Exílio da Atlântida

(por Robert Erwin Howard)



O sol se punha. Um último esplendor carmesim enchia a paisagem e pousava, como uma coroa de sangue, sobre os picos nevados das montanhas. Os três homens que contemplavam o agonizar do dia respiraram profundamente a fragrância da brisa que vinha dos distantes bosques, mas logo voltaram sua atenção para algo muito mais material. Um deles estava assando um veado em uma pequena fogueira; tocou com um dedo a carne fumegante e o levou à boca, provando-o com o gesto próprio de um cozinheiro experiente.

- Já está preparado, Kull, Khor-nah; podemos comer.

Quem assim havia falado era jovem, pouco mais que um garoto, grande de estatura, de cintura delgada e ombros largos, se movia com a graça natural de um leopardo. Quanto a seus companheiros, um, o homem de mais idade, mostrava uma constituição poderosa e maciça, cabeludo e com um rosto com expressão agressiva. O outro era parecido com o jovem que havia falado, exceto pelo fato de ser mais alto, com um tórax mais largo e os ombros um pouco maiores. Dava a impressão, inclusive em maior medida que o primeiro jovem, de ser possuidor de uma grande velocidade oculta em seus músculos grandes e suaves.

- Bem – disse este –, eu já começava a sentir fome.

- E quando é que você não sente, Kull? – brincou o primeiro jovem.

- Quando luto. – respondeu Kull com expressão séria.

O mais alto dos homens dirigiu uma rápida olhada a seu amigo, tentando imaginar o que estaria passando nos recônditos de sua mente. Nunca estava certo do que seu amigo pensava.

- O que sente então é sede, mas de sangue. – disse o mais alto dos homens – Am-ra, pare com suas piadas e corte uns pedaços de carne para nós.

Iniciou-se o cair da noite e algumas estrelas começaram a piscar. O vento do anoitecer soprou sobre a paisagem montanhosa, envolta no crepúsculo. Ao longe, um tigre rugiu de repente. Khor-nah fez um movimento instintivo em direção à lança de ponta de sílex que havia deixado no chão, ao seu lado. Kull moveu a cabeça, e uma estranha luz piscou em seus frios olhos cinzas.

- Os irmãos listrados saem para caçar esta noite – disse.

- Adoram a lua cheia – disse Am-ra indicando a direção leste, de onde se evidenciava um brilho avermelhado.

- Por quê? – perguntou Kull – A lua põe a descoberto tanto suas vítimas como seus inimigos.

- Uma vez, já faz muitos séculos – disse Khor-nah –, um rei tigre, perseguido por caçadores, invocou a mulher da lua, e ela fez uma parreira pela qual ele subiu para ficar em segurança, e viveu durante muitos anos na lua. Desde então, os irmãos listrados adoram a lua.

- Não acredito nisso. – disse Kull bruscamente – Por que iriam adorar a lua, somente pelo fato de ter ajudado apenas um de sua espécie, tanto tempo atrás? Mas de um tigre já subiu pelo Escarpado da Morte e assim conseguiu fugir de seus perseguidores, e apesar disso não adoram esse escarpado. Como iriam saber o que ocorreu há tantos anos?

Khor-nah franziu a testa.

- Pouco lhe ajuda zombar dos mais velhos e fazer escárnio das lendas do teu povo de adoção, Kull. Esta história deve estar correta porque foi passada de uma geração para outra durante mais tempo do que possa imaginar. E o que sempre foi, sempre será.

- Pois eu não creio. – reiterou Kull – Estas montanhas sempre existiram e, entretanto, algum dia irão desmoronar e desaparecer. Chegará o dia em que o mar inundará todas essas montanhas...

- Já basta de blasfêmias! –exclamou Khor-nah, com uma expressão que era quase de cólera – Kull, somos bons amigos e tenho paciência contigo porque você é jovem. Mas há algo que deve aprender: respeitar a tradição. Fica fazendo brincadeiras com os usos e costumes do seu povo, principalmente você, a quem esse povo resgatou da selva e lhe ofereceu um lar e uma tribo.

- Eu não era mais do que um macaco sem pêlos perambulando pelos bosques. – admitiu Kull francamente, sem a menor vergonha – Não sabia falar a língua dos homens, e meus únicos amigos eram os tigres e os lobos. Não sei quem foi meu povo, nem de que sangue sou...

- Isso não importa. – interrompeu Khor-nah – Você tem todo o aspecto dessa tribo fora-da-lei que vivia no Vale do Tigre e que pereceu na Grande Inundação. Mas isso pouco importa. Tem demonstrado ser um valente guerreiro e um eficiente caçador.

- Aonde encontraria um jovem que lhe igualasse no arremesso de lança e na luta corpo a corpo? – perguntou Am-Ra, com os olhos entusiasmados.

- Está certo. – concordou Khor-Nah – É um orgulho para a tribo da montanha do mar, e justamente por isso deveria controlar melhor sua língua e aprender a reverenciar as coisas sagradas do passado e do presente.

- Eu não faço brincadeiras – disse Kull sem malícia –, mas sei que muitas das coisas que os sacerdotes dizem são mentiras, pois eu mesmo já vivi com os tigres e conheço as bestas selvagens melhor que os sacerdotes. Os animais não são nem bons nem maus, mas os homens, com sua luxúria e avidez que lhes são características...

- Mais blasfêmias! – interrompeu Khor-nah aborrecido – O homem é a criação mais magnífica de Valka!

Am-ra interveio então para mudar de assunto.

- Esta manhã, eu ouvi som de tambores na costa. Há guerra no mar. Valúsia luta contra os piratas lemurianos.

- Eu só desejo má sorte a ambos os lados. – grunhiu Khor-nah.

- Valúsia! – exclamou Kull, com os olhos novamente acesos – A terra dos encantamentos! Algum dia, verei a grande Cidade das Maravilhas.

- Maldito será o dia em que conseguir – advertiu Khor-Nah com dureza – Estará enrolado em correntes e sobre ti cairá o espectro da tortura e da morte. Nenhum homem da nossa raça chega à Cidade das Maravilhas, a não ser como escravo.

- Que a má sorte caia sobre ela. – murmurou Am-ra.

- Que seja uma sorte negra e um destino vermelho! – Exclamou Khor-nah, brandindo o punho para o leste – Que, para cada gota de sangue atlante derramada, por cada escravo que leva em suas galeras, caia uma praga negra sobre a Valúsia e os Sete Impérios!

Am-ra, entusiasmado, ergueu-se de um pulo e repetiu parte da maldição, enquanto Kull, tranqüilamente, cortava um novo pedaço de carne.

- Já lutei contra os valusianos – disse –, e devo admitir que se mostraram muito valentes em batalha, mas não foram difíceis de matar. Tampouco pareciam tão malvados.

- Porque você só lutou contra os frágeis soldados da costa norte – grunhiu Khor-nah –, ou contra as tripulações dos navios mercantes estacionados na costa. Espere ter que enfrentar a força dos esquadrões negros das legiões da Valúsia, ou contra o Grande Exército, como eu fiz. Isso sim que é bom! Havia sangue até para se beber! Junto com Gandaro, o da lança, percorri a costa valusiana, quando ainda era mais jovem que você, Kull. Ah, aqueles sim foram bons tempos. Levamos a tocha e a espada para os lugares mais profundos do império. Éramos quinhentos homens, procedentes de todas as tribos ribeirinhas da Atlântida. Mas só quatro regressaram! O grosso dos esquadrões negros nos dizimou nas proximidades da região do povo dos Falcões, que antes havíamos incendiado e saqueado. Ali, as espadas e lanças saciaram sua sede de sangue. Esquartejamos e fomos esquartejados, mas, uma vez que os gritos de batalha cessaram, só quatro de nós conseguimos escapar do campo, e nós quatro estávamos cheios de ferimentos.

- Ascalante me disse que as muralhas da Cidade de Cristal têm dez vezes a altura de um homem. – disse Kull que não desejava mudar de assunto – Que o brilho do ouro e da prata era capaz de deslumbrar qualquer um, e que as mulheres que enchem as ruas ou aparecem nas janelas vão vestidas com estranhas túnicas que rangem e brilham ao mover-se.

- Quem melhor poderia saber disso que Ascalante? – disse Khor-nah, endurecendo o rosto – Foi escravo lá durante tanto tempo que acabou esquecendo seu bom nome atlante, e teve de conformar-se desde então com o nome valusiano que lhe puseram.

- Entretanto, ele conseguiu fugir. – comentou Am-ra.

- Certo, mas para cada escravo que consegue escapar das correntes dos Sete Impérios há pelo menos sete que apodrecem nas masmorras e morrem a cada dia, pois nenhum atlante foi feito para suportar a escravidão.

- Temos sido inimigos dos Sete Impérios desde o alvorecer dos tempos. – murmurou Am-ra.

- E continuaremos sendo até que o mundo se acabe – disse Khor-nah com uma selvagem satisfação –, pois a Atlântida, graças a Valka, é inimiga de todos os outros homens.

- Am-ra se ergueu, pegou sua lança e se preparou para fazer a guarda do acampamento. Os outros dois se deitaram na grama, dispostos a dormir. Com que sonharia Khor-nah? Talvez com uma batalha, ou com o retumbar dos búfalos, ou com uma mulher das cavernas. Quanto a Kull...

Através da neblina de seu sonho, soou fraca e distante a dourada melodia das trombetas. Nuvens de radiante esplendor flutuavam sobre ele; então, uma magnífica visão surgiu no seu sonho. Uma grande multidão se estendia à distância, e chegava até eles um rugido tormentoso expressado em uma língua estranha. Se percebia um leve matiz de aço se entrechocando, e grandes exércitos negros se estendiam à direita e à esquerda; a neblina se dissipou, e um rosto surgiu nitidamente, destacando-se: um rosto por cima do qual firmava-se uma coroa real. Era um rosto como de um falcão, de expressão fria, imóvel, com os olhos cinzentos como o mar frio. Então, a multidão voltou a gritar: “Viva o rei! Viva o rei! Viva Kull, o rei!”.

Kull despertou com um sobressalto. O brilho da lua iluminava as montanhas distantes, o vento soprava por entre a alta relva. Khor-nah dormia a seu lado, e Am-ra estava de pé, como uma estátua seminua de bronze que contrastava com a luz das estrelas. Os olhos de Kull caíram sobre sua escassa vestimenta; uma pele de leopardo enrolada sobre seus quadris de pantera. Um bárbaro seminu. Os olhos de Kull brilharam. Kull o rei! Voltou a dormir.



Se levantaram pela manhã para percorrer o caminho que levava às cavernas da tribo. O sol ainda não havia se elevado muito quando distinguiram o largo rio azul, e as cavernas da tribo apareceram em sua frente.

- Vejam! – exclamou Am-ra – Estão queimando alguém!

Diante das cavernas havia sido colocado um pesado poste, ao qual haviam amarrado uma mulher jovem. As pessoas que a rodeavam, com olhares endurecidos, não mostravam o menor sinal de piedade.

- Sareeta. – disse Khor-nah com um rosto impassível – Essa vadia se casou com um pirata lemuriano.

- Ah! – exclamou uma anciã com olhos petrificados – Minha própria filha! Trouxe a vergonha para a Atlântida! Não é mais minha filha! Seu homem morreu e ela foi jogada na praia quando o navio foi atacado pelas embarcações da Atlântida.

Kull olhou para a jovem com expressão piedosa. Não entendia. Por que razão aquelas pessoas, que eram de seu próprio sangue e raça, tinham tanto ódio dela pelo simples fato de ter escolhido se casar com um inimigo de sua raça? Em nenhum dos olhares dirigidos a ela, conseguiu distinguir o menor sinal de simpatia. Apenas nos estranhos olhos azuis de Am-ra havia tristeza e compaixão.

Não havia maneira de saber o que refletia o próprio rosto imóvel de Kull. Mas o olhar da mulher se fixou nele. Não havia medo em seus olhos; só uma profunda e vibrante súplica. O olhar de Kull pousou sobre a pilha de lenha colocada sob seus pés. O sacerdote, que agora cantarolava uma maldição, não demoraria em inclinar-se para pôr fogo com a tocha que segurava com a mão esquerda.

Kull percebeu que a mulher havia sido amarrada ao poste mediante uma pesada corrente de madeira, um objeto muito peculiar que mostrava a típica manufatura atlante. Não podia cortar aquelas correntes, porém conseguiu chegar até dela, abrindo caminho entre a multidão. Os olhos da mulher não deixavam de mirá-lo, suplicantes.

Observou de novo a lenha e levou a mão a uma adaga de longa ponta de sílex pendurada em seu cinto. A mulher, ao ver seu gesto, assentiu com um movimento da cabeça e uma expressão de alívio se espalhou sobre seus olhos.

Kull agiu tão repentina e inesperadamente quanto uma cobra. Puxou a adaga do cinto e a arremessou com força. Esta se cravou um pouco abaixo do coração da mulher, matando-a instantaneamente. E, enquanto a multidão permanecia boquiaberta, Kull girou sobre seus calcanhares e se pôs a correr, subindo vários metros pela escarpa íngreme, ágil como um felino.

A multidão continuou quieta e em silêncio durante mais um momento. Logo, um homem pegou arco e flecha e olhou as escarpas por onde Kull continuava subindo, a ponto de chegar ao topo. O arqueiro mirou, semicerrando os olhos, e nesse exato momento, Am-ra, como por acidente, trombou nele, atrapalhando-o, e a flecha partiu para um lado. Logo, Kull já havia desaparecido no alto do penhasco.

Ouviu os gritos que lhe seguiam. Os membros de sua própria tribo, inflamados pela ânsia de sangue, pareciam ávidos em capturá-lo e matá-lo, por haver violado o que para ele não era senão um estranho e sangrento código moral.

Mas, na Tribo da Montanha do Mar, não havia nenhum atlante capaz de ganhar de Kull na corrida.





Tradução: Fabrício Sousa (fabriciossousa@superig.com.br e fabriciossousa@hotmail.com)


Revisão: Fernando Neeser de Aragão (fernando_arag@yahoo.com.br e fernando.neeser2@bol.com.br)
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