Espadas do Reino Púrpura

(por Robert E. Howard)


1) “A Valúsia conspira atrás das portas fechadas”


Uma quietude sinistra se estendia como um sudário sobre a antiga cidade da Valúsia. As ondas de calor dançavam de um telhado reluzente a outro e tremulavam contra as suaves paredes de mármore. As torres púrpuras e os capitéis dourados pareciam suavizar-se sob a débil bruma. Nenhum som, de cascos de cavalo nas amplas ruas pavimentadas por pedras, interrompia o silêncio sonolento, e os poucos pedestres que se aventuravam a sair faziam suas tarefas rapidamente e voltavam a desaparecer dentro das casas. A cidade parecia um reino de fantasmas.

Kull, rei da Valúsia, afastou para um lado as cortinas diáfanas e olhou por cima do alizar dourado da janela, sobre o pátio de fontes faiscantes, as sebes recortadas e as árvores podadas, em direção ao muro alto e as janelas negras das casas, que deteram seu olhar.

- A Valúsia conspira atrás das portas fechadas, Brule. – ele grunhiu.

Seu companheiro, um poderoso guerreiro de rosto moreno e estatura mediana, sorriu duramente.

- Você é desconfiado demais, Kull. É o calor, que obriga o povo a ficar dentro de casa.

- Mas conspiram. – insistiu Kull. Ele era um bárbaro alto, de costas largas, com a constituição típica do verdadeiro lutador: ombros largos, peito poderoso e quadris delgados. Seus frios olhos cinzas meditavam tristemente sob espessas sobrancelhas negras. Seus traços indicavam claramente sua procedência, pois Kull, o usurpador, era de origem atlante.

- Certo, conspiram. Quando foi que o povo deixou de conspirar, independente de quem estivesse sentado no trono? E, no seu caso, seria explicável.

- Sim. – assentiu o gigante, cujas sobrancelhas se apertaram – Sou um estrangeiro. O primeiro bárbaro que alcançou o trono valusiano, desde o começo dos tempos. Enquanto fui apenas comandante de suas forças armadas, não levaram em conta o meu lugar de nascimento. Mas agora jogam isso na minha cara, pelo menos com o olhar e com o pensamento.

- E que importância isso pode ter para você? Eu também sou estrangeiro. Na verdade, os estrangeiros governam a Valúsia agora, pois o povo se tornou débil e degenerado demais para governar a si mesmo. Um atlante se senta em seu trono, apoiado por todos os pictos, os aliados mais antigos e poderosos do império. A corte está cheia de estrangeiros, os exércitos estão compostos por mercenários bárbaros, e os Matadores Vermelhos... bom, eles pelo menos são valusianos, mas são homens procedentes das montanhas, que consideram a si mesmos uma raça diferente.

Kull encolheu os ombros, inquieto.

- Sei o que o povo pensa, e com que aversão e cólera as mais velhas famílias valusianas devem observar a situação. Mas, que outra coisa teriam, do contrário? Com Borna, o império se encontrava em pior situação do que comigo, apesar dele ter sido um valusiano nativo, herdeiro direto da antiga dinastia. Este é o preço que uma nação deve pagar pela decadência: de uma forma ou de outra, os povos jovens e fortes aparecem e tomam posse das coisas. Ao menos, reconstruí os exércitos, reorganizei os mercenários e devolvi à Valúsia uma certa medida de sua antiga grandeza internacional. Com certeza, é muito melhor ter no trono um bárbaro capaz de manter unidas as diferentes facções, do que permitir que cem mil homens com as mãos ensangüentadas perambulassem livremente pela cidade, pois isso é o que teria ocorrido a esta altura, se Borna continuasse reinando. O reino desmoronava e se dividia sob seus pés, ameaçado por invasões de todas as partes, e os pagãos grondarianos já se preparavam para lançar uma incursão de proporções apavorantes... Pois bem, eu matei Borna com minhas próprias mãos naquela noite caótica em que me pus à frente dos rebeldes. Aquela ação impiedosa me valeu não poucos inimigos, mas seis meses mais tarde, eu havia terminado com o caos e as contra-rebeliões, reunificado a nação, quebrado a espinha dorsal da Tripla Federação e esmagado o poder dos grondarianos. Agora, a Valúsia dorme em paz e sossegada, e entre uma sesta e outra, conspira para me derrubar. Não tem havido fome desde que me tornei rei, os armazéns transbordam de grãos, os navios mercantes chegam carregados, as bolsas dos mercadores estão cheias e o povo começa a criar barriga. Mas, apesar de tudo isso, continuam fofocando, e praguejam e cospem sobre minha sombra. O que querem?

O picto esboçou uma careta selvagem e respondeu com amarga ironia:

- Querem outro Borna! Um tirano com as mãos ensangüentadas! Esquecem da ingratidão dele. Você não se apoderou do reino para favorecê-los, nem o conserva em suas mãos por esse motivo. Havia alcançado uma ambição de toda a vida, e se encontra firmemente instalado no trono. Que murmurem e conspirem o quanto quiserem. Você é o rei.

- Sim, sou o rei deste reino púrpura. – assentiu Kull – E continuarei sendo até o último suspiro, até que meu fantasma percorra o longo caminho das sombras. O que há, agora?

Um escravo se inclinou profundamente diante dele.

- Altíssima majestade: Nalissa, filha da grande casa de bora Ballin, solicita audiência.

Uma sombra se estendeu sobre o olhar do rei.

- Mais súplicas sobre seu incômodo assunto amoroso. – ele disse, com um suspiro, olhando para Brule – Talvez seja melhor você se retirar. – E, virando-se para o escravo, acrescentou: – Deixe-a comparecer ante a minha presença.

Kull se sentou numa cadeira forrada com veludo e olhou para Nalissa. Ela só tinha uns dezenove anos; vestida à custosa, porém suave, moda das nobres damas valusianas, mostrava uma imagem encantadora, cuja beleza até o próprio rei bárbaro pôde apreciar. Sua pele era de um branco maravilhoso, devido em parte aos numerosos banhos de leite e vinho que tomava, mas sobretudo a uma herança de formosura. Mostrava as bochechas matizadas naturalmente por uma delicada cor rosa, e seus lábios eram cheios e vermelhos. Sob as delicadas sobrancelhas negras, havia um par de profundos olhos suaves, tão negros quanto o mistério, e toda aquela imagem se via coroada por uma massa de frisados cabelos negros, parcialmente presos por um fino laço dourado.

Nalissa se ajoelhou aos pés do rei, tomou nas mãos suaves aqueles dedos endurecidos pelo manejo da espada e mirou-lhe os olhos, com uma expressão luminosa e carregada de súplica. Dentre todas as pessoas do reino, os olhos de Nalissa eram os únicos que Kull preferia não mirar. Às vezes, observava neles uma grande profundeza de fascinação e mistério. Ela, filha cuidada e mimada da aristocracia, sabia quais eram alguns de seus próprios poderes, mas ainda não conhecia todos, devido à sua juventude. Kull, que era sábio no conhecimento dos homens e das mulheres, se dava conta de que, com a maturidade, Nalissa estava destinada a alcançar um poder terrível na corte e no país, fosse para o bem ou para o mal.

- Mas, majestade – rogava agora, como uma menina que pede um brinquedo –, permita que eu me case com Dalgar de Farsun. Ele se transformou num cidadão valusiano, e alcançou um alto benefício na corte, como tu mesmo o dizes. Por que...?

- Já lhe disse – interrompeu-lhe o rei com impaciência –, não me importa que você se case com Dalgar, com Brule ou com o próprio diabo, mas seu pai não quer que você se case com aquele aventureiro farsuniano e...

- Mas tu podes fazer com que ele consinta! – ela gritou.

- A casa de bora Ballin está entre meus mais fortes partidários. – respondeu o atlante – E Murom bora Ballin, seu pai, é um dos meus melhores amigos. Fez amizade comigo, quando eu não era mais que um gladiador sem amigos. Me emprestou dinheiro quando eu era apenas um soldado, e apoiou minha causa quando me apoderei do trono. Quer que eu me arrisque a perder essa minha mão direita, obrigando-me a aceitar algo a que ele se opõe violentamente, ou intervindo em assuntos familiares?

Nalissa ainda não havia aprendido que alguns homens não se deixam comover pelas artimanhas femininas. Suplicou, tentou levá-lo na conversa, e até chorou. Beijou as mãos de Kull, chorou sobre seu peito, chegou a sentar-se sobre seus joelhos e discutiu, tudo isso diante do desconforto do rei, mas não lhe serviu de nada. Kull se mostrou sinceramente compreensivo, porém inflexível. Apesar de todos os atrativos e adulações da jovem, ele só tinha uma resposta: que aquilo não era assunto seu, que o pai dela sabia melhor o que lhe convinha e que ele, Kull, não estava disposto a interferir.

Finalmente, Nalissa desistiu de suas tentativas e foi embora, com a cabeça baixa e arrastando os pés. Ao sair do salão real, se encontrou com seu pai, que estava chegando naquele momento. Murom bora Ballin, que imaginou qual seria o propósito que induzira sua filha a visitar o rei, não lhe disse nada, mas o olhar que lhe dirigiu indicava bem claramente o castigo que lhe reservava. A jovem subiu à cadeira que lhe esperava, sentindo-se desgraçada, como se o sofrimento que a incomodava não pudesse ser suportado por nenhuma outra mulher. Então, sua natureza interna se afirmou a si mesma. Em seus olhos escuros, brotou a chama da rebelião, e ela dirigiu umas poucas e rápidas palavras aos escravos que carregavam sua cadeira.

Enquanto isso, o conde Murom se encontrava diante de seu rei, com os traços do rosto transformados numa máscara de deferência formal. Kull observou aquela expressão, e isso lhe doeu. Existia formalidade entre ele e todos os seus súditos e aliados, exceto com picto Brule e o embaixador Ka-nu, mas aquela formalidade afetada era algo novo para o conde Murom, e Kull não demorou em imaginar a razão.

- Sua filha esteve aqui, conde. – ele disse bruscamente.

- Sim, majestade. – ele assentiu com tom impassível e majestoso.

- Provavelmente, você sabe por quê. Ela deseja casar-se com Dalgar de Farsun.

O conde inclinou levemente a cabeça.

- Se vossa majestade assim deseja, não temos mais que falar nisso. – ele disse, ao mesmo tempo em que umas linhas duras se estendiam por seu rosto.

Inquieto, Kull se levantou, cruzou a sala e se dirigiu para a janela onde, mais uma vez, contemplou a cidade sonolenta. Sem se virar, disse dali:

- Nem pela metade de meu reino, eu ousaria interferir em seus assuntos familiares, e muito menos obrigá-lo a seguir um curso de ação desagradável para você.

O conde ficou a seu lado num instante, desaparecida toda sua formalidade anterior, com uma expressão eloqüente em seus olhos perfeitos.

- Majestade, eu havia te julgado mal. Eu deveria ter percebido que...

Fez gesto de que ia se ajoelhar, mas Kull o conteve com um gesto.

- Fique tranqüilo, conde. Seus assuntos particulares são seus. Não posso ajudá-lo, mas você pode me ajudar. O ambiente me cheira a conspiração. Desde minha juventude, aprendi a perceber o perigo. Desde então, já sentia a proximidade do tigre na selva, ou de uma serpente no meio do capim alto.

- Meus espiões se dedicam a percorrer a cidade, majestade. – disse o conde, com os olhos iluminados diante da perspectiva de ação imediata – O povo murmura, como faria sob qualquer governante, mas acabo de falar com Ka-nu, no consulado, e ele me disse que eu lhe avisasse sobre a atuação de influências externas e dinheiro estrangeiro. Ele disse que ainda não sabe de nada definitivo, mas que seus pictos obtiveram certas informações de um criado bêbado do embaixador veruliano, vagos vislumbres indicativos de algum golpe que esse governo está preparando.

- Todos nós conhecemos a grande capacidade veruliana para a mentira. – admitiu Kull, com um grunhido – Mas Gen Dala, o embaixador veruliano, é a própria essência da honra.

- Melhor ainda para ser utilizado como fachada. Se ele não sabe nada do que sua nação planeja, melhor servirá para disfarçar esses planos.

- Mas, o que a Verúlia ganharia com isso? – perguntou Kull.

- Gomlah, um primo distante do rei Borna, se refugiou lá quando derrotaste a antiga dinastia. Sem vós, a Valúsia se despedaçaria, os exércitos ficariam desorganizados e nos veríamos abandonados por todos os nossos aliados, exceto os pictos; os mercenários, a quem só tu consegues controlar, se agitariam contra a Valúsia, e assim seríamos uma presa fácil para a primeira nação poderosa que ousasse nos atacar. Então, apresentando Gomlah como uma desculpa para a invasão, como uma marionete no trono da Valúsia...

- Compreendo. – grunhiu Kull – Me sinto muito mais à vontade na batalha que no conselho, mas eu entendo. De modo que o primeiro passo seria minha eliminação, não é isso?

- Sim majestade.

Kull sorriu e flexionou seus poderosos braços.

- No fim das contas, governar às vezes dá tédio. – ele disse, ao mesmo em que seus dedos acariciavam o cabo da espada que sempre levava no cinto.

Naquele momento, apareceu um escravo e anunciou:

- Tu, conselheiro-chefe do rei, e Dondal, seu sobrinho.

Imediatamente, dois homens entraram no salão. Tu, o conselheiro-chefe, era um homem gorducho, de estatura mediana, que já se encontrava na segunda metade da vida e que mais parecia com um mercador que com um conselheiro. Tinha o cabelo ralo, o rosto sulcado de rugas e, sob suas sobrancelhas, havia sempre um olhar de perpétua desconfiança. No entanto, se notava nele tanto os anos quanto as honras recebidas. De origem plebéia, ele abrira caminho graças exclusivamente ao poder de sua habilidade e às intrigas. Antes da chegada de Kull, ele vira surgir e desaparecer três reis, e notava-se a tensão que isso lhe havia implicado.

Seu sobrinho Dondal era um jovem delgado e um pouco jeitoso, com intensos olhos escuros e um sorriso agradável. Sua principal virtude consistia no fato de saber conter a língua, e nunca repetir a ninguém o que ouvia dizer na corte. Por essa mesma razão, sua presença era permitida em lugares onde seu estreito parentesco com Tu não lhe permitiria.

- Trata-se apenas de uma pequena questão de estado, majestade. – disse Tu – Essa autorização para construir um novo porto na costa ocidental. Queres assiná-la?

Kull assinou o documento. Tu tirou de dentro do peito um anel de fôrma, seguro por uma pequena corrente que ele sempre usava ao redor do pescoço, e aplicou o selo real. Este anel era, com certeza, a réplica da assinatura real, e nenhum outro anel no mundo era exatamente igual, razão pela qual Tu o levava sempre ao redor do pescoço, tanto acordado quanto durante o sono. Com exceção dos que estavam presentes nesse momento, ninguém mais sabia onde era guardado o anel da assinatura real.


2) Mistério


De forma quase imperceptível, o silêncio do dia havia se transformado no silêncio da noite. A lua ainda não havia saído e as pequenas estrelas prateadas davam pouca luz, como se sua radiação se visse sufocada pelo calor que ainda surgia da terra.

Os cascos de um só cavalo produziam um ressoar oco ao longo de uma rua deserta. Se alguém observasse das janelas negras das casas, não demonstraria saber que era Dalgar de Farsun que montava o cavalo e avançava através da noite e do silêncio.

O corpo ágil e atlético do jovem farsuniano estava totalmente coberto por uma armadura leve, e ele também usava um capacete. Parecia perfeitamente capaz de manejar a espada longa e fina, com cabo cravejado de jóias, que lhe pendia do lado; e o lenço de brilho rosa, que lhe cruzava o peito coberto de aço, não diminuía em nada a imagem de masculinidade que oferecia.

Agora, enquanto cavalgava, leu de novo o bilhete dobrado que trazia na mão e que, meio desdobrado, deixava à mostra a seguinte mensagem, escrita nos caracteres típicos da Valúsia: “À meia-noite, meu amado, nos Jardins Malditos, do outro lado dos muros. Fugiremos juntos”.

Um bilhete dramático. Os belos lábios de Dalgar se curvaram ligeiramente ao lê-lo. Bom, podia desculpar-se um pouco o melodrama de uma jovem, e ele mesmo sentia muito prazer com isso. Um estremecimento de êxtase o sacudiu, só de pensar na situação. Ao amanhecer, já estaria do outro lado da fronteira veruliana, junto à sua futura esposa. Que o conde Murom bora Ballin se enfurecesse o quanto quisesse, e que o exército valusiano lhes seguisse o rastro, porque, uma vez cruzada essa fronteira, ele e Nalissa estariam a salvo. Se sentia bem animado e romântico; seu coração inflava com os estúpidos heroísmos típicos da juventude. Ainda faltavam várias horas para a meia-noite, mas... Com os calcanhares cobertos de aço, ele fez o cavalo girar para um lado pra seguir um atalho, através de umas estreitas ruas escuras.

- Oh, lua prateada num peito de prata... – ele sussurrou em voz baixa, repetindo as palavras de amor dos versos de Ridondo, aquele poeta louco, já morto.

Então, o cavalo fungou e se agitou, inquieto. Entre as sombras de uma porta esquálida, uma indistinta forma escura se movia e gemia.

Dalgar se inclinou e viu a forma de um homem. Arrastou o corpo para uma área mais iluminada, e percebeu que o homem ainda respirava. Algo quente e pegajoso se aderiu à sua mão.

O homem era gorducho e aparentemente velho, pois seu cabelo era ralo e a barba estava manchada de branco. Estava vestido com os farrapos de um mendigo, mas mesmo na escuridão, Dalgar notou que as mãos eram suaves e brancas por debaixo da sujeira. O sangue brotava de uma feia abertura na parte lateral da cabeça, e ele tinha os olhos fechados, embora gemesse de vez em quando.

Dalgar tirou um pedaço da própria faixa para lhe estancar a ferida e, ao fazê-lo, o anel que trazia num dedo ficou emaranhado entre os pêlos da barba. Ao puxar a mão, com um gesto impaciente, a barba se desprendeu completamente, deixando à mostra o rosto suavemente barbeado e profundamente enrugado de um homem que parecia estar no final da metade de sua vida. Dalgar soltou uma exclamação e recuou. Se levantou de um salto, perturbado e abalado. Ele ficou ali, de pé, por um momento, sem deixar de olhar fixamente para o homem que gemia; logo, o rápido barulho dos cascos de um cavalo, numa rua paralela, fê-lo recuperar os sentidos.

Ele correu pela rua, até chegar à esquina, e se aproximou do cavaleiro. O homem se deteve com um movimento rápido, ao mesmo tempo em que levava a mão à espada. Os cascos de seu corcel arrancaram faíscas do chão pavimentado da rua, ao fazer descer o cavalo.

- O que está acontecendo? Ah... é você, Dalgar!

- Brule! – exclamou o jovem farsuniano – Rápido! Tu, o conselheiro-chefe, jaz nessa rua. Está sem sentidos, e pode ter sido assassinado.

O picto desmontou rapidamente, já empunhando a espada. Jogou as rédeas por cima da cabeça de sua montaria, deixou o corcel ali, como uma estátua, e seguiu velozmente Dalgar.

Ambos se inclinaram sobre o conselheiro ferido, e Brule examinou seu corpo com mãos experientes.

- Ao que parece, não tem nenhuma fratura – grunhiu o picto –, embora eu não possa sabê-lo com certeza, é claro. A barba havia caído quando você o encontrou?

- Não, eu puxei-a acidentalmente e ela se desprendeu...

- Nesse caso, é bem provável que isto seja obra de algum desalmado que não o conhecia. Ao menos, é o que eu prefiro pensar. Se o homem que o assaltou sabia que se tratava de Tu, isso significaria que uma negra traição está sendo tramada na Valúsia. Eu já disse a ele, mais de uma vez, que seria um desastre perambular pela cidade disfarçado desse modo, mas isso não é suficiente para convencer um conselheiro. Ele insistiu que, desse modo, poderia saber do que estava acontecendo, que poderia controlar o pulso do império, segundo suas próprias palavras.

- Mas, se foi obra de um ladrão, por que não o roubaram? – perguntou Dalgar – Aqui está sua bolsa, com umas poucas moedas de cobre. Além do mais, quem tentaria roubar um mendigo?

O lanceiro praguejou.

- Tem razão. Mas, em nome de Valka, quem podia saber que ele era Tu? Ele nunca usou duas vezes o mesmo disfarce, e só Dondal e um escravo lhe ajudavam a vesti-lo. Quem o atacou procurava o quê? Ah, por Valka... ele pode morrer, enquanto ficamos aqui fazendo conjecturas. Ajude-me a subi-lo no meu cavalo.

Uma vez que o conselheiro-chefe foi colocado na sela e sustentado pelos braços de aço de Brule, eles percorreram as ruas em direção ao palácio. A guarda, assombrada, lhes deu passagem, e o homem inconsciente foi levado a uma câmara interna e recostado num leito, onde deu sinais de recuperar a consciência, sob os cuidados das escravas e das damas da corte.

Finalmente, ele se sentou e agarrou a própria cabeça com as mãos. Ka-nu, o embaixador picto e o homem mais astuto do reino, se inclinou sobre ele.

- Tu! Quem lhe atacou?

- Não sei. – respondeu o conselheiro, ainda tonto – Não lembro de nada.

- Você trazia algum documento importante?

- Não.

- Lhe roubaram algo?

Tu apalpou as próprias roupas, incerto. Seu olhar nublado começou a clarear, e então, repentinamente se iluminou com uma súbita compreensão.

- O anel! O anel da assinatura real! Desapareceu!

Ka-nu esmurrou a palma de uma das mãos e praguejou, magoado.

- É nisso que dá levá-lo sempre com você! Já lhe avisei! Rápido, Brule, Kelkor, Dalgar... uma vil traição está sendo preparada. Compareçam logo ao quarto do rei.

Diante do dormitório real, montavam guarda dez Matadores Vermelhos, o regimento favorito do rei. Diante das rápidas perguntas de Ka-nu, responderam que o rei tinha ido descansar há mais ou menos uma hora, que ninguém havia tentado entrar, e que não ouviram nenhum ruído.

Ka-nu bateu à porta. Não houve resposta. Apressado pelo pânico, tentou abri-la, mas estava trancada por dentro.

- Derrubem esta porta! – ele gritou, com o rosto muito pálido e um inusitado timbre de tensão na voz.

Dois dos Matadores Vermelhos, de tamanho gigantesco, lançaram todo seu peso contra a porta, mas esta, por ser de denso carvalho e estar protegida por faixas de bronze, resistiu ao embate. Brule os afastou para um lado e atacou a maciça porta com sua espada. Sob os pesados golpes do aço afiado, a madeira e o metal terminaram cedendo e, alguns momentos depois, Brule lançava todo seu peso sobre ela e adentrava os aposentos, passando por cima dos restos.

Ele parou imediatamente, com um grito abafado, e olhou por cima do ombro, enquanto Ka-nu arrancava desesperadamente fios da barba. A cama real estava desarrumada, como se de fato alguém tivesse dormido nela, mas não se via o menor rastro do rei. O quarto estava completamente vazio, e só a janela aberta parecia oferecer uma explicação ao estranho desaparecimento.

- Vasculhem as ruas! – rugiu Ka-nu – Vasculhem toda a cidade! Que redobrem a guarda em todas as portas. Kelkor, alerte toda a força dos Matadores Vermelhos. Brule, reúna seus cavaleiros e ponha-se à frente deles, até a morte se for preciso. Apressem-se! Dalgar...

Mas o farsuniano havia desaparecido. Havia lembrado de repente que já era quase meia-noite, e para ele era muito mais importante o fato de Nalissa bora Ballin estar lhe esperando nos Jardins Malditos, a três quilômetros de distância dos muros da cidade, antes de conhecer o paradeiro do rei, fosse qual fosse.


3) A assinatura do selo


Aquela noite, Kull havia se retirado cedo para seus aposentos. Como de costume, se distraiu alguns minutos diante da porta do quarto real para conversar com a guarda – velhos companheiros de regimento – e intercambiar algumas lembranças sobre os velhos tempos, em que havia cavalgado entre as fileiras dos Matadores Vermelhos. Logo, dispensou seus criados, entrou no quarto, afastou os cobertores de sua cama e se preparou pra dormir. Uma atitude estranha para um rei, sem dúvida, mas já fazia tempo que Kull se acostumara à vida rude do soldado, e antes disso havia feito parte de uma tribo de selvagens. Nunca havia se acostumado totalmente a que todos os outros lhe fizessem as coisas e, pelo menos na intimidade de seu quarto, preferia cuidar de si mesmo.

No exato momento em que se virou para apagar a vela que iluminava o local, ele ouviu leves batidas no alizar da janela. Com a espada na mão, cruzou o recinto com o passo natural e silencioso de uma grande pantera, e olhou para fora. As sebes e as árvores eram vistas vagamente na penumbra, sob a luz das estrelas. O ruído das fontes chegava distante até ele, e seu olhar não conseguiu distinguir a silhueta de nenhum dos sentinelas que percorriam aqueles limites.

Entretanto, aqui, junto a seu cotovelo, se encontrava o mistério. Agarrada às trepadeiras que cobriam o muro, havia uma pequena figura de rosto enrugado, com o mesmo aspecto dos mendigos profissionais que pululavam pelas ruas mais sórdidas da cidade. Parecia um ser inofensivo, com suas pernas delgadas e seu rosto de macaco, e Kull o olhou com a testa franzida.

- Já vejo que terei de colocar sentinelas sob minha janela, ou cortar estas trepadeiras. Como conseguiu passar pela guarda?

O homem enrugado levou um dedo magro aos lábios, com um gesto que pedia silêncio; logo, com a habilidade típica de um símio, deslizou uma mão através das roupas e, em silêncio, entregou um pergaminho a Kull. O rei o desenrolou e leu: “Rei Kull, se valorizas um pouco a vossa vida, ou o bem-estar do reino, siga este guia até o lugar ao qual ele vos conduzirá. Não fale com ninguém. Não deixe os guardas lhe verem. Os regimentos são uma efervescência de traições, e se queres continuar vivendo e conservar o trono, deves fazer exatamente o que vos digo. Confia no portador deste bilhete”. A missiva estava assinada: “Tu, conselheiro-chefe da Valúsia”, e se via nela o selo do anel real.

Kull franziu as sobrancelhas. Aquilo não tinha boa aparência, mas se tratava, sem dúvida, da caligrafia de Tu, pois não deixou de observar o traço peculiar e imperceptível da última letra do nome de Tu, que era a característica peculiar do conselheiro, por assim dizer. Além disso, havia o selo, e aquele selo não podia ser duplicado. Era a assinatura de Kull.

- Muito bem. – assentiu – Espere eu me armar.

Vestido e coberto com uma leve armadura de cota-de-malha, Kull se dirigiu novamente à janela. Agarrou as barras, uma em cada mão, aplicou cautelosamente sua tremenda força e sentiu-as cederem até lhe parecer que mesmo suas largas costas caberiam no vão. Montou sobre o alizar, se agarrou às trepadeiras e desceu por elas com a mesma facilidade com a qual fizera o pequeno mendigo que lhe precedia.

Ao pé do muro, Kull segurou seu companheiro pelo braço.

- Como conseguiu enganar a guarda? – perguntou com um sussurro.

- A quem se aproximou de mim, eu mostrei o sinal do selo real.

- Isso não será suficiente agora. – grunhiu o rei – Siga-me, eu conheço a rotina que seguem.

Transcorreram uns vinte minutos, durante os quais permaneceram deitados, à espera, atrás de uma árvore ou uma sebe, até que passasse um sentinela, e avançassem para um novo esconderijo, através de breves e rápidas corridas entre as sombras. Finalmente, chegaram junto à muralha externa. Kull tomou seu guia pelos tornozelos e o levantou até que os dedos deste se agarrassem ao alto da muralha. Uma vez montado sobre ela, o mendigo lhe estendeu a mão para ajudá-lo, mas Kull, com um gesto depreciativo, recuou alguns passos, empreendeu uma curta corrida, saltou no ar e se agarrou ao parapeito com uma das mãos, para logo elevar sua grande estrutura com força e determinação, até encontrar-se no alto da muralha, tudo isso com um incrível desdobramento de força e agilidade.

Um instante depois, as duas figuras estranhamente incongruentes haviam pulado ao outro lado da muralha e desapareciam, tragadas pela escuridão.


4) “Virou-se, encurralado”


Nalissa, filha da casa de bora Ballin, se sentia nervosa e assustada. Sustentada por suas elevadas esperanças e pela sinceridade de seu amor, não lamentava a precipitação dos atos que havia praticado nas últimas horas, mas desejava que logo chegasse a meia-noite, que lhe traria seu amante.

Até o momento, sua fuga havia sido fácil. Não era simples pra ninguém abandonar a cidade após cair a noite, mas ela se afastara a cavalo da casa de seu pai pouco antes do pôr-do-sol, após dizer à mãe que passaria aquela noite na casa de uma amiga. Foi uma sorte para ela que, às mulheres das cidades da Valúsia, se lhes permitisse essa extraordinária liberdade, e não tivessem que se verem reclusas nos haréns e em verdadeiras casas-prisões, como ocorria nos impérios orientais; tratava-se de um costume que havia sobrevivido à grande inundação.

Nalissa saiu tranqüila pelo portão oriental, e logo se dirigiu diretamente aos Jardins Malditos, situados a duas milhas a leste da cidade. Estes jardins haviam sido outrora o local de prazeres e propriedade rural de um nobre, mas histórias de cruéis depravações e medonhos ritos de adoração demoníaca começaram a se espalhar; e, finalmente, o povo, enlouquecido pelo desaparecimento regular de suas crianças, caiu sobre os Jardins numa turba fora de si e enforcou o príncipe diante de seus próprios portões. Vasculhando os jardins, o povo encontrou coisas repugnantes e, numa maré de repulsa e horror, destruiu parcialmente a mansão, as praças, os caramanchões, as grutas e os muros. No entanto, construídos com mármore imperecível, muitos dos edifícios resistiram tanto aos malhos da multidão quanto aos estragos do tempo. Agora, abandonados há mais de um século, dentro daqueles muros semi-desmoronados, brotara uma verdadeira selva em miniatura, e a vegetação cobria quase por completo as ruínas.

Nalissa escondeu o cavalo numa praça arruinada, e sentou-se sobre o solo de mármore rachado, disposta a esperar. A princípio, não foi ruim. O suave pôr-do-sol típico de verão pareceu inundar a paisagem, abrandando tudo com suas doces tonalidades amareladas. Se sentiu empolgada pelo vasto mar esverdeado que lhe cercava, salpicado de resplendores brancos ali, onde ainda se viam muros de mármore e telhados desmoronados. Mas, à medida que foi caindo a noite e as sombras foram invadindo tudo, Nalissa começou a ficar nervosa. A brisa noturna parecia sussurrar coisas cruéis entre os galhos das árvores, as largas folhas de palmeira e o capim alto; e as estrelas produziam uma impressão de frieza e distância. Ela começou a lembrar das lendas e histórias que foram contadas e imaginou que, acima das fortes batidas de seu coração, podia ouvir o atrito de invisíveis asas negras, e o murmúrio de vozes hostis.

Ela rogava para que chegasse a meia-noite, e Dalgar com ela. Se Kull pudesse vê-la naquele momento, ele não pensaria no misterioso de sua profunda natureza, nem nos sinais do grande futuro que a esperava. Só veria uma jovem assustada, que desejava apaixonadamente se sentir consolada e acariciada nos braços de um homem.

Mas, em nenhum momento, passara pela mente dela a idéia de abandonar.

Parecia que o tempo não passava, embora transcorresse de alguma forma. Finalmente, um brilho fraco indicou a próxima saída da lua, e ela notou que, pouco a pouco, a meia-noite se aproximava.

Então, ouviu-se de repente um ruído, que a fez se levantar de um salto e sentir o coração lhe subir à garganta. Em algum lugar dos jardins supostamente desertos, o silêncio da noite foi rompido por um grito e um som metálico de aço. Um novo grito, breve e horrível, lhe gelou o sangue nas veias. Logo, se fez novamente o silêncio, como um sufocante sudário.

“Dalgar! Dalgar! Onde está você?”. Este pensamento martelava sem parar seu cérebro atordoado. Possivelmente, seu amante havia comparecido ao encontro e caiu vítima de alguém... ou de algo.

Ela saiu do lugar onde se escondia, com a mão no coração, o qual parecia querer estourar entre as costelas. Ela começou a percorrer um caminho pavimentado, e as folhas das palmeiras roçaram seus dedos. Parecia estar rodeada por um abismo de sombras pulsantes, vibrantes e cheias de uma maldade sem nome. Não se ouvia o menor ruído.

Diante dela, erguiam-se as sombras da mansão arruinada. De repente, dois homens a encontraram. Ela lançou um único grito, e sua língua ficou como que petrificada de terror. Tentou fugir, mas as pernas não lhe obedeceram, e antes que ela pudesse fazer um só movimento, um dos homens se apoderou dela, agarrando-a pela cintura, e colocou-a debaixo do braço como se ela fosse uma menina pequena.

- Uma mulher. – ele grunhiu num idioma que Nalissa mal compreendeu, mas que reconheceu como Veruliano – Me dê seu punhal, que eu me encarrego de...

- Não temos tempo agora. – respondeu o outro, usando a mesma língua – Jogue-a ali, com ele, e depois nos encarregamos de ambos. Temos que trazer Phondar aqui, antes de matar; ele quer interrogá-lo um pouco.

- De que adianta isso? – murmurou o gigante veruliano, que seguiu seu companheiro – Ele não vai querer falar, disso pode estar certo. Desde que os capturamos, ele só abriu a boca para nos amaldiçoar.

Nalissa, transportada de maneira tão infame sob o braço de seu raptor, estava gelada de pavor, mas sua mente funcionava a toda velocidade. A quem se referiam? A quem queriam interrogar e logo assassinar? A possibilidade de ser Dalgar desocupou sua mente do temor que sentia por si mesma, e encheu-lhe a alma de ira selvagem e desesperada. Ela começou a espernear e se retorcer violentamente, e levou um forte bofetão, que arrancou lágrimas de seus olhos e um grito de dor de seus lábios. Resignou-se a uma humilhante submissão, e pouco depois foi lançada, sem consideração alguma, através da soleira de uma porta coberta pelas sombras. Caiu de bruços ao chão, como um novilho.

- Não seria melhor amarrá-la? – perguntou o gigante.

- De que serviria? Ela não pode escapar, e tampouco desatá-lo. Vamos, se apresse. Temos o que fazer.

Nalissa se sentou e olhou timidamente a seu redor. Ela se encontrava numa pequena câmara, cujos cantos estavam cobertos de teias de aranhas. O chão estava coberto de poeira e de fragmentos de mármore, soltos das paredes arruinadas. Uma parte do teto havia desaparecido, e a lua, que agora se elevava lentamente, derramava sua luz através da abertura. Graças a ela, pôde ver uma silhueta no chão, próxima à parede. Ela se encolheu, e os dentes se cravaram nos lábios, com uma horrorizada expectativa; então, com uma delirante sensação de alívio, percebeu que aquele homem era corpulento demais para ser Dalgar. Se arrastou em direção a ele e olhou-lhe o rosto. Estava com as mãos e os pés amarrados, além de amordaçado; mas, acima da mordaça, dois frios olhos cinzas miravam fixamente os seus.

- Rei Kull!

Nalissa levou ambas as mãos às têmporas, apertando-as, enquanto a sala parecia cambalear diante de seu olhar abalado e surpreso. Um instante depois, seus dedos, delgados porém fortes, se puseram a trabalhar sobre a mordaça. Após uns poucos minutos de intenso esforço, conseguiu soltá-la. Kull esticou as mandíbulas e lançou uma praga em sua própria língua, respeitando, mesmo em tal situação, os ternos ouvidos da jovem.

- Oh, milorde, como chegaste até aqui? – perguntou a jovem, retorcendo as mãos.

- Ou bem o conselheiro em quem mais confio é um traidor, ou eu sou um louco. – grunhiu o gigante – Alguém se aproximou de mim com uma carta escrita por Tu, que levava até o selo real. Eu o segui, como me pedia a carta. Atravessamos a cidade e chegamos diante de uma porta, cuja existência nem eu sequer conhecia. Esta porta não estava vigiada por ninguém, e aparentemente é desconhecida por todos, exceto aqueles que conspiram contra mim. Uma vez do outro lado, alguém esperava com cavalos, e cavalgamos a toda velocidade até estes Jardins Malditos. Deixamos os cavalos próximos ao muro semi-derrubado, e fui conduzido até aqui, como um estúpido cego e surdo, pronto para o sacrifício. Ao cruzar a soleira dessa porta, uma grande rede caiu sobre mim, o que me impediu de desembainhar a espada, e me prendeu os membros. Num instante, uma dúzia de canalhas avançou sobre mim e... bom, de qualquer forma, me capturar não foi tão fácil quanto haviam imaginado. Dois deles me retorceram o braço, de modo que não consegui usar a espada, mas dei um belo chute num deles, e pude ouvir o estalo de suas costelas se partindo. Consegui rasgar a rede que me prendia, com a mão esquerda, e atravessei com minha adaga um outro, que encontrou a morte e gritou como uma alma perdida em seu último instante. Mas, por Valka, eles eram muitos! Finalmente, conseguiram tirar minha armadura – Nalissa percebeu, então, que o rei só usava uma espécie de tanga –, e me amarraram e amordaçaram como você viu. Nem sequer o próprio diabo conseguiria romper estas cordas. Não vale a pena tentar desatar os nós. Pelo visto, um daqueles homens era marinheiro, e sei muito bem os tipos de nós que os marujos são capazes de fazer. Eu mesmo fui, no passado, escravo numa galera.

- Mas, o que posso fazer? – gemeu a jovem, sem deixar de retorcer as mãos.

- Pegue um pedaço grande de mármore e o desbaste até obter um lado afiado. – respondeu Kull, apressado – Você tem que me cortar estas cordas.

Ela assim o fez, e seus esforços foram recompensados quando ela conseguiu um fino pedaço de mármore, cuja borda côncava parecia tão afiada quanto uma faca serrilhada.

- Tenho medo de cortar sua pele, senhor. – ela se desculpou, ao mesmo tempo em que começava a trabalhar.

- Corte a pele, a carne e até o osso se for preciso pra me soltar. – disse bruscamente Kull, com os olhos acesos – Me deixar capturar como um cego estúpido! Ah, que imbecil que sou! Por Valka, Honen e Hotath! Mas quando eu puser as mãos naqueles cães... E você? Como chegou até aqui?

- Falaremos disso mais tarde. – respondeu Nalissa, ofegante – Agora não temos tempo a perder.

O silêncio se fez, enquanto a jovem tentava cortar as duras amarras, sem o mínimo de preocupação com as mãos delicadas, que não demoraram em ficar feridas e sangrando. Mas lentamente, fiapo a fiapo, as cordas foram cedendo. No entanto, continuaram suficientes para prender qualquer homem comum, quando passos pesados ressoaram na soleira.

Nalissa ficou petrificada. Ouviu-se uma voz.

- Ele está aí dentro, Phondar, amarrado e amordaçado. Há uma dama valusiana com ele, a qual encontramos perambulando pelos jardins.

- Nesse caso vigiem atentamente, para o caso de seu galanteador chegar. – disse outra voz em tom duro e rangente, como o de um homem acostumado a ser obedecido – É bem provável que tenha marcado encontro com algum mentecapto por aqui. Quanto a você...

- Nada de nomes, nada de nomes, meu bom Phondar. – lhe interrompeu uma sedosa voz valusiana – Lembre-se de nosso acordo. Até que Gomlah se sente no trono, eu não sou mais que... o mascarado.

- Muito bem. – grunhiu o veruliano – Pois então, devo dizer-lhe que fez um ótimo trabalho esta noite, mascarado. Ninguém mais além de você o teria conseguido, pois só você sabia como se apoderar do selo real. Só você conseguiria imitar tão bem a escrita de Tu. E, a propósito... matou o velho?

- Que importa isso? Ele morrerá esta noite, ou no dia em que Gomlah subir ao trono. O que realmente importa é que o rei está em nosso poder, e indefeso.

Kull pensava a toda velocidade, numa tentativa desesperada de distinguir a voz cavernosa e familiar daquele traidor. Quanto a Phondar... seu rosto esboçou um gesto cruel. Devia ser uma conspiração muito importante, para que a Verúlia enviasse o comandante de suas forças armadas, a fim de realizar o trabalho sujo. O rei conhecia muito bem Phondar, e em outras ocasiões, havia até acolhido-o no palácio.

- Entre e tire-o daí. – ordenou Phondar – O levaremos à velha câmara de torturas. Tenho algumas perguntas pra fazer a ele.

A porta se abriu e um homem entrou: era o mesmo gigante que havia capturado Nalissa. Fechou a porta atrás dele e cruzou a sala, sem dirigir um só olhar à garota, encolhida num canto. Se inclinou sobre o rei e o agarrou pelo ombro e uma perna, para levantá-lo a pulso; então, se ouviu um golpe repentino quando Kull, empregando toda a sua força férrea, deu um puxão convulsivo e rompeu o resto das cordas que ainda lhe seguravam.

Não ficara amarrado por tempo suficiente para lhe interromper a circulação, o que poderia afetar sua força. Suas mãos se lançaram em direção ao pescoço do gigante, como faria uma píton, e o envolveram com garras de aço.

O gigante caiu de joelhos. Levou uma das mãos aos dedos que lhe apertavam o pescoço, e a outra à bainha da adaga. Seus dedos envolveram como aço o pulso de Kull, e a adaga saiu da bainha com um brilho metálico. Logo, seus olhos se arregalaram, ele abriu a boca e a língua saiu, flácida. Os dedos se soltaram do pulso do rei, e a adaga lhe caiu da mão já sem força. O veruliano ficou flácido, com a garganta literalmente esmagada sob aquela terrível pressão. Kull deu um puxão aterrorizante de sua cabeça para um lado, partindo-lhe o pescoço; o largou ao chão e lhe desembainhou a espada. Nalissa havia recolhido a adaga caída ao chão.

A luta só durara alguns segundos, e não fizera mais barulho do que um homem levantando um outro pesado para lançá-lo sobre o ombro.

- Apresse-se! – gritou a voz impaciente de Phondar, do outro lado da porta.

Kull, escondido como um tigre no interior da sala, pensou rapidamente. Sabia que, lá fora, havia pelo menos um pelotão de conspiradores. Também sabia, pelo ruído das vozes, que, do outro do lado da porta, só havia dois ou três, pelo menos por enquanto. A sala onde estava não era um bom lugar para se defender. Os outros não demorariam em entrar para ver o que causava o atraso. Então, ele tomou uma decisão e agiu rapidamente. Chamou a garota para seu lado.

- Quando tiver saído por essa porta, saia correndo e suba a escada à esquerda.

A jovem assentiu, trêmula, e ele deu-lhe uma tranqüilizadora palmada no ombro. Logo, deu meia-volta e abriu repentinamente a porta.

Os homens que estavam do outro lado esperavam ver o gigante veruliano, com o rei inerte sobre os ombros. Diante daquela aparição inesperada, ficaram boquiabertos. Kull estava de pé ante a porta, seminu, agachado como um tigre humano prestes a saltar, mostrando os dentes num grunhido de fúria combativa, com os olhos acesos. A lâmina da espada que empunhava deu um giro, como uma roda de prata sob a luz da lua.

Kull viu Phondar, acompanhado por dois soldados verulianos, e uma figura delgada que usava uma máscara negra. Passou-se apenas um instante fugaz, e ele lançou-se contra seus inimigos. A dança da morte havia começado.

O comandante veruliano foi o primeiro a cair, ante a primeira investida do rei, com a cabeça aberta até os dentes, apesar do capacete que usava. O mascarado desembainhou e lançou uma estocada com a espada, cuja ponta percorreu a bochecha de Kull. Um dos soldados, que se arremessou contra o rei empunhando uma lança, foi habilmente evitado e, um instante depois, jazia morto sobre seu chefe. O outro soldado deu meia-volta e pôs-se a correr, gritando por seus colegas. O mascarado recuou rapidamente diante do ataque do rei, sem deixar de esquivar e deter seus golpes com uma habilidade quase incrível. Mas, diante da cansativa ferocidade da investida, não teve tempo para atacar; só para se defender. Kull golpeava a lâmina de seu aço como um ferreiro na bigorna, e cada um de seus ataques parecia prestes a partir em dois aquela cabeça mascarada e encapuzada, mas a longa e delgada espada valusiana sempre se interpunha no caminho, desviava a estocada por pouco, ou conseguia detê-la a poucos centímetros de sua pele, embora sempre o suficiente.

Então, Kull viu que os soldados verulianos corriam em direção a eles por entre o mato, ouviu o tilintar de suas armas e seus gritos ferozes. Pego ali, ao ar livre, não demorariam em cercá-lo e espetá-lo como a um rato. Lançou uma última estocada maligna contra o valusiano que recuava, e logo, erguendo-se, deu meia-volta e pôs-se a correr pela escada, no alto da qual Nalissa já lhe esperava.

Uma vez ali, ele se voltou, encurralado. Ele a moça estavam sobre uma espécie de promontório artificial. Um trecho da escada levava para cima, e antigamente devia ter existido outro trecho que conduzia para baixo, mas este último havia desmoronado. Kull percebeu que estavam num beco sem saída. As paredes caíam aos poucos, cobertas por esculturas talhadas no muro. “Bem, morreremos aqui”, pensou Kull, “Mas também morrerão muitos outros”.

Os verulianos se reuniram ao pé da escada, sob a direção do misterioso valusiano mascarado. Kull segurou com força o cabo da espada e lançou a cabeça para trás, como um regresso inconsciente aos tempos em que usava uma cabeleira tão cheia quanto a de um leão.

Ele nunca havia temido a morte, e não a temia agora, e, se não fosse por um único detalhe, teria dado boas-vindas ao clamor e à loucura da batalha, como a uma velha amiga, sem lamentações inúteis. O detalhe era a presença da garota que estava a seu lado. Ao vê-la tremer e observar-lhe a palidez do rosto, tomou uma decisão repentina.

Levantou a mão e gritou:

- Ei, homens da Verúlia. Estou aqui, cercado! Muitos cairão antes que eu morra. Mas, se me prometerem que soltarão a moça, sem lhe causar o menor dano, não levantarei uma só mão contra vocês. Poderão me matar como a uma ovelha.

Nalissa lançou um grito de protesto, e o mascarado deu uma gargalhada.

- Não fazemos acordos com quem já está condenado. Esta garota também deve morrer, e eu não faço promessas para violá-las. Pro alto, guerreiros, a ele!

Subiram a escada como uma onda negra de morte, fazendo as espadas brilharem como prata congelada sob a luz da lua. Um deles se adiantou demais. Era um enorme guerreiro brandindo um grande machado de combate. Este homem, que se moveu com mais rapidez do que Kull esperava, fixou-se um momento sobre o patamar da escada. Kull atacou e o machado desceu. Com a mão esquerda no alto, ele deteve a descida da arma no ar, segurando-a pelo pesado cabo – uma façanha que poucos homens conseguiriam realizar –, e ao mesmo tempo golpeou com a direita o lado de seu inimigo; e o fez com tal força, que a longa espada atravessou a armadura, a musculatura e o osso, e a lâmina ficou incrustada na coluna vertebral, quebrando-se.

Ao percebê-lo, mal demorou um instante em soltar o cabo da espada inútil e arrancar o machado da mão do guerreiro moribundo, que cambaleou para trás e caiu pela escada, seguido por uma breve e cruel gargalhada de Kull.

Os verulianos hesitaram sobre a escada e, mais embaixo, o mascarado os animou selvagemente a se lançarem ao ataque. Eles, por sua vez, se mostraram mais dispostos a deixar as coisas como estavam.

- Phondar morreu. – gritou um – Por acaso, vamos receber ordens de um valusiano? Estamos enfrentando um demônio, e não um homem! Salvem-se!

- Covardes estúpidos! – gritou a voz do mascarado, erguendo-se num grito felino – Não percebem que sua única segurança se apóia em matar o rei? Se fracassarem esta noite, seu próprio governo lhes repudiará e ajudará os valusianos a caçarem vocês. Pra cima, estúpidos! É possível que morram alguns, mas é muito melhor que morram uns poucos sob o machado do rei, do que morrerem todos na forca. Se um só de vocês se atrever a recuar por esta escada, eu mesmo o matarei!

E, ao mesmo tempo em que dizia estas palavras, a longa e delgada espada lhes ameaçou.

Desesperados e temerosos ante seu líder, eles reconheceram a verdade que havia em suas palavras, e os guerreiros se voltaram para o aço de Kull. No momento em que se lançaram em massa ao que seria fundamentalmente seu último ataque, Nalissa viu sua atenção atraída por um movimento que se produziu na base da parede. Uma silhueta se destacou dentre as sombras e começou a subir a parede vertical, escalando como um macaco, e usando as esculturas talhadas na parede como pontos de apoio para as mãos e os pés. Aquele ponto do muro estava envolto em sombras, e ela não conseguiu distinguir os traços do homem que subia; além disso, ele usava um pesado capacete que lançava mais sombras ainda sobre seu rosto.

Sem dizer nada a Kull, que estava de pé sobre o patamar, com o machado preparado, ela olhou pela beirada do muro, meio oculta atrás das ruínas do que outrora devia ter sido um parapeito. Então, notou que aquele homem usava uma armadura completa, mas continuava sem ver seus traços. Sua respiração se acelerou, e ela levantou a adaga, fazendo destemidos esforços para conter uma onda de náuseas.

Então, um braço coberto de aço apareceu pela beirada, agarrando-se à mesma. A moça saltou tão rápida e silenciosamente quanto uma tigresa, e atacou o rosto desprotegido, que se levantou repentinamente em direção à luz da lua. E, no exato momento em que a adaga descia, e já não podia deter o golpe que se dispunha a dar, ela lançou um grito de surpresa e aflição. Porque, nesse último e fugaz segundo, reconheceu o rosto de seu amante, Dalgar de Farsun.


5) A batalha da escada


Depois de ter se afastado tão pouco cerimoniosamente da presença de Ka-nu, Dalgar correu até seu cavalo e cavalgou rapidamente para o portão leste. Ouvira Ka-nu dar ordens pra fecharem todas as portas da cidade e que não deixassem ninguém sair, e cavalgou como um louco para se antecipar ao cumprimento dessa ordem. De qualquer modo, já era muito difícil sair pela noite, e Dalgar, informado de que os portões não estariam protegidos esta noite pelos incorruptíveis Matadores Vermelhos, tivera a intenção de abrir caminho à base de subornos. Agora, em compensação, tudo dependia da audácia de seu plano.

Com o cavalo coberto de suor, ele o parou diante do portão leste e gritou:

- Abra a porta! Preciso chegar, ainda esta noite, à fronteira veruliana! Rápido! O rei desapareceu! Abram caminho, e logo depois vigiem bem o portão! Em nome do rei! – Ao ver que os soldados hesitavam, ele acrescentou: – Apressem-se, estúpidos! Talvez o rei esteja correndo um perigo mortal! Abram!

Do outro lado da cidade, em tom profundo, capaz de gelar os corações com um susto, chegou o som do grande sino de bronze do rei, que só toca quando o rei está em perigo. Os guardas ficaram como que eletrificados. Sabiam que Dalgar era muito estimado, como nobre que estava visitando a Valúsia. Acreditaram, portanto, em suas palavras e, impelidos por sua vontade, lhe abriram os grandes portões, o cavaleiro saiu imediatamente em disparada feito um raio e, um momento mais tarde, havia desaparecido na escuridão.

Enquanto cavalgava, esperava que Kull não tivesse sofrido danos graves, pois ele preferia aquele bárbaro simples muito mais que aos outros reis, sofisticados e sem sangue, dos Sete Impérios. Se pudesse, ajudaria na busca. Mas Nalissa estava lhe esperando, e ele já chegava atrasado.

Assim que o jovem nobre entrou nos jardins, teve a peculiar sensação de que ali, no próprio coração da desolação e solidão, havia muitos homens presentes. Um instante depois, ouviu o entrechocar do aço, o som de muitos passos apressados e gritos ferozes numa língua estrangeira. Desmontou, desembainhou a espada e abriu caminho cuidadosamente por entre o mato, até se ver diante da mansão em ruínas. E lá, seus olhos puderam contemplar uma cena estranha.

No alto de uma escada meio arruinada, estava em pé um gigante seminu e manchado de sangue, a quem reconheceu de imediato como o rei da Valúsia. Ao lado deste, se encontrava uma mulher, e Dalgar mal conseguiu reprimir o grito que saiu de seus lábios. Era Nalissa! As unhas morderam as palmas das mãos fechadas. Quem eram aqueles homens, vestidos de negro, que se lançavam escada acima? Não importava. Sem dúvida alguma, pretendiam matar a mulher e Kull. Ouviu o desafio que o rei lhes lançou, oferecendo-lhes a vida em troca da de Nalissa, e sentiu-se invadido por uma onda de gratidão. Então, observou as esculturas existentes na parede próxima a ele, e não vacilou nem um momento. Começou a subir, disposto a morrer junto ao rei, protegendo a mulher que amava.

Havia perdido Nalissa de vista, e agora, enquanto subia, não se atrevia a usar seu tempo para procurá-la. Ele realizava uma tarefa traiçoeira e escorregadia, na qual não podia se descuidar. Não voltou a vê-la até chegar à beirada e se impulsionar para o alto. Então, ouviu-a gritar, e viu a mão que descia em direção a seu rosto, segurando um raio de prata. Ele se retraiu instintivamente, e recebeu o golpe sobre o capacete. A adaga se quebrou até o cabo, Nalissa se desmoronou e caiu em seus braços.

Ao ouvir o grito, Kull virou-se em direção a eles, com o machado no alto. Deteve-se. Reconheceu o farsuniano e, mesmo naquele instante de perigo, compreendeu o que ocorria. Sabia por que o casal estava ali, e sorriu, realmente satisfeito.

O ataque parou por apenas um segundo, quando os verulianos perceberam a presença do segundo homem sobre o patamar. Mas, em seguida, voltaram a se lançar ao ataque e subiram os degraus, sob o luar, com suas lâminas brilhando e uma expressão desesperada no olhar. Kull foi ao encontro do primeiro, com um golpe que esmagou capacete e crânio ao mesmo tempo. Logo, Dalgar ficou a seu lado e atravessou a garganta de um veruliano. Em seguida, teve início a batalha da escada, imortalizada por poetas e menestréis.

Kull estava ali para morrer, e matar antes de morrer. Não se preocupou em nada com a defesa. Seu machado transformou-se numa roda que semeava a morte a seu redor e, a cada golpe que dava, produzia um estalo de aço e ossos, fazia brotar sangue ou arrancava um grito de agonia. Os corpos se amontoavam sobre a escada, mas os sobreviventes não vacilaram em seu ataque e voltaram à carga, avançando por cima das figuras ensangüentadas de seus colegas.

Dalgar teve poucas oportunidades em dar algum golpe. Percebeu em seguida que o melhor que podia fazer era proteger Kull, que nasceu para matar, mas que por estar sem armadura, corria o grave perigo de cair a qualquer momento.

Desse modo, ele teceu, com sua espada, uma rede de aço ao redor do rei, expondo todas as habilidades no manejo da arma. Sua lâmina relampejante desviava as estocadas dirigidas contra o coração de Kull. Seu antebraço revestido de ferro detia cada um dos golpes, que, de outra maneira, teriam matado-o. Em duas ocasiões, recebeu, sobre seu próprio capacete, os golpes destinados à cabeça nua do rei.

Mas não é fácil proteger outro homem, ao mesmo tempo em que se protege. Kull sangrava dos cortes sofridos no rosto e no peito, de uma facada aberta na têmpora, de uma espetada na coxa e de um profundo ferimento no ombro. Uma lança havia rasgado a couraça de Dalgar, ferindo-lhe um lado, e ele sentiu as forças lhe abandonarem. Um último esforço de seus inimigos, e o farsuniano desmoronou e caiu aos pés de Kull, ao mesmo tempo em que uma dúzia de armas pontiagudas tentava tirar-lhe a vida. Kull lançou o rugido de um leão, fez o machado balançar poderosamente de um lado a outro, limpou o espaço diante dele e ficou ao lado do jovem caído. Os inimigos voltaram a lançar-se ao ataque.

Naquele momento, um estrondo de cavalos ressoou nos ouvidos de Kull, e os Jardins Malditos não demoraram em se ver inundados por cavaleiros enlouquecidos, que gritavam como lobos ao luar. Uma chuva de flechas cruzou o ar sob as estrelas, e os homens uivaram e caíram de bruços sobre os degraus, para ficarem imóveis, ou para arrancarem as cruéis pontas profundamente cravadas em seus corpos. Os poucos que não haviam recebido a carícia do machado de Kull, ou das flechas, fugiram escada abaixo, só para se defrontarem com as sibilantes espadas curvas dos pictos de Brule. E ali morreram aqueles guerreiros verulianos, lutando até o último instante, como gatos inofensivos de seu falso rei que lhes havia enviado a uma missão tão perigosa quanto vil e estúpida, rechaçados pelos mesmos que os haviam enviado e cobertos para sempre pela infâmia. Contudo, morreram como homens.

Mas houve um que não morreu ali, ao pé da escada. O mascarado fugiu enquanto ouvia o som dos cavalos, e agora cruzava a extensão dos jardins, lançado a toda velocidade sobre um extraordinário cavalo. Havia quase chegado ao muro externo, quando o lanceiro Brule se interpôs em seu caminho. Do alto promontório onde estava, Kull, apoiado sobre seu machado ensangüentado, os viu lutar sob a luz da lua.

O mascarado havia abandonado suas táticas defensivas. Investiu contra o picto, com uma valentia impiedosa, e o lanceiro foi ao seu encontro, cavalo contra cavalo, homem contra homem, espada contra espada. Ambos eram cavaleiros magníficos. Seus corcéis, obedientes ao toque da brida e à pressão dos joelhos, deram meia-volta, empinaram e saltaram. Mas, durante todos estes movimentos, as lâminas das espadas não deixaram de assobiar, sem perder o contato uma com a outra. Brule, ao contrário dos homens de sua tribo, usava a delgada espada reta da Valúsia. Em alcance e velocidade, havia pouca diferença entre eles, e Kull, enquanto observava, prendeu mais de uma vez a respiração e mordeu os lábios, quando pareceu que Brule estava prestes a cair sob uma estocada maligna.

Estes guerreiros não tiveram um momento de descanso. Lançavam estocadas e detiam-nas, rechaçavam e voltavam ao ataque. De repente, Brule pareceu perder o contato com a lâmina de seu adversário, evitou uma finta e pareceu ficar ao ar livre. O mascarado fincou os calcanhares nos flancos de seu cavalo, de modo que espada e cavalo saíram em disparada para a frente ao mesmo tempo. Brule se inclinou para um lado, e deixou que a lâmina passasse, roçando-lhe o lado da couraça; então, sua própria lâmina surgiu reta, e o cotovelo, o pulso, o cabo e a ponta formaram uma só linha que se iniciava em seu ombro. Os cavalos se chocaram e caíram juntos, debruçados sobre a relva. Mas, em meio à confusão de patas, Brule se ergueu sem haver recebido o menor ferimento, enquanto ali, sobre a grama, o mascarado ficou estendido, com a espada de Brule ainda fincada em seu corpo.

Kull despertou de seu transe; os pictos uivavam de vitória feito lobos, mas ele ergueu a mão para impor silêncio.

- Já basta! Todos são heróis! Mas cuidem de Dalgar, que está gravemente ferido. E, quando houverem terminado, podem cuidar de meus próprios ferimentos. Brule, como conseguiu me encontrar?

Brule chamou Kull para se aproximar do lugar onde o mascarado estava estendido.

- Um velho mendigo lhes viu saltarem a muralha do palácio e, por simples curiosidade, observou para onde se dirigiam. Lhes seguiu e viu vocês saírem pela porta esquecida. Eu estava cavalgando, pela planície entre a muralha e estes jardins, quando ouvi o estrondo do aço. Mas, quem pode ser este?

- Levante-lhe a máscara. – disse Kull – Seja quem for, foi ele quem imitou a letra de Tu, quem arrebatou dele o anel do selo e...

Brule arrancou-lhe a máscara.

- Dondal! – exclamou Kull – O sobrinho de Tu! Brule, Tu nunca deve saber disto. Faça-o crer que Dondal cavalgou contigo e morreu lutando por seu rei.

Brule o olhou, assombrado.

- Dondal! Um traidor! Mas eu, mais de uma vez, me embriaguei com ele e dormi numa de suas camas.

- Eu gostava de Dondal. – disse Kull, assentindo.

Brule limpou a lâmina da espada e voltou a guardá-la na bainha, produzindo um maligno som metálico.

- O desejo é capaz de transformar qualquer homem num velhaco. – ele disse, com tristeza – Ele estava muito endividado, e Tu se mostrava mesquinho com ele. Sempre afirmava que dar dinheiro demais aos jovens não era bom para eles. Dondal se viu obrigado a manter as aparências, ainda que fosse só por orgulho, e assim caiu nas mãos dos agiotas. Desse modo, resulta que Tu é o maior traidor de todos, pois sua avareza empurrou o rapaz à traição... e gostaria que o coração de Tu detesse a ponta de minha espada, no lugar do seu.

E, após dizer estas palavras, o picto deu meia-volta e se afastou com expressão sombria.

Kull voltou-se para Dalgar, que estava meio inconsciente, enquanto os guerreiros pictos lhe enfaixavam os ferimentos com dedos experientes. Outros se ocuparam em cuidar do rei, e enquanto limpavam e enfaixavam, Nalissa se aproximou de Kull.

- Milorde – ela disse, estendendo em sua direção as pequenas mãos, agora arranhadas e manchadas de sangue seco –, não terás agora piedade de nós e nos concederá nosso desejo... – sua voz se quebrou por um instante, antes de terminar a frase –, se Dalgar estiver vivo?

Kull pegou-a pelos delgados ombros e sacudiu-a, angustiado.

- Ah, garota, garota! Me peça qualquer coisa, menos algo que eu não possa lhe conceder. Me peça a metade do meu reino, ou minha mão direita, e serão suas. Pedirei a Murom que lhe dê o consentimento para se casar com Dalgar; irei até suplicá-lo, mas não posso obrigá-lo.

Uns cavaleiros altos começaram então a cruzar os jardins, com resplandecentes armaduras que reluziam entre os pictos seminus de aspecto lupino. Um homem alto parou diante deles e levantou a viseira do capacete.

- Pai!

Murom bora Ballin apertou a filha entre os braços, com um soluço de agradecimento, e logo se voltou para seu rei.

- Milorde, estás gravemente ferido!

Kull sacudiu a cabeça.

- Não é nada grave, ao menos no que me diz respeito, embora outros homens possam se sentir bem pior. Mas aqui está aquele que recebeu as investidas mortais dirigidas contra mim; aquele que se transformou em meu escudo e capacete, de modo que, se não fosse por ele, a Valúsia estaria agora aclamando um novo rei.

Murom deu meia-volta até o jovem prostrado.

- Dalgar! Está morto?

- Não lhe falta muito. – grunhiu um vigoroso picto que ainda se dedicava a cuidar de seus ferimentos – Mas é de aço e de osso de baleia. Se for bem cuidado, conseguirá sobreviver.

- Ele veio aqui para se encontrar com sua filha e fugirem juntos. – disse Kull, enquanto Nalissa inclinava a cabeça – Avançou por entre o mato, e me viu lutar por minha vida e pela dela, no alto daquela escada. Ele poderia ter fugido. Nada o impedia. Mas subiu por esta parede inclinada, em direção ao que, naqueles momentos, parecia uma morte certa, e lutou a meu lado tão alegremente como se estivesse indo a uma festa... e nem sequer é um súdito meu por nascimento.

Murom não fazia mais do que abrir e fechar as mãos com força. Seus olhos se iluminaram e se suavizaram, e ele se inclinou sobre a filha.

- Nalissa – ele disse com voz doce, atraindo a jovem para a proteção de seu braço protegido por aço –, ainda deseja casar-se com este jovem temerário?

Os olhos da moça foram suficientemente eloqüentes.

- Levantem-no com muito cuidado – dizia o rei a seus homens –, e levem-no ao palácio. Cuidem para que lhe proporcionem a melhor...

- Milorde – interpôs-se Murom –, rogo-te que me permita levá-lo a meu castelo. Lá, ele será atendido pelos melhores médicos e, após sua recuperação... bom, se essa for vossa vontade real, não acha que poderíamos comemorá-la com um casamento?

Nalissa soltou um grito de alegria ao ouvir aquelas palavras, entrelaçou as mãos, beijou o pai e a Kull, e partiu para acompanhar Dalgar, sem se afastar um só instante de seu lado, como uma pessoa inquieta.

Murom sorriu docemente, com seu rosto aristocrático aceso.

- Veja... de uma noite de sangue e de terror, nascem a alegria e a felicidade.

O rei bárbaro lhe sorriu, e jogou ao ombro o machado sujo de sangue.

- A vida é assim, conde: o mal de um homem constitui a benção de outro.







Tradução: Fernando Neeser de Aragão.

Fonte: http://www.ebooket.net/
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