Akbitana
(por Fernando Neeser de Aragão)
- Malditos sejam Crom, Mitra e Ishtar. E malditos sejam todos os deuses do mundo ao norte da Stygia! Set é a verdadeira divindade! Aquela que devora os corações humanos, e bebe o sangue das virgens e crianças!
Quem falara isto era um homem de aspecto jovem, corpo esguio e estatura elevada, com pele escura, cabelos e olhos negros. Um típico stígio, trajando um manto de seda azul e um colar de ouro sobre suas alvas roupas, também de seda. Após pronunciar tais palavras, aquele homem se concentrou por um instante, pronunciando nomes estranhos, numa língua estranha, mais esquecida que a Atlântida, submersa havia dezenas de milhares de anos. Então, ele viu, no pequeno globo de vidro na mesa à sua frente, imagens distantes no espaço, e talvez até no tempo:
Montado num cavalo, um guerreiro solitário atravessava, à noite, colinas cobertas por selvas, que fediam a podridão e tinham vida em extrema abundância. Ele era alto, sua pele era morena, e seus cabelos – cujo turbante ele tirara, devido à extrema umidade local – e olhos eram negros; uma barba encaracolada e preto-azulada emoldurava seu rosto cicatrizado, e o homem tinha um físico esbelto, constituído com a selvagem economia de um lobo.
Então, uivos lupinos causaram-lhe repentino sobressalto. Poderiam ser alguns dos lobos, que viviam no deserto do qual se lembrava, mas os uivos eram um pouco diferentes dos de quaisquer lobos que ele conhecera.
Os sons partiram de algumas das árvores ao seu redor. Fustigando a montaria para a frente, ele se viu subitamente cercado pelas criaturas cujos uivos escutara: seus corpos eram humanos, mas muito peludos; e suas cabeças, com longos focinhos, alvas presas afiadas, olhos amarelos e orelhas pontiagudas, eram de lobos. Lobisomens! Ele só imaginava que eles existissem em lendas, mas ali estavam. Sem pensar duas vezes, o guerreiro moreno desembainhou a cimitarra e, no segundo seguinte, fez voar até o solo a peluda e ensangüentada cabeça de um deles. Embora o montador barbado houvesse conseguido abrir o crânio de uma segunda criatura, o número delas era grande demais para ele. No momento seguinte, ele foi arrancado da sela e derrubado de seu cavalo.
Quando tudo parecia perdido, um outro grito rasgou a noite: um grito humano. Ele parecia vislumbrar outro homem, semelhante a ele na idade, cor de pele e altura, estripar e desmembrar aqueles lobisomens, ao mesmo tempo em que sentiu a pressão diminuir. Então, ele reagiu, brandindo habilmente a espada – embora não tão habilmente quanto o cavaleiro que viera em seu auxílio.
Enquanto terminava de lutar, o homem que fora atacado percebeu algo de familiar na forma de gritar e combater daquele que o ajudara. Este último usava roupas semelhantes às dele, mas suas extraordinárias habilidades de luta, bem como o físico e altura do mesmo, fizeram o primeiro montador, o shemita Djebal, reconhecer seu salvador, antes que, terminado o combate, a lua cheia iluminasse os olhos azuis do cimério Conan, líder dos zuagires.
Este último era um homem alto, de ombros poderosos e peito profundo, com um sólido pescoço musculoso e membros maciçamente musculosos. Estava vestido em algodão branco, como os homens do deserto a quem comandava, uma negra cota de malha lhe protegia o tronco e um turbante lhe cobria a negra cabeleira de corte reto; mas a grande espada ao seu lado lhe parecia mais natural que suas vestimentas zuagires. Sua testa era baixa e larga, e seus olhos de um azul vulcânico que ardia como se com algum fogo interno. Seu rosto moreno, cicatrizado e quase sinistro era o de um guerreiro, e sua roupa de algodão não conseguia esconder as linhas firmes e perigosas de seus membros.
Djebal, que estava ali como batedor, espantou-se ao perceber que seu líder esquecera até mesmo o próprio nome e a missão que impusera a si mesmo e a seus bandoleiros: unificar todas as tribos do deserto e bandos zuagires sob seu comando, para invadir a cidade de Akbitana, agora governada por um sinistro mago stígio, por nome Sobek.
Interessado em dominar Shem Oriental e todo o Deserto Kharamun, Sobek – um renegado do Anel Negro, na Stygia, e expulso de seu país pelo próprio Thoth-Amon – assumira o comando de Akbitana, através de uma combinação de magia com aliados tribais, aos quais prometera (e dera) parte do tesouro real daquela cidade do deserto.
Ao assumir a chefia da cidade que conquistara, o feiticeiro stígio (que sacrificara cinco mulheres e cinco crianças na ocasião, em honra a Set, como primeiro ato oficial) tinha relativamente poucos poderes mágicos. Mas, a cada tribo conquistada, seus poderes sobrenaturais aumentavam.
Ele acusava Conan de “ameaçar todas as cidades shemitas”, mas o líder cimério – o qual preferira não levar adiante o plano do deposto Olgerd Vladislav, de invadir e conquistar Shem – vivia em pacífica relação comercial com a próspera cidade de Akbitana, enquanto Sobek, com seu exército tribal e magia, marchara até aquela cidade e a conquistara numa noite marcada por sangue e fogo, derrotando os exércitos locais, executando a Família Real da cidade e metade dos prisioneiros (e escravizando a outra metade), além de, após oferecer em holocausto as cinco mulheres e cinco crianças, sacrificar um décimo da população de Akbitana – homens, mulheres e crianças – à sua divindade malévola.
Conan havia ficado indignado com atitudes tão vis, não apenas pelo mero comprometimento do comércio entre os zuagires e Akbitana, mas pelos assassinatos covardes cometidos pelo mago. O cimério havia ficado furioso e revoltado com as execuções de pessoas inocentes e com os sacrifícios de moradores indefesos da cidade aliada.
Assim, encabeçando um exército de guerreiros zuagires a cavalo, para invadir Akbitana, e destronar o stígio, Conan se perdera do próprio exército ao aproximar-se da cidade. Tudo o que o cimério se recordava é de ter enfrentado, horas antes numa selva, homens baixos, fortemente constituídos, de pele morena, cabelos e olhos negros, pintados e ferozes, mas, indiscutivelmente, homens brancos, pouco antes de acordar, ao som dos uivos dos lobisomens que atacaram o shemita.
Enquanto isso, o homem que observava na bola de vidro ficou furioso com a frustração de um dos seus planos: o de matar Conan e Djebal.
* * *
Acreditando que a proximidade de uma cidade governada por um mago estivesse enfeitiçando seu líder e amigo, o shemita – o qual estranhava o fato dele e Conan não se encontrarem no Deserto Kharamum – resolveu procurar o acampamento e levá-lo de volta para lá, a fim de que o cimério recuperasse a memória.
No caminho, porém, Conan e Djebal encontraram uma bela jovem em apuros, acuada contra uma parede em ruínas e prestes a ser morta por uma serpente gigantesca e albina, de esmagador cheiro fétido. A serpente era maior que qualquer píton de eras posteriores, e suas presas pingavam um veneno mil vezes mais mortífero que o de uma cobra-real. Sua cabeça em forma de cunha era maior que a cabeça do mais gigantesco garanhão, seu tronco era mais grosso que o corpo de um homem, e suas escamas tremeluziam com mil cintilações mutáveis.
Desmontando, Djebal arremessou sua lança certeira, atravessando-lhe o pescoço por trás, logo abaixo das mandíbulas escancaradas, enquanto Conan, já desmontado, puxou sua cimitarra, montou no dorso escamoso da criatura que se contorcia de dor e, de um só golpe, decepou a cabeça da serpente gigantesca, acabando definitivamente com a vida da mesma.
Um belo sorriso adornou o lindo rosto marrom daquela belíssima morena, de baixa estatura, seios médios e firmes, cintura fina e largos quadris redondos. Seu sorriso não era apenas de agradecimento. Ela ficou fascinada pela estatura elevada e olhos azuis do cimério. Havia algo de familiar no que ela via – exceto pela pele morena e cabelos negros, Conan se parecia (em altura, corpo, cor de olhos e comportamento) com guerreiros loiros que, há não muito tempo, haviam passado por lá, sido parcialmente massacrados e vingados por um dos conterrâneos deles, segundo um amigo dela lhe contara.
Mas, antes que a morena pudesse fazer qualquer pergunta, o bárbaro, apesar de ver algo de vagamente perigoso nela (vagas lembranças lhe diziam que o povo dela era hostil ao dele), sorriu e acariciou as longas mechas negras da jovem, e seu olhar foi mais eloqüente que qualquer palavra. Assim, contagiada pelo desejo do cimério, a moça de olhos cor de ébano não conseguiu resistir aos fortes braços musculosos que lhe envolveram o corpo curvilíneo e a puxaram para um ardente beijo na boca.
Apaixonado pela jovem e esquecido da existência dos zuagires e de sua companheira shemita de cama, o bárbaro adentrou as ruínas de uma cidade, onde fez amor com a pequena e bela garota, enquanto seu leal amigo Djebal montou guarda na parte externa daquele local.
Durante a troca de prazeres carnais, em uma das salas menos arruinadas do local, a jovem nativa se mostrou experiente na arte de amar e surpreendeu o cimério, ao, não só permitir, mas implorar para que Conan a sodomizasse durante a relação. Ela não se parecia com as mulheres, conhecidas por ele, as quais gostavam disso, mas ele, é claro, atendeu ao pedido dela, após lubrificá-la adequadamente. Extasiado em vê-la sentir ainda mais prazer no ânus que na vagina, o cimério atingiu o clímax ao mesmo tempo em que a mulher de pele moreno-escura.
Após o orgasmo, eles descansaram lado a lado. Então, levantando-se sobre os cotovelos, ele perguntou-lhe o nome:
- Manatha – respondeu a jovem. – E o seu?
- Conan – ele respondeu, após um lampejo que lhe reduziu significativamente a amnésia.
Com a memória quase recuperada após o enlace amoroso, o satisfeito cimério começou a se vestir, e se surpreendeu novamente, desta vez ao ver o desenho de uma divindade feminina numa coluna – igual às representações de Ishtar, feita nas residências de Akbitana. Ainda surpreso, Conan viu uma outra criatura monstruosa sair da escuridão. Era uma serpente semelhante à que ele e seu amigo haviam matado, horas antes, só que menor – sem dúvida, um filhote. Os gritos de Manatha chamaram a atenção de Djebal, o qual partiu para ajudar o cimério a salvar a jovem ainda nua.
Ao chegar, ele viu o cimério enfiar uma lança, encontrada ao acaso no chão daquele quarto, na boca da criatura – pois não tivera tempo de agarrar a espada. Djebal completou o serviço do cimério, enfiando, até o cabo, sua cimitarra na cabeça da criatura. Esta se debateu durante um minuto – o qual mais pareceu uma eternidade, no qual sua cauda açoitava e esvoaçava – e, num último espasmo, morreu.
Após o último estertor de morte da criatura, o cimério e o shemita retiraram as armas do enorme corpo da mesma e perceberam que estavam na própria Akbitana, só que séculos ou milênios no futuro. Djebal atribuiu isso ao governante feiticeiro de Akbitana. Embora já se lembrando do próprio nome e missão, nomes como “Akbitana” e “Sobek” – assim como o de sua querida companheira de tenda Nazira – ainda eram meras lembranças, vagas e sem sentido, na mente de Conan.
* * *
As horas se passavam, mas, para estranheza de Conan e Djebal, a lua não se movia. Eles estavam prestes a interrogar Manatha – esta, montada na traseira da montaria que o cimério cavalgava –, quando repentinamente avistaram uma cena numa clareira: uma bela mulher, de pouco mais de trinta anos, seminua e amarrada a um tronco de árvore. Três selvagens atarracados, emplumados e pintados, vestidos com tangas de pele, cercavam-na.
Neles, assim como naqueles que o bárbaro enfrentara antes de reencontrar Djebal, havia uma feroz vitalidade inata, comparável apenas à de um lobo ou à de uma pantera. Em cada linha de seus corpos flexíveis e compactos, assim como em seus rudes cabelos lisos e lábios finos, isto era evidente – no feitio aquilino das cabeças sobre os pescoços musculosos, nos largos ombros quadrados, nos peitos profundos, quadris leoninos e pés estreitos.
Estavam se tornando caçadores de cabeças. Constituídos com a selvagem economia de uma pantera, eles era imagens de potencialidades dinâmicas. Um deles se punha a uma distância de dez metros da mulher atada e atirava um machado de ferro em sua direção. A lâmina se cravou no tronco de madeira, apenas dois centímetros à esquerda do rosto dela, cortando-lhe uma mecha do longo cabelo negro.
Sem pensar duas vezes, Conan arremessou sua lança, certeira, nas costas do que estava jogando com a vida da mulher, e com tal força que a ponta do longo dardo se projetou pelo peito robusto do selvagem de pele escura. O segundo investiu contra o grupo, mas Djebal desmontou.
- Deixe esse para mim, Conan! – disse o shemita, pouco antes de atravessar o pescoço do atacante, sem que este tivesse tempo de brandir a espada.
O terceiro tentou decepar a cabeça da vítima amarrada, mas um repentino e inesperado raio de luz azul saiu da mão estendida de Manatha, fulminando o pretenso assassino covarde, que caiu morto ao chão, com o peito e coração queimados e fumegantes.
Apesar de espantados com o fato de Manatha demonstrar poderes até então desconhecidos para eles, Conan e Djebal preferiram não olhar os dentes de um cavalo dado e correram em direção à mulher amarrada. Eles olharam rapidamente os corpos estendidos ao chão. Eram morenos e atarracados, e se pareciam bastante com Manatha, com traços ocidentais que causavam estranheza ao par de guerreiros. Djebal nunca vira um assim, mas Conan já. Este último, porém, não se recordava onde conhecera homens daquele tipo. Então, eles desamarraram a bela mulher na árvore.
Ao vê-la, o bárbaro cimério lhe reconheceu os negros cabelos cacheados, adornando sua bela pele marrom; a boca levemente avermelhada, os olhos negros, o par de seios fartos e morenos, e o voluptuoso corpo curvilíneo, coberto apenas por uma tanga de algodão. Então, ele recuperou totalmente a memória:
- Crom! Nazira!?
- Oh, Conan! – ela ofegou, por sua vez, num sorriso de satisfação.
Ambos se abraçaram e trocaram um beijo, enquanto Djebal consolava Manatha, explicando-lhe a situação – e ao mesmo tempo contente, pela consorte de seu líder não ter percebido o breve choro da garota, o que poderia ser bastante comprometedor ao seu amigo cimério.
Uma vez consolada, Manatha contou aos dois guerreiros que ela era uma picta, da tribo dos Tigres, liderada por Grom. Ela fora avisada, por seus poderes mágicos, que um guerreiro moreno, da altura e olhos dos homens da tribo do falecido Niord, matador de Satha e do Verme, apareceria, e que ela o ajudasse. Seu último ato de magia, antes de perdê-la (por culpa do feiticeiro Sobek), foi o de chamar este grande guerreiro para ajudá-la se necessário. Para sua sorte, apareceram dois: Conan e Djebal.
Uma vez mortos os dois monstros, seus poderes haviam retornado, enquanto o feiticeiro stígio, que os observava de longe em sua bola de vidro, os perdeu de vista. Assim, a jovem ergueu ambos os braços, fazendo uma cintilante bola azul brotar de ambas as mãos. A esfera luminosa, de uns 20 centímetros de diâmetro, se derramou sobre os quatro em forma de raios, semelhantes a uma enorme gaiola azul e fluorescente.
Em seguida, num clarão enorme, Conan, Nazira, Djebal e Manatha retornaram à época na qual os três primeiros viviam. Manatha por sua vez, apesar de desiludida com Conan, sabia que este havia perdido a memória recém-recuperada e, embora sabendo que tudo havia ficado bem na sua época, com o fluxo dos dias e noites normalizado, ela ficara ainda mais interessada pela época do cimério de olhos azuis.
“Afinal de contas”, pensou ela, “o shemita também não é tão feio assim... Além disso, é leal e tão alto quanto Conan”, concluiu intimamente a jovem maga, que sempre teve uma forte atração por homens bem maiores que ela.
* * *
Algumas noites depois...
No acampamento zuagir de Conan, Amin (que só obedecia ao bárbaro do norte e ao segundo em comando deste, Djebal) estava sozinho na sua tenda de paredes de seda, na qual pendiam tapeçarias trabalhadas a ouro, com o chão cheio de ricos tapetes e almofadas de veludo – a pilhagem de caravanas. Lá de fora, vinha um sopro baixo e incessante, o som que sempre acompanha uma grande multidão de homens, seja no acampamento ou não. Uma rajada de vento ocasional do deserto agitava as folhas de palmeira. Enquanto isso, figuras de mantos brancos se moviam entre as tendas de pêlos de camelo, discutindo, cantando, arreando cavalos ou afiando cimitarras.
No instante posterior, uma das sentinelas enviou um mensageiro ao grisalho Amin, informando-lhe da aproximação de dois homens a cavalo. Quando estes se aproximaram, o terceiro em comando dos zuagires sentiu o velho coração pular de alegria e felicidade, ao reconhecer os dois montadores que se aproximam.
- Conan! – exclamou ele. – Você e Djebal... vivos!!
- Sim, caro amigo – respondeu Conan, com o mesmo sorriso que Amin. – Vamos agir rápida e discretamente. Reúna cinqüenta homens do acampamento e nos sigam! Nazira e Manatha nos aguardam logo após aquela pequena elevação! Mande avisar aos demais zuagires.
- Certo, mas... quem é Manatha?! – perguntou Amin.
- No caminho eu lhe conto, velho amigo – respondeu Conan.
* * *
Os dias seguintes foram bastante movimentados para os quatro guerreiros e a jovem feiticeira. Para reunirem a maior quantidade possível de zuagires das tribos do Deserto Kharamun, eles recorriam aos poderes de Manatha, inventando-lhes que esta era uma deusa, a qual viera ajudá-los contra uma ameaça diabólica – o que, de certa forma, era verdade – e que, para isso, precisavam deixar as rixas tribais de lado e se aliarem àquele exército cada vez maior. Pouco a pouco, o cimério, Djebal, Amin, Nazira e a jovem picta do futuro foram obtendo êxito.
Então, numa noite pontilhada de estrelas, com as tribos finalmente unidas e os exércitos acampados numa planície a apenas quinze dias de Akbitana, Manatha e Djebal trocaram olhares de intenso desejo, e o shemita – agora mais tranqüilo que no dia em que a conhecera – levou a jovem para dentro de sua tenda.
As fogueiras do acampamento ainda estavam acesas, quando a bela Nazira avistou a cena e sorriu para Conan, dizendo:
- Eles nos deram ótimas idéias, não acha?
O cimério também sorriu e, tomando a parceira nos braços, caminhou para sua tenda e seguiu o exemplo de Djebal.
Observando tudo isso, Amin se amaldiçoou, por um momento, por não ter trazido a própria companheira. Mas depois, ele mesmo riu do próprio – e fugaz – instante de mau-humor.
* * *
A velha cidade de Akbitana, com suas mesquitas em honra a Ishtar – agora desonradas pela instituição dos sacrifícios humanos – e seus minaretes, tendas, templos, mansões e mercados, tinha seus muros assentados sobre uma elevação inclinada, de uns dez metros de altura, o que dificultava o cerco àquele local.
Então, usando de um mesmo ardil com o qual invadira Khauran, há poucos meses à frente dos zuagires, Conan conseguiu atrair para a planície os exércitos de Sobek, o qual só descobriu tarde demais a manobra do cimério: as supostas catapultas e torres de assédio eram meras estruturas pintadas à distância, feitas para enganar os guerreiros tribais do feiticeiro.
Do lado de fora, a formação relativamente desorganizada dos guerreiros tribais do feiticeiro não era páreo para a sólida formação de cunha dos exércitos de Conan, assim como suas superioridade numérica e a ferocidade, tanto dos lobos do deserto, quanto dos seus aliados das aldeias do Kharamun. Chuvas de flechas com pontas de aço caíam impiedosamente sobre os guerreiros pagos pelo stígio, enquanto akbitanos, nas muralhas, esperavam aqueles mercenários do stígio fazerem seu serviço de bucha de canhão.
Após isto, começou o combate corpo-a-corpo. As massas se fundiram, entremearam; de longe, era uma confusão emaranhada com detalhes indistintos. Ataque e contra-ataque não podiam ser identificados pelo povo akbitano que, das muralhas, assistia à batalha. Nuvens de poeira se ergueram nas planícies que os cascos pisoteavam, encobrindo a ação. Em meio àquelas nuvens rodopiantes, as massas de cavaleiros se avultavam, aparecendo e desaparecendo enquanto lanças luziam.
Apesar das baixas causadas às hordas zuagires e seus aliados, os mercenários do stígio e alguns dos soldados akbitanos – os quais receberam ordens de acompanhá-los, após as cataratas de flechas – não resistiam às cimitarras empunhadas por Conan, Amin, Djebal e Nazira – bem como por todos os guerreiros que vieram acudir Akbitana.
Os seguidores do bruxo que caíam vivos ao chão eram impiedosamente pisoteados pelos cavalos, montados pelas hordas do deserto. Relinchos, gritos de dor, ódio, triunfo e medo, se mesclavam ao inconfundível som de metal afundando em carne e ossos. Corpos, cabeças, membros, entranhas e miolos se misturavam, imóveis, ao chão.
No entanto, flechas continuavam chovendo das ameias de Akbitana. Mas os arqueiros zuagires voltaram a disparar, uma vez após outra e sem interrupção, suas flechas no exército rival até chegarem às ameias, nas quais os poucos arqueiros restantes da cidade foram impiedosamente flechados pelos de Conan, até que os muros de Akbitana ficassem totalmente sem defesa.
Ao finalmente escalarem os muros com cordas e adentrarem a cidade, os exércitos de Conan avançaram pelas praças vazias, onde sacerdotes que renegaram o culto a Ishtar tentaram apunhalar o líder dos invasores. Naquele momento, então, o cimério sorriu sinistra, vingativa e ameaçadoramente, lembrando-se das vítimas que eles, após arrancarem os corações, queimaram em praça pública. Então, numa velocidade que olhos humanos dificilmente acompanhariam, o líder cimério dos zuagires embainhou a espada e brandiu um braseiro próximo, queimando os mantos e togas de algodão e seda dos vis sacerdotes de Set, assim como a eles próprios.
Enquanto Djebal perfurava fígados e corações dos mercenários de Sobek, Conan, após ter dado cabo de todos os sacerdotes do Deus-Serpente, decepava e aleijava outros daqueles rivais, enquanto Amin perfurava pescoços e testas com sua cimitarra. Dois dos mercenários foram ao encontro do líder cimério dos zuagires, com as cimitarras erguidas, mas falharam em estimar corretamente a velocidade de seu ataque. Um deles caiu estripado antes que pudesse agir e, com a rapidez de um felino, Conan evitou a espada do outro e o dilacerou com um contragolpe que assobiou no ar. A cabeça do mercenário voou pelos ares; o corpo deu três passos cambaleantes sem ela, jorrando sangue e agarrando horrivelmente o ar com as mãos, caindo a seguir sobre o chão.
Quando os exércitos de Conan adentraram as ruas da cidade, o povo – até então, escondido nas casas – se encheu de esperança e coragem. Então, usando de pedras e de utensílios domésticos (pois Sobek os proibira de usar armas), a população de Akbitana começou a ajudar Conan a matar os soldados e guerreiros do stígio, bem como aos infames sacerdotes da Velha Serpente Set, os quais haviam sacrificado pessoas inocentes a mando do feiticeiro que usurpara o trono da cidade – esta, que como toda cidade shemita, só sacrificava vidas animais aos deuses.
Momentos depois, no alto do Templo de Pteor – uma das mesquitas transformadas em local de culto à infame Serpente Set –, os guerreiros vitoriosos da batalha moribunda avistaram os dois líderes rivais se defrontando...
- Você bem que merece a sua divindade, sacerdote dos infernos... – disse Conan, furioso, de espada em punho e avançando a passos lentos e ameaçadores em direção a Sobek, enquanto este recuava na mesma velocidade. – A serpente!... Um predador que, como você, nunca ataca os adversários de frente... covarde! Adorador de serpente maldito! Assassino de mulheres e crianças! Você, que mandou aqueles lobisomens infernais para tentar matar Djebal, e quase matou minha companheira com aqueles pictos do futuro! Pensou que conseguiria mesmo tirar minha memória por muito tempo, a ponto de deixar meu acampamento desprotegido?
Logo, o suado e ensangüentado cimério de cabelos negros notou que o olhar de medo daquele jovem feiticeiro, de cabelos em corte tão reto quanto o dele, era dirigido à jovem de vestido de pele, com cinto dourado, atrás de Conan. Era Manatha, com o braço estendido, o olhar firme e vingador, e a boca se movendo discretamente, enquanto sussurrava encantamentos. Naquele momento, Conan percebeu que a jovem do futuro estava minando as energias místicas do stígio.
Então, dando um salto de fazer inveja à mais ágil pantera, Conan acertou um golpe fatal de sua espada manchada de sangue no pescoço do feiticeiro, fazendo-lhe a cabeça despencar do muro e rolar ensangüentada pelo chão pavimentado. Logo, num som tão pulsante e regular quanto o rufar de um tambor ou a batida de um coração, todo o povo e os zuagires voltaram a gritar: “Conan, Conan, Conan!”. Mas este ergueu o braço e todos os seus seguidores silenciaram.
- Não precisam agradecer! – respondeu o cimério em voz alta, para que todos ouvissem. – Foi Manatha quem venceu a batalha por mim – ele acrescentou, olhando para a bela maga. – Que ela e Djebal sejam os novos reis de Akbitana! – concluiu Conan, que, já sabendo que ela se apaixonara pelo shemita, ergueu os braços do casal e uniu as mãos um do outro.
Um novo alarido de júbilo e aclamação invadiu a noite naquela cidade. Mesmo sabendo que conseguira evitar um futuro terrível, Manatha preferiu ficar naquela época (para ela, meio lendária, a princípio), por ter se apaixonado pelo homem que, meses antes, derrubara a cruz onde o cimério fora pregado.
* * *
Na tarde seguinte, todos os guerreiros que ajudaram a libertar a cidade de Akbitana estavam reunidos no Palácio Real da mesma. Travessas de esfirras, quibes, tabules, falafel, kafta, tâmaras maduras e outras iguarias da culinária de Shem Oriental estavam dispostas ao longo de uma enorme mesa na sala do trono. Conan, Nazira, Amin, cinqüenta zuagires – devidamente vigiados por um número ainda maior de soldados akbitanos – e todos os convidados para a coroação de Djebal e Manatha (antes da qual ambos se casariam) estavam banhados e vestindo luxuosas roupas coloridas de seda, linho e algodão, naquela ocasião solene.
Por serem bárbaros e não terem muita paciência para cerimônias, Conan, Djebal e o velho Amin foram os primeiros a se servirem com as iguarias, ali postas, da culinária shemita, seguidos pelos outros. Enquanto isso, bois e carneiros inteiros estavam sendo assados e servidos aos convidados, e a música de cítaras shemitas se misturava às dos tambores e flautas.
Djebal e Manatha estavam vestidos de branco, diante da mesa cheia de comida, enquanto o sumo sacerdote de Ishtar cantava. Então, este interrompeu sua canção e disse, de braços abertos:
- Lembrem-se deste momento, porque, depois destes votos a Ishtar, vocês dirão ao mundo as palavras que falarei agora.
Sorrindo felizes um para o outro, Manatha e Djebal repetiram as palavras do sacerdote.
- Este é o meu marido – disse a picta.
- Esta é a minha esposa – disse o shemita. – Eu, Djebal, aceito você, Manatha...
- Eu, Manatha, aceito você, Djebal...
- Para ser ninguém mais do que você é – os dois falaram em coro –, amando o que conheço de você e confiando no que não conheço; com respeito por sua integridade e fé, e seu amor incondicional por mim; por tudo o que a vida pode nos trazer, eu ofereço o meu amor.
Entre brados de júbilo e o agora acelerado bater incessante de tambores e tocar de flautas, ao som dos quais lindas morenas seminuas dançaram sensualmente, o casal se beijou apaixonadamente, e voltou a comer e beber mais um pouco.
Depois disso, os recém-casados sorriram, enquanto o sumo sacerdote se aproximou deles e lhes entregou o cetro. Com ele em mãos, Djebal novamente beijou os lábios de Manatha e, do mesmo modo que na noite anterior, ambos ergueram os braços, unindo suas mãos – só que, desta vez, segurando o cetro. Em seguida, o novo casal real da cidade, seguindo os costumes da mesma, ficou de frente um para o outro, cada um segurando uma coroa de feitio shemita.
- Eu, Manatha da Tribo dos Tigres, corôo-lhe novo rei de Akbitana, com as bênçãos dos deuses da minha tribo – disse a jovem, coroando o ex-zuagir.
- E eu, Djebal de Shem, corôo-lhe rainha de Akbitana, com as bênçãos de Ishtar – respondeu o novo monarca da cidade, imitando o gesto de sua amada.
FIM
Agradecimentos especiais: Aos howardmaníacos e amigos Osvaldo Magalhães de Oliveira, de Brasília – DF, e Marco Antonio Collares.