Cavaleiros Além do Sol Nascente (fragmento)

(por Robert E. Howard)


- Assim – disse Tu, o conselheiro-chefe –, Lala-ah, condessa de Fanara, fugiu com seu amante, Fenar, o aventureiro farsuniano, trazendo a vergonha ao seu futuro marido e à nação da Valúsia.

Kull, com o queixo apoiado na mão, acenou com a cabeça. Havia escutado, com pouco interesse, a história de como a condessa de Fanara havia deixado um nobre esperando nas escadas de Merama e fugido com um homem que ela própria escolhera.

- Sim – ele interrompeu impacientemente Tu –, eu entendo. Mas o que as aventuras amorosas de uma jovem tonta têm a ver comigo? Eu não a culpo por abandonar Ka-yanna... por Valka, ele é feio como um rinoceronte, e tem um temperamento ainda mais abominável. Então, por que me conta esta história?

- Não entendes, Kull. – disse Tu, com a paciência que deve ser dada a um bárbaro que ainda por cima é um rei – Os costumes da nação não são os vossos costumes. Lala-ah, ao abandonar Ka-yanna ao pé do próprio altar onde o casamento seria realizado, cometeu uma rude ofensa às tradições da terra... e um insulto à nação é um insulto ao rei, Kull. Só por isso, ela deve ser trazida de volta e punida.

“Nesse caso, ela é uma condessa, e é uma tradição valusiana mulheres nobres se casarem com estrangeiros apenas com o consentimento do estado valusiano... e aqui o consentimento nunca foi dado, nem sequer pedido. Valúsia se tornará objeto de desprezo de todas as nações, se deixarmos que homens de outros países levem nossas mulheres impunemente”.

- Em nome de Valka. – resmungou Kull – Eis aqui um grande alvoroço: costume e tradição! Quase não escuto outra coisa desde a primeira vez em que me sentei no trono da Valúsia. Em minha terra, as mulheres se casam com quem querem e com quem escolhem.

- Sim, Kull. – disse Tu, suavemente – Mas aqui é a Valúsia... e não a Atlântida. Lá, todos os homens, decerto, e todas as mulheres, são livres e desimpedidos, mas a civilização é uma rede e um labirinto de precedências e costumes. E outra coisa a respeito da jovem condessa: ela tem um traço de sangue real.

“Este homem cavalgou com os cavaleiros de Ka-yanna em perseguição à garota”.

- Sim – falou o jovem –, e tenho para ti um recado de Fenar, senhor rei.

- Um recado para mim? Nunca vi Fenar.

- Não, mas ele disse para um guarda da fronteira da Zarfhaana, para ser repetido àqueles que o perseguiam: “Diga ao suíno bárbaro, que suja um trono antigo, que eu o chamo de canalha. Diga a ele que um dia retornarei e vestirei sua carcaça covarde em roupas de mulher, para que cuide dos cavalos de minhas bigas”.

A grande massa corporal de Kull se ergueu e sua cadeira de estado se espatifou ao chão. Por um momento, ficou sem fala; logo, encontrou voz, num rugido que fez Tu e o nobre recuarem.

- Valka, Honen, Holgar e Hotath! – ele rugiu, misturando divindades com deuses pagãos, de um jeito que fez o cabelo de Tu ficar de pé diante da blasfêmia.

Os enormes braços de Kull se ergueram, e seu poderoso punho desceu sobre a mesa, com uma força que entortou as pernas grossas da mesma, como se fossem de papel. Tu, pálido, arrastou os pés diante daquela maré de fúria bárbara, com as costas coladas à parede, seguido pelo jovem nobre que ousara muito em dar o recado de Fenar. No entanto, Kull era selvagem demais para conectar o insulto com o portador; governantes civilizados é que descarregam a vingança nos mensageiros.

- Os cavalos! – bramiu Kull – Quero os Matadores Vermelhos montados! Mandem Brule para mim!

Ele arrancou o manto real e o arremessou para o outro lado da sala, agarrou repentinamente um suntuoso vaso da mesa quebrada e o lançou ao chão.

- Depressa! – ofegou Tu, empurrando o jovem nobre em direção à porta – Traga Brule, o lanceiro picto... rápido, antes que ele mate todos nós!

Tu julgava as ações do rei, baseado nas dos reis anteriores. Todavia, Kull não havia progredido o bastante em hábitos civilizados para descarregar sua fúria real em súditos inocentes.

Sua fúria vermelha inicial fora sucedida por um ódio frio como o aço, quando Brule chegou. O picto entrou silencioso e tranqüilo, com um sorriso sombrio lhe tocando os lábios, quando notou a destruição causada pela ira do rei.

Kull estava se vestindo em roupas de cavaleiro, e ele olhou para cima quando Brule entrou, os cintilantes olhos cinzas lampejando friamente.

- Iremos cavalgar, Kull? – perguntou o picto.

- Sim, cavalgaremos duro e para longe, por Valka! Cavalgaremos primeiro para Zarfhaana, e talvez mais além... para as terras nevadas, ou os desertos de areia ou para o Inferno! Quero 300 Matadores Vermelhos prontos.

Brule sorriu de puro prazer. Era um homem poderosamente constituído, de estatura média, com olhos cintilantes assentados em feições imóveis. Mais parecia uma estátua de bronze. Sem uma palavra, ele se virou e saiu da câmara.

- Majestade, o que fazes? – arriscou Tu, ainda tremendo de medo.

- Cavalgarei no rastro de Fenar. – respondeu furiosamente o rei. – O reino está em suas mãos, Tu. Retornarei quando tiver cruzado espadas com esse farsuniano, ou não voltarei de forma alguma.

- Não, não! – exclamou Tu – Isto é extremamente imprudente, Alteza! Não dê atenção ao que aquele aventureiro sem nome disse! O imperador da Zarfhaana nunca irá permitir que tragas uma tropa, como a que mencionaste, para dentro do reino dele.

- Então, cavalgarei sobre as ruínas das cidades da Zarfhaana. – foi a resposta sombria de Kull – Os homens vingam seus próprios insultos na Atlântida... E, embora a Atlântida tenha me rejeitado e eu seja rei da Valúsia... ainda sou um homem, por Valka!

Ele afivelou sua grande espada, e caminhou até a porta, Tu arregalando os olhos atrás dele.


Diante do palácio, havia 400 homens em suas selas. Trezentos destes eram Matadores Vermelhos, a cavalaria de Kull e os soldados mais terríveis da terra. Eram, em sua maioria, valusianos das colinas, os mais fortes e vigorosos de uma raça em decadência. Os cem restantes eram pictos – selvagens esguios e poderosos, homens da tribo de Brule, que montavam em seus cavalos como centauros e lutavam feito demônios, quando surgia a ocasião.

A todos estes homens, Kull deu a saudação real, enquanto descia os degraus do palácio, e seus olhos se iluminaram com um brilho feroz. Era quase grato a Fenar, por ter lhe dado o pretexto que precisava para abandonar, por um tempo, a vida monótona da corte e mergulhar em ação selvagem – mas seus pensamentos em relação ao farsuniano não eram mais amáveis por este motivo.

À frente desta feroz formação, estava Brule, chefe dos mais formidáveis aliados da Valúsia, e Kelkor, segundo comandante dos Matadores Vermelhos. Kull agradeceu a saudação com um gesto brusco, e montou sobre a sela. Brule e o comandante cavalgavam a ambos os lados dele.

- Sentido! – foi o comando lacônico de Kelkor – Cavaleiros! Em frente!

A cavalgada seguiu adiante num trote tranqüilo. O povo da Valúsia olhava curiosamente, de suas janelas e portas, e as multidões nas ruas se viraram, quando o barulho dos cascos dos cavalos ressoou através do tagarelar e conversar das barganhas e comércio. Os corcéis sacudiam suas crinas enfeitadas; as armaduras de bronze dos guerreiros brilhavam ao sol, as flâmulas nas longas lanças ondulavam para trás. Por um momento, o pequeno público no mercado interrompeu sua tagarelice, quando a poderosa formação se moveu, olhando em estúpido assombro ou admiração infantil; logo desapareceram pela grande rua branca, o clangor da prata nas pedras redondas do calçamento sumiu à distância, e o povo da cidade voltou às suas tarefas corriqueiras, como as pessoas sempre fazem, não importa quais os reis que cavalguem.

Ao longo das largas ruas brancas da Valúsia, se moviam o rei e seus cavaleiros, para fora dos subúrbios, com suas pompas extensas e palácios magnificentes; ininterruptamente, até os pináculos dourados e torres azul-safira da Valúsia se tornarem apenas um vislumbre prateado à distância, e as colinas verdes de Zalgara avultarem majestosamente diante deles.

A noite os encontrou acampados no alto dos declives das montanhas. O povo das colinas – muitos deles parentes dos Matadores Vermelhos – se dirigia ao acampamento com presentes de comida e vinho, e os guerreiros, livres da orgulhosa compostura que sentiam entre as cidades do mundo, conversavam com eles, cantavam velhas canções e contavam velhas histórias uns aos outros. Mas Kull caminhava à parte, longe da incandescência das fogueiras do acampamento, para olhar atentamente, de um lado a outro, as vistas místicas dos penhascos e vales. Os declives eram suavizados por vegetação e folhagens, os vales se aprofundando em regiões sombreadas de magia, as colinas se erguendo destemidas e claras ao brilho prateado da lua. As colinas de Zalgara sempre fascinaram a Kull. Elas o faziam lembrar-se das montanhas da Atlântida, cujas alturas nevadas ele havia escalado na juventude, antes de viajar pelo vasto mundo para escrever seu nome nas estrelas e fazer de um antigo trono o seu assento.

Ali, contudo, havia uma diferença. Os penhascos da Atlântida se erguiam rígidos e desolados; seus despenhadeiros eram áridos e rugosos. Os montes da Atlântida eram brutais e terríveis em sua juventude, assim como Kull. A idade não havia lhes suavizado o poder. As colinas de Zalgara se erguiam como deuses antigos, mas arvoredos verdes e vegetação ondulante sorriam sobre seus ombros e penhascos, e seu contorno era suave e gracioso. Idade... idade... pensou Kull; mais de um século de erosão havia gastado seu esplendor escarpado; tinham a suavidade e beleza da antiguidade. Montanhas antigas sonhando com reis antigos, cujos pés desatentos haviam pisado sua relva.

Como uma onda vermelha, a lembrança do insulto de Fenar varreu estes pensamentos. As mãos se fecharam de fúria, Kull lançou os ombros para trás e olhou bem para dentro do olho calmo da lua.

- Helfara e Hotath condenem minha alma ao Inferno eterno, se eu não descarregar minha vingança em Fenar! – ele rosnou.

A brisa noturna sussurrou entre as árvores, como em resposta ao juramento pagão.


Antes que a aurora escarlate irrompesse como uma rosa vermelha sobre as colinas de Zalgara, a cavalaria de Kull estava montada na sela. Os primeiros lampejos da manhã brilhavam nas pontas das lanças, nos elmos e nos escudos, quando o grupo deu a volta pelos vales de verde ondulante e subiu longas inclinações ondeantes.

- Estamos cavalgando para o sol nascente. – comentou Kelkor.

- Sim. – foi a resposta sombria de Brule – E alguns de nós cavalgam além do sol nascente.

Kelkor encolheu os ombros:

- Assim seja. Este é o destino de um guerreiro.

Kull olhou para o comandante. Reto como uma lança, Kelkor se sentava em sua sela – inflexível e inabalável como uma estátua de aço. O comandante sempre lembrava ao rei uma boa espada de aço polido. Homem de vigor espantoso e enorme energia, o que ele tinha de mais poderoso era o seu absoluto autocontrole. Uma calma glacial sempre caracterizava suas palavras e atos. No calor e vitupério do conselho, na selvagem devastação da batalha, Kelkor era sempre calmo. Tinha poucos amigos e não se esforçava em fazer amigos. Suas qualidades o haviam, por si próprias, elevado de um guerreiro desconhecido nas fileiras dos mercenários ao segundo maior posto nos exércitos valusianos... e somente o seu berço o excluía do mais alto. Pois os costumes decretavam que o primeiro-comandante das tropas deve ser um valusiano, e Kelkor era lemuriano. Embora parecesse mais um valusiano que um lemuriano, ao montar seu cavalo, pois tinha uma constituição diferente da de muitos de sua raça, sendo alto e esguio, embora de constituição forte. Apenas seus olhos estranhos lhe revelavam a raça.

Outro amanhecer os encontrou descendo os pés das colinas que davam no Deserto Camooniano, uma vasta terra desolada e inabitada, um ermo árido de areias amarelas. Nenhuma árvore crescia lá, nem sequer arbustos, nem havia quaisquer cursos d’água. Cavalgaram o dia todo, parando apenas por um curto espaço de tempo ao meio-dia, para comerem e para descansarem os cavalos, embora o calor estivesse quase insuportável. Os homens, apesar de resistentes, esmoreciam sob o calor. Reinava o silêncio, exceto pelo tinido de estribos e armaduras, o ranger das selas suadas e pelo monótono estalar dos cascos pelas areias profundas. Até Brule pendurou seu corselete na sela de seu cavalo. Mas Kelkor montava ereto e imóvel, sob o peso de toda a armadura, parecendo intocado pelo calor e desconforto que atormentavam os outros.

“Aço, todo de aço”, pensou Kull, admirado, se perguntando secretamente se ele poderia alcançar o perfeito controle sobre si mesmo que este homem, também um bárbaro, havia alcançado.


Uma jornada de dois dias os trouxe para fora do deserto e para dentro das colinas baixas que marcavam os confins da Zarfhaana. Diante da linha da fronteira, foram parados por dois cavaleiros zarfhaanos.

- Sou Kull da Valúsia. – o rei respondeu abruptamente – Cavalgo na trilha de Fenar. Não tentem impedir minha passagem. Me responsabilizarei com o seu imperador.

Os dois cavaleiros puxaram as rédeas para os lados, a fim de deixarem a cavalaria passar, e, enquanto os cascos ruidosos sumiam à distância, um falou ao outro:

- Ganhei nossa aposta. O próprio rei da Valúsia cavalga.

- Sim. – respondeu o outro – Estes bárbaros vingam suas próprias afrontas. Se o rei fosse um valusiano, por Valka, você teria perdido.

Os vales da Zarfhaana ecoaram o barulho da passagem dos cavaleiros de Kull. O povo pacífico do país saía em grandes quantidades de suas aldeias, para observar os ferozes guerreiros que por ali passavam, e a notícia se espalhou para norte e sul, oeste e leste, de que Kull cavalgava para leste.

Logo após a fronteira, Kull, tendo mandado um mensageiro ao imperador zarfhaano para assegurá-lo de suas intenções pacíficas, se reuniu com Brule, Ka-yanna e Kelkor.

- Eles têm vários dias de vantagem sobre nós – disse Kull –, e não devemos perder tempo procurando por sua trilha. O povo deste país vai mentir para nós. Devemos rastrear nossa própria trilha, como os lobos rastreiam a pista de um cervo.

- Deixe-me interrogar esta gente. – disse Ka-yanna, com um franzir maldoso de seus lábios grossos e voluptuosos – Garanto fazê-los falarem toda a verdade.

Kull olhou interrogativamente para ele.

- Há meios. – ronronou o valusiano.

- Tortura? – grunhiu Kull, seus lábios se torcendo em indisfarçado desprezo – Zarfhaana é uma nação amigável

- Que importa ao imperador uns poucos aldeões desafortunados? – perguntou suavemente Ka-yanna.

- Chega! – Kull pôs de lado a sugestão com verdadeira abominação atlante, mas Brule levantou a mão, pedindo atenção.

- Kull – ele disse –, não gosto do plano deste camarada mais do que você, mas às vezes até um suíno fala a verdade.

Os lábios de Ka-yanna se torceram de raiva, mas o picto não lhe deu atenção:

- Deixe-me levar alguns de meus homens por entre os aldeões e interrogá-los. Vou apenas assustar um pouco, sem machucar ninguém; de outro modo, podemos gastar semanas em busca inútil.

- Assim falou o bárbaro. – disse Kull, com a amigável malícia que existia entre os dois.

- Em qual cidade dos Sete Impérios você nasceu, majestade? – perguntou o picto, com sarcástica deferência.

Kelkor encerrou isto com um abanar de sua mão.

- Aqui está nossa posição. – disse ele, rabiscando um mapa nas cinzas da fogueira do acampamento, com ponta da bainha de sua espada – Não é provável que Fenar vá para o norte... admitindo que ele não pretenda permanecer na Zarfhaana, pois além da Zarfhaana está o mar, apinhado de piratas e nômades do mar. Para o sul ele não irá, pois lá fica Thurania, inimiga de nossa nação. Minha suposição é a de que ele irá se dirigir diretamente para leste, como estava fazendo, cruzar a fronteira oriental da Zarfhaana em algum lugar próximo à cidade fronteiriça de Talúnia, e adentrar as terras desoladas de Grondar; de lá, creio que ele virará para o sul, procurando alcançar Farsun... que fica a oeste da Valúsia... através dos pequenos principados ao sul de Thurania.

- É muita suposição, Kelkor. – disse Kull – Se Fenar deseja adentrar Farsun, por que, em nome de Valka, ele foi para a direção exatamente oposta?

- Porque, como você sabe, Kull, nestes tempos incertos, todas as nossas fronteiras, exceto as mais orientais, estão rigorosamente guardadas. Ele jamais poderia atravessá-la sem uma explicação adequada, muito menos carregando a condessa com ele.

- Acredito que Kelkor esteja certo, Kull. – disse Brule, os olhos dançando com a impaciência de estar numa sela – Seus argumentos soam lógicos, de qualquer forma.

- Um plano tão bom quanto qualquer outro. – respondeu Kull – Cavalgaremos para leste.

E para leste eles cavalgaram durante os dias longos e preguiçosos, entretidos e festejados a cada vez que paravam, pelo bondoso povo zarfhaano. Uma terra suave e preguiçosa, pensou Kull; uma garota graciosa aguardando, indefesa, por algum conquistador implacável... Kull sonhava enquanto os cascos de seus cavaleiros batiam seu toque de recolher pelos vales lânguidos e bosques verdejantes. No entanto, conduzia seus homens duramente, sem lhes dar descanso, pois sempre, por trás de sua longa jornada e visões imperiais de glória ensangüentada e conquista selvagem, avultava o fantasma de seu ódio, o ódio implacável do selvagem, diante do qual todos os outros desejos abriam caminho.

Ele se manteve afastado das grandes cidades, pois Kull não queria dar a seus ferozes guerreiros oportunidade de se envolverem em alguma disputa com os moradores. A cavalgada se aproximava da cidade fronteiriça de Talúnia, o último posto avançado oriental da Zarfhaana, quando o mensageiro enviou um recado do imperador, em sua cidade, para reuni-los, com a mensagem de que este queria muito que Kull cavalgasse por sua terra, e pediu ao rei da Valúsia para visitá-lo quando voltasse. Kull sorriu sombriamente diante da ironia da situação, considerando o fato de que, quando o imperador estava dando benevolente permissão, Kull já estava bem dentro do país, com seus homens.

Os guerreiros de Kull adentraram Talúnia ao amanhecer, após cavalgarem por toda uma noite, pois ele havia achado que talvez Fenar e a condessa, se sentindo temporariamente seguros, ficariam um pouco na cidade fronteiriça, e ele pretendia se antecipar à notícia de sua chegada.

Kull acampou seus homens a alguma distância dos muros da cidade, e entrou nela somente com Brule. Os portões lhe foram prontamente abertos, quando ele mostrou o sinete real da Valúsia e o símbolo que lhe fora mandado pelo imperador zarfhaano.

- Ouça – disse Kull ao comandante dos guardas do portão –, Fenar e Lala-ah estão dentro desta cidade?

- Isso eu não sei dizer. – respondeu o soldado – Eles entraram por este portão, há muitos dias, mas se ainda estão ou não na cidade, eu não sei.

- Então, escute. – disse Kull, retirando um bracelete com pedras preciosas do enorme braço – Sou apenas um nobre viajante valusiano, acompanhado por um amigo picto. Ninguém precisa saber quem sou, entendeu?

O soldado olhou cobiçoso para o ornamento caro.

- Muito bem, senhor, mas quantos de seus soldados acamparam na floresta?

- Estão escondidos dos olhos da cidade. Se algum camponês adentrar seu portão, interrogue-o; e, se ele falar a você sobre uma tropa acampada, aprisione-o por algum motivo inventado, até amanhã. Pois, até lá, já terei obtido a informação que desejo.

- Em nome de Valka, senhor, você faria de mim um traidor! – advertiu o soldado – Não acho que você planeje traição, mas...

Kull mudou de tática:

- Você não tem ordens de obedecer ao seu imperador? Já não lhe mostrei o símbolo do comando dele? Você ousaria desobedecer? Por Valka, você é quem seria o traidor!

Apesar de tudo, refletiu o soldado, esta era a verdade... ele não seria subornado, não! Mas, uma vez que era a ordem de um rei, que trazia a autoridade de seu imperador...

Kull ergueu o bracelete, com nada mais que um leve sorriso, revelando seu desdém ao modo como as pessoas acalmavam suas consciências na trilha de seus desejos, se recusando a admitirem, mesmo para si mesmas, que violaram seus próprios sensos de moral.

O rei e Brule caminhavam pelas ruas, onde os comerciantes acabavam de começar seu movimento. A estatura gigantesca de Kull e a pele cor-de-bronze de Brule atraíam vários olhares curiosos, mas não mais do que esperavam que fizessem com estranhos. Kull começou a desejar ter trazido Kelkor ou um valusiano, pois Brule não conseguia disfarçar sua raça, e uma vez que pictos raramente são vistos nestas cidades orientais, isso poderia gerar comentários que alcançariam os ouvidos daqueles a quem procuravam.

Buscaram uma modesta taverna, onde conseguiram um aposento, e depois tomaram assento no salão das bebidas, para ver se poderiam ouvir alguma coisa do que desejavam ouvir. Mas o dia foi passando, e nada foi dito sobre o casal fugitivo, nem perguntas cuidadosamente veladas obtiveram qualquer resposta. Se Fenar e Lala-ah ainda estavam em Talúnia, eles certamente não anunciaram suas presenças. Kull pensara que a presença de um arrojado galanteador e de uma bela jovem de sangue real na cidade seriam assunto de pelo menos um comentário, mas este parecia não ser o caso.

Kull pretendia sair pelas ruas naquela noite, a ponto até de roubar um pouco se necessário e, não conseguindo deste modo revelar sua identidade ao lorde da cidade na manhã seguinte, ordenar que os criminosos lhe fossem cedidos – embora o feroz orgulho de Kull se rebelasse diante de tal atitude. Este parecia o rumo mais lógico, e Kull o teria seguido, se o assunto fosse meramente diplomático e político. Mas o feroz orgulho de Kull foi incitado, e ele estava pouco disposto a pedir qualquer ajuda na consumação de sua vingança.

A noite caía enquanto os companheiros andavam por entre as ruas, ainda apinhadas de pessoas conversadoras e iluminadas por tochas colocadas ao longo das ruas. Estavam passando por uma esquina escura, quando uma voz cautelosa os parou. Da obscuridade entre as grandes construções, uma mão em forma de garra acenava. Olhando rapidamente um para o outro, eles caminharam para a frente, puxando cautelosamente as adagas de suas bainhas à medida que seguiam.

Uma velha encarquilhada, encurvada pela idade, saiu furtivamente das sombras.

- Sim, Rei Kull, o que procuras em Talúnia? – sua voz era um sussurro agudo.

Os dedos de Kull se fecharam mais firmemente ao redor do cabo da adaga, quando ele respondeu cuidadosamente:

- Como sabe meu nome?

- Os mercados falam e ouvem. – ela respondeu com um riso baixo de alegria intolerável – Um homem lhe viu e reconheceu hoje, na taverna, e a notícia passou de boca em boca.

Kull praguejou em voz baixa.

- Ouça! – sibilou a mulher – Posso te levar até aqueles a quem procura... se desejares pagar o preço.

- Encherei seu avental com ouro. – Kull respondeu rapidamente.

- Ótimo. Agora escute. Fenar e a condessa foram avisados de sua chegada. Agora mesmo, estão se preparando para escapar. Esconderam-se numa certa casa desde o início da noite, quando souberam de sua vinda, e logo abandonarão seu esconderijo...

- Como conseguirão deixar a cidade? – interrompeu Kull – Os portões são fechados ao pôr-do-sol.

- Cavalos esperam por eles no segundo portão, no muro leste. O guarda foi subornado. Fenar tem muitos amigos em Talúnia.

- Onde eles estão escondidos agora?

A anciã esticou uma mão trêmula para a frente.

- Uma prova de lealdade, majestade. – ela pediu com jeito.

Kull pôs-lhe uma moeda na mão, ela sorriu afetadamente e fez uma grotesca reverência.

- Siga-me, majestade. – e ela adentrou as sombras coxeando.

O rei e seu companheiro seguiram-na, duvidosos, através de ruas estreitas e tortuosas, até que ela parou diante de uma enorme construção sem luzes, numa parte sórdida da cidade.

- Eles se esconderam num quarto, na cabeceira dos degraus que vêm da sala inferior que se abre para a rua, majestade.

- Como sabe o que eles fazem? – perguntou Kull, desconfiado – Por que escolheriam um lugar tão miserável para se esconderem?

A mulher riu silenciosamente, se sacudindo para a frente e para trás em sua misteriosa alegria:

- Assim que tive certeza de que você estava em Talúnia, majestade, corri até a mansão onde residiam e contei a eles, me oferecendo para guiá-los até um lugar para se esconderem! Ho, ho, ho! Pagaram-me boas moedas de ouro!

Kull olhou silenciosamente para ela.

- Ora, por Valka – ele disse –, não conheci nenhuma civilização que pudesse produzir algo como esta mulher. Aqui, leve Brule até o portão onde esperam os cavalos. Brule, vá com ela para lá e aguarde minha chegada... Talvez Fenar fuja de mim aqui...

- Mas Kull – protestou Brule –, não entre sozinho naquela casa escura... talvez tudo isso seja uma cilada!

- Esta mulher não ousaria me trair! – e a anciã tremeu diante da resposta inflexível – Apresse-se.

Enquanto as duas figuras mergulhavam na escuridão, Kull adentrou a casa. Tateando com as mãos, até seus bem-dotados olhos felinos se acostumarem à total escuridão, ele achou a escada e a subiu, de adaga na mão, caminhando furtivamente e atencioso a degraus rangentes. Apesar de todo o seu tamanho, o rei se movia tão tranqüila e silenciosamente quanto um leopardo e, se o vigia da cabeceira dos degraus estivesse acordado, ele dificilmente ouviria sua chegada. Do jeito que estava, acordou quando a mão de Kull lhe agarrou repentinamente a boca, apenas para cair para trás, temporariamente sem sentidos, quando o punho de Kull lhe atingiu a mandíbula.

O rei se agachou por um momento sobre sua vítima, forçando ao máximo suas capacidades físicas, para captar qualquer som que anunciasse que ele tinha sido escutado. Reinava total silêncio. Andou sorrateiramente até a porta. Seus sentidos detectaram um murmúrio baixo e confuso, como o de pessoas sussurrando... um movimento cauteloso... com um pulo, Kull arrombou a porta e se arremessou para dentro da sala. Ele parou, mas não para pesar chances; ali poderia ser uma sala cheia de assassinos a esperarem por ele, o que pouco lhe importava.

Então, tudo aconteceu num instante. Kull viu um quarto vazio, iluminado pelo luar que fluía para dentro da janela, e teve um vislumbre de duas formas subindo por esta janela – uma aparentemente carregando a outra –, um ligeiro relance de um par de olhos escuros e ousados num rosto de beleza picante; e outro rosto, risonho e temerariamente belo – tudo isso ele viu confusamente, enquanto atravessava o quarto com um salto de tigre e um rugido de pura ferocidade bestial lhe brotando dos lábios, ao ver seu inimigo escapando. A janela estava vazia, quando ele se lançou até o parapeito; e esbravejando furiosamente, ele teve outro vislumbre: duas formas correndo para dentro das sombras de um labirinto próximo de edifícios – uma risada prateada de zombaria pairava de volta para ele, e outra mais forte e mais zombeteira. Kull lançou a perna sobre o parapeito e se jogou a uma altura de 9 metros até o chão, desprezando a escada de cordas que ainda pendia da janela. Não tinha esperança de segui-los através daquele labirinto de ruas, ao qual eles sem dúvidas conheciam melhor que ele.

Certo do destino deles, contudo, correu em direção ao portão no muro sul, o qual, segundo a descrição da anciã, não estava tão distante. Entretanto, algum tempo se passou antes dele chegar, e quando o fez, só achou Brule e a velha feia lá.

- Não. – disse Brule – Os cavalos estão aqui, mas ninguém veio até eles.

Kull praguejou selvagemente. Fenar o havia enganado, apesar de tudo, e a mulher também. Suspeitando de traição, deixaram os cavalos no portão como mero subterfúgio. Fenar, portanto, estava sem dúvida escapando por outro portão.

- Rápido! – gritou Kull – Corra para o acampamento e ponha os homens para cavalgar. Vou seguir o rastro de Fenar.

E, pulando sobre um dos cavalos, ele partiu. Brule montou o outro e cavalgou em direção ao acampamento. A anciã os via partir, se sacudindo em alegria profana. Logo depois, ela ouviu o rufar de muitos cascos de cavalos que deixavam a cidade para trás.

- Ho, ho, ho! Eles cavalgam para dentro do sol nascente... e quem retorna de além do sol nascente?


Kull cavalgou a noite inteira, se esforçando para diminuir a distância que o farsuniano e a garota haviam ganhado. Sabia que eles não ousavam permanecer na Zarfhaana; e que, ao norte, ficava o mar; Thurania, antiga inimiga de Farsun, ao sul; portanto, só havia uma rota para eles – a estrada para Grondar.

As estrelas estavam ficando pálidas, quando as trincheiras das colinas orientais se ergueram inflexíveis contra o céu, diante do rei, e a aurora se movia furtivamente sobre os gramados, quando a montaria cansada de Kull subiu penosamente o desfiladeiro e parou por um momento diante do cume. Os fugitivos devem ter passado por aqui, pois estes penhascos se estendiam por toda a distância da fronteira zarfhaana, e a passagem mais próxima se encontrava a mais de uma milha ao norte. O zarfhaano, na pequena torre que se erguia no alto do desfiladeiro, saudou o rei, mas Kull respondeu com um gesto e continuou cavalgando.

Ele parou no alto do desfiladeiro. Mais adiante ficava Grondar. Os penhascos se erguiam tão abruptamente do lado leste quanto do oeste e, de suas bases, os gramados se estendiam infinitamente. Milhas sobre incontáveis milhas de alta savana ondulante estavam diante de seus olhos, parecendo habitadas apenas pelas manadas de búfalos e cervos que vagavam por aquelas vastidões selvagens. O leste se avermelhava rapidamente e, quando Kull montou em seu cavalo, o sol chamejou sobre as savanas como uma selvagem labareda de fogo, fazendo parecer ao rei que todos os gramados estavam em chamas – delineando o cavaleiro imóvel contra sua chama, de modo que homem e cavalo pareciam uma única e escura estátua contra a manhã vermelha, para os cavaleiros que adentravam o primeiro desfiladeiro da passagem lá atrás. Então, ele sumiu de suas vistas quando apressou o cavalo para a frente.

- Ele cavalga para o sol nascente. – murmuraram os guerreiros.

- Quem volta do sol nascente?


O sol estava alto no céu, quando a tropa alcançou Kull, o rei tendo parado para se aconselhar com seus companheiros.

- Espalhe seus pictos. – disse Kull – Fenar e a condessa agora tentarão virar para o sul a qualquer momento, pois homem nenhum gosta de cavalgar mais para dentro de Grondar do que o necessário. Eles podem até tentar nos ultrapassar e voltar para a Zarfhaana.

Assim, cavalgaram em formação aberta, os pictos de Brule se espalhando como lobos esguios para o norte e o sul.

Mas a trilha dos fugitivos seguia direto para a frente, os olhos de Kull facilmente seguindo a rota através da grama alta, notando onde o capim havia sido pisado e batido pelos cascos dos cavalos. Evidentemente, a condessa e seu amante cavalgavam sozinhos.

Cada vez mais para dentro do país de Grondar, eles cavalgavam, perseguidores e perseguidos. Como Fenar conseguia manter aquela vantagem, Kull não conseguia entender, mas os soldados eram forçados a pouparem seus cavalos, enquanto Fenar tinha ressequidas montarias extras, podendo mudar de uma para outra, mantendo assim cada uma relativamente renovada.

Kull não havia mandado mensageiro ao rei de Grondar. Os grondarianos eram uma raça feroz e semi-civilizada, da qual o resto do mundo pouco sabia, exceto que seus bandos de ataque às vezes saíam das savanas, para assolarem as fronteiras de Thurania e as nações menores com tocha e espada. A oeste, suas fronteiras eram claramente definidas e cuidadosamente guardadas por seus vizinhos, mas até onde esse reino se estendia a leste, ninguém sabia. Supunha-se vagamente que o país deles se estendia até, e possivelmente incluía, aquela imensa vastidão de ermos indefensáveis, falados em mito e lenda como O Fim do Mundo.


Vários dias de dura cavalgada haviam passado, sem que se avistassem os fugitivos nem qualquer outro ser humano, quando um cavaleiro picto avistou um grupo de homens a cavalo se aproximar, vindo do sul.

Kull parou sua tropa e esperou. Se aproximaram e pararam a certa distância, um grupo de uns 400 guerreiros grondarianos, homens selvagens e esguios, vestidos em roupas de couro e armaduras rudes.

O líder deles cavalgou para diante:

- Estranhos, o que fazeis nesta terra?

Kull respondeu:

- Estamos perseguindo um súdito desobediente e a amante dele, e cavalgamos em paz. Não temos disputa com Grondar.

O grondariano sorriu em escárnio:

- Os homens que cavalgam para dentro de Grondar carregam suas vidas nas mãos direitas, forasteiro.

- Então, por Valka – rugiu Kull, perdendo a paciência –, minha mão direita é mais forte para defender do que toda Grondar para atacar! Saiam do caminho, antes que atropelemos vocês!

- Lanças para a frente! – disse Kelkor, em voz ríspida; a floresta de lanças se abaixou como uma só, os guerreiros se inclinando para a frente.

Os grondarianos recuaram diante daquela formidável tropa, incapazes, como sabiam, de resistirem em campo aberto ao ataque de cavaleiros totalmente armados. Eles conduziram os cavalos para os lados, cavalgando de mau-humor enquanto os valusianos passavam por eles. O líder gritou atrás deles:

- Continuem cavalgando, seus tolos! Quem cavalga além do sol nascente... não retorna!

Eles cavalgaram e, embora bandos de homens a cavalo girassem em torno de seus rastros como falcões e mantivessem uma dura vigilância à noite, os cavaleiros não chegavam mais perto, nem os batedores a cavalo causaram qualquer incômodo.

Os gramados continuavam, sem sequer uma colina ou floresta que lhes quebrasse a monotonia. Às vezes, se deparavam com as quase apagadas ruínas de alguma cidade antiga, lembranças mudas dos dias sangrentos, quando, eras e eras antes, os ancestrais dos grondarianos haviam chegado de lugar nenhum em particular e conquistado os habitantes originais da terra. Não avistaram cidades habitadas e nenhuma das rudes moradias dos grondarianos, pois o caminho deles seguia para uma parte especialmente selvagem e não-freqüentada daquela terra. Ficou evidente que Fenar não pretendia voltar; sua trilha seguia direto para leste e, se ele esperava achar refúgio em algum lugar naquela terra sem nome, ou se ele buscava simplesmente cansar seus perseguidores, ninguém conseguia dizer.

Após longos dias de cavalgada, eles chegaram a um grande rio, serpenteando através da planície. Às suas margens, os gramados paravam abruptamente, e além, no outro lado, um deserto árido se estendia até o horizonte.

Um ancião se encontrava sobre a margem, e um barco grande e achatado flutuava sobre a superfície sombria da água.

O homem era velho, mas poderosamente constituído, tão enorme quanto o próprio Kull. Usava roupas esfarrapadas, aparentemente tão antigas quanto ele mesmo, mas havia algo de majestoso e respeitoso ao redor do homem. Seu cabelo alvo lhe caía até os ombros; e sua enorme barba branca, selvagem e desgrenhada, lhe chegava quase à cintura. Sob brancas e carrancudas sobrancelhas, resplandeciam grandes olhos luminosos, que não foram obscurecidos pela idade.

- Forasteiro que tem o porte de um rei – ele disse a Kull, numa grande e profunda voz ressonante –, cruzarias o rio?

- Sim – disse Kull –, se aqueles que buscamos o cruzaram.

- Um homem e uma garota o cruzaram em minha barca, ao amanhecer. – foi a resposta.

- Em nome de Valka! – praguejou Kull – Admiro a coragem daquele idiota! Qual a cidade que fica além deste rio, barqueiro?

- Não há cidade além. – disse o Ancião. – Este rio marca a fronteira de Grondar... e do mundo!

- Como?! – exclamou Kull – Nós cavalgamos tão longe assim? Eu havia pensado que o deserto, o qual é o fim do mundo, fosse parte do reino de Grondar.

- Não. Grondar termina aqui. Aqui é o fim do mundo; além, é magia e o desconhecido. Aqui é a fronteira do mundo; lá, começa o reino de horror e misticismo. Este é o rio Stagus, e eu sou Karon o Barqueiro.

Kull o mirava com admiração, mal sabendo que contemplava alguém que desceria os séculos obscuros, até que o mito e a lenda mudassem a verdade, e Karon o Barqueiro se tornasse o barqueiro de Hades.

- Você é muito antigo. – disse Kull, curioso, enquanto os valusianos olhavam para o homem com espanto, e os selvagens pictos com pasmo supersticioso.

- Sim. Sou um homem da Antiga Raça, que governou o mundo antes da Valúsia, Grondar ou Zarfhaana, cavaleiros do sol poente. Cruzarias este rio? Já transportei muitos guerreiros e reis através dele. Lembre-se: aqueles que cavalgam além do sol nascente, não retornam! Pois, de todos os milhares que cruzaram o Stagus, ninguém retornou. Trezentos anos se passaram, desde a primeira vez que vi a luz, rei da Valúsia.

“Transportei o exército do Rei Gaar, o Conquistador, quando ele cavalgou para dentro do Fim do Mundo, com todos os seus poderosos exércitos. Por sete dias, eles andaram, embora nenhum homem deles houvesse voltado. Sim, o som da batalha e o chocar de espadas retiniu pelas terras desoladas por um longo espaço de tempo, de sol a sol, mas, quando a lua brilhou, estava tudo em silêncio. Lembre-se disto, Kull: nenhum homem retornou de além do Stagus. Horrores sem nome se movem furtivamente nas terras além, e terríveis são as medonhas formas de ruína que vislumbrei além do rio, na obscuridade do entardecer e no cinza do início da aurora. Lembra-te, Kull”.

Kull deu a volta na sela e olhou para seus homens.

- Aqui minhas ordens param. – ele disse – Quanto a mim, cavalgarei no rastro de Fenar, se ele conduzir para o Inferno e além. Contudo, não mandarei homem nenhum seguir além deste rio. Todos vós tendes minha permissão para retornarem à Valúsia, e nenhuma palavra de reprovação será dita sobre vocês.

Brule conduziu seu cavalo para o lado de Kull.

- Cavalgarei com o rei. – ele disse laconicamente, e seus pictos lançaram um grito de consentimento. Kelkor cavalgou para a frente:

- Aqueles que retornariam, dêem um único passo para diante. – ele disse.

A fileira metálica ficou imóvel como estátua.

- Eles cavalgarão, Kull. – sorriu largamente Brule.

Um orgulho feroz se elevou na alma selvagem do rei.

- Sois homens.

Karon os conduziu para o outro lado, remando e voltando até o exército inteiro ficar na margem leste. E, embora o barco fosse pesado e o ancião remasse sozinho, embora seus remos toscos levassem rapidamente a maciça embarcação de um lado a outro da água, na última jornada ele não estava mais cansado que no início.

Kull falou:

- Já que o deserto está apinhado de coisas selvagens, como é que nenhuma delas chegou às terras dos homens?

Karon apontou para o rio e, olhando de perto, Kull viu que as águas estavam cheias de serpentes e de pequenos tubarões de água doce.

- Nenhum homem nada neste rio. – disse o barqueiro – Nem homem nem mamute.

- Para a frente! – disse Kull – Para a frente; cavalguemos. A terra está livre diante de nós.




Tradução: Fernando Neeser de Aragão

Digitação: Edilene Brito da Cruz de Aragão

Fonte: http://www.vb-tech.co.za/ebooks/Howard%20Robert%20E%20-%20Kull%2001%20-%20Kull%20-%20FF.txt
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