Um Novíssimo Recomeço... Shushan



Um Novíssimo Recomeço... Shushan

(por Fernando N. de Aragão e Osvaldo Magalhães)


Quando acordei, o sol já estava alto no céu. As ondas de calor tremiam sobre as areias estéreis. O ar estava quente, parado e seco, como se o céu fosse uma tijela invertida, ardendo em brasa.

Cambaleei sobre os joelhos e apertei minhas têmporas que latejavam. Minha cabeça doía, como se tivesse sido atacada a pauladas ou chicoteada com os rabos de mil demônios.

Ergui-me indeciso e fiquei parado, oscilando de um lado para o outro. Com a vista embaçada, forçando meus olhos contra a intensa claridade, olhei ao redor. Eu estava sozinho, naquela maldita terra seca.

Resmunguei uma maldição contra os zuagires. Todo o bando havia desfeito o acampamento e desaparecido, levando os apetrechos, os cavalos e as provisões. Ao meu lado, havia duas sacolas de pele de cabra, cheias d'água. Vadoma e seus companheiros nada mais haviam deixado, além das sacolas d'água, minha malha de aço e a capa, assim como minha espada.

Tornei a cair de joelhos e puxei o cordão de uma das sacolas d'água. Erguendo o recipiente com o líquido morno sobre a cabeça, lavei da boca o gosto ruim que sentia, e bebi um pouco, tornando a fechar a sacola antes de saciar por completo a tremenda sede que me consumia. Embora tivesse vontade de derramar toda a água sobre minha cabeça latejante, minha razão falou mais alto. Se eu me perdesse naquela vastidão deserta, cada gota seria necessária para garantir minha sobrevivência.

Apesar da dor de cabeça e de ainda estar confuso, eu começava a me lembrar do que tinha acontecido. Said, o companheiro supostamente falecido de Vadoma, estava vivo e aparecera no acampamento, duas noites após minha primeira relação sexual com a zamoriana, mas ela nos dissera que não sabia de sua sobrevivência e que, por isso, havia me tomado como amante. E ele garantira me aceitar como novo parceiro da zamoriana. No entanto, eu me lembrava antes de desmaiar após beber um vinho drogado que Vadoma me servira, ela e Said se abraçaram e beijaram diante de mim, enquanto eu perdia os sentidos. Vadia ingrata! Que ela e seu companheiro queimem em Hades! Agora, com um gemido surdo, eu amaldiçoava aqueles dois traidores com uma quantidade ainda maior de palavrões.

E talvez o meu dia tivesse chegado. Lenta e dolorosamente, procurei examinar melhor a minha situação. Minhas chances não pareciam ser boas. Eu tinha água suficiente para um par de dias, se fizesse bastante economia. Talvez até três, se eu corresse o risco de enlouquecer, limitando ainda mais o consumo. Eu não tinha comida e nem montaria, o que significava que teria de tentar sair dali andando.

 

* * *

 

Levantei-me devagar, mas dessa vez foi diferente. Antes, o meu despertar tinha sido doloroso, era difícil abrir os olhos pegajosos para olhar pela claridade intensa do sol abrasador, erguendo-me devagar para cambalear para a frente, sobre as areias escaldantes. Desta vez, acordei com facilidade, com uma sensação alegre de satisfação e conforto. Travesseiros de seda davam apoio à minha cabeça. O local onde eu me acordara era uma tenda turaniana, de mais de seis metros de diâmetro e cintilante em seu suntuoso tecido de ouro. Em seu interior, ricos tapetes macios de Turan forravam o chão, de modo que nenhum grão de areia maculava os pés de quem nele caminhasse. Ao longo das paredes inclinadas, lâmpadas de porcelana, prata e ouro ardiam mansamente sobre tamboretes entalhados de teca.

Minha espada estava sobre uma mesa de mogno negro ao lado do catre, assim como minha malha de aço.

Instintivamente, estendi meu braço direito sobre a mesa e puxei minha espada de sua bainha, com a cautela silenciosa do tigre que se aproxima de uma presa.

— Guarde seu espeto de aço, cimério! Na minha tenda, você não vai precisar!

A voz não me era estranha, mas no mesmo instante em que a mulher terminou de falar, eu já estava com seu pescoço em minha mão esquerda e a ponta da espada em seu olho esquerdo. Então, o brilho do reconhecimento se alastrou em meus olhos e eu a soltei com espanto.

— Lir an Manannan Mac Lir! Muriela!? Por Crom, garota! Que diabos faz aqui? — eu perguntei.

— Eu vivo do deserto, Conan — disse ela, massageando, com as mãos pálidas, o local onde minha mão quase esmagou sua traquéia. — Sou dona de uma caravana agora. Não é a vida de uma deusa em Alkmeenon, mas é melhor do que cavalgar abraçada às costas de um bárbaro do norte — ela riu.

Então, ela se sentou sobre o catre, se espreguiçou languidamente como uma gata e me indagou:

— Não quer saber como veio parar aqui?

Eu ainda estava atordoado com a surpresa de encontrar uma amante do passado em pleno deserto, mas me sentei ao seu lado, como um homem senta para conversar com uma criança.

Eu não soube como, mas Muriela me estendia uma taça de vinho e segurava uma jarra dourada que eu não havia percebido antes.

Sorvi o vinho com sofreguidão e minha memória foi tateando pelo véu do esquecimento, como um cego tateia as paredes de uma casa que ele não conhece.

— Inferno! Agora começo a me lembrar... eu estava delirando de calor, fome e sede quando, ao subir uma duna no início da manhã, pensei ter avistado rastros de camelos e pegadas humanas na areia escaldante lá mais embaixo. Então cambaleei pela duna em direção aos rastros e não me recordo de mais nada.

— Deodan de Vendhya, que sempre se atrasa quando a caravana parte pela manhã, o encontrou quase morto, estirado na trilha — disse Muriela. — A sorte sempre o acompanha, não é mesmo, bárbaro?

— A sorte é uma amante ciumenta, garota. Pode lhe dar muito prazer ou uma morte agonizante de uma garganta cortada — eu respondi.

Então rimos como nos velhos tempos — eu e Muriela, a quem eu conhecera, anos atrás, em Akbitana, e cuja vida eu salvara um ano depois, em Keshan; e que agora era dona de uma caravana, e também guerreira. Apesar de todo o estilo hirkaniano da barraca onde acordei, tratava-se apenas de um presente que lhe fora dado pelo sátrapa Junghir Khan de Zamboula — ela não era nenhuma aliada dos malditos Filhos do Lobo Branco. E, apesar das várias cicatrizes no rosto e corpo, e do nariz quebrado — decorrentes de inúmeras batalhas —, a ex-escrava coríntia continuava tão bela quanto no dia em que eu a conhecera. Muriela me salvara, não apenas por sua gratidão e atração física por mim, mas também porque precisava de minha ajuda, para salvar ninguém menos que... Lívia de Ophir, a qual estava aprisionada na cidade shemita de Shushan!

— Mas, antes do resgate... — ela disse, despindo sua esmeradamente bordada túnica de lã branca e sorrindo para mim, com seus olhos negros queimando com um fogo inconfundível. Eu a agarrei ferozmente; ela se rendeu em meus braços e ficou imóvel, ofegando, com paixão voraz, diante dos beijos que dei em todo o todo o seu corpo alvo e esguio. Muriela apertou suas macias palmas das mãos contra meu rosto, para me atrair novamente até ela. Minha mão se fechou sobre um de seus seios de marfim e o apertou. Ela voltou a ofegar. Seu hálito era ardente e perfumado, ela parecia quase desmaiada de prazer, enquanto seus seios arfavam com a respiração cada vez mais rápida e seus lábios se entreabriam, murmurando algo do fundo da garganta. Logo, nossos sentidos foram arrebatados, numa rodopiante nuvem prateada de orgasmo!


A guarda-costas de Muriela era uma ex-rainha das amazonas — uma mulher negra e alta, como todas as suas conterrâneas — e era muito forte, além de caolha devido a batalhas. Seu curto vestido de pele de leopardo possuía uma única alça, a deixar um de seus negros seios firmes à mostra. Guerreira ainda mais valente e destemida que as demais amazonas, ela andava sempre armada com uma lança na mão, bem como com uma espada — comprada dos stígios, em suas trocas comerciais — pendurada ao cinto que prendia sua única peça de roupa, além de uma balestra, também pendurada ao cinto. E ela usava a juba inteira de um leão sobre seus belos cabelos negros e crespos.

Em Amazon, segundo ela me contara, os homens nunca haviam reinado. Suas casas eram muito pobres, exceto as da rainha e de sua corte. As mercadoras eram excessivamente ricas, e muitos negros iam lá comprar roupas, trazidas da Stygia e de Keshan. As mulheres do reino de Amazon eram todas treinadas para a guerra — verdadeiras versões negras das cimérias e cherkessianas. Suas montarias consistiam principalmente em rinocerontes especialmente domesticados e zebras. Ela havia governado a parte leste daquele país, declarara independência ao reino de Amazon e, reunindo um poderoso exército, também havia declarado guerra à rainha do país, com a intenção de conquistar o lado oeste daquele reino. Mas a rebelião havia fracassado, e ela tivera de fugir, para não morrer.


* * *


Quando as sombras começaram a se alongar sobre as dunas tingidas da luz rubra que antecede o anoitecer, eu, Muriela e sua guarda-costas partimos para o resgate de Lívia.

Teríamos que cobrir a distância entre o oásis e Shushan, ao longo de duas noites e um dia inteiro, para alcançar nosso destino pouco depois do nascer do sol do segundo dia.

Íamos a cavalo, montarias mais adequadas a uma fuga do que camelos, num trote contido para não cansar os animais. A amazona conduzia um cavalo extra para Lívia, o qual carregava nossos parcos mantimentos.

Era uma missão objetiva: infiltrar, localizar, resgatar e escapar. Tudo seguindo o plano que delineamos, com um mapa tosco e as informações de um espião que Muriela enviara a Shushan, há cerca de trinta luas.

Nossa viagem transcorreu sem qualquer incidente.

Na primeira noite, atravessamos várias milhas antes de nos recolhermos aos pés de um amontoado de rochas, onde aproveitamos a sombra para dormir.

Mas, no amanhecer do segundo dia, já próximos de nosso destino, avistamos poeira.

A dois quilômetros de distância, subiam anéis de poeira. No início, pensávamos que fosse fumaça de fogueiras, como acontece no outono, quando os cultivadores de tâmaras queimam pilhas e pilhas de palhas secas.

Mas os anéis viraram espirais e as espirais, nuvens. A frente de poeira se alargou como o leque de uma cortesã. Trinta mil guerreiros turanianos marchando não poderiam erguer tamanha agitação.

Então, ao alcançarmos o alto de uma enorme duna, avistamos as cúpulas das torres de Shushan, e, entre elas e o deserto à nossa frente, descobrimos a causa das nuvens de poeira.

De um lado, com berros roucos e brados estridentes, o exército de Shushan seguia seu líder, cavalgando na direção do sol nascente em formação cerrada, o solo tremendo sob os cascos dos seus cavalos, suas silhuetas aquilinas destacadas contra o horizonte e prestes a colidir contra os turanianos. Do outro lado, ao alcance de um tiro de flecha, o exército turaniano vinha do leste — todos eles, arqueiros a cavalo e homens altos e esguios, porém fortes como o aço. Estavam cobertos, da cabeça aos pés, por armaduras prateadas, que caíam como uma luva em suas formas esbeltas. Seus elmos pontudos e espiralados de aço — sendo que o do seu líder Toghrul Agha tinha forma de domo e era folheado a ouro —, cortavam o céu azul como punhais. A quantidade de turanianos se igualava à dos shemitas do exército de Shushan.

Segundo Muriela me contara, aquela cidade, séculos antes, havia feito parte de um império que dominava aquela região até o norte, rumo a Khawarizm (na época, governada por xás); ao sul, até o Iranistão e margem leste e nordeste do Rio Styx, bem como à fronteira norte de Keshan e Punt; e a leste, até o Deserto Kharamun, Ghulistão, assim como Bakhaura e Khorala, nas fronteiras ocidentais de Vendhya; e, ao norte do Ghulistão, até Khurusun (*) (na época, um sultanato). Mas, com invasões e rebeliões shemitas, turanianas, iranistanis, afghulis e de outros povos, Shushan terminou sendo reduzida a uma mera cidade — um centro de riquezas, de mulheres bonitas e de muita alegria, onde só faltava o vinho correr livre como a água das fontes, mas, mesmo assim, apenas uma cidade —, situada no limite entre os prados de Shem Ocidental e os desertos de Shem Oriental.

E, em Kharamun, Muriela prosseguira, os estandartes do triunfo daquele império outrora poderoso haviam se pulverizado e sido varridos. Os vestíbulos, por onde os conquistadores tinham caminhado, haviam se tornado montões de pedras, cobertas pelas eras. Reis tinham cavalgado por ruas agora enterradas na areia, a qual agora se acumulava onde outrora seus generais tinham ficado em meio a uma floresta de lanças. Opressor e oprimido jaziam lado a lado agora, na tumba do nada, com a boca cheia de terra. Aqueles que amavam e aqueles que odiavam assemelhavam-se no seu desaparecimento, sem deixar nenhum traço atrás de si. Multidões haviam chorado ali, e se rejubilado, e delas não restara nenhum vestígio. Quando adentramos furtivamente aquela cidade, a troca de flechas entre shushanos e turanianos já havia começado.



O zigurate, onde Lívia estava aprisionada, ficava na praça central, separada dos portões pela avenida principal de Shushan. Naquele longo trajeto, acontecia, segundo Muriela, o comércio da cidade; e, nas laterais, no alto, via-se que perfilava um sem-número de casas e monumentos escavados nas rochas coloridas, ao estilo sabateano. O zigurate, no final daquela avenida, era um dos maiores que já vi, consistindo numa torre de sólidas pedras talhadas, de duzentos metros de comprimento e de largura, sobre a qual se erguia uma segunda torre, e nesta, uma terceira, e assim sucessivamente, até chegar a oito. A subida para o topo era feita pelo lado de fora, por um caminho que circundava todas as torres. Mas preferimos adentrar o local por dentro, através de um túnel secreto, cuja entrada se situava do lado de fora das muralhas de Shushan — pois o manto da noite não seria suficiente para nos ocultar. E havia um guarda gigantesco, cuja força equivalia à de uns três shemitas, vigiando a entrada da torre.

A amazona investiu contra ele. O gigante lhe agarrou os pulsos, mas ela se desvencilhou com uma joelhada em sua barriga e, erguendo-o acima da própria cabeça, o arremessou a uma grande distância. O homem se levantou, desembainhou e brandiu sua espada longa contra a amazona, mas ela se esquivou e lhe acertou um chute nos testículos. Em seguida, a negra o agarrou por trás e estrangulou até lhe quebrar o pescoço num estalo seco. Então, desembainhamos nossas espadas e adentramos a construção, subindo todos os andares e matando quem tentasse nos barrar e matar.

Dentro do oitavo andar do zigurate, havia uma sentinela entre nós e os guardas que vigiavam Lívia. Corremos até o shushano e, antes que ele pudesse abrir a boca para soltar um grito de alerta, Muriela lhe enfiou profundamente a espada na barriga. Ainda assim, lutando para avisar os guardas, ele mordeu a mão da coríntia e, mesmo morrendo, com o ventre esguichando sangue, sua força era igual à minha. Afastando a mão de Muriela, ele lhe acertou uma joelhada na barriga. Logo, antes que ele gritasse, eu entrei em ação, acertando-lhe um pontapé na têmpora. Seu corpo agonizante se arqueou, seus braços se debateram no ar e pisei fortemente em seu rosto, de modo que minha bota lhe esmagou os olhos, terminando de matá-lo.

Outro daqueles cães me agarrou a garganta e desarmou-me, empurrando-me até a parede. Mas, sacando meu punhal, eu o enfiei, até o cabo, em seu olho, perfurando-lhe o cérebro. Puxando meu punhal daquele cadáver e reavendo minha espada, voltei ao combate, decepando membros e cabeças com nossas lâminas afiadas.

Enquanto isso, outro guarda agarrou Muriela por trás, prestes a esfaqueá-la. Mas, antes que eu pudesse ajudar minha parceira, ela puxou sua própria adaga e o apunhalou na coxa. Arremessando meu punhal na testa do homem, eu terminei de salvar a vida da bela coríntia. Esta, ignorando o peso do shushano, arremessou-lhe o cadáver num braseiro, onde as vestes do morto pegaram fogo e, ao mesmo tempo, as chamas derramadas por aquele mesmo braseiro serviram temporariamente de barreira, entre eles e nós.

Súbito, um dos shushanos agarrou Lívia e ergueu a espada contra a indefesa ophiriana ajoelhada. Muriela investiu contra ele e estava prestes a lhe abrir as costas, para salvar a loira, quando outro guarda a acertou por trás com um porrete, dando-a como morta. Desesperado e a uma boa distância, corri até elas. Um dos guardas me barrou o caminho, mas eu me esquivei do giro de sua cimitarra, decepei-lhe a perna na altura do joelho, e em seguida sua cabeça num giro sangrento. Outro soldado de Shushan tentou me abrir o crânio, num giro descendente de sua espada, mas aparei seu golpe com minha lâmina e o parti ao meio, na altura da cintura, numa explosão sangrenta de tripas e outras vísceras sobre o chão daquele recinto.

Enquanto o sujeito agarrava Lívia pelas tranças, Muriela se agitava levemente, mas ainda sem sentidos. Ele apontou sua espada no pescoço da ophiriana, para cortar a garganta da loira. Então, ouviu-se um grunhido e um baque... e o shushano jazeu com o crânio aberto por um golpe de espada da recém-desperta Muriela da Coríntia. Troquei um breve beijo de agradecimento com a guerreira de cabelos negros e, tomando Lívia pela cintura, ela a desamarrou e fugiu conosco daquele recinto, enquanto eu e a amazona dávamos cobertura às duas hiborianas, matando os guardas remanescentes e descendo as escadas.

Assim que chegamos ao quarto andar, um fedor insuportável invadiu nossas narinas. Era um cheiro almiscarado, que não consegui identificar, mas que enviou mil pontadas de alarme por todos os nervos de minha nuca. As três mulheres comigo também sentiram. Não apenas o cheiro, mas também a presença. Porque algo morava lá. Algo diferente do que sabíamos até agora. No entanto, fosse o que fosse, não estava à vista.

Então, sem dizer uma palavra, continuamos a descer as escadas, sem ousar olhar para trás. Não sei por quanto tempo estivemos descendo. Pareceram séculos para mim, embora tenham sido apenas alguns minutos. O frescor do ar puro da noite chegava às nossas narinas. Por fim, e depois de uma descida que nos parecia interminável, desembarcamos do último lance de escada e contemplamos o que deveria ser o Templo de Ishtar.

Estávamos em uma grande câmara, cujo teto abobadado se elevava a uma altura de mais de nove metros acima de nossas cabeças. No meio da vasta sala havia uma estátua gigantesca. A luz da tocha não iluminava sua figura o suficiente, mas vislumbramos uma figura humanóide colossal, em nada parecida à deusa do shemitas. Estava agachada e curvada, com pernas largas escamosas e enormes pés palmados apoiados em um pedestal maciço. Sua cabeça, afundada nas sombras do teto abobadado, não era visível, mas densos fiapos de barba pareciam cair dela. De repente, senti algo agarrar meu peito com força de ferro e ouvi o grito de Lívia. Eu gritei de puro ódio enquanto tentava forçar para soltar-me, movendo a mão para tentar desembainhar minha faca — vez que a pressão me havia desarmado. Foi inútil. A presa de nosso inimigo prendeu meu braço direito, então tentei torcer meu braço esquerdo para agarrar meu aço. 

A tocha havia caído no chão, mas sua luz bastou para iluminar a amazona, que estava estirada de bruços, esparramada com um enorme braço peludo prendendo-a contra o chão. Aquele ser simiesco havia nos subjugado com ambas as mãos. Muriela tentou nos soltar, mas em vão. Aquele ser impuro nos segurou como se fôssemos crianças, imobilizando-nos o melhor que pôde, para nos impedir de contra-atacar. Em vez de me fazer sentir desamparado, isso me enfureceu além do que eu pensava ser possível. Uma onda de fúria carmesim começou a fluir diante dos meus olhos, enquanto eu sentia as veias do meu pescoço e da minha testa incharem a um ponto insuportável de tensão. 

Soltando um grito mais parecido com uma fera do que com um ser humano, terminei de torcer meu braço esquerdo até conseguir agarrar o cabo da minha adaga e, sem perder um único momento, mergulhei-a com todas as minhas forças na mão que segurava meu peito e braço direito, sem me importar que a fúria do meu ataque pudesse perfurar a pata do meu inimigo, cravando em meu peito. Bem, nada mais importava para mim. Eu não estava esfaqueando para me libertar e escapar. Eu só queria continuar apunhalando aquela garra e me soltar o suficiente para que eu pudesse me virar e morrer olhando para o meu atacante, encarando-o com tudo que eu tinha. 

Senti a ponta da faca arranhando minhas costelas depois de atravessar a carne dura daquela coisa, mas não parei de apunhalá-la, uma e outra vez, até que seu aperto cedeu e eu pude me virar, rugindo de raiva, com os dentes cerrados e uma torrente de espuma saindo dos cantos da minha boca. 

Então, finalmente, eu vi. O ser era uma espécie de homem-macaco de quase três metros de altura. Dizer que se parecia com um enorme gorila não faria justiça, pois possuía inúmeros atributos humanos que os primatas ainda não desenvolveram. Era mais uma espécie de híbrido, parte gorila e parte humano gigante com musculatura poderosa, mas estranhamente bem-distribuída.

Quase imediatamente, ouvi minha parceira gritar e, segundos depois, ouvi o som de sua balestra. O ser deu alguns passos para trás, até a escada que levava ao subsolo do zigurate, mas sem deixar de nos observar, e então pudemos contemplá-lo em toda a sua magnitude: um gigante peludo e esguio, com rosto de símio, grandes presas e pequenos olhos amarelos com olhar maligno... um macaco humano, cujos músculos protuberantes agora sangravam em vários pontos sem parecer causar-lhe o menor desconforto, além de o terem feito recuar alguns passos e agora se mover com cautela. 

Com o canto do olho, vi a amazona, estendendo o braço que segurava sua balestra. Mirando com sangue frio, ela levou alguns segundos antes de disparar outra flecha, diretamente na cabeça daquela cria do amanhecer dos tempos. O homem-macaco monstruoso caiu para trás com uma seta cravada acima dos olhos... Mas não entrou em colapso. Apoiando-se nos cotovelos, ele ficou em pé, embora seu olhar estivesse vidrado. 

Inesperadamente, com um sussurro misterioso que gelou o sangue em nossas veias, algo desceu sobre ele, vindo da escada... Algo que poderia ser uma cobra enorme, mas cujo comprimento não poderia ser inferior a oito ou dez metros. Enrolou-se em torno do enorme peito do macaco humano, abrindo suas mandíbulas na frente de seu rosto peludo, enquanto a cria de símio, desnudando-se em um rugido mudo, se lançou com garras e presas contra a cabeça da enorme serpente. 

Não sei como algo assim poderia ser possível. Aquela coisa deveria estar morta, não por causa das minhas punhaladas e da primeira flechada da amazona, mas por causa da flechada na testa que acabara de receber. Mas sua raiva parecia compeli-lo a continuar lutando, rasgando a carne escamosa da horrível serpente com suas garras e presas tortas, como se seu corpo, embora morto, continuasse a se mover por conta própria, travado naquele último combate mortal contra um oponente digno dele. Por fim, com seu último suspiro, o homem-macaco decapitou o réptil com um golpe de suas garras, cujo ímpeto os precipitou pela escadaria rumo ao subsolo.

Nós quatro aproveitamos e fomos embora, antes que a criatura simiesca saísse de lá de baixo. Quem quer que a tenha conjurado, que se entendesse com aquela coisa!


Ao sairmos de Shushan, com Lívia em meus braços, vimos que, pela primeira vez desde a morte de Yezdigerd, o povo daquela cidade havia rechaçado o ataque daqueles turanianos — só que à custa de inúmeros soldados e oficiais shemitas. Quase todos os adoradores de Erlik — exceto pelo líder Toghrul Agha e uma dúzia de turanianos, a fugirem juntamente com ele — estavam mortos, mas os shushanos também estavam quebrados, feridos, com suas roupas e armaduras esfarrapadas, e ofegantes devido a uma vitória difícil. Somente duas dúzias de shemitas sobreviveram àquela dura e árdua batalha. Eu, Muriela, Lívia e a amazona ficamos até gratos pela inesperada invasão dos malditos hirkanianos — pois, sem eles para distraírem Shushan, nós jamais teríamos conseguido buscar a ophiriana —, e partimos para oeste, sabendo que nem Shushan nem Turan estariam do nosso lado.

Chegando em Akkharia, eu as apresentei ao Rei Ur-Naram, para quem eu trabalhara como mercenário há mais de um ano, e este lhes deu altos cargos na nobreza. Akkharia, onde Ishtar, deusa de todos os shemitas, era a expressão da consciência de seu poder; por meio dela, esperava-se a vitória e a salvação, com ela se possuía confiança na natureza que dá o que o povo necessita — sobretudo a chuva —; e a quem o povo era grato pelo ciclo das estações e por todo o êxito na criação dos rebanhos e na agricultura — uma deusa que os ajudava, que dava conselhos; que, no fundo, era a palavra que designava toda feliz inspiração de coragem e de confiança em si. Então, após receber mil peças de ouro, juntamente com provisões daquele rei solícito dos akkharim — além de ter tido outra noite de relações sexuais com a agradecida Muriela e as recém-reencontradas Bajihja e Octávia —, viajei para norte, em direção a Koth.


FIM


Nota: Embora o nome correto do sultanato — e, mais tarde, cidade — seja Khorusun (ver “O Demônio de Ferro”), Conan — como todos os não-nascidos em Turan ou na Hirkânia — costumava chamá-la de Khurusun (ver “O Povo do Círculo Negro”).

Agradecimento especial: Ao howardmaníaco e amigo Deuce Richardson, dos EUA, ao filósofo Friedrich W. Nietzsche (1844-1900), à escritora estadunidense Taylor Caldwell (1900-1985) e ao historiador José Ademar Kaefer.

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