O Soar do Gongo

(Robert E. Howard)


Em algum lugar, na agitada escuridão, iniciou-se um latejar. Uma cadência pulsante, sem som algum, mas vibrante de verdade, enviando seus largos tendões ondulantes que fluíram através do ar irrespirável. O homem se agitou, tateou a seu redor com mãos de cego e se sentou. A princípio teve a impressão de estar flutuando sobre as ondas uniformes e regulares de um oceano negro, que subia e descia com uma monótona regularidade que, de algum modo, lhe produzia dor física. Estava muito consciente da pulsação do ar, e estendeu as mãos como se pretendesse segurar as ondas que lhe escapavam. Mas essas pulsações estavam no ar que o rodeava, ou somente no cérebro que havia dentro de seu crânio? Não conseguia compreender e, então, lhe ocorreu uma idéia fantástica: a sensação de encontrar-se preso dentro de seu próprio crânio.

O latejar diminuiu, se centralizou; ele sustentou a cabeça dolorida com as mãos e tentou lembrar. Lembrar... o quê?

- Isso é muito estranho – murmurou – Quem, ou o que sou eu? Que lugar é esse? O que aconteceu e por que estou aqui? Sempre terei estado aqui?

Ele se pôs de pé e tentou observar a seu redor. A maior das escuridões se encontrou com seu olhar. Forçou os olhos, mas nenhum sinal de luz veio a seu encontro. Começou a caminhar para frente, vacilante, com as mãos estendidas diante dele, buscando a luz de uma forma tão instintiva como podia fazer uma planta.

- Certamente isso não é tudo. – murmurou – Tem que haver algo mais... o que é diferente disto? A luz! Eu sei... Me lembro da luz, mas não lembro o que é a luz. Certamente, conheci um mundo diferente deste.

À distância começou a aparecer uma fraca luz cinzenta. Se apressou na direção dela. O brilho ficou mais amplo, até ele ter a sensação de avançar por um longo corredor, que ia se alargando mais e mais. Então, de repente, ele saiu à fraca luz das estrelas e sentiu o vento frio em seu rosto.

- Isto é a luz – murmurou –, mas ainda não é tudo.

Sentiu e reconheceu uma sensação de altura assustadora. Altura por cima dele, inclusive com seus olhos, e também por debaixo dele, como se grandes estrelas reluzissem em um majestoso oceano cósmico e cintilante. Franziu o cenho, abstraído, enquanto contemplava estas estrelas.

Então, se deu conta de que não estava sozinho. Uma forma alta e vaga se elevava diante dele, sob a luz das estrelas. Levou instintivamente a mão à esquerda da cintura, e depois a deixou lá, flácida. Estava nu, e nenhuma arma pendia em seu flanco.

A forma aproximou-se mais, e ele viu então que se tratava de um homem, aparentemente muito velho, mas suas feições eram indistintas e irreais à fraca luz.

- És novo? – perguntou a figura com uma voz clara e profunda, como o soar de um gongo de jade.

Diante desse som, um repentino fragmento de recordações surgiu no cérebro do homem que havia ouvido a voz.

Esfregou o queixo, desconcertado.

- Agora me lembro. – disse – Sou Kull, rei da Valúsia... Mas o que estou fazendo aqui, sem vestimentas nem armas?

- Nenhum homem pode levar nada consigo quando cruza o portal. – disse o outro, sombriamente – Pense, Kull da Valúsia. Não sabe como chegou até aqui?

- Eu estava em pé, diante da porta da sala de conselho – respondeu Kull, perplexo –, e lembro que o vigia da torre exterior soou o gongo para indicar a hora, e então, de repente, o estrondo do gongo se transformou em um selvagem e repentino fluxo de sons que parecia querer destruir tudo. Tudo se escureceu à minha volta e, por um instante, umas faíscas vermelhas se acenderam diante de meus olhos. Logo, acordei em uma caverna, ou numa espécie de corredor, sem lembrar de nada.

- Passastes pelo portal; isso sempre parece difícil de entender.

- Então, estou morto? Por Valka! Algum inimigo devia estar me aguardando por entre as colunas do palácio e me atacado quando eu estava falando com Brule, o guerreiro picto.

- Não disse que estás morto. – replicou a figura magra – Às vezes, o portal não se fecha totalmente. Isso já ocorreu antes.

- Mas que lugar é este? É o paraíso ou o inferno? Este não é o mundo que conheci desde que nasci, e essas estrelas... Nunca as tinha visto antes. Essas constelações são muito mais grandiosas e brilhantes do que as que eu havia visto em minha vida.

- Existem outros mundos, universos que estão tanto dentro como fora dos universos. –disse o ancião – Estás em um planeta diferente daquele em que nasceste; estás em um universo diferente e, sem dúvida, em uma dimensão diferente.

- Então, devo estar morto.

- O que é a morte, se não uma travessia de eternidades e um cruzar de oceanos cósmicos? Mas eu não disse que estás morto.

- Então, onde estou, em nome de Valka? – rugiu Kull, com sua escassa paciência já esgotada.

- Teu cérebro de bárbaro se agarra a realidades materiais – respondeu o outro com tranqüilidade – O que importa onde te encontras, ou se estás morto, como diz? Fazes parte do grande oceano que é a vida, que banha todas as praias, e tanto fazes parte dele em um lugar como em outro, e é certo que finalmente regressarás à fonte que deu origem a toda vida. Enquanto isso, te achas sujeito à vida durante toda a eternidade, com tanta certeza quanto se acham sujeitos uma árvore, uma rocha, uma ave ou um mundo. E chamas de morte o fato de abandonar teu diminuto planeta e separar-se de tua bruta forma física?

- Mas ainda tenho meu corpo.

- Eu não disse que estás morto, como tu dizes. Quanto a isso, pode ser que estejas em teu diminuto planeta, ao menos pelo que sabes. Há mundos dentro dos mundos, universos dentro dos universos. Existem coisas demasiado pequenas ou demasiado grandes para a compreensão humana. Cada grão de areia das praias da Valusia contém incontáveis universos dentro de si mesmos, e eles mesmos, em seu conjunto, fazem parte do grande plano de todos os universos, como o sol que tu conheces. Teu Universo, Kull da Valúsia, pode ser um grão na praia de um poderoso reino. Ultrapassastes as fronteiras das limitações materiais. Possa ser que te encontres em um universo que forma a pedra preciosa que levavas no trono da Valúsia, ou esse universo quem sabe se encontra na teia de aranha que há ali, sobre a grama, a teus pés. Te digo que o tamanho, o espaço e o tempo são relativos e não existem na realidade.

- Certamente você é um deus, não? – perguntou Kull, com curiosidade.

- A simples acumulação de conhecimentos e a aquisição de sabedoria não torna a ninguém um deus. – respondeu o outro com impaciência – Veja!

Uma de suas mãos se ergueu nas sombras e apontou em direção às grandes e resplandecentes gemas que eram as estrelas. Kull olhou e se deu conta de que se transformavam com rapidez. O que acontecia era um constante ondular, como uma mudança incessante de desenhos e objetos.

-As estrelas “sempre-eternas” mudam a seu próprio ritmo, com a mesma rapidez com que surgem e desaparecem as raças dos homens. Agora mesmo, enquanto observamos esses que são planetas, há seres que surgem do lodo primitivo, que começam a subir pelos longos e lentos caminhos da cultura e da sabedoria, enquanto outros estão sendo destruídos com seus mundos moribundos. Tudo isso é vida e forma parte da vida. Para eles, parecem bilhões de anos; para nós, não é mais que um momento. Toda a vida. Um bilhão de anos é como um momento, do ponto de vista da eternidade.

Kull observou fascinado, enquanto as enormes estrelas e as poderosas constelações piscavam brilhantes, se apagavam e desapareciam, e outras, igualmente radiantes, ocupavam seus lugares, para serem suplantadas à sua vez por outras.

Então, de repente, a agitada escuridão voltou a fluir sobre ele, apagando todas as estrelas, como se fosse uma espessa névoa, e ele ouviu um som fraco e familiar.

Estava de pé, recuando. A luz do sol atingiu seus olhos, as altas colunas e paredes de mármore de um palácio, as amplas janelas cobertas de cortinas, através das quais penetrava a luz do sol, como ouro fundido. Passou a mão rápida e aturdida por todo o corpo, apalpando suas roupas e a espada que pendia em sua cintura. Estava coberto de sangue; uma corrente vermelha lhe brotava de um corte superficial na têmpora. Mas a maior parte do sangue que cobria seu corpo e suas roupas não era seu. A seus pés, sobre um horripilante charco vermelho, jazia o que antes havia sido um homem. O som que escutara cessou, produzindo ecos.

- Brule! O que é isso? O que aconteceu? Onde eu estava?

- Você estava prestes a fazer a viagem aos reinos da morte. – respondeu o picto com uma expressão impiedosa, enquanto limpava a lâmina de sua espada – Esse espião esperava postado atrás de uma das colunas, e avançou sobre você como um leopardo, no momento em que você virou em minha direção para dizer-me algo. Quem planejou a sua morte deve exercer um grande poder, para enviar um homem assim para a morte certa. Se ele não tivesse girado a espada na mão e golpeado obliquamente em vez de golpear reto, como fez, você teria terminado diante dele com uma brecha no crânio, ao invés de estar aqui agora, de pé, meditando sobre a causa de um ferimento superficial.

- Mas, certamente, isso aconteceu há horas. – disse Kull.

Brule se pôs a rir.

- Ainda está atordoado, meu senhor. Do momento em que ele saltou sobre ti e você caiu no chão, até o momento em que lhe atravessei o coração, nenhum homem poderia contar sequer os dedos da mão. E durante o tempo em que você permaneceu caído no chão, sobre seu sangue, até o momento que despertou, não transcorreu mais que o dobro desse tempo. Está vendo? Tu, o conselheiro-chefe, ainda não chegou com as bandagens; ele saiu apressado para buscá-las quando você foi ferido.

- Se você está dizendo, deve ter razão. – disse Kull – Mas não entendo muito bem: pouco antes de ser atacado, ouvi o soar do gongo que indicava a hora, e ele ainda estava soando quando recuperei os sentidos... Brule, o tempo e o espaço não existem, pois realizei a mais longa viagem de minha vida, e vivi incontáveis milhões de anos durante o tempo que demorou para cessar o soar do gongo.



Tradução: Fabrício Sousa (fabriciossousa@superig.com.br/ fabriciossousa@hotmail.com).


Revisão: Fernando Neeser de Aragão (fernando_arag@yahoo.com.br/ fernando.neeser2@bol.com.br).
Compartilhar