser destruídos. – disse Mitkhal, e ele falou sinceramente, nesse ponto pelo menos – Mas há muitas rixas de sangue entre nós, El Borak, para que lhe deixemos fora de nosso alcance.

Gordon riu.

- Você não pode derrotar os turcos sem minha ajuda, e sabe disso. Pergunte a seus jovens homens o que eles desejam!

- Deixe El Borak nos liderar! – gritou instantaneamente um jovem guerreiro. Um murmúrio de aprovação rendeu tributo à ampla reputação de Gordon como estrategista.

- Muito bem! – Mitkhal tomou a maré – Que haja trégua entre nós... com condições! Lidere-nos contra os turcos. Se ganhar, você e a mulher seguirão livres. Se perdermos, levaremos sua cabeça!

Gordon assentiu, e os guerreiros gritaram de alegria. Este era exatamente o tipo de pacto que agradava as suas mentes, e Gordon sabia que era o melhor que podia fazer.

- Traga pão e sal! – ordenou Mitkhal, e um gigantesco escravo negro se encarregou de obedecê-lo – Até que a batalha esteja perdida ou ganha, haverá trégua entre nós, e nenhum Rualla lhe fará mal, a não ser que você derrame sangue Rualla.

Então, ele pensou em alguma outra coisa, e sua testa ficou sombria, enquanto trovejou:

- Onde está o homem que vigiava do alto?

Um jovem apavorado foi empurrado para a frente. Ele era membro de uma pequena tribo, tributária dos Ruallas, que eram mais importantes.

- Oh, sheik. – ele gaguejou – Eu estava com fome e me afastei para pegar carne numa fogueira...

- Cão! – Mitkhal bateu-lhe no rosto – A morte é o seu presente por falhar em sua obrigação.

- Espere! – Gordon se interpôs – Você questionaria a vontade de Alá? Se o jovem não abandonasse seu posto, ele teria nos visto chegar ao vale, e seus homens teriam nos baleado e matado. Então, você não teria sido avisado sobre os turcos, e seria presa fácil deles antes de descobrir que eram inimigos. Deixe-o ir, e dê graças a Alá, Que tudo vê!

Era o tipo de filosofia que cativava o pensamento árabe. Até Mitkhal estava impressionado.

- Quem conhece o pensamento de Alá? – ele admitiu – Viva, Musa, mas da próxima vez, cumpra a vontade de Alá com vigilância e sem esquecer as ordens. E agora, El Borak, vamos discutir os planos de batalha, enquanto a comida é preparada.


5) Traição


AINDA NÃO ERA meio-dia, quando Gordon parou os Ruallas, perto do Poço de Harith. Batedores enviados para oeste relataram não haver sinal dos turcos, e os árabes seguiram com os planos, feitos antes deles deixarem as Muralhas – planos delineados por Gordon e aprovados por Mitkhal. Primeiro, os homens da tribo começaram a juntar rochas e arremessarem-nas dentro do poço.

- A água continua lá embaixo. – Gordon comentou com Olga – Mas levará horas de trabalho árduo para esvaziarem o poço até alguém conseguir chegar lá. Os turcos não conseguirão fazê-lo sob os nossos fuzis. Se ganharmos, nós mesmos iremos esvaziá-los, para que os próximos viajantes não sofram.

- Por que nós mesmos não nos refugiamos na fortificação? – ela perguntou.

- Uma armadilha. É para isso que estamos usando-a. Não teríamos chance contra eles numa luta aberta, e se planejássemos uma armadilha fora do vale, eles simplesmente viriam até nós. Mas quando um homem é baleado em local aberto, seu primeiro instinto é alcançar o primeiro abrigo. Assim, espero fazê-los adentrarem a fortificação. Então, vamos deixá-los espremidos e tirá-los calmamente de lá. Sem água, eles não agüentarão muito. Não podemos perder sequer doze homens.

- Parece estranho vê-lo preocupado com a vida destes Ruallas, que são seus inimigos, apesar de tudo. – ela riu.

- Instinto, talvez. Nenhum homem apto para liderança quer perder mais deles do que puder proteger. Faz pouco tempo que eles são meus aliados, e é importante para mim protegê-los tanto quanto eu puder. Admito que eu preferiria lutar ao lado dos Juheinas. A mensagem de Feisal deve ter chegado às Muralhas horas antes do que eu esperava.

- E se os turcos se renderem?

- Tentarei levá-los para Lawrence... todos, menos Osman Pasha. – o rosto de Gordon ficou sombrio – Aquele homem morre, se cair em minhas mãos.

- Como irá levá-los para Lawrence? Os Ruallas não irão conduzi-los.

- Não tenho a menor idéia. Mas, vamos apanhar nossa lebre, antes de começarmos a assá-la. Osman pode sumir de nosso alcance, à luz do dia.

- Significa sua cabeça, se ele o fizer. – ela avisou, com um estremecimento.

- Bem, são dez mil libras para os turcos. – ele riu, e caminhou para examinar a cabana parcialmente arruinada. Olga o seguiu.

Mitkhal, orientando a obstrução do poço, os olhou rapidamente, e então notou que havia vários homens entre eles e o portão, e voltou à sua inspeção.

- Ei, El Borak!

Era um sussurro tenso, no exato momento em que Gordon e Olga estavam prestes a saírem da cabana. No instante seguinte, viram uma cabeça despenteada aparecendo por trás de um monte de entulho. Era o jovem Musa, que obviamente havia adentrado furtivamente a cabana, através de uma fenda na parede negra.

- Fique de vigia na porta, e me avise se você vir alguém chegando. – Gordon murmurou para Olga – Este garoto deve ter algo a dizer.

- E tenho, effendi. – o rapaz tremia, agitado – Ouvi por acaso o sheik conversando secretamente com seu escravo negro Hassan. Eu os vi caminharem por entre as palmeiras, enquanto você e a mulher estavam comendo nas Muralhas, e andei furtivamente atrás deles, pois temia que pretendessem lhe fazer mal... e você salvou minha vida.

“Escute, El Borak! Mitkhal pretende lhe matar, quer você ganhe esta batalha para ele ou não! Ele estava contente por você ter matado o curdo, e está feliz com sua ajuda para expulsar aqueles turcos. Mas ele cobiça o ouro que os outros turcos pagarão por sua cabeça. Embora ele não ouse quebrar sua palavra nem o pacto abertamente. Desse modo, se ganharmos a batalha, Hassan irá baleá-lo e jurar que você foi morto por uma bala turca!”.

O jovem se apressou em contar:

- Então, Mitkhal dirá ao povo: “El Borak foi nosso convidado e comeu nosso sal. Mas agora está morto, embora não por nossa culpa, e não adianta desperdiçar o prêmio. Então, tiraremos a cabeça dele e seguiremos para Damasco, onde os turcos nos darão dez mil libras”.

Gordon sorriu sombriamente diante do horror de Olga. Aquela era a típica lógica árabe.

- Não ocorreu a Mitkhal que Hassan pode errar o primeiro tiro e não ter chance de atirar novamente? – ele sugeriu.

- Oh, sim, effendi; Mitkhal pensa em tudo. Se você matar Hassan, Mitkhal vai jurar que você quebrou o pacto, derramando o sangue de um Rualla ou de um servo dos Ruallas, o que é a mesma coisa, e se sentirá à vontade para ordenar sua decapitação.

Havia humor sincero na risada de Gordon.

- Obrigado, Musa! Se salvei sua vida, você já me retribuiu. Melhor sair agora, antes que alguém lhe veja conversando conosco.

- O que faremos? – exclamou Olga, pálida até os lábios.

- Você não está em perigo. – ele a assegurou.

Ela ficou vermelha de raiva:

- Eu não estava pensando nisso! Acha que tenho menos gratidão que o jovem árabe? O sheik pretende lhe matar, não entende? Vamos roubar camelos e fugir!

- Fugir pra onde? Se o fizéssemos, eles estariam em nosso encalço num instante, achando que menti a respeito de tudo. De qualquer forma, não teríamos chance. Eles estão nos vigiando bem de perto. Além disso, eu não fugiria mesmo que pudesse. Eu comecei a perseguir Osman Pasha, e esta é a melhor chance que vejo de fazê-lo. Venha. Vamos sair da fortificação, antes que Mitkhal comece a suspeitar.

Assim que o poço foi obstruído, os homens se retiraram para as encostas. Seus camelos foram escondidos atrás das serras, e os homens se agacharam atrás de rochas e entre os raquíticos arbustos ao longo dos declives. Olga recusou a oferta de Gordon, em mandá-la, com uma escolta, de volta às Muralhas, e ficou com ele, posicionando-se atrás de uma rocha, com a pistola de Osman no cinto. Estavam estirados no chão, e o calor do sol nas pedras adentrava-lhes as roupas.

Por um momento, ela virou a cabeça e estremeceu, ao ver o impassível rosto negro de Hassan, olhando-os desde uns arbustos a poucos metros atrás deles: o escravo negro, que não conhecia lei alguma, exceto as ordens de seu amo, estava determinado a não deixar Gordon fora de sua visão.

Ela falou disso, num baixo sussurro, para o americano.

- Certo. – ele murmurou – Eu o vi. Mas ele não vai atirar antes de saber que rumo a luta irá tomar, e de ter certeza que nenhum dos homens está olhando.

A pele de Olga se arrepiou na expectativa de mais horrores. Se perdessem a luta, os enfurecidos Ruallas despedaçariam Gordon, caso este sobrevivesse ao combate. Se ganhassem, sua recompensa seria uma traiçoeira bala nas costas.

As horas se arrastaram lentamente. Nenhum tremular de roupa, nenhum levantar de cabeça imprudente traiu a presença dos selvagens nos declives. Olga começou a sentir os nervos tremerem. Dúvidas e maus pressentimentos atormentavam-na loucamente:

- Nós nos posicionamos muito cedo! Os homens perderão a paciência. Osman não chegará aqui antes da meia-noite. Demoramos a noite inteira para alcançarmos o Poço.

- Beduínos nunca perdem a paciência quando farejam pilhagem. – ele respondeu – Creio que Osman estará aqui antes do pôr-do-sol. Fizemos pouco num camelo cansado, nas últimas horas daquela cavalgada. Acredito que Osman levantou acampamento antes do amanhecer e fez uma marcha dura.

Outro pensamento veio torturá-la:

- Suponha que ele afinal não venha. Suponha que ele tenha mudado os planos e ido para outro lugar. Os Ruallas vão achar que você mentiu pra eles!

- Veja!

O sol estava baixo no oeste: uma deslumbrante bola de fogo. Ela olhou com os olhos semicerrados, protegendo-os.

Então, a extremidade de uma coluna marchando surgiu por entre as trêmulas ondas de calor: filas de cavaleiros, acinzentados pela poeira; fileiras de camelos de bagagem, pesadamente carregados, com prisioneiras montadas neles. O estandarte pendia solto no ar sem vento; mas, por um instante, quando uma rajada errante de ar, quente como o hálito da perdição, levantou as dobras, a cabeça do lobo branco foi mostrada.

Prova esmagadora de idolatria e heresia! Em sua agitação, os Ruallas quase se denunciaram. Até Mitkhal ficou pálido.

- Alá! Sacrilégio! Esquecidos de Deus! O inferno será o presente deles!

- Quietos. – sibilou Gordon, sentindo a meia histeria que percorria as fileiras escondidas – Esperem por meu sinal. Eles devem parar pra abastecerem seus camelos no Poço.

Osman deve ter conduzido sua gente feito um demônio, durante todo o dia. As mulheres arriavam sobre os camelos carregados; os rostos empoeirados dos soldados estavam secos. Os cavalos cambaleavam de cansaço. Mas era evidente que eles não pretendiam parar no Poço, com sua meta, as Muralhas de Sulaiman, tão próxima. A extremidade frontal da coluna se aproximava do abrigo, quando Gordon disparou. Ele apontava para Osman, mas a distância era grande e o sol refulgia nas rochas, ofuscando. O homem atrás de Osman caiu e, ao sinal, os declives ganharam vida com jatos de fogo.

A coluna vacilou. Cavalos e homens caíam, e soldados aturdidos devolviam tiros irregulares e inofensivos. Eles nem sequer viam seus atacantes, exceto por pequenos pedaços de roupa branca se movendo rapidamente entre os matacões.

Talvez a disciplina houvesse afrouxado durante o esforço daquela marcha impiedosa. Talvez o pânico houvesse tomado conta dos turcos. De qualquer modo, a coluna se desfez e os homens fugiram para a fortificação sem aguardarem ordens. Teriam abandonado os camelos de bagagem, se Osman não houvesse cavalgado entre eles. Praguejando e batendo com a lateral de seu sabre, ele os fez levarem os animais consigo.

- Eu esperava que deixassem os camelos e mulheres de lado. – grunhiu Gordon – Talvez tirem os animais de lá, quando perceberem que não há água.

Os turcos tomaram suas posições regulares, desmontando e perambulando ao longo do muro. Alguns tiravam as mulheres árabes dos camelos e levavam-nas para dentro da cabana. Outros improvisavam um curral para os animais, com estacas e cordas entre a parte de trás da cabana e o muro. Selas eram empilhadas no portão, para completarem a barricada.

Os árabes zombavam em voz alta, enquanto disparavam uma saraivada de chumbo, e alguns pulavam e dançavam zombeteiramente, agitando seus fuzis. Mas pararam, quando um turco perfurou habilmente a cabeça de um deles. Quando as demonstrações pararam, os sitiantes ofereceram pouco alvo para os tiros.

No entanto, os turcos devolveram os tiros economicamente e sem indícios de pânico, agora que eles estavam abrigados e lutando um tipo de combate que entendiam. Estavam bem protegidos, pelo muro, dos homens que estavam diretamente à sua frente, mas esta proteção ao norte poderia ser vista pelos homens da cordilheira sul, e vice-versa. Mas a distância era muito grande para que os árabes dessem tiros eficazes.

- Parece que não estamos fazendo muito estrago. – Olga logo comentou.

- A sede ganhará por nós. – respondeu Gordon – E o que temos de fazer é mantê-los contidos. Eles provavelmente têm água suficiente em seus cantis para o resto do dia. Sem dúvida, não mais do que isso. Olhe: estão se dirigindo para o poço.

O poço se encontrava no meio do cercado, numa área relativamente exposta, vista de cima. Olga viu homens se aproximarem dali com cantis nas mãos, e os árabes, com prazer sarcástico, se abstinham de atirar neles. Alcançaram o poço, e então a garota viu a mudança que ocorreu neles. Esta percorreu a tropa como um choque elétrico. Os homens que estavam ao longo dos muros reagiram, atirando selvagemente. Um grito furioso se ergueu, aguçado por histeria, e os homens começaram a correr loucamente ao redor do cercado. Alguns caíram, atingidos pelos tiros que partiam das cordilheiras.

- O que estão fazendo? – Olga levantou-se sobre os joelhos, e foi instantaneamente puxada para baixo por Gordon. Os turcos estavam correndo para a cabana. Se estivesse olhando para Gordon, ela teria percebido o significado, pois o escuro rosto dele ficou subitamente sombrio.

- Eles estão arrastando as mulheres pra fora! – ela exclamou – Estou vendo Osman brandir seu sabre. O quê? Oh, Deus! Estão assassinando as mulheres!

Acima do crepitar dos tiros, se ergueram terríveis gritos agudos e o som repugnante de golpes selvagemente aplicados. Olga ficou nauseada e cobriu o rosto. Osman havia percebido a cilada na qual fora colocado, e sua reação era a de um cão louco. Reconhecendo a derrota no poço obstruído, e encarando a ruína de suas loucas ambições, através da sede e das balas dos beduínos, ele estava se vingando em toda a raça árabe.

Por toda parte, os árabes se ergueram uivando, enlouquecidos pela visão daquela matança. Não importava se aquelas mulheres eram de outra tribo. Um rígido cavalheirismo era a base da sociedade deles, exatamente como foi entre os habitantes das fronteiras dos primórdios da América. Não havia sentimentalismo a respeito. Era real e vital como a própria vida.

Os Ruallas enlouqueceram de ódio, ao verem mulheres de sua raça caírem sob as espadas dos turcos. Um grito selvagem abalou o céu de latão e, saindo destemidamente de suas moitas, os árabes desceram violentamente os declives, uivando como demônios. Gordon não podia contê-los, nem Mitkhal. Seus tiros eram ensurdecedores. Os muros expeliam fumaça e fogo, enquanto rajadas fulminantes varriam as hordas que chegavam. Caíram doze, mas restou o bastante para alcançar o muro e se alastrar sobre ele, numa onda que nem chumbo nem aço conseguiam deter.

E Gordon estava entre eles. Quando percebeu, não podia mais deter a tempestade à qual se juntara. Mitkhal não estava muito atrás dele, praguejando para seus homens enquanto corria. O sheik não tinha disposição para este tipo de luta, mas sua liderança estava em jogo. Nenhum homem que recuasse neste ataque seria capaz de comandar novamente os Ruallas.

Gordon estava entre os primeiros a alcançarem o muro, saltando sobre os corpos contorcidos de meia dúzia de árabes. Ele não atirara selvagemente enquanto corria, como os beduínos, para alcançar o muro com uma pistola vazia. Ele conteve seus tiros, até que os jatos de fogo, vindos da cerca, estivessem próximos, e então esvaziou seu fuzil numa saraivada horizontal de tiros, que deixou uma lacuna sangrenta onde havia uma linha de ferozes rostos escuros no momento anterior. Antes que o espaço pudesse ser preenchido, ele o ocupou juntamente com os Ruallas, que corriam atrás dele.

Enquanto seus pés batiam no chão, um enxame humano o empurrou contra a porta, e uma lâmina, empurrada em busca de sua vida, se quebrou contra as rochas. Ele dirigiu sua reduzida coronha a uma face ríspida, arrebentando dentes e ossos, e no instante seguinte, um vagalhão de seus próprios homens sobre o muro esvaziou um espaço a seu redor. Ele lançou para longe o fuzil quebrado e puxou a pistola.

Os turcos foram forçados a recuar do muro numa dúzia de lugares, e os homens estavam todos lutando na fortificação. Nenhuma trégua era pedida, e nenhuma era dada. Os deploráveis corpos sem cabeça se alastravam irregularmente diante dos ensangüentados, mas os beduínos se transformaram em demônios de olhos ardentes. As armas agora estavam vazias, com exceção da pistola de Gordon. Os gritos se transformaram em grunhidos, entrecortados por uivos de morte. Acima destes sons, se erguia o impacto cortante de lâminas, e o rangido de coronhas de fuzis ferozmente empurrados. Os beduínos haviam sofrido tão impiedosamente naquele louco ataque, que agora estavam em número reduzido, e os turcos lutavam com a fúria do desespero.

Era talvez a pistola de Gordon que equilibrava a balança. Ele a esvaziou sem pressa e sem hesitação, e numa linha de tiro em que não dava para errar. Estava ciente de uma sombra escura, sempre atrás dele, e se virou uma vez para ver o negro Hassan, seguindo-o e golpeando metodicamente à esquerda e à direita com uma pesada cimitarra, já pingando sangue. Mesmo na fúria da luta, Gordon sorria. O sudanês de mente rigorosa obedecia instruções de se manter nos calcanhares de El Borak. Enquanto a batalha estivesse duvidosa, ele era o protetor de Gordon – pronto para se tornar seu executor no momento em que a maré ficasse a seu favor.

- Empregado fiel. – disse Gordon, sarcasticamente – Tome cuidado, para que estes turcos não lhe roubem minha cabeça!

Hassan sorriu, calado. Súbito, escorreu sangue de seus lábios grossos e ele caiu de joelhos. De algum lugar daquela multidão que descia as colinas, uma bala foi parar em seu corpo negro. Enquanto ele caía de quatro, um turco veio correndo de um lado e arrebentou-lhe o crânio com a coronha de um fuzil. Gordon matou o turco com sua última bala. Ele não tinha rancor contra Hassan. O homem havia sido um bom soldado, e obedecera ordens dadas a ele.

A fortificação se tornou um matadouro. Havia menos homens de pé do que caídos ao chão, e todos sangravam. O estandarte do lobo branco havia sido arrancado de seu mastro e pisado por pés vingativos. Gordon se abaixou, pegou um sabre e procurou por Osman. Ele viu Mitkhal, correndo em direção ao cercado dos cavalos, e então gritou um aviso, pois viu Osman.

O homem fugia de um grupo de figuras que se movia com dificuldade, e corria para o cercado. Ele arrancou as cordas e cavalos, desesperado pelo barulho e pelo cheiro de sangue, estampados na fortificação, derrubando homens e atropelando-os. Enquanto eles trovejavam atrás, Osman, com uma magnífica exibição de agilidade, agarrou um punhado de crina esvoaçante e saltou sobre o lombo de um cavalo que corria.

Mitkhal correu em direção a ele, gritando furiosamente e fazendo uma pistola estalar em sua direção. O sheik, na confusão da luta, parecia não perceber que a arma estava vazia, pois ele puxava o gatilho várias vezes enquanto permanecia no caminho do cavaleiro que se aproximava. Só no último instante, ele percebeu o perigo e pulou para trás. Mesmo assim, teria se livrado, se o calcanhar de sua sandália não tivesse se prendido no abba de um homem morto.

Mitkhal tropeçou, evitou o impacto dos cascos do cavalo, mas não a descida do sabre que Osman segurava. Um grito selvagem veio dos Ruallas, enquanto Mitkhal caía, com o turbante repentinamente escarlate. No instante seguinte, Osman estava fora do portão e cavalgando como o vento, em linha reta, para o alto da encosta, na qual viu a figura esguia da garota, a quem ele agora culpava por sua derrota.

Olga havia saído de trás das rochas e ficado de pé, em assombroso terror, olhando para o combate lá embaixo. Agora, ela despertou subitamente para seu próprio perigo, ao ver aquele louco subindo a inclinação. Ela puxou a pistola que Gordon tirara dele e abriu fogo. Não era uma atiradora muito boa. Três balas perdidas, a quarta matou o cavalo e então a arma emperrou. Gordon subia a encosta, correndo como os apaches de seu sudoeste nativo, e atrás dele fluía uma multidão de Ruallas. Não havia uma única pistola carregada em toda a horda.

Osman teve uma queda surpreendente, quando seu cavalo deu um salto mortal sob ele, mas se ergueu, machucado e ensangüentado, com Gordon ainda a uma certa distância dele. Mas o turco ainda brincou de esconde-esconde, por alguns momentos entre as rochas, com sua presa, antes de se dispor a agarrar-lhe os cabelos, e curvá-la de joelhos entre os gritos agudos dela; e então, ele parou por um instante para apreciar-lhe o desespero e terror. Aquela pausa foi sua ruína.

Enquanto ele erguia o sabre para decepar-lhe a cabeça, aço bateu ruidosamente contra aço. Um choque paralisante percorreu seu braço, e sua lâmina foi arrancada de sua mão. A arma retiniu sobre as pedras quentes. Ele girou rapidamente para encarar as fendas flamejantes que eram os olhos de El Borak. Os músculos se sobressaíam no antebraço bronzeado de Gordon com a intensidade de sua paixão.

- Pegue a arma, seu cão imundo. – ele falou, entre dentes.

Osman hesitou, se abaixou, ergueu o sabre e o brandiu displicentemente em direção às pernas de Gordon. Este pulou para trás, e então se arremessou novamente no momento em que os dedos de seus pés tocaram o solo. Seu retorno foi tão paralisante e rápido quanto o salto mortal de um lobo. Desequilibrou Osman, sua espada estendida. A lâmina de Gordon assobiou enquanto cortava o ar, talhando carne e ossos.

A cabeça do turco desabou de seu pescoço decepado e caiu aos pés de Gordon, com o corpo decapitado desmoronando num monte. Numa excessiva convulsão de ódio, Gordon chutou selvagemente a cabeça encosta abaixo.

- Oh! – Olga se virou e escondeu o rosto. Mas a garota sabia que Osman merecia qualquer destino que o surpreendesse. Dali a pouco, ela sentiu a mão de Gordon se deitar levemente sobre seu ombro, e olhou para cima, envergonhada com a própria fraqueza. O sol tinha acabado de mergulhar sob as serras ocidentais. Musa subiu mancando a elevação, ensangüentado mas radiante.

- Os cães estão todos mortos, effendi! – ele gritou, sacudindo laboriosamente um relógio roubado, num esforço para fazê-lo funcionar – Alguns dos nossos guerreiros que ainda vivem estão enfraquecidos pela luta, e muitos estão gravemente feridos. Não há ninguém para nos comandar agora, exceto vós.

“Às vezes, os problemas se resolvem sozinhos”, refletiu Gordon. “Mas por um preço medonho. Se os Ruallas não tivessem feito aquela investida, que significou a morte de Hassan e Mitkhal... bom, tais coisas estão nas mãos de Alá, como dizem os árabes. Cem homens melhores que eu morreram hoje, mas pelo decreto de algum destino cego, estou vivo”.

Gordon baixou os olhos para os homens feridos. E virou-se para Musa.

- Temos que colocar os feridos em camelos – ele disse –, e levá-los ao acampamento nas Muralhas, onde tem água e sombra. Venha.

Enquanto começavam a descer a inclinação, ele disse a Olga:

- Terei que ficar com eles, até que estejam acomodados nas Muralhas, e então partirei para a costa. Alguns dos Ruallas estarão em condições de montar, no entanto, e você não precisa temê-los. Eles irão escoltá-la ao posto avançado mais próximo.

Ela o olhou, surpresa.

- Então, não sou sua prisioneira?

Ele riu.

- Acho que você pode ajudar Feisal, mais pelo cumprimento de suas instruções originais, de fornecer informações enganosas para os turcos! Não lhe censuro por não confiar sequer em mim. Você tem minha mais profunda admiração, por estar fazendo o jogo mais perigoso que uma mulher pode fazer.

- Oh!

Ela sentiu um súbito fluxo de alívio e alegria, por ele saber que ela não era mesmo uma inimiga. Musa estava muito distante para ouvir.

- Eu talvez soubesse que você era suficientemente elevado nos conselhos de Feisal, para saber que na verdade eu sou...

- Gloria Willoughby, a mais hábil e ousada agente que o governo britânico empregou. – ele sussurrou.

Impulsivamente, a jovem pôs os dedos delgados nos dele e, de mãos dadas, eles desceram juntos o declive.



Tradução: Fernando Neeser de Aragão (fernando_arag@yahoo.com.br e fernando.neeser2@bol.com.br).


Fonte: http://gutenberg.net.au/ebooks06/0601081h.html
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