Um Novíssimo Recomeço... Vingança na Stygia



 Um Novíssimo Recomeço... Vingança na Stygia

(por Fernando Neeser de Aragão)



Eu estava em meu décimo ano de reinado sobre a Aquilônia. Em busca de vingança, naveguei do meu reino até o Mar do Oeste, até eu e meu exército chegarmos à Stygia. Eu jamais acharia as pistas para o alvo da minha vingança, se não fosse pela ajuda do sacerdote de Asura e amigo Hadratus, em Tarantia. Lá desembarcando sem ser visto, passei pela zona de cabanas e árvores, próximas a Khemi, e se algum estígio me viu, eu tive o cuidado de não me mostrar. As cabanas estavam às escuras. Atrás destas, as torres negras de Khemi avultavam de forma sombria contra as estrelas que se refletiam nas águas do porto. À minha frente, o deserto se estendia em total escuridão. Em algum lugar, um chacal ganiu. Não havia uma alma viva sobre todo aquele trecho daquela terra adormecida.

Meu coração bateu mais rápido, quando olhei para a sombria cunha negra, que se destacava contra as estrelas. Eu já havia estado lá antes, mas nenhum homem podia se aproximar de uma daquelas pilhas sombrias de pedra negra sem apreensão. Aquele local era símbolo de repulsivo horror entre as nações do norte, e as lendas que ouvi davam a entender que os estígios não as construíram; que elas estavam naquela terra em qualquer data antiga e imemorial, em que o povo de pele escura adentrou a terra do grande rio. Entretanto, não havia ninguém lá de guarda desta vez, pois meu exército mantinha, naquele momento, os estígios bastante ocupados na cidade.

Enquanto eu me aproximava da pirâmide, vislumbrei um brilho tênue próximo à base, que dentro em pouco se transformou numa entrada, ladeada por aqueles meditativos leões de pedra com cabeças de mulheres que eu já vira há seis anos – misteriosos pesadelos insondáveis cristalizados em pedra.

Mas, ao me aproximar da entrada da pirâmide, esta se abriu e me deparei com uma criatura de pesadelo que dela saía. Os olhos eram como tenebrosos vidros negros, sob os quais brilhavam sombrias chamas inumanas. Por Dagda e Diancecht! Era ninguém menos que Thothmekri – o sacerdote mumificado de Set, morto há três mil anos, e que agora investia contra mim, de kopesh na mão, como se ele nunca tivesse me dado o Coração de Ahriman, nem me ajudado a sair desta mesma pirâmide, há alguns anos! Por que diabos ele teria se voltado contra mim?

 Mas não havia tempo para especulações – até porque eu já suspeitava do motivo. Reagi com velocidade letal, sacando minha espada da bainha, segurando-a com as duas mãos e desferindo um golpe que passou abaixo dos braços da múmia, atingindo-lhe o tronco e cortando o corpo ao meio. Perdi o equilíbrio, uma vez que a força de meu golpe encontrou pouca resistência no torso daquele cadáver ambulante, e então me afastei.

Súbito, a parte superior daquele cadáver, que já era ambulante há seis anos, se arrastou em minha direção, como um caranguejo deformado. As mãos se agarravam à areia, para puxar o corpo mutilado adiante, com seus olhos de vidro escuro fixos em mim. E, desta vez, ele não mais falava, como na época em que eu o conheci. Aquela coisa, que há milênios fora Thothmekri, cerrava os dentes e emitia um sibilo seco, que demonstrava um terrível e inexorável intento. Senti os pêlos de minha nuca se arrepiaram e, mais uma vez, empunhei minha espada.

O cadáver partido se deteve, empurrou os braços sob o tronco e, em seguida, veio saltando em minha direção como uma aranha desajeitada. O ataque foi tão lento, que me bastou um passo ao lado para me esquivar. Minha espada golpeou e cortou um braço quase inteiro. Mas, se o ataque fora estranho, a reação do cadáver, não. A mão restante agarrou meu braço encouraçado e puxou seu corpo para perto de mim, com aquela tenebrosa cabeça enrugada tentando me morder o flanco. Os dentes se cravaram em minha cota de malha, enquanto eu girava e me contorcia, tentando me livrar daquele agressor macabro.

A criatura se agarrava a mim como uma meretriz desesperada, obrigando-me a usar o cabo da espada para lhe golpear os dedos que se agarravam como garras ósseas em meu braço. O cadáver conseguir se puxar para cima, e agora eu lhe fitava diretamente o rosto. Quando Thothmekri se estendeu para morder meu pescoço, livrei-me do cadáver, jogando-o no chão com força suficiente para quebrar ossos. O morto estendeu sua única mão em direção a mim, mas eu lhe pisei o crânio com força suficiente para esmagá-lo e enterrar seus fragmentos na areia. Recuei e, em seguida, metodicamente lhe pisoteei o corpo e o braço, até que tudo fosse enterrado no chão. Mas, enquanto praguejava, eu me deparei com outra coisa, ainda mais medonha e perigosa!

Ela se parecia mais com uma serpente gigante do que com qualquer outra coisa, mas possuía pernas abortadas e braços tortuosos com garras em forma de gancho. Arrastava-se sobre o ventre, contorcendo os lábios manchados para revelarem presas que pareciam agulhas, que notei estarem impregnadas com veneno. Sibilou enquanto elevava sua cabeça medonha num pescoço terrivelmente longo, e seus olhos brilhavam com todo o horror que é gerado nos negros corredores subterrâneos.

Então, acertei-lhe uma flecha num dos olhos, e a segunda flecha no outro. A coisa gritou – um grito hediondamente humano – cambaleou selvagemente e se lançou em minha direção. Mas, por ela estar cega, consegui me desviar de sua investida veloz. E, no momento seguinte, montei sobre seu gigantesco corpo e lhe fendi o cérebro diminuto com um giro descendente de minha espada. Se não fosse pelas patas atrofiadas, creio que eu confundiria aquela coisa com Satha, a serpente que me ameaçara há oito anos na Cidadela Escarlate.

Ofegando por alguns instantes, parei e escutei atenciosamente. A lâmpada a óleo ardia tenuemente, lançando vagas sombras nas proximidades da porta. Nada se movia na escuridão próxima à porta. Nada se movia na escuridão além. Entretanto, assim que dei os primeiros passos para dentro daquela enorme pirâmide negra, uma serpente, igual a uma que eu matara dentro da cidade de Khemi há seis anos, me atacou e, num instante, estava sobre mim como uma rajada de vento sobre a grama alta. Puxei um punhal de meu cinto e o cravei no pescoço daquele maldito “Filho Sagrado de Set”, como os estígios o chamavam. Mas o que fiz só pareceu enlouquecer o réptil gigante. Percebi que, de alguma forma, aquela serpente parecia menos interessada em me devorar do que em me arrastar para dentro da pirâmide. Seu grande tronco se enlaçou em mim e meu braço esquerdo havia sido envolvido pelo abraço esmagador, mas meu direito estava livre.

Firmando meus pés para me manter ereto, estiquei a mão, agarrei o cabo do punhal cravado no pescoço do réptil, e o arranquei numa chuva de sangue. Como se percebesse meu propósito com mais do que inteligência bestial, a serpente se contorceu e apertou, buscando envolver meu braço direito com suas curvas. Porém, rápida como um raio, minha longa faca subiu e desceu, cortando até a metade do gigantesco corpo do réptil. Então, os grandes rolos escamosos me soltaram e, enquanto o monstro caía ao chão, embainhei meu punhal e, ainda ofegante, desembainhei minha espada.

Atravessei a grande porta de bronze, que estava escancarada para dentro, e então desci o corredor, cautelosa, porém rapidamente, em direção ao meu destino de vingança. Não me afastei muito, quando vi o corredor se dividir em duas passagens. Sem hesitar, escolhi a esquerda. O chão se inclinava levemente para baixo e estava um pouco desgastado, como que por muitos pés. Aqui e ali, uma pálida lâmpada a óleo lançava uma fraca luz de pesadelo. Mais uma vez, me perguntei, inquieto, com que propósito aquelas pilhas colossais foram construídas, e em qual era esquecida. Era uma terra antiqüíssima. Ninguém sabia quantas eras foram vistas pelos templos negros da Stygia, sob a luz das estrelas.

Estreitas arcadas negras se abriam ocasionalmente à direita e esquerda, mas eu me mantive no corredor principal. O silêncio parecia uma coisa tangível, e eu tinha a sensação de não estar só. Mais de uma vez, passando por uma arcada sombria, pareci sentir sobre mim, como no dia em que estive aqui pela primeira vez, a mirada de olhos invisíveis. Eu me virei abruptamente, com o punhal erguido e todos os nervos vibrando, já sabendo o que me aguardava.

Uma mulher se encontrava na entrada de um túnel menor, olhando-me fixamente. Sua pele de marfim indicava-a como uma stígia de alguma antiga família nobre, e como todas aquelas mulheres, ela era alta, esbelta e voluptuosa; seu cabelo era uma grande pilha de espuma negra, em meio à qual brilhava um cintilante rubi. Exceto pelas sandálias de veludo e pela larga cinta, incrustada de jóias, ao redor de sua cintura flexível, ela estava quase nua; e seu sorriso diabólico expunha caninos afiados. A mulher estava dentro de uma câmara, iluminada por um curioso candelabro de sete braços, nos quais velas negras queimavam estranhamente. Eu sabia estar bem abaixo da terra. A câmara era quadrada, com paredes e tetos de negro mármore polido, e mobiliada à maneira dos antigos estígios: havia um leito de ébano, coberto com veludo negro, e num estrado de pedra negra havia um esculpido caixão de múmia.

E ela não estava só! A um comando daquela maldita vampira, chamada Akivasha, a quem eu encontrara há seis anos naquele mesmo lugar, outra maldita serpente saiu do canto mais escuro da câmara e se moveu, com incrível velocidade, em minha direção. Brandi minha espada com toda minha força, mas meu golpe apressado teve pouco efeito, porque cortou o tronco escamado sem decepá-lo, fazendo-me cair ao chão do túnel maior, diante do sarcófago daquela maldita morta-viva. No momento seguinte, eu estava me contorcendo, envolvido por escamas viscosas que se retorciam, esmagavam e matavam. Meu braço direito ainda estava livre, mas eu não conseguia desfechar um golpe mortal, apesar de saber que um único golpe seria suficiente para dar cabo daquela maldita cria de Set. Com uma sofrida contração muscular, que inchou minhas veias quase a ponto de estourar minhas têmporas e retesar meus tendões em nós pulsantes e torturados, consegui ficar em pé, levantando todo o peso daquele demônio de 13 metros.

Enquanto eu me esforçava ao máximo, para me desvencilhar da serpente que me envolvia o corpo e ficar de pé, aquela vampira desgraçada aninhou entre os seios algo bastante familiar, enquanto ria da minha cara. E, com uma gargalhada infernal, ela lançou, num braseiro ao lado do castiçal de sete velas, o objeto que havia aninhado no busto. Minha alma já inflamada ferveu de ódio. Ela, ainda gargalhando para mim, saltou em minha direção e, escancarando a boca, deixou mais uma vez seus caninos afiados à mostra e, enquanto sentia a leve mordida de Akivasha em meu peito, eu, tomado por uma fúria sem limites, soltei uma imprecação demoníaca e consegui, num esforço descomunal que somente a ira extrema é capaz de gerar, decepar o pescoço da maldita serpente e, logo depois, o da ainda mais maldita vampira, em dois jatos de sangue. Uma hedionda sombra escura fluiu do corpo decapitado de Akivasha, e sussurrou através do corredor, como um vento fantasmagórico; e, de alguma forma, eu soube que, finalmente, a Escuridão que se apossara há dez milênios da filha de Tuthamon a havia abandonado, e que a maldita vampira stígia estava definitivamente morta. Qualquer que fosse o prazer profano que animava a primeira princesa da Stygia, ele a havia abandonado com o decepar de sua cabeça.

Infelizmente, o que a maldita morta-viva lançara ao braseiro havia sido consumido totalmente pelas chamas deste último. Então, com a cabeça decepada de Akivasha presa ao meu cinto, saí daquela pirâmide maldita. Então, a entrada de bronze ficou diante de mim, senti o vento noturno soprando de um lado ao outro do deserto, e vi as estrelas e o deserto iluminado pelas estrelas, através do qual se estendia a grande sombra negra da pirâmide. A Stygia era uma maldita civilização de feiticeiros que, sob uma aparência de progresso e de maravilhas científicas, praticava sacrifícios humanos e as feitiçarias mais sombrias. Mas ainda havia outra luta a ser vencida. Um dia, quando toda a civilização e a ciência forem varridas, os sobreviventes rezarão por um homem com uma espada.


* * *


Meus homens haviam trazido catapultas nos navios, queimaram toda a frota stígia – como eu havia feito quando navegava ao lado da saudosa Bêlit –, arrasaram quase metade da cidade com aríetes e haviam atacado os estígios como uma tempestade, entrando pelas brechas abertas nas muralhas ou minando as mesmas por túneis. Milhares de guerreiros de Khemi haviam sido mortos. O Rei Ctesphon, segundo me contaram, havia se escondido em seu palácio, como um pássaro engaiolado no próprio ninho, tremendo de medo e rezando a Set para que o exército aquiloniano fosse logo embora dali. Rampas e fortificações haviam sido feitas, para melhor entrada dos aquilonianos na cidade. Lâminas reluziam em meio às chamas vorazes que transformavam a noite daquela cidade em dia, fazendo corpos e crânios tombarem pesadamente ao chão, entre jatos e golfadas de sangue. Logo, desembainhando minha espada outra vez e soltando um feroz grito de guerra, me juntei à batalha.

Abri o crânio do primeiro estígio que me atacou, fazendo-lhe os miolos escorrerem de sua cabeça até suas vestes; transpassei o peito de outro e o arremessei contra seus companheiros, para em seguida decepar a cabeça de um terceiro. Detive o giro descendente da espada curva de outro maldito adorador de Set com meu escudo e lhe atravessei o pescoço com minha espada. Suas espadas em forma de foice, maças de madeira polida, leves machados de batalha, e arcos de poder evidente não foram páreos para o exército da Aquilônia, com seus cavaleiros de Poitain, seus arqueiros da Bossônia, seus lanceiros da Gunderlândia e sua infantaria. Abri o peito de mais um, num giro sangrento de minha espada larga; outro tentou me acertar com sua longa flecha farpada, mas eu me esquivei e arremessei fatalmente minha lâmina em seu pescoço. Apanhei uma espada aquiloniana caída no chão e, concluída a refrega, voltamos ao meu navio. Os estígios, que haviam recuado até o palácio, ainda estremeciam lá, desmoralizados, quando minha frota ganhou o mar aberto.



Mas meu coração ainda estava sombrio, mesmo após a vitória. Pois, apesar de trazer comigo a cabeça de Akivasha, a lembrança da minha filha primogênita Pandora, de cinco anos de idade, chorando sobre o corpo decapitado da minha amada rainha Zenóbia, cuja morte eu acabara de vingar, iria me atormentar pelos anos futuros.



FIM


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